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Nº 3, 2011 - Faculdade de Direito da USP

n. 3, 2011 Parte 1 TENDÊNCIAS E DESAFIOS DO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO∗ Grupo de Pesquisa 1 - CNPq∗∗ Líder: Monica Herman S. Caggiano Organ...
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n. 3, 2011 Parte 1

TENDÊNCIAS E DESAFIOS DO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO∗ Grupo de Pesquisa 1 - CNPq∗∗ Líder: Monica Herman S. Caggiano Organizador: Alexandre Sanson Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) ∗

O conteúdo dos artigos é de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), que cederam à Comissão de Pós-Graduação em Direito, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, os respectivos direitos de reprodução e/ou publicação. Não é permitida a utilização desse conteúdo para fins comerciais.

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Resultado dos trabalhos do Grupo de Pesquisa, 1, para o SEMINÁRIO LATINOAMERICANO DE PÓS-GRADUAÇÃO: “TENDÊNCIAS E DESAFIOS DO CONSTITUCIONALISMO LATINOAMERICANO”. 15-19 ago, 2011. São Paulo, Comissão de Pós-Graduação – FDUSP, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP e COGEAE. ∗∗ Grupo de Pesquisa, 1, formado pelos alunos Adriana Maurano, Alexandre Sanson, Ana Paula Fuliaro, Bruno César Lorencini, Cristina Godoy Bernardo de Oliveira, Evandro Fabiani Capano, Marcelo Mazotti, Tatiana Penharrubia Fagundes, Vivian de Almeida Gregori Torres, do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), sob a supervisão de Monica Herman S. Caggiano, Professora Associada do Departamento de Direito do Estado, da Universidade de São Paulo. Livre-Docente em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito/USP. Presidente da Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Professora Titular de Direito Constitucional e Coordenadora do Curso de Especialização em Direito Empresarial da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

©2011 Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida desde que citada a fonte UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Reitor: João Grandino Rodas Vice-Reitor: Hélio Nogueira da Cruz Pró-Reitor de Pós-Graduação: Vahan Agopyan Faculdade de Direito Diretor: Antonio Magalhães Gomes Filho Vice-Diretor: Paulo Borba Casella Comissão de Pós-Graduação Presidente: Monica Herman Salem Caggiano Vice-Presidente: Estêvão Mallet Ari Possidonio Beltran Edmir Netto de Araújo Elza Antônia Pereira Cunha Boiteux Francisco Satiro de Souza Júnior Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka Luis Eduardo Schoueri Renato de Mello Jorge Silveira Serviço Especializado de Pós-Graduação Chefe Administrativo: Maria de Fátima Silva Cortinal Serviço Técnico de Imprensa Jornalista: Antonio Augusto Machado de Campos Neto Normalização Técnica CPG – Setor CAPES: Marli de Moraes Correspondência / Correspondence A correspondência deve ser enviada ao Serviço Especializado de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP / All correspondence should be sent to Serviço Especializado de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP: Largo de São Francisco, 95 CEP 01005-010 Centro – São Paulo – Brasil Fone/fax: 3107-6234 e-mail: [email protected]

FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação Faculdade de Direito da USP

Cadernos de Pós-Graduação em Direito : estudos e documentos de trabalho / Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 1, 2011-. Mensal ISSN: 2236-4544 Publicação da Comissão de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

1. Direito 2. Interdisciplinaridade. I. Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP CDU 34

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Os Cadernos de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, constitui uma publicação destinada a divulgar os trabalhos apresentados em eventos promovidos por este Programa de Pós-Graduação. Tem o objetivo de suscitar debates, promover e facilitar a cooperação e disseminação da informação jurídica entre docentes, discentes, profissionais do Direito e áreas afins. Monica Herman Salem Caggiano Presidente da Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

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TENDÊNCIAS E DESAFIOS DO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO Grupo de Pesquisa 1 - CNPq

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APRESENTAÇÃO

O objetivo geral dos Grupos de Pesquisas do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie é a análise e o fomento de debates acerca da evolução do constitucionalismo latino-americano.

O exame busca investigar o movimento e as críticas que o atingem, principalmente no que diz respeito ao exacerbado fortalecimento do Poder Executivo, tanto pela possibilidade de sucessivas reeleições quanto pela liberdade de intervenção em assuntos econômicos, o que representaria uma ameaça às instituições em um sensível regime democrático.

Os trabalhos aqui descritos fazem parte do diálogo entre estes Grupos de Pesquisa.

Monica Herman Caggiano

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SOBRE OS AUTORES

Adriana Maurano. Especialista em Direito Administrativo Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Doutoranda em Direito do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Procuradora do Município de São Paulo. Alexandre Sanson. Especialista em Direito Constitucional pelo Centro de Extensão Universitária. Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Doutorando em Direito do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Ana Paula Fuliaro. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Mestranda em Direito do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Advogada em São Paulo. Bruno César Lorencini. Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Doutorando em Direito do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Cristina Godoy Bernardo de Oliveira. Professora de Filosofia do Direito, Idioma Instrumental e Instituições do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - Campus Ribeirão Preto. Graduada em Direito pela Universidade de São Paulo. Especialista em Direito Público pela Universidade de São Paulo. Doutora em Filosofia do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Evandro Fabiani Capano. Advogado. Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2003). Doutorando em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professor na cadeira de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Presidente da Comissão de Direito Militar e Assessor da Presidência do V Tribunal de Ética e Disciplina, estes na Secção Paulista da Ordem dos Advogados do Brasil. Ocupou os cargos de Presidente da Comissão de Segurança Pública da Secção Paulista da Ordem dos Advogados do Brasil, Chefe de Gabinete da Secreta ria de Estado da Educação de São Paulo, Coordenador de Polícia do Gabinete do Secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo e Chefe de Gabinete da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social do Município de São Paulo. Marcelo Mazotti. Mestrando em Direito do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Membro da Comissão de Direito Constitucional da OAB-SP. Sócio do escritório FOZ Advogados e consultor do IBRAP – Instituto Brasileiro de Administração Pública. Autor da obra “As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei. Monica Herman Salem Caggiano. Professora Associada do Departamento de Direito do Estado, da Universidade de São Paulo. LivreDocente em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito/USP. Presidente da Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Professora Titular de Direito Constitucional e Coordenadora do Curso de Especialização em Direito Empresarial da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Assessora Especial do Vice-Governador e do Governador do Estado de São Paulo (2003-2006). Procuradora Geral do Município de São Paulo (1994-1996). Secretária dos Negócios Jurídicos do Município de São Paulo (1966). Procuradora do Município de São Paulo (1972-1996). Tatiana Penharrubia Fagundes. Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde também foi Professora de Teoria do Estado e da Constituição e de Direito Constitucional. Doutoranda em Direito do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Assessora de Secretaria I do Tribunal de Contas do Município de São Paulo. Vivian de Almeida Gregori Torres. Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestranda em Direito do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Coordenadora da Escola Superior da Advocacia da Subsecção de São Bernardo do Campo.

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SUMÁRIO I. A CRISE INSTITUCIONAL DE HONDURAS ........................................................................................................................ 7 Adriana Maurano, Vivian de Almeida Gregori Torres

II. ANÁLISE DAS ESTRUTURAS INSTITUCIONAIS DEMOCRÁTICAS DA REPÚBLICA ORIENTAL DO URUGUAI PÓS-REGIME DITATORIAL ............................................................................................................................................... 16 Alexandre Sanson

III. COSTA RICA: A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E OS ASPECTOS CONTEMPORÂNEOS DE DIREITO CONSTITUCIONAL NA AMÉRICA LATINA ........................................................................................................ 31 Ana Paula Fuliaro

IV. A ORGANIZAÇÃO JURÍDICO CONSTITUCIONAL DAS INSTITUIÇÕES POLÍTICAS NO EQUADOR ......................... 36 Bruno César Lorencini

V. CONSTITUCIONALISMO NO CHILE ................................................................................................................................ 44 Cristina Godoy Bernardo de Oliveira

VI. BREVES APONTAMENTOS JURÍDICOS SOBRE A CONSTITUIÇÃO E A DEMOCRACIA NA VENEZUELA .............. 54 Evandro Fabiani Capano

VII. A REELEIÇÃO E O TERCEIRO MANDATO PRESIDENCIAL EM XEQUE: TENSÕES DEMOCRÁTICAS NA COLÔMBIA E A ATUAÇÃO DA CORTE CONSTITUCIONAL ................................................................................... 60 Marcelo Mazotti

VIII. REFORMA POLÍTICA NO PERU ................................................................................................................................... 73 Tatiana Penharrubia Fagundes

CADERNOS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO: ESTUDOS E DOCUMENTOS DE TRABALHO Normas para Apresentação ..................................................................................................................................................... 85

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I. A CRISE INSTITUCIONAL DE HONDURAS Adriana Maurano∗ Vivian de Almeida Gregori Torres∗∗ Introdução Honduras é o país menos povoado da América Central, com poucos e pequenos vales ou planaltos que poderiam formar a base para uma comunidade integrada. É um país essencialmente agrícola com cerca de 70% a 80% da população empregada na agricultura que representa 90% da renda com exportações no país, sendo os principais produtos a banana, o café, o algodão e a pecuária. Recentemente, este país chamou a atenção do mundo por uma grave crise política, envolvendo um controvertido golpe de Estado que dividiu opiniões e teve como consequência a instituição de sanções internacionais. A crise de Honduras, contudo, não pode ser analisada senão diante de um contexto histórico e político. 1. Panorama Histórico Honduras traz consigo a herança da civilização Maia, cujo povo era reconhecidamente desenvolvido. Contudo, em 1502, quando Cristóvão Colombo, em sua quarta viagem, aportou na costa hondurenha, a civilização Maia estava em franca decadência. Após batalhas contra os indígenas que se estenderam de 1523 a 1539 é que os espanhóis asseguraram o controle da região. Em 1525 Honduras foi invadida por Hernán Cortés, então conquistador do México, que travou batalhas em face do poder espanhol e colonizou a região. Em 1539 Honduras foi incorporada à Capitania Geral da Guatemala, permanecendo assim ao longo do período colonial espanhol. No período de 1570 a 1580 Honduras foi invadida por imigrantes em busca de ouro e prata, enquanto o mar do Caribe transformou-se em palco de ataques dos ingleses e de piratas. Somente em 1779 a Espanha recuperou o controle do território. Em 1821 Honduras, integrante da Capitania Geral da Guatemala, rompe com a Espanha e passa a integrar o Império Mexicano, separando-se um ano depois para formar, em 1823, a República Federal das Províncias Unidas da América Central, juntamente com Guatemala, El Salvador, Nicarágua e Costa Rica. A República da América Central, contudo, não chegou a consolidar-se. Marcada por graves crises e conflitos internos, ela acabou sendo dissolvida entre 1838 (quando Honduras declarou sua separação da união) e 18401. ∗

Especialista em Direito Administrativo Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Doutoranda em Direito do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Procuradora do Município de São Paulo. ∗∗ Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestranda em Direito do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Coordenadora da Escola Superior da Advocacia da Subsecção de São Bernardo do Campo. 1Basílio

Porras retrata a situação lastimável da República, em 1838: “No hemos podido hasta aqui consolidar um Govierno estable ... No tenemos ningún crédito em el exterior ni em el interior ... No existen ni el comercio ni la agricultura em el estado de prosperidad que debieran ... No tenemos más hombres de luces que nos ajuden a promover el bien y salvar la patria” (apud SANTANA, Adalberto. El pensamiento de Francisco Morazón. México: Universidade Nacional Autónoma de México, 1992. p. 39). Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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No início de 1939 uma assembleia constituinte aprovou a primeira Constituição de Honduras. Honduras, conhecida como a “República das Bananas” em razão da forte influência da produção e comércio de bananas na economia, sempre foi engendrada por intromissões externas, especialmente para controlar os interesses das empresas americanas, que chegaram a ser responsáveis por 66% das exportações de banana em 1913. Em 1918, 75% das terras produtoras de banana eram de propriedade de empresas americanas, que passaram a controlar não só os políticos como a política de Honduras. Ultrapassando as fronteiras da rivalidade comercial para a rivalidade política, as principais empresas aliaram-se a partidos políticos: a Cuyamel Fruit Company aliou-se ao Partido Liberal e a United Fruit ao Partido Nacional. A ingerência dos Estados Unidos nos assuntos de Honduras culmina com o envio de fuzileiros navais pelo então presidente William Howard Taft, com o intuito de proteger os interesses ameaçados das empresas americanas. Em 1932 o General Tiburcio Carías Andino é eleito Presidente de Honduras e estabelece uma ditadura que perdura até 1949, quando a pressão dos Estados Unidos força-o a ceder o poder. Em 1954 uma greve dos trabalhadores da indústria bananeira leva ao reconhecimento dos sindicatos e a ampliação dos direitos dos trabalhadores. Honduras sofre um golpe militar em 1956, uma nova Constituição é promulgada, e muito embora os civis retornem ao poder em 1957, os militares desde então passam a desempenhar um papel relevante no cenário político do país. O Coronel Osvaldo López Arrellano lidera um novo golpe militar em 1963 e governa Honduras até 1975, quando é forçado a renunciar em razão de um escândalo de suborno que envolvia seu governo e a empresa americana United Brands. Honduras é dominada pelos militares até 1981 quando ocorrem eleições presidenciais democráticas, sob pressão do governo dos Estados Unidos, que passa a ter presença militar crescente na América Central. O governo de Ronald Reagan chegou a gastar uma grande soma de recursos, disponibilizando milhares de soldados americanos em Honduras com o fito de ameaçar a Nicarágua. A guerra patrocinada secretamente pelos Estados Unidos contra o governo sandinista ficou conhecida como “Guerra Contra”. A oposição contra a militarização americana cresce e em 1984 Honduras reavalia a presença militar externa e suspende sua atuação dentro de suas fronteiras. Em 1985 ocorrem eleições presidenciais, marcadas por graves irregularidades, saindo vencedor o candidato do Partido Liberal José Simeón Azcona Del Hoyo. O presidente Hoyo se recusa a assinar um novo acordo militar com os Estados Unidos, mas somente em 1990, com a eleição de Violeta Chamorro, é que a guerra chega ao fim e os “Contra” restam definitivamente fora do território hondurenho. Os governos de Rafael Leonardo Callejas Romero (1990 a 1994) e Carlos Roberto Reina Idiaquez (1994 a 1998) focaram-se na estruturação da economia e consequente desenvolvimento do país. Contudo, quando o cenário econômico começa a melhorar, já no governo de Carlos Roberto Flores Facusse (1998 a 2002), Honduras sofre um terrível golpe com a passagem do furacão Mitch, que faz com que a economia novamente retroceda. Em 2002 assume o poder Ricardo Maduro com o compromisso de redução da criminalidade no país, que acabou não se concretizando, muito embora tenham sido investidas grandes somas de dinheiro. José Manuel Zelaya Rosales sucede Maduro em 2006. O governo de Zelaya foi marcado por acusações de corrupção. A colaboração estreita com líderes latino-americanos de esquerda tais como Hugo Chaves e a Aliança Bolivariana acarretou um grande desgaste político com os Estados Unidos, que sempre teve Honduras como um dos mais fortes aliados da América Central. Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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Zelaya por intermédio de um referendo almeja a permissão do povo hondurenho para reescrever a Constituição e reeleger-se, momento em que O Supremo Tribunal Federal declara o referendo ilegal e afasta Zelaya do cargo em 2009. Assume o governo provisoriamente o Presidente do Congresso Roberto Micheletti que convoca eleições presidenciais. Em novembro de 2009 Porfírio Pepe Lobo do Partido Nacional é eleito. 2. Sistema político e eleitoral A Constituição hondurenha estabelece que a forma de governo é republicana, democrática e representativa, exercida pelos poderes Legislativo, Executivo e Judicial de forma complementar, independentes entre si e sem relação de subordinação.2 Em razão da situação geográfica estratégica para os Estados Unidos, Honduras sofreu por longos períodos intromissão externa, o que resultou em prolongadas guerras civis e militarização da sociedade.3 Honduras teve a primeira metade do século XX marcada pelo predomínio de governos militares. A Constituição de 1982 institucionaliza a volta da democracia depois de dez anos de ditadura. Não obstante o retorno da abertura democrática, o texto da Constituição é ambíguo, pois ao mesmo tempo que garante as liberdades de associação e reunião, estabelece como condição que não sejam contrárias a ordem pública e aos bons costumes4. Ao não estabelecer limites claros, a Constituição confere ao Estado a possibilidade de atuação discricionária, atingindo, desta forma, a garantia associativa. As forças armadas ganharam destaque na Constituição, na medida em que esta assinala, dentre suas atribuições, cooperar com o poder executivo nos trabalhos de alfabetização, educação, agricultura, conservação dos recursos naturais, comunicações, reforma agrária e situações de emergência.5 A lei eleitoral também outorga às forças armadas as tarefas de transporte, vigilância, custódia e garantia do processo eleitoral.6 O sufrágio é definido como uma função pública e um direito. O voto é obrigatório mas não há penalidade para aqueles que não o cumprem. O voto é vedado aos cidadãos que pertençam às forças armadas ou aos quadros da segurança do Estado.7 A eleição para Presidente se dá por maioria simples e a eleição dos membros do Poder Legislativo pelo sistema proporcional8 com listas fechadas e bloqueadas. Em 1985 Honduras passou por uma reforma eleitoral em consequência de uma profunda crise institucional provocada em grande parte pelo governo corrupto de Suazo Córdova do então PLH. A Ata de Compromisso previa introduzir novas regulamentações com o intento de concretizar os elementos necessários para uma maior democratização do sistema político. A reforma eleitoral introduziu: (a) o princípio da simultaneidade das eleições primárias e das eleições gerais, vencem as eleições o partido com maior número de votos e dentro desse o candidato com maior número de votos; (b) a elevação de 82 para 134 deputados eleitos; (c) a realização partidária de eleição dos

2Artigo

4 da Constituição. Natalia Ajenjo. Honduras. In: SÁEZ, Manuel Alcántara; FREIDENBERG, Flavia. Partidos políticos de América Latina: Centroamérica, México y Republica Dominicana. 1. ed. Salamanca: Ediciones Universidad Salamanca, 2001. p. 181-271. 4Artigo 78 da Constituição. 5Artigo 274 da Constituição e Decreto 2-99 que ratifica o Decreto 245-98 de 19 de setembro de 1988. 6Artigo 118 da Constituição. 7Artigo 37.4 da Constituição. 8A Lei Eleitoral estabelece que o cociente nacional para encontrar-se o número de cargos que elegerá cada departamento será o resultado da divisão do total do censo nacional da população entre o número total de Deputados. O cociente eleitoral departamental é obtido dividindo-se o número de representantes fixos a serem eleitos em um Departamento determinado pelo total de votos válidos. 3FRESNO,

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candidatos através de primárias abertas a nível nacional, que vinha para resolver em parte a alta fragmentação partidária interna; (d) a independência econômica dos partidos políticos e (e) voto separado. As eleições contam com financiamento público e privado. O financiamento público é feito de forma direta e indireta pelo Estado, a contribuição direta corresponde ao aporte de dinheiro público para cobrir os gastos com as campanhas eleitorais. Já a contribuição indireta se dá por intermédio da isenção de pagamento de tarifas telefônicas e postais, isenção de impostos fiscais sobre as doações, isenção de impostos aduaneiros de importação de veículos ou bens para a campanha, espaços gratuitos na rádio e televisão pública. Todos os partidos organizados e registrados têm direito a receber fundos públicos para as atividades eleitorais. Os partidos são obrigados a apresentar dois informes financeiros ao Tribunal Eleitoral, um anual com as contas do partido, dentro de 90 dias seguintes ao término de cada exercício anual e certificado por um contador colegiado, o segundo informe deverá conter os gastos realizados durante a campanha eleitoral, entregue durante os 90 dias seguintes ao pleito eleitoral geral, igualmente certificado pó um contador colegiado. O financiamento privado dos partidos são provenientes das cotas de seus afiliados, das contribuições ordinárias e extraordinárias previstas na Convenção nacional, os candidatos devem aportar uma cota na inscrição, a principal fonte de financiamento das campanhas são os fundos pessoais de cada candidato, outra fonte provêm da obrigatoriedade das contribuições dos empregados públicos cujos valores são deduzidos de seus salários. As primárias são custeadas por recursos próprios do partido e seus candidatos. As eleições são competitivas, não fraudulentas e de elevada participação social, ocorrem a cada quatro anos no final do mês de novembro de cada ano eleitoral. O Tribunal Nacional Eleitoral (TNE) é um órgão autônomo e independente, com competência e jurisdição em todo o território da República. Sua função principal é a organização das eleições, velando pelo respeito as garantias que assistem aos atores do processo. O TNE é integrado por um membro efetivo e um suplente, designado pela Corte Suprema de Justiça, um membro designado por cada um dos partidos políticos legalmente inscritos. Para prevenir o empate de decisões, caso o número de membros resulte em par, a Corte Suprema designará um membro adicional. 3. Partidos Políticos Honduras possui um dos sistemas partidários mais antigos da região: os principais partidos se formaram no final do século XIX. Os partidos políticos tem fins eleitorais e orientação política, devem conduzir-se por meios democráticos e representativos, não podem subordinar suas ações a diretrizes de entidades públicas ou privadas, quer sejam nacionais ou estrangeiras. Para a inscrição de um partido político são necessárias 50 assinaturas, a serem apresentadas a um Notário Público, e a inscrição legal do partido deverá conter a afiliação de 20.000 cidadãos, bem como organização de diretórios locais e departamentos em mais da metade do total de municípios do país. Nenhum partido político será inscrito legalmente ou cancelado durante os seis meses anteriores às eleições gerais. Muito embora existam cinco partidos em Honduras (PLH, PNH, PINU, PDCH e PUD), o cenário político é dominado entre dois partidos o Partido Liberal de Honduras (PLH) e o Partido Nacional de Honduras (PNH), sendo os demais partidos nanicos que alcançam apenas alguns cargos legislativos9. Assim, o sistema de partidos hondurenho é fortemente bipartidarista. 9Conforme

pesquisa efetuada em maio de 2011, os partidos encontram-se representados no Congresso na seguinte proporção: PDCH – 5 membros; PINU – Partido Innovación Unidad de Honduras – 3 membros; PUDH – Partido Unificación Democrática de Honduras – 4 membros; PNH - Partido Nacional – 71 membros e PLH - Partido liberal – 45 membros (REPUBLICA DE HONDURAS. Congreso Nacional. Disponível em: . Acesso em: 15 maio 2011). Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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Os principais partidos (PLH e PNH) têm como característica comum a existência de diferentes correntes internas. Observa-se ainda que é baixa a transferência de votos entre partidos, especialmente no caso dos mais consolidados, reflexo da profunda lealdade aos partidos tradicionais e o baixo abstencionismo eleitoral. Não há grandes diferenças de espaços eleitorais ou ideológicos entre os principais partidos e eles se constroem sobre um sistema social e político fortemente oligárquico e clientelar. O PLH contempla grupos de tendência mais social-democrata, a esquerda moderada e direita conservadora, situando-se no centro e centro-esquerda do cenário eleitoral. Já o PNH representa a direita conservadora e o centro-direita com pouca fragmentação interna. O Partido Liberal de Honduras (PLH) é, historicamente, o partido mais presente em Honduras. Ele nasceu no final do século XIX como o primeiro partido político hondurenho, do qual surgiram os demais partidos existentes. Sua maior característica é a existências de várias facções internas que competem entre si sem uma sólida coordenação programática ou ideológica. O PLH foi fundado em 05 de fevereiro de 1891 por Policarpo Bonilla, que foi o Presidente de Honduras no período de 1895 a 1899, quando se aprovou uma constituição liberal com a abolição da pena de morte, previsão do casamento civil e do divórcio, a separação da igreja do Estado, a supressão do dízimo e a liberdade de cultos. Outros dois nomes importantes na fundação do partido foram Angel Zuniga Huete que enfatizou os princípios de igualdade e justiça social e Ramón Villeda Morales responsável pelo código Trabalhista, a Lei de Seguro Social, a reforma agrária e a reforma educacional da época. Observa-se que o partido, embora denominado liberal, nasceu com orientação social, com a concepção do Estado como um instrumento de apoio social e com inspiração sobre os princípios de igualdade. Atualmente, em termos gerais, a orientação programática-ideológica do PLH assume uma forma mista de princípios mais progressistas com posição conservadora com relação a certos assuntos. Seus princípios programáticos contemplam a doutrina democrática, traduzida no exercício do poder público. Em matéria de política social o principal ponto reside no cumprimento das garantias sociais e individuais reconhecidas constitucionalmente. Quanto a economia, pretende a promoção de maior igualdade na distribuição da renda, confiando no mercado como mecanismo para assegurar esta combinação, sem perder de vista a necessidade de uma reforma agrária integral, como principal instrumento de desenvolvimento nacional, com a diversificação da produção tanto agrícola quanto industrial. No âmbito educacional o partido propõe a reforma do sistema de tal forma que haja uma melhora na qualidade dos docentes e uma extensão do acesso a educação básica. O Partido Nacional de Honduras (PNH) surgiu no início do século XX, em 1902, a partir da cisão do PLH. A inspiração para sua criação pode ser relacionada com o líder carismático Manuel Bonilha, que mobilizou uma oposição política com objetivo de dar ao povo uma nova e diferente opção de escolha política. O PNH nasceu com a etiqueta de clube social, até converter-se em uma organização partidária composta por diversas facções. O partido em sua fundação denominou-se Partido Progressista e posteriormente Clube Central da Democracia, contando nesse período com 310 clubes em todo território nacional, com 40.000 afiliados. Tornou-se Partido Nacional Democrático sob a reorganização de Alberto Membreño, em 1919. Somente em 1921, sob a égide dos irmãos Carías Andino, adotou-se a nomenclatura de Partido Nacional de Honduras. O PNH, nos primórdios, defendia um profundo conservadorismo político com apoio no influente clero influência clerical e contra a unificação centro-americana. Durante a primeira metade do século XX o partido manteve cargos no poder em aliança com o poder militar e apoio econômico da companhia bananeira United Fruit Company. O mandato de Manuel Bonilha Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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(1903 a 1907) reflete a forte convivência do poder militar nos governos do PNH. Neste período não só se concedeu generosas glebas de terras a companhia americana como também restou explícita a conexão do governo com os interesses políticos e econômicos dos Estados Unidos, com o assentamento de bases militares americanas em território hondurenho com o fito de promover a guerra “Contra” nicaraguense. O PNH venceu as eleições de 1933 com o candidato Tiburcio Carias, que se manteve no poder até 1949 por intermédio da reforma de artigos constitucionais referentes à realização de eleições, ou seja, através de uma ditadura “autolegitimada”. Após a abertura democrática, o partido passou a alcançar baixo rendimento nas eleições para o Executivo, elegendo apenas um presidente, Rafael Callejas, ao logo de cinco legislaturas no período de 1980 a 2000. Contudo, seu rendimento eleitoral para o Legislativo mantêm uma presença de mais de 40% das cadeiras. A posição ideológica-programática do PNH é conservadora e com uma concepção de mudança social reformista, baseada na defesa dos princípios democráticos e reformas políticas nos níveis econômico, administrativo e social. No âmbito econômico defende a abertura econômica, a propriedade privada, o livre mercado e a integração regional. Quanto às questões sociais, prega a defesa da família e dos valores tradicionais (cultura unitária e pouco fragmentada). No âmbito público defende a não regulação estatal e a privatização dos serviços públicos. A orientação ideológica do PNH se situa a direita, ocupando parte do centro esquerda e do centro. 4. Períodos de Democracia e Autoritarismo A posição geográfica de Honduras ajudou a enfraquecer a política e a economia do país, fazendo-o alvo natural para as ambições de líderes políticos e movimentos do resto da América Central. Assim como, a intervenção política em razão de interesses comerciais estrangeiros em muito contribuiu para a sua instabilidade. Honduras viveu períodos intercalados de autoritarismo e tentativas democráticas, sendo que os períodos autoritários prevaleceram ao longo da história. O mandato de Manuel Bonilha nos anos de 1903 a 1907 tem como característica uma forte influência do poder militar, seguido de uma pequena abertura tem-se de 1933 a 1949 uma ditadura “autolegitimada” de Tiburcio Carías. Entre 1948 e 1963 Honduras experimenta um período de desenvolvimento político com conquistas democráticas. Contudo, em outubro de 1963, um golpe militar ocorrido poucas semanas antes da data designada para as eleições nacionais interrompeu abruptamente o desenvolvimento político. Assim, até 1980, Honduras vive épocas de regimes militares autoritários que se alternaram com períodos de governos civis, eleitos ou estabelecidos como resultado de transações políticas. Durante o sec. XIX e a primeira parte do séc. XX, a vida institucional do país foi precária, o que afetou e dificultou seu desenvolvimento econômico e social. A transação democrática em Honduras se iniciou em 1980 com a eleição de uma Assembleia Nacional Constituinte. A partir desse momento ocorreram cinco processos eleitorais, caracterizados pela predominância dos partidos políticos tradicionais (PLH e PNH), tanto no âmbito presidencial como no congresso. Neste período, a presidência foi ocupada por quatro presidentes liberais e um presidente nacionalista. Como se evidenciou nos últimos processos eleitorais, algumas das decisões políticas mais importantes foram provenientes das elites dirigentes dos partidos políticos, o que, por definição tem tendido a excluir os cidadãos dos processos de tomada de decisão. Evidência disto foi a falta de difusão no último processo eleitoral das candidaturas a deputados, o que não permitiu com que os cidadãos conhecessem, com a devida antecipação, o perfil dos candidatos a ocupar estes cargos.

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A última grande crise política pela qual Honduras passou foi a deposição do então Presidente Manuel Zelaya, que pretendia buscar apoio popular para, através da promulgação de uma nova Carta Constitucional, manter-se no poder através da instituição da reeleição. 5. A questão da reeleição O Presidente Manuel Zelaya, grande proprietário de terras e empresário, representava, nas eleições de 2005, a continuação da política sócio-econômica predominante no país de prevalência da teoria do Estado mínimo somado ao alinhamento dos interesses dos Estados Unidos. Contudo, gradativamente, o Presidente alterou seu alinhamento ideológico e político, aproximando-se da política dos governos de esquerda e centroesquerda, aderindo em 2008 à Aliança Bolivariana das Américas, realizando intervenções na economia, dando margem ao populismo e cerceando as liberdades de expressão e imprensa. Em março de 2009, Zelaya editou o Decreto Executivo PCM 05-2009, com o fito de realizar uma consulta popular, cujo objetivo era obter o apoio da população e legitimar a convocação de uma assembleia nacional constituinte para promulgar uma nova constituição. Seu intuito final, entretanto, era revogar a proibição constitucional de mandatos consecutivos ou reeleições ilimitadas. A questão foi levada a Suprema Corte que julgou pela inconstitucionalidade do decreto, uma vez que a Constituição hondurenha não só proíbe a reeleição, como não admite qualquer alteração neste sentido, prescrevendo, em seu artigo 42, que será considerado traidor da pátria aquele que incentivar, promover ou, por qualquer modo, buscar instituir o exercício consecutivo de mandatos. Zelaya, contudo, não se absteve de efetivar a consulta e determinou à Força Militar que distribuísse as urnas, recolhidas por ordem judicial. Os militares não cumpriram a ordem do Presidente. Tais acontecimentos culminaram na destituição de Manuel Zelaya e sua expulsão do território nacional, executada pelos militares com apoio do Parlamento e das Cortes de Justiça Superiores. Assumiu o governo o Chefe do Legislativo Micheletti, que decretou um regime de exceção no país e convocou eleições para 27 de janeiro de 2010, através das quais foi eleito Porfirio Lobo. Assim, segundo o Congresso Nacional e o Poder Judiciário de Honduras, não houve golpe, uma vez que a destituição e expulsão de Zelaya configuravam defesa da Pátria. No entanto, no âmbito internacional, as opiniões foram divergentes. A pressão e as sanções internacionais exercidas pelos demais países acabaram por alterar o entendimento de Honduras quanto a “traição da pátria”, permitindo com que o ex-presidente retornasse ao país, muito embora seu posto não lhe fosse restituído.

Conclusão A crise de Honduras foi gerada pela busca do ex-presidente Manuel Zelaya pelo direito de uma reeleição, e pelo medo exacerbado existente em Honduras da instituição de uma ditadura e da volta do caudilhismo. Esta crise trouxe à tona novamente a discussão acerca da relação entre o instituto da reeleição e o sistema democrático, que tem como um de seus princípios básicos a alternância do poder. O princípio da alternância tem por objetivo evitar a perpetuação e a personificação do poder político, configurando “um instrumento a obstar o perigo, sempre presente e observado por Montesquieu, de o poder corromper o próprio poder”10.

10CAGGIANO, Monica Herman Salem.

Sistemas eleitorais x representação política. Brasília: Ed. do Senado Federal, 1990. p. 64.

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O sistema democrático, de fato, tem como “fator primordial a liberdade individual, que implica na livre exteriorização das opiniões no que toca a condução dos negócios públicos e introduz o jogo da alternância no poder” 11. Neste sentido, a alternância é um dos valores intocáveis para a preservação do regime democrático. A proibição da reeleição foi uma das armas utilizadas pelos países da América Latina contra o caudilhismo e o enfraquecimento das instituições políticas. A maioria das Constituições latinoamericanas anteriores a 1945 proibia a reeleição do Chefe do Estado. Constituições como a salvadorenha e a guatemalteca admitiam a rebelião como recurso contra a transgressão à proibição da reeleição e confiavam às Forças Armadas a missão de velar pela aplicabilidade da norma, qualificando como traição da pátria atos tendentes à violação do princípio da alternância, incluindo os autores de proposições nesse sentido 12. A partir da década de 90, contudo, observou-se um fenômeno diverso. O início da década teve foco na agenda econômica, sendo que os países latino-americanos passaram por reformas constitucionais com objetivo voltado para a estabilidade econômica. Em muitos casos, essas reformas abrangeram também a possibilidade de prolongar os mandatos dos presidentes que as impulsionaram13. Assim, a tendência das reformas constitucionais na América Latina é favorecer a reeleição, buscando permitir a continuidade das obras do Governo que as instituiu. Segundo aponta Daniel Zovatto, “las reformas a favor de la reelección, sobre todo en su modalidad consecutiva, tuvieron nombre y apellido, se llevaron a cabo durante la presidencia de los mandatarios que querían reelegirse y, salvo en República Dominicana con el presidente Hipólito Mejía, lograron su objetivo: la reelección del mandatario que reformó la Constitución para seguir en el poder (Cardoso, Menem, Fujimori, Uribe, Chávez, Morales, Correa)” 14. O fato é que, em quinze anos, a América Latina passou de uma posição ideológica contrária à reeleição para uma concepção pró-reeleição, sendo que, atualmente, a reeleição é permitida em quase todos os países: somente Guatemala, Honduras, México e Paraguai a proíbem Ao mesmo tempo em que vai de encontro com os valores e princípios da democracia, a reeleição do Chefe do Executivo “encontra guarida na evolução do sistema presidencialista norte-americano, quando, no ensejo de se recusar replay à pretensão do Presidente Roosevelt de concorrer a um terceiro e quarto mandato, foi consagrada em esfera constitucional (com o advento e a retificação da Emenda n. XXII) a possibilidade de se pleitear uma só vez a reeleição”15. Diante desse panorama geral, percebe-se a dificuldade em conceituar a crise hondurenha como golpe de Estado ou defesa das instituições democráticas. Por um lado, temos uma Constituição legítima de um país soberano que determina, como cláusula pétrea16, a proibição da reeleição e fulmina com a decretação de “traidor da pátria” aos que buscarem sua alteração; de outro, temos a evolução política e social, que indica a

11CAGGIANO, Monica Herman Salem.

Oposição na política. São Paulo: Angelotti, 1995. p. 39. José. Reformas y tendências constitucionales recientes de La America Latina (1945-1956). Mexico: Instituto de derecho comparado. Universidad Nacional Autonoma de Mexico, 1957). p. 279-280. 13BELSUÉ, Milagros López. Reformas constitucionales y reelección en América Latina. Disponível em: . Acesso em: 22 maio 2011. 14ZOVATTO, Daniel. El peligro de la ola reeleccionista. Disponível em: . Acesso em: 22 maio 2011. 15CAGGIANO, Monica Herman Salem. Direito parlamentar e direito eleitoral. São Paulo: Manole, 2004. p. 116. 16Muito embora as cláusulas pétreas sejam reconhecidamente garantias à salvaguarda de direitos individuais dos cidadãos e a ordem constitucional básica, em seus aspectos de maior relevância, “não é admissível que o poder soberano do povo seja restringido por normas que padecem de apoio dentre aqueles que a ela deveriam conferir validade, em sentido substancial”. Desta forma “deve-se ter sempre em consideração o povo como elemento central, único apto a conferir o fundamento de toda a ordem constitucional vigente e destinatário das normas que admite, seja por mecanismos de representação, seja por instrumentos de perquirição direta”. (MONTEIRO, Talles Soares; COSTA, Rosa Juliana Cavalcante da; CESAR, Raquel Coelho Lenz. A soberania popular em face das cláusulas pétreas no contexto da crise política hondurenha. Disponível em: . Acesso em: 22 maio 2011). 12MIRANDA,

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possibilidade do povo, real detentor do poder, através de instrumentos de participação popular, aprovar alterações na Constituição política do país. Referências ANDERSON, Charles W. Honduras: problems of na apprentice democracy. In: NEEDLER, Martin C. (Org.) Political systems of Latin America. Princeton, NJ: Van Nostrand, 1964. p. 75-88. BELSUÉ, Milagros López. Reformas constitucionales y reelección en América Latina. Disponível em: . Acesso em: 22 maio 2011. CAGGIANO, Monica Herman Salem. Direito parlamentar e direito eleitoral. São Paulo: Manole, 2004. ______. Oposição na política. São Paulo: Angelotti, 1995. ______. Sistemas eleitorais x representação política. Brasília: Ed. do Senado Federal, 1990. CARDOSO, Ciro F.S. A America Central: a era liberal. In: BETHEL, Leslie (Org.). História da América Latina: de 1870 a 1930. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo; Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 2008. v. 5, p. 235-268. DUNKERLEY, James. Honduras since 1930. In: BETHEL, Leslie (Org.). Central America since independence. Cambridge [England]; New York: Cambrigde University Press, 1991. p. 191-225. FRESNO, Natalia Ajenjo. Honduras. In: SÁEZ, Manuel Alcántara; FREIDENBERG, Flavia. Partidos políticos de América Latina: Centroamérica, México y Republica Dominicana. 1. ed. Salamanca: Ediciones Universidad Salamanca, 2001. GIL, Mariano Fiallos. Breve estúdio sobre el processo cultural centroamericano. In GIL, Mariano Fiallos; TREJOS, Alfonso; SILVA, Jose Enrique. El processo cultural centro-americano. San Salvador: Editorial Universitária, 1964. MIRANDA, José. Reformas y tendências constitucionales recientes de La America Latina (1945-1956). Mexico: Instituto de derecho comparado. Universidad Nacional Autonoma de Mexico, 1957. MONTEIRO, Talles Soares; COSTA, Rosa Juliana Cavalcante da; CESAR, Raquel Coelho Lenz. A soberania popular em face

das

cláusulas

pétreas

no

contexto

da

crise

política

hondurenha.

Disponível

em:

. Acesso em: 22 maio 2011. POSAS, Mario. El movimiento campesino hondureño: um panorama general (Siglo XX). In: GONZALÉZ CASANOVA, Pablo. (Coord.). Historia política de los campesinos latinoamericanos. México, D. F.: Siglo Veintiuno, 1984. REPUBLICA DE HONDURAS. Congreso Nacional. Disponível em: . Acesso em: 15 maio 2011. SANTANA, Adalberto. El pensamiento de Francisco Morazón. México: Universidade Nacional Autónoma de México, 1992. ZOVATTO,

Daniel.

El

peligro

de

la

ola

reeleccionista.

Disponível

em:

. Acesso em: 22 maio 2011.

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II. ANÁLISE DAS ESTRUTURAS INSTITUCIONAIS DEMOCRÁTICAS DA REPÚBLICA ORIENTAL DO URUGUAI PÓS-REGIME DITATORIAL Alexandre Sanson∗ Introdução As discussões hodiernas acerca do denominado “novo constitucionalismo latino-americano” corrente emergente, no final do século XX, na América do Sul (Venezuela, Equador e Bolívia), cujo escopo é sobrepujar os limites do constitucionalismo clássico, de matriz européia - possibilitam uma reavaliação das realidades e rumos de países que comumente compartilharam, no curso da história, instabilidades políticas e sérias crises econômicas. A República Oriental do Uruguai, de colonização tardia, em razão da escassez de riquezas minerais, e independência negociada, decorrente de acordo entre Inglaterra e seus vizinhos Brasil e Argentina, é, na região, uma das mais duradouras tradições democráticas, figurando, nas primeiras décadas novecentistas, como um precoce Estado de bem-estar, com uma avançada legislação social e um amplo direito de sufrágio masculino, extensível às mulheres, que votaram pioneiramente em plebiscito local (1927). O cenário político uruguaio que precedeu a referida consolidação da democracia no governo de José Battle e Ordóñez e do “país modelo” por ele idealizado, no entanto, revelou que a implantação da República se revestiu de debilidades, sucedendo-se conflitos como a “Guerra Grande”, motivada pela política argentina de reincorporação da “Banda Oriental” e pela rivalidade interna entre Manuel Oribe e Fructuoso Rivera, da qual se originaram, respectivamente, os partidos Nacional e Colorado. A guerra civil alcançou a seara internacional e se imiscuiu com questões externas, findando com o Tratado de Paz (1851), sendo que, na segunda metade do século XIX, novos embates interpartidários com interferência de países próximos levam o Uruguai a ingressar em guerras como a do Paraguai, em período de intenso fluxo imigratório, integração a mercados exteriores, conformação política pela co-participação entre partidos (Revolución de las Lanzas) e formação da identidade nacional. No âmbito jurídico, a primeira Constituição codificada foi promulgada em 18301, substituída pelas Constituições de 1918, 1934, 1942, 1952 e 1967, e reflete influxo de Constituições estrangeiras (e.g. França e Estados Unidos), com ideais liberais, versando, pois, sobre a organização de poderes e direitos fundamentais de primeira dimensão, tendo sido acolhida em Assembléia Geral Constituinte e Legislativa e submetida à revisão e aprovação dos governos signatários da Convenção Preliminar de Paz (1828), que reconheceram a independência uruguaia. No texto constitucional estabeleceu-se um Estado unitário territorialmente dividido em departamentos, cujos governos eram exercidos por agentes designados exclusivamente pelo Executivo nacional, um regime de governo representativo e republicano, fundado na soberania titularizada pela nação e na separação tripartite dos poderes, um sistema presidencial (eleição indireta), com Legislativo bicameral, além de adotar religião oficial, sufrágio restrito e processo de reforma



Especialista em Direito Constitucional pelo Centro de Extensão Universitária. Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Doutorando em Direito do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

1Após

a invasão dos 33 Orientales, nome do movimento que inicia o processo revolucionário de independência da então denominada “Província Oriental”, o povo, sob um Governo Provisório, é convocado a designar representantes, os quais, a partir de 1825, promulgam leis que organizam e estabelecem órgãos do Estado, bem como estruturam uma parte da teoria da liberdade. Há na doutrina quem compreenda este conjunto normativo como uma verdadeira Constituição não codificada (Cf. VESCOVI, Enrique. Introducción al derecho. Tercera Reimpresión Buenos Aires-Montevideo: B de F Editorial, 2008. p. 125 e 251). Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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extremamente dificultoso (rígido); não dispondo acerca de partidos políticos e sistema de controle de constitucionalidade2. Destarte, se, em tese, a Constituição de 1830 foi a de maior vigência, na prática sua efetiva aplicação ficou comprometida em virtude das citadas turbulências internas e externas, motivo pelo qual, ao se iniciarem mudanças modernizadoras e alcançar uma estabilidade política, procedeu-se à sua alteração em 1912, reformulando o processo de reforma constitucional e ensejando a eleição de uma Convenção Nacional Constituinte, que, após ratificação por meio de plebiscito do novo texto aprovado, promulgou a Constituição de 1918. Tais fatores políticos, econômicos e jurídicos resultam na esfera reformista do século XX, de um país elevado à condição de utopia da América Latina, mas que demonstrará fragilidades, com crises econômicas e estruturais, guerrilha urbana e golpes de Estado, os quais possibilitam a compreensão do papel das instituições pós-restauração democrática, notadamente consensual, objeto do presente estudo. 1. O constitucionalismo uruguaio no século XX: Da “Suíça Americana” à ditadura militar No contexto sul-americano, os índices econômicos e sociais satisfatórios alcançados no limiar do século XX, atrelados a inovações institucionais no regime democrático, fizeram com que o país, de tamanho reduzido, fosse chamado até a década de trinta de “Suíça Americana”3, observando-se que tais níveis de desenvolvimento podem ser atribuídos, em grande parte, à visão de estadista e à autoridade política de José Battle do Partido Colorado, cujos governos foram marcados por avanços progressistas, apresentando um projeto nacional sob um Estado intervencionista e tomando decisões que influíram na elaboração da Constituição de 1918. Ademais, é possível indicar evoluções, ainda que em gestões subsequentes, não obstante frutos do battlismo, na seara trabalhista (e.g. jornada de oito horas), na seguridade social (e.g. pensão para idosos), na educação (e.g. gratuidade do ensino em todos os níveis) e em medidas como a legalização do divórcio e a abolição da pena capital. A Constituição de 1918, a segunda codificada, nasceu, por conseguinte, de intensa campanha por modificações e certos pontos aprovados derivaram diretamente de acordos políticos entre os grandes partidos presentes na Assembléia Constituinte, consagrando a laicidade estatal, um sistema eleitoral, em princípio, de representação proporcional integral e do “duplo voto simultâneo” (um voto no partido e outro no candidato ou lista – Ley de Lemas), a ampliação significativa do sufrágio e de suas bases, bem como reconhecendo, de modo indireto, a existência e a atividade dos partidos políticos (arts. 9º e 82)4. Em relação ao Poder Executivo, rejeita-se o colegiado integral, coexistindo a figura do Presidente e do Conselho Nacional de Administração, composto de nove membros, e, quanto à descentralização, impõe-se o mais alto grau da história constitucional uruguaia, com os governos locais escolhidos pelo próprio corpo eleitoral do Departamento. Se a divisão do Executivo visava à redução do poder personalista, ocasionou, todavia, após três mandatos, ingovernabilidade, num momento de crise mundial do capitalismo (1929), quando setores clamavam por ações efetivas.

2Cf.

FELDE, Alberto Zum. Proceso histórico del Uruguay. Montevideo: Editorial Arca, 1967. p. 116-131; FLORES DAPKEVICIUS, Rubén. Manual de derecho público: derecho constitucional. Buenos Aires; Montevideo: B de F Editorial, 2007. t. 1. p. 152-158; CAGNONI, José Aníbal. El derecho constitucional Uruguayo. 2. da. ed. actual. y ampl.. Montevideu: Impresora Grafinel, 2006. p. 85-91. 3Cf. CASAS, Juan Carlos. Um novo caminho para a América Latina. Tradução de Clóvis Brigagão e Cinthia Barki Brigagão. Rio de Janeiro: Record, 1993. p. 380-381; GONZÁLEZ, Luis Eduardo. Estructuras políticas y democracia en Uruguay. Montevideo: Fundacion de Cultura Universitária, 1993. p. 13-15; GUNTHER, John. O drama da América Latina. Tradução: Jorge Jobinsky. 2. ed. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, 1943. p. 352. 4“En lo que alcanza el conocimiento del autor, Uruguay fue la primera democracia constitucional que hizo el intento de integrar directamente a los partidos políticos en el proceso gubernamental. Esto ocurrió ya en la Constitución de Battle de 1917.” (LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. 2. ed. Barcelona: Editorial Ariel, 1976. p. 447). Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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O dissenso político entre o Presidente Colorado Gabriel Terra e o Senado, cuja maioria era dos Blancos, e o Conselho de Administração, composto por opositores batllistas do seu próprio partido, teve como efeito o golpe de Estado de 1933, com a dissolução do Parlamento e do órgão colegiado, apoiado por forças policiais, e a criação da Junta de Governo Provisória, formada por aliados. No mesmo ano foi convocada uma Assembleia Constituinte, que elaborou a Constituição de 1934, na qual se reduziu a autonomia departamental e se reestruturaram os Poderes, conforme aspirado por Terra, reeleito para novo mandato, abolindo o Conselho de Administração e instituindo o sistema presidencial mais parlamentarizado da história uruguaia5. O controle horizontal ainda foi robustecido com a introdução expressa do controle de constitucionalidade de leis pela Suprema Corte de Justiça e a estipulação do Tribunal de Contas e do Tribunal do Contencioso Administrativo, responsáveis pela análise da gestão financeira e da legalidade das resoluções, respectivamente. A Constituição de 1934, tal como a brasileira coetânea, acompanhando tendência mundial, afastouse do molde liberal, declarando direitos econômicos e sociais, que demandam uma prestação positiva do Estado, e proclamou um governo semi-representativo, em que a soberania também é exercida diretamente pelo Corpo Eleitoral, ainda que, na Constituição de 1918, houvesse previsão de iniciativa para assuntos locais; trazendo em seu bojo institutos que se consolidaram e permanecem até a atualidade6. A sua vigência foi interrompida por um novo golpe de Estado, em 1942, que, tal como o de 1933, ocorreu sem intervenção militar e diante de uma apatia popular, mas com o apoio de grupos contrários à concentração política pelos partidos tradicionais, inclusive que deles faziam parte. Assim, Alfredo Baldomir, eleito em 1938 com o compromisso de realizar uma reforma num cenário político-partidário cindido, promoveu a ruptura institucional e aprovou projeto proposto por uma Junta de Partidos, resultando na adoção da fórmula proporcional integral para o preenchimento das cadeiras do Senado e na supressão da co-participação no Conselho de Ministros, autorizando-se o Presidente a distribuir estes cargos a cidadãos com apoio parlamentar. No governo que se segue, de Juan Amézaga, em que se retorna à democracia, o Uruguai favorecese, no final da 2ª Guerra Mundial, da expansão social e econômica global, postergando os efeitos de sua fragilidade pelo avanço da industrialização. Diante de uma conjuntura de otimismo e restauração reformista, com a eleição do sobrinho de Battle, Luis Battle Berres, em 1947, o seu sucessor, Andrés Martínez Trueba, encontra ambiente favorável à mudança das instituições, originando nova reforma constitucional. A Constituição de 1952 refletiu, portanto, o neobattlismo, com a retomada da ideia de um Executivo Colegiado integral (Conselho Nacional do Governo)7, resultando na co-participação entre blancos e colorados. Não há alterações substanciais nas competências do Poder Legislativo, no entanto, quanto ao Poder Judiciário, prevê-se a declaração de inconstitucionalidade por via de ação. A referida Constituição não será duradoura em virtude da falta de ilegitimidade e ingovernabilidade provocadas pela excessiva partidarização do governo

5O

Executivo, que passa a contar com um Vice-Presidente, era exercido pelo Presidente, que atuava com um Conselho de Ministros (nove), do qual era integrante e tinha voz e voto (qualificado no caso de empate), enquanto o Legislativo, então formado por um sistema de “meio a meio”, garantindo a co-participação das forças políticas tradicionais, foi dotado de voto de censura e, ao desaprovar atos dos Ministros, permitia ao Presidente dissolver o Parlamento e convocar eleições antecipadas; contudo, se as novas composições das Casas Legislativas mantivessem o voto de censura, caíam tanto o Conselho quanto o Presidente. 6“La nueva Constitución presentaba una estructura de contenidos muy diferente a la de 1918. Paradójicamente, este texto constitucional que emergía en una situación de facto, supondría un avance en la consolidación del conjunto de disposiciones que integran el ‘edicto perpetuo’ de nuestra historia constitucional.” (CHASQUETTI, Daniel. El processo constitucional en el Uruguay del siglo XX. In: NAHUM, Benjamin (Ed.). El Uruguay del siglo XX: la política. Montevideo: EBO-ICP, 2002. t. 2, p. 71). 7O Conselho tinha uma presidência rotativa, com duração anual, e poderia designar ministros, pela maioria de votos, que seriam responsáveis perante as Câmaras, não se estendendo a censura aos conselheiros. Dos nove membros, seis seriam do partido governista e três da oposição, com interferência na nomeação de Diretores dos Entes Autônomos e Serviços Descentralizados (três para a maioria e dois para a minoria). Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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e das crises econômica a partir de 1955 e ética na vida pública; passando-se a pensar que uma nova Constituição poderia salvar esta situação8. A Constituição de 1967 foi objeto de veementes debates nas Câmaras, chegando-se a aprovar quatro projetos, o que favoreceu uma reforma de caráter interpartidário9, sendo que, dentre os pontos mais relevantes, retomou o sistema presidencial personalizado de 1934 e 1942, com censura restrita aos Ministros, buscando fortalecer o Executivo e suas ações, reduz os benefícios percebidos pelos legisladores e estabelece regras rígidas acerca do cumprimento da função pública; e será analisada, com a observância de suas reformas parciais (1989, 1994, 1996 e 2004), nos pontos seguintes do presente artigo. No período de vigência desta Constituição, o Uruguai, tal como ocorrido em outros países latino-americanos10 na época, enfrentou uma ruptura democrática grave, com a instauração de regime militar ditatorial, formalmente instalado pelo Decreto n.º 464/1973, sendo que tais normas constitucionais sofreram alterações por atos institucionais. A quebra da democracia foi o efeito de um longo processo deteriorante, acelerado com a assunção ao poder de Pacheco e seu projeto autoritário, as crises econômica, do modelo estatal e do sistema político, a eclosão de guerrilhas urbanas (e.g. tupamaros), crescimento da força militar e a vitória de Juan Bordaberry pelo partido Colorado, eleito outrora senador pelo partido Nacional, por uma pequena diferença. O Presidente dissolve o Parlamento e concede parte do poder aos militares, criando um Conselho da Nação (Ato Institucional nº 2), com a oposição de movimentos sociais, sendo que as Forças Armadas passam a exercer gradualmente maior controle estatal e, em razão de desavença política ocorrida em 1976, Bordaberry é deposto por apresentar proposta tendente, dentre outros pontos, à eliminação da representação política. De acordo com Rubén Flores, calculou-se que, neste ano, o número de encarcerados pelo governo se elevou a 5.500 pessoas (em três milhões) e as violações a direitos humanos eram endêmicas11; observando-se que entre 1978 e 1980 o governo militar está disposto a legitimar suas ações pelo povo, mas seu projeto de reforma constitucional é rejeitado em plebiscito, abrindo, assim, um inevitável caminho para a restauração da democracia. 2. A organização política na restauração democrática12: a reforma eleitoral de 1996 O período de 1980-1985 refere-se ao processo de transição, em que os militares buscaram uma saída consensual do poder, conduzida pelos partidos políticos, os quais reassumem o papel de atores principais da política uruguaia, realizando-se eleições internas para a designação das autoridades, em 1982, e obtendo, por meio do “Pacto do Clube Naval”, a liberação de presos políticos e autorização para eleições livres, em 1984, reduzindo as pressões sociais. Com a retirada pacífica das Forças Armadas e a entrega do governo ao candidato vitorioso, Julio Sanguinetti, finda o período ditatorial, aprovando-se, em 1986, lei que 8CAGNONI,

José Aníbal. op. cit., p. 98-99. Mario Benedetti, um dos principais escritores uruguaios, oferecia uma visão crítica acerca de questões políticas do país, sendo que em Gracias por el fuego demonstra exatamente o cenário pré-ditadura de inconformidade com a crise econômica e social. 9CHASQUETTI, Daniel. op. cit., p. 78-79. 10De acordo com Galeano existe sempre uma relação íntima entre a intensidade da ameaça e a brutalidade da resposta. As modificações de Allende no Chile, a mobilização da massa de trabalhadores na Argentina e a politização acelerada da juventude uruguaia teriam sido desafios que sistemas impotentes e em crises eram incapazes de suportar. (GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Tradução de Galeano de Freitas. 10. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. p. 292). 11FLORES DAPKEVICIUS, Rubén. op. cit., p. 174. A Anistia Internacional denunciou em 1975 que desde 1972 mais de quarenta mil pessoas haviam sido detidas, 1% dos uruguaios torturados e 1 em cada 500 processado (Cf. CASAS, Juan Carlos. op. cit., p. 389). O Ato Institucional nº 5 possibilitou tais violações aos direitos humanos, com o controle estatal para assegurar a segurança nacional. 12De conformidade com Dahl, em obra originalmente publicada em 1985, dentre os países que se transformaram em ditaduras por ele analisados, o Uruguai era o único que, no colapso, contava com pelo menos vinte anos de experiência de instituições democráticas, ou seja, ao contrário dos demais, seus processos e instituições democráticos estavam profundamente enraizados em sistemas de crença e cultura política; razão pela qual a profundidade e persistência de sua cultura democrática dariam razões para que o sistema democrático voltasse a reemergir no país. (Cf. DAHL, Robert A. Um prefácio à democracia econômica. Tradução: Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990. p. 38-39 e 133). Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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afirmou a caducidade da pretensão punitiva do Estado para delitos cometidos por militares e policiais (Lei n.º 15.848). A ordem constitucional de 1967 é restabelecida e duas reformas referentes ao regime dos inativos foram implementadas: em 1989, definiu o piso e a hipótese de reajuste das aposentadorias e pensões e, em 1994, dispôs sobre quais mudanças legais na seguridade social, seguros sociais ou previdência social deveriam ser declaradas inconstitucionais.. O Presidente Sanguinetti auxiliou na consolidação da democracia uruguaia, defrontando um panorama econômico desfavorável por meio de auxílio às instituições financeiras, diversificação das atividades internas e aumento das exportações, em um contexto de redimensionamento estatal. Na política, houve uma aparente retomada da polarização entre os dois partidos históricos, interiormente mais fracionados, que alternadamente se substituíram no governo central no final do século XX, pois as forças fragmentadas de esquerda, unidas, em 1971, sob a “Frente Ampla” 13, impuseram de forma gradativa a reordenação do centenário sistema bipartidário para um pluralismo moderado, logrando o Município de Montevidéu, em 1989, com Tabaré Vázquez. Em novembro do mesmo ano também se votou, em plebiscito, a já mencionada reforma que vinculou o reajuste das aposentadorias ao aumento de salário dos funcionários públicos e, quanto ao pleito presidencial, o Partido Nacional obteve a vitória com Lacalle, que definiu medidas econômicas, reduzindo o déficit fiscal (lei n.º 16.107) e renegociando a dívida externa (Plano Brady). O projeto de reforma do Estado de Lacalle, no entanto, sofreu, em 1992, uma grande derrota em referendo impulsionado por partidos de esquerda e movimentos sociais, no qual o povo rejeitou a privatização da companhia telefônica ANTEL, revogando-se cinco artigos da denominada Lei de Empresas Públicas (Lei 16.211). As eleições ocorridas em 1994, em que Julio Sanguinetti se reelege, refletiram uma apreciável alteração na distribuição do poder, com o Novo Espaço firmando-se como quarta força política e os partidos Colorado, Nacional e Frente Ampla obtendo resultados próximos a um terço do total da votação; levando o então Presidente a adotar um governo de coalizão com os blancos e a conseguir o apoio da maioria parlamentar, possibilitando a continuidade dos projetos, na seara econômica, de seu antecessor e a realização de reformas, como na educação, na previdência social e no sistema eleitoral. A indispensabilidade de uma reforma política, tema rotineiro no início da década de noventa14, contou com relativo consenso dos partidos, cujos delegados foram reunidos por Sanguinetti, antes do início do seu mandato, para formulação de uma proposta. A referida proposta de reforma constitucional foi apresentada de comum acordo apenas entre os Partidos Colorado, Nacional e Novo Espaço, aprovada no Senado e na Câmara, ratificada em plebiscito com um percentual mínimo de diferença e promulgada pelo Executivo em 1997, alterando disposições abarcadas na Ley de Lemas. Dentre as especificidades das regras pré-reforma atinentes ao jogo político, podem ser apontadas: a) o sistema de duplo-voto simultâneo, b) listas fechadas e bloqueadas para todos os cargos, com o monopólio partidário da candidatura, c) eleições nacionais e departamentais diretas e simultâneas, com mandato de cinco anos, d) representação proporcional integral para preenchimento das cadeiras, com o método D´Hondt, das Casas legislativas, e) maioria simples para eleição de cargos uninominais, f) critério

13Em

1971, a coligação “Frente Ampla” já havia conseguido resultados expressivos: obteve um quinto do eleitorado nacional, relegou aos blancos o terceiro lugar em Montevidéu e alcançou uma efetiva capacidade de arbitragem no Parlamento; razão pela qual Luis Eduardo Gonzáles conclui que pela primeira vez na história o sistema partidário havia se convertido em um sistema de dos y medio. (GONZÁLEZ, Luis Eduardo. op. cit., p. 113). 14Cf. CAETANO, Gerardo; RILLA, José. Historia contemporânea del Uruguay: de la colônia al Mercosur. Uruguay: Editorial Fin de Siglo, 1994. p. 310-311; CHASQUETTI, Daniel. op. cit., p. 80-81; CASAS, Juan Carlos. op. cit., p. 412-413. Uma visão crítica da reforma política pode ser verificada em RIAL, Juan. Governabilidade, partidos políticos e reforma política na restauração democrática do Uruguai. In: TRINDADE, Hélgio (Org.). América Latina: eleições e governabilidade democrática. Porto Alegre: Ed. da Universidade - UFRGS, 1991. p. 82-83. Alguns projetos de lei foram formalizados, mas todos rejeitados, como a “mini-reforma” de Lacalle, em consulta popular (1994). Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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majoritário e, subsidiariamente, proporcional para eleição das Juntas Departamentais15. Tratavam-se de regras convenientes ao bipartidarismo, em que o majoritário simples, com múltiplas candidaturas, afastava outras forças políticas da disputa e o proporcional, aliado ao duplo-voto simultâneo, resultava em poucos partidos fracionados em grupos. A reforma realizada no âmbito eleitoral promoveu mudanças em três das regras mencionadas: a) separando o tempo de realização das eleições nacionais e departamentais e, parcialmente, das legislativas e presidenciais, bem como permitindo o voto em partidos diferentes nos diferentes níveis governamentais; b) instituindo o sistema majoritário de dois turnos para eleição presidencial, sendo que os candidatos seriam escolhidos no início de cada período eleitoral, por meio de eleições internas abertas, obrigatórias e simultâneas (Leis n.ºs 17.063 e 17.690) em todos os partidos, com voto facultativo e candidatura única (no caso das intendências eram duas a três candidaturas) e c) proibindo a acumulação de votos por frações intrapartidárias (sublemas) e a identidade de listas para a Câmara dos Deputados e eliminando as distinções entre partidos acidentais e permanentes16. Esta reforma constitucional ocorreu em um panorama político de realinhamento do sistema partidário, que, conforme lições de Jorge Lanzaro, abandonou o tradicional controle bipartidário e ingressou num moderado sistema multipartidário, passando de uma política triangular para uma geometria bipolar, diante do desenvolvimento de uma esquerda centralizada na Frente Ampla e da relação entre blancos e colorados17. Se o objetivo era conter o crescimento da esquerda uruguaia, tal fato não ocorreu, uma vez que, se nas eleições presidenciais de 1999 a Frente Ampla sofreu reverso para os colorados no segundo turno, em razão da cooperação entre os partidos tradicionais e outrora rivais, foi, todavia, o partido mais votado nas eleições legislativas e, no pleito de 2004, conquistou a vitória para o Executivo nacional com Tabaré Vázquez. Logo, o funcionamento da política uruguaia se realiza principalmente com os Partidos Colorado, Nacional e Frente Ampla, bem como por intermédio de partidos menores (e.g. Independiente e Asamblea Popular). Tratam-se de associações de pessoas sem fins lucrativos, que se organizam para efeito de exercício coletivo da atividade política em todas as suas manifestações (art. 3º da Lei n.º 18.485), sendo denominados de lemas em atos e procedimentos eleitorais (art. 9º da Lei n.º 7.812), devendo, desse modo, estar inscritos na Corte Eleitoral (e.g. devem contar com o apoio de 0,5% dos cidadãos habilitados para votar na última eleição nacional); e figuram como canais de expressão da vontade popular que fortalecem o sistema democrático republicano, sujeitos a um modelo de financiamento misto (Lei n.º 18.485). A Constituição afirma a imprescindibilidade destes atores políticos, ao dispor que o Estado assegura aos partidos a mais ampla liberdade (art. 77-11)18, tanto na estruturação quanto no funcionamento, os quais, não obstante, devem exercer efetivamente a democracia interna na eleição de suas autoridades e dar máxima publicidade às suas cartas orgânicas e programas de princípios, de forma que o cidadão possa conhecê-los

15Cf.

MIERES, Pablo. El Uruguay Postautoritario y la Construccion democratica. In: EL URUGUAY actual. Montevideo: Facultad de Derecho y Ciências Sociales: Montevideo, 1989. p. 103-105; VAIRO, Daniela. “Juntos pero no casados”: los efectos de la reforma constitucional al interior de los partidos. Revista Uruguaya de Ciencia Política, Montevideo, v. 17, n. 1, p. 161-162, dez. 2008. Disponível em: . Acesso em: 02 out. 2010; RIAL, Juan. Sistema electoral y governabilidad. In: KONIECKI, Dieter (Ed.). Sistemas electorales y representacion política en Latinoamerica. San José da Costa Rica: Fundación Friedrich Ebert, 1986. p. 99-110. 16Cf. VESCOVI, Enrique. op. cit., p. 248-251; CHASQUETTI, Daniel. op. cit., p. 81-82; DAPKEVICIUS, Rubén Flores. op. cit., p. 182-188. 17LANZARO, Jorge. Foudations of pluralist democracy and political structure of the State in Uruguay. Revista Uruguaya de Ciência Política, v. 1, p. 31, 2004. Disponível em: . Acesso em: 02 out. 2010. 18Cf. GROS ESPIELL, Héctor. Partidos políticos y elecciones internas en la reforma constitucional uruguaya de 1997. In: GRAU, Eros Roberto; CUNHA, Sérgio Sérvulo da. Estudos de direito constitucional em homenagem a José Afonso da Silva.São Paulo: Malheiros Ed., 2003. p. 450-453; CAGNONI, José Aníbal. op. cit., p. 195-196. Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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amplamente; observando-se que eventuais restrições legais à citada liberdade devem guardar conformidade com as disposições constitucionais limitativas, dentre as quais cita-se a impossibilidade de criação de tais organizações com o objetivo de destruir as bases fundamentais da nacionalidade (art. 80-6º). A Constituição uruguaia segue a mesma metodologia das anteriores, inexistindo disposições conceituais acerca dos partidos, ainda que se façam presentes em seu texto menções expressas a tais associações, como na vedação à prática de atividade político-partidária (art. 77-4º), na composição da Corte Eleitoral (art. 324) e na apresentação de listas de candidatos para Legislativo e Executivo, que devem figurar em uma cédula de votação individualizada atreladas a um partido (art. 77-9º)19, impossibilitando candidaturas avulsas. Outrossim, ressalte-se que as atuações de tais agrupamentos se vinculam a direitos reconhecidos na norma constitucional, como de associação, de manifestação do pensamento sem censura prévia e de reunião pacífica, e, sendo-lhes reconhecida personalidade jurídica (Lei n.º 9.524), os partidos não podem ser patrimônio de pessoa, família ou grupo econômico e podem ser proprietários de bens, estes isentos de tributação, alicerçando a autonomia essencial para o regular exercício de suas funções institucionais. O processo histórico uruguaio certamente é melhor compreendido com base na centralidade política e nas relações entre partidos, que, a partir da segunda metade do século XX, passaram por intensa transformação, com os partidos tradicionais, cuja rivalidade, por vezes, ocasionou difíceis embaraços à governabilidade, abandonando o rigorismo ideológico para se unirem em contraposição à uma força crescente, liderada pela Frente Ampla, formada, inclusive, com seus dissidentes, sendo que as mudanças nas regras eleitorais não impediram o realinhamento do poder. Avançou-se, desta forma, de um sistema de prevalência bipartidarista, com períodos de dominância colorada (e.g. ganhou quatro eleições entre 1942 e 1954 e três entre 1966 e 1984), para um multipartidarismo polarizado, de partidos tradicionais e desafiantes, com a consolidação do Frente Ampla na eleição presidencial de 2009; permanecendo tais agremiações como peças necessárias à ordem democrática. 3. A Constituição uruguaia vigente e sua estrutura institucional democrática A atual Constituição do Uruguai de 1967, com a vigência restaurada em 1985, após período ditatorial, sofreu sua última modificação parcial em 2004, acerca da gestão e administração da água potável e saneamento, aprovada em plebiscito impulsionado por iniciativa popular, contando com a mobilização de organizações sociais em interação com partidos políticos contrários à privatização do serviço de fornecimento de água; resultando na inserção ao texto constitucional de proibição à privatização dos serviços mencionados e no inovador reconhecimento dos acessos à água potável e ao saneamento como direitos fundamentais. A análise do atual ordenamento institucional, produto do constitucionalismo uruguaio, sofrendo influxos das Constituições precedentes e de suas reformas, impõe considerações sobre alguns dos seus traços característicos. Destarte, deve-se enfatizar que o Uruguai adota um regime de governo republicano democrático, com o modelo semi-representativo, em que representação política e participação direta se complementam, e, quanto à Forma de Estado, permanece Unitário desde o seu primórdio, em contraposição aos países vizinhos, descentralizado em Departamentos, dotados apenas de autonomia administrativa e legislativa. Ademais, é possível identificar o regime de governo como: a) pluralista, com o respeito a todas ideias e tendências, assegurando ampla liberdade aos partidos, b) laico, pois o Estado adota postura imparcial em matéria religiosa, c) humanista, ao prever e consagrar a efetividade de todos os direitos humanos, d) pacifista, propiciando em foros internacionais a solução de conflitos por arbitragem ou outros 19Observe-se

que, em 2009, foi aprovada no Uruguai uma Lei de Cotas (Lei n.º 18.476) que terá vigência a partir das eleições nacionais de 2014 e departamentais de 2015, a qual versa sobre a participação política equitativa de ambos os sexos, determinando que, em cada três nomes nas listas, não pode haver mais de duas pessoas do mesmo sexo. Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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meios pacíficos, e) integracionista, especialmente na América Latina, nas searas econômica e social (art. 6º)20, prevendo os regionalismos contemporâneos, como o processo do Mercosul iniciado em 1991. Em relação à separação em poderes, adota-se a tripartição em Executivo, Legislativo e Judiciário, existindo órgãos que não se enquadram especificamente em nenhum dos três, como o Tribunal de Contas e Tribunal de Contencioso Administrativo; sendo que o Legislativo não contou com grandes variações na sua organização, compondo-se de sistema bicameral21 com os seguintes organismos, cada qual com competências exclusivas: Assembléia Geral (reunião das Câmaras para deliberar sobre matérias específicas, presidida pelo Vice-Presidente da República), Câmara de Representantes (composta por noventa e nove membros), Câmara dos Senadores (composta por trinta membros e também presidida pelo Vice-Presidente) e Comissão Permanente (atua quando as Casas estão em recesso e é composta por quatro senadores e sete deputados) 22; cujas distribuições de cadeiras obedecem à regra da proporcionalidade. Dentre suas atribuições, além da legislativa, frise-se a de controle político, que pode conduzir a Assembléia Geral a pronunciar censura sobre atos dos Ministros de Estado, fato este que conduziria a uma “parlamentarização” do governo. A estruturação do Poder Executivo e a sua correlação com o Legislativo são seguramente temas imprescindíveis na seara latino-americana, em que se busca o equilíbrio entre impedir uma presidência dotada de extensos poderes, a qual possa se degenerar em regime não-democrático, e impossibilitar eventual paralisia na execução dos programas governamentais, em decorrência de instabilidades políticas e ausência de apoio parlamentar. No processo histórico uruguaio é possível constatar intensos debates acerca da organização tanto do Executivo, unipessoal ou colegiado, este influência do governo diretorial suíço, quanto do próprio presidencialismo, em sua forma típica ou com a incorporação, em maior ou menor grau, de institutos de caráter parlamentarista. O Poder Executivo é exercido hodiernamente pelo Presidente da República, eleito, com o Vice-Presidente, para o prazo de cinco anos, atuando com um ou vários Ministros, ou com o Conselho de Ministros. Quanto ao processo de designação do Presidente, os candidatos devem, primeiramente, ser escolhidos em eleições internas, que ocorrem simultaneamente em todos os partidos no mês de junho do ano eleitoral, observando-se que o sufrágio é facultativo e a escolha reside na candidatura à Presidência, pois o Vice-Presidente será determinado pela própria agremiação partidária. Sagra-se vencedor o précandidato que obtiver maioria absoluta dos votos válidos ou mais de 40% dos votos e superando o segundo lugar em mais de 10% dos sufrágios; sendo que, na hipótese de não se alcançar os referidos percentuais, o candidato será eleito pela maioria absoluta de um órgão deliberativo partidário. Desde a reforma de 1997, adota-se no escrutínio presidencial o sistema de dois turnos, no qual, se nenhuma candidatura alcançar a maioria exigida na eleição ocorrida no último domingo de outubro, realiza-se um novo turno apenas com os dois candidatos mais votados, no último domingo de novembro23. O Presidente eleito goza, tal como

20VESCOVI,

Enrique. op. cit., p. 264-265. sistema bicameral uruguaio sujeita-se a críticas em virtude da adoção da Forma de Estado Unitária, pois o Senado, no federalismo, possibilita a participação de poderes periféricos na vontade emanada pelo poder central. No Uruguai, na Constituição de 1830, a composição do Senado era baseada na representação dos Departamentos. Tal lógica foi invertida e as eleições para o Senado passaram a ser tomadas pela circunscrição nacional, enquanto na de deputados, fixou-se a relação de pelo menos dois representantes a cada Departamento. Desta forma, conclui Daniel Chasquetti: “Esta disfunción representativa ha permanecido en el tiempo y resulta ser uma verdadera peculiaridad del diseño institucional uruguayo.” (CHASQUETTI, Daniel. op. cit., p. 88-89). 22Cf. FLORES DAPKEVICIUS, Rubén. op. cit., p. 205-245 e CAGNONI, José Aníbal. op. cit., p. 251-273. 23A última eleição presidencial foi disputada por cinco candidatos, sendo que Mujica (Frente Ampla) e Luis Lacalle (Partido Nacional) passaram ao segundo turno, em que aquele se sagrou o vencedor com 52,39% contra 43,51% dos votos (GEORGETOWN University. Disponível em: . Acesso em: 01 fev. 2011). 21O

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senadores e deputados, de imunidades e se sujeita a proibições e incompatibilidades, podendo se reeleger após o transcurso de cinco anos do término do seu mandato, pois há vedação à reeleição consecutiva24. No tocante aos poderes conferidos ao Presidente, figura preeminente no sistema orgânico do Executivo25, há um acúmulo de funções de Chefe de Estado, como a dissolução das Casas Legislativas e a convocação de novas eleições e a própria representação do Estado, com as de Chefe de Governo, de forma abrandada, como a convocação do Conselho de Ministros e o pedido de voto de confiança a este órgão, que tem competências dos atos de administração e governo, algumas exclusivas, porém excepcionais. Desta organização dúplice do Executivo, depreende-se que sua atuação pode ocorrer por meio da Presidência, por via de um “acordo” entre Presidente e Ministro ou Ministros acerca das matérias que tratem, expedindo-se resoluções, ou mediante o Conselho de Ministros, presidido pelo Presidente da República, o qual terá voz nas deliberações e voto nas resoluções (decisivo no caso de empate), e integrado pelos treze Ministros, que apenas podem discutir assuntos de suas pastas. O relacionamento entre Executivo e Legislativo decerto é uma das questões mais relevantes na história uruguaia, em que se busca a harmonia necessária à governabilidade26, criando um sistema de governo dotado de particularidades que dificultam seu mero enquadramento num dos modelos puros, não obstante, nesta parlamentarização do Executivo, razão assista a Giovanni Sartori, ao afirmar que a censura de ministros e a prerrogativa presidencial de dissolução do Parlamento constituem desvios de molde norteamericano, o que não contradiz o fato de se tratar de um presidencialismo27. Esta afirmação é ratificada tanto pela introdução, na Constituição vigente, de instrumentos que fortalecem o papel do Executivo, como a adoção do pedido de urgência e do veto presidencial (e.g. em 2008 foi usado para barrar projeto de despenalização do aborto), quanto pela constatação de que os institutos parlamentares, na prática, raramente são utilizados28; ressalvada, no entanto, a importância de tais ferramentas na lógica de cooperação política do sistema, como o apoio parlamentar para adjudicação de Ministros e a desaprovação à gestão destes (individual, plural ou coletiva). Na hipótese de desaprovação, que deverá ser pronunciada pela maioria absoluta de votos dos componentes da Assembléia Geral (cinquenta e três), ordinariamente em sessão especial e pública, o Parlamento determina a renúncia do Ministro, dos Ministros ou do Conselho; restando facultado ao Presidente da República observar tal desaprovação, quando pronunciada por pelo menos dois terços dos legisladores, provocando nova manifestação da Assembléia. Se esta mantiver o seu voto por um número inferior a três quintos de seus membros, possibilita a dissolução das Câmaras Legislativas, existindo, para tanto, limitações temporais, e a convocação de novas eleições, sendo que, subsistindo a censura com as novas composições, reunidas em Assembléia sem necessidade de convocação do Executivo, cai o Conselho de Ministros, não alcançando, contudo, a figura do Presidente. O voto de confiança pleiteado ao Parlamento

24Cf.

art. 152 da CROU. Recentemente houve discussão sobre a previsão de reeleição presidencial sucessiva, mas a proposta perdeu força quando Vázquez desistiu de concorrer a um novo mandato. Recorde-se que, em 1971, foi realizado plebiscito para reformar a Constituição e permitir a reeleição imediata, proposta esta que foi rechaçada. O último caso de reeleição foi do colorado Julio Sanguinetti (1985-1990 e 1995-2000). Assim, a reeleição é permitida, mas não em períodos sucessivos; inexistindo limitação quanto ao número de reeleições. 25VESCOVI, Enrique. op. cit., p. 265 e DAPKEVICIUS, Rubén Flores. op. cit., p. 263-264. 26“La Constitución uruguaya de 1966 es lo más ejemplificadora en lo que hace relación a la necesidad de la búsqueda del acuerdo político, para lograr una coexistência entre ambos poderes del Estado, que se caracteriza por la cooperación y no por la confrontación”. (BALMELLI, Carlos Mateo. El desarrollo institucional. Asunción- Paraguay: PNUD, 2004. p. 183-184) Cf. também VESCOVI, Enrique. op. cit., p. 267. 27SARTORI, Giovanni. Engenharia constitucional. Tradução de Sérgio Bath. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1996. p. 107. Nesse sentido CAGGIANO, Monica Herman Salem. Direito parlamentar e direito eleitoral. Barueri, SP: Manole, 2004. p. 45. Para Cagnoni, o tipo de governo é aberto, pois, se o Presidente contar com apoio parlamentar, funciona como parlamentarismo, enquanto, se carecer de maiorias, desenvolve-se como presidencial (CAGNONI, José Aníbal. op. cit., p. 232). 28CHASQUETTI, Daniel. op. cit., p. 85. Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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em favor do colegiado pelo Presidente, por sua vez, se negado, distintamente, não produz efeitos jurídicos imediatos. A estrutura democrática uruguaia, com institutos de controle e consentimento, também possui mecanismos de democracia semidireta, de prática regular e efetiva, revelando-se como a mais rica experiência latino-americana, iniciada com a previsão de plebiscito para alteração do processo de reforma constitucional de 1912, adotando já na década de trinta, de forma expressa na Constituição, a coexistência de institutos de participação direta com a representação popular (art. 72) e permitindo o uso de referendo e iniciativa popular no âmbito departamental, o qual foi regulamentado pela Lei n.º 9.515 de 1935. Na Constituição atual, foram previstos: a) referendo (nos âmbitos departamental e nacional), regulamentado pela Lei n.º 16.017 (1989), com modificações pela Lei n.º 17.244 (2000), b) iniciativa popular tanto para reforma constitucional quanto para elaboração de leis e c) plebiscito, que, diferentemente do Brasil29, integra a fase final do processo de reforma constitucional, posterior, portanto, à aprovação do ato. Desta forma, em relação ao plebiscito, trata-se de recurso obrigatório para a ratificação do projeto de alteração, total ou parcial, do texto da Constituição, sendo que a maioria exigida varia de acordo com a origem do projeto (art. 331)30, assemelhando-se, no direito estrangeiro, ao referendo constitucional constitutivo. O referendo, seguindo a delimitação material da Constituição, de caráter ab-rogativo, tem como objeto ato perfeito e acabado, sendo facultativo e condicionado ao impulso popular (25% do total de inscritos habilitados a votar, em matéria nacional), havendo, no entanto, limites fixados à sua aplicação, não podendo versar sobre lei que estabeleça tributos ou sobre matéria de iniciativa privada do Poder Executivo31, acrescendo-se que também há vedação em relação às leis constitucionais (art. 331-D), submetidas a plebiscito. Na lei regulamentar prevê-se que esta consulta popular pode ser provocada contra a totalidade da lei ou parte dela, a qual deverá ser individualizada, no ano de sua promulgação, dispondo, ainda, sobre hipótese facilitada de interposição (vía rápida), reduzindo-se o percentual para 2% dos inscritos, dentro do prazo máximo de cento e cinquenta dias da promulgação da lei, que será averiguada pela Corte Eleitoral, podendo aprovar sua convocação. A iniciativa popular, por sua vez, abrange inúmeras possibilidades de utilização além da citada vinculação ao referendo, acompanhando a prática suíça, como o direito de iniciativa, por um quarto dos cidadãos, em matéria legislativa, sofrendo as mesmas restrições da consulta referendária no que tange ao conteúdo. Por este instituto32 é possível promover, outrossim, a reforma da Constituição, se contar com a adesão de 10% do total de cidadãos inscritos no Registro Cívico, apresentando projeto articulado ao Presidente da Assembléia Geral, a qual pode oferecer projeto substitutivo, submetendo- os a plebiscito, que ocorrerá na data das eleições. Há, do mesmo modo, a previsão constitucional de iniciativa em matéria departamental, a ser instituída e regulamentada pelo legislador, bem como é permitido que 15% dos inscritos

29No

Brasil, para a distinção entre plebiscito e referendo utiliza-se o critério temporal (art. 2º da Lei n.º 9.709/98), razão pela qual plebiscito é a consulta popular convocada com anterioridade a ato legislativo ou administrativo. 30Os dois últimos plebiscitos ocorreram em 2009, versando sobre uma reforma que permitisse o voto por correio de uruguaios residentes no exterior e a anulação da Lei de Caducidade, sendo que ambas as propostas foram rejeitadas. Contudo, no tocante à Lei de Caducidade, antes mesmo da consulta a Suprema Corte de Justiça já havia declarado a inconstitucionalidade da referida norma (efeito inter partes) e, em virtude de determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, existia projeto de anulação tramitando nas Casas Legislativas, o qual foi aprovado no Senado e, em 20.05.2011, rejeitado na Câmara, pois não se alcançaram os 50 votos necessários (votação terminou empatada). No entanto, diante do impasse político, o governo assinou recentemente decreto permitindo a investigação de casos ocorridos na ditadura. 31Cf. DAPKEVICIUS, Rubén Flores. op. cit, p. 197 e GONZÁLEZ RISOTTO, Rodolfo. Democracia directa: el caso de Uruguay. p. 3-4. Disponível em: . Acesso em: 28 dez. 2009. 32O Uruguai, segundo David Altman, é o país que mais se utiliza das iniciativas cidadãs na América. (ALTMAN, David. Democracia directa en el continente americano: ¿autolegitimación gubernamental o censura ciudadana? Política y Gobierno, México, v. 12, n. 2, p. 207 e 218, 2005). Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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residentes em uma localidade ou circunscrição tenham, em assuntos da jurisdição, a iniciativa ante qualquer órgão do Governo Departamental. O Judiciário, consagrado na Constituição de 1830, ainda que a instalação do seu órgão diretor tenha sido postergada para o início do século XX, com a nomeação da primeira Alta Corte de Justiça (1907), é previsto na Constituição atual (Seção XV), com organização definida pela Lei n.º 15.750 (1985), e exercido pela Suprema Corte de Justiça, Tribunais de Apelações (Civil, Penal, Trabalho, Família), Juízos de 1ª Instância (Juzgados Letrados) e de Paz33, ressaltando-se que cada órgão, com competências específicas, é independente em sua função. Deve-se mencionar a atuação, na esfera judicial, do Ministério Público e Fiscal, órgão hierarquicamente atrelado ao Poder Executivo, não obstante seus membros gozarem de independência técnica, com a função de defender interesses do Estado, da sociedade e de pessoas que estejam indefesas (Lei n.º 15.365 - 1982). A Suprema Corte, órgão máximo, será composta por cinco Ministros, designados por 2/3 da Assembléia Geral, com mandato de dez anos (podem retornar após cinco anos e automaticamente se afastam aos setenta), e devem contar com: a) quarenta anos de idade, b) cidadania natural ou legal com dez anos de exercício e vinte e cinco anos de residência no país; e c) ser advogado com dez anos de antiguidade ou exercício da Magistratura ou Ministério Público pelo período de oito anos (critério técnico-político); existindo incompatibilidades (exercício de qualquer outra função pública, salvo ensino público superior em matéria jurídica e função pública honorária não judicial), visando à dedicação exclusiva, bem como proibições (e.g. dirigir, defender ou tramitar assuntos judiciais fora de sua obrigação funcional). No exercício de suas atribuições administrativas, a Corte detém, dentre outros poderes, o de designação de todos os juízes e o de exercício da superintendência corretiva, diretiva, consultiva e econômica dos órgãos judiciais. Em relação à competência jurisdicional, cabe à Suprema Corte o julgamento dos infratores da Constituição, conhecer questões relativas a tratados, pactos e convenções celebrados e às causas de diplomatas estrangeiros, e, precipuamente, conhecer pedidos de declaração de inconstitucionalidade de modo originário, exclusivo (concentrado) e a posteriori (repressivo), por razões de forma ou conteúdo, de lei ou norma com força de lei (e.g. decretos departamentais), tanto pela via ação (com legitimação ampla – qualquer pessoa que se considere ou tenha sido lesada em seu interesse direto, pessoal e legítimo) quanto pela de exceção (com a solicitação incidental de inconstitucionalidade - se admitida, suspende-se o procedimento e encaminha a questão à Suprema Corte) ou de ofício, pelo próprio magistrado ou Tribunal; salientando-se que os efeitos da declaração são inter partes, ou seja, restritos ao caso concreto. Da decisão declaratória de inconstitucionalidade, à qual não é cabível recurso, comunica-se o Poder Legislativo ou Governo Departamental, que podem ou não manter o ato por eles emitidos, sendo que, ainda objeto de controvérsias, majoritariamente se compreende que seus efeitos não retroagem34. Por fim, cabe enfatizar que existe no Uruguai, tal como é admitida em outros países latinoamericanos (e.g. Argentina e Chile), a intitulada ação de amparo, regulamentada pela Lei nº 16.011 (1988), tratando-se, pois, de instrumento processual de proteção aos direitos humanos, subsidiário, o qual poderá ser deduzido, no prazo de trinta dias, por pessoa física ou jurídica, privada ou pública, contra ato, omissão ou ação de autoridades estatais ou paraestatais que, de forma atual ou iminente, lesione, restrinja, altere ou ameace quaisquer dos direitos e liberdades reconhecidos na Constituição, excetuados atos da Corte

33Cf.

LOMBARDI, Eduardo. La organización del Poder Judicial em Uruguay. Revista da Faculdade de Direito das Faculdades Metropolitanas Unidas, São Paulo, n. 16, p. 203-216, jul./dez. 1996; BAYCE, Rafael. Poder Judiciário, juízes e acesso à justiça no Uruguai. In: Associação dos Magistrados Brasileiros (Org.). Justiça: promessa e realidade: o acesso à justiça em países íberoamericanos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. p. 60-79; VESCOVI, Enrique. op. cit., p. 268-272. 34Cf. FLORES DAPKEVICIUS, Rubén. op. cit, p. 392-398; CAGNONI, José Aníbal. op. cit., p. 232; HORBACH, Carlos Bastide. Processo constitucional e democracia: exemplos Ibero-Americanos. Revista de Direito Constitucional e Internacional, ano 14, n. 57, p. 95, out./dez. 2006. Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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Eleitoral, atos jurisdicionais e leis e decretos departamentais com força de lei. A referida ação deve ser interposta ante o Juiz competente na matéria, que designará audiência pública e, em sentença, a identificação da autoridade, o que ela deve ou não fazer e o prazo para cumprimento, sendo considerada por alguns como garantia inerente à pessoa humana35. Conclusões A República Oriental do Uruguai é um dos países de maior tradição democrática na América Latina, promovendo em seu reduzido território grandes avanços sociais e institucionais antes mesmo de outras nações continentais, criando atmosfera de otimismo que se refletia no típico ditado - “como el Uruguay no hay” – da primeira metade do século XX, mas que sofreu graves crises econômicas, ineficiências políticas e, diferentemente dos golpes de 1933 e 1942, que objetivavam fortalecer o regime diante de dissensos partidários, enfrenta uma inesperada ruptura, com o início da ditadura em 1973, equiparando-se aos demais países sul-americanos sob regime não-democrático, pondo fim à idéia República utópica diante de tais imperfeições. No entanto, o retorno à democracia demonstrou a existência de valores enraizados que elevaram novamente o país a um status de destaque36, com estabilidade política, aliando competitividade eleitoral com mecanismos de controle, baixo índice de corrupção (24ª posição)37 e satisfatório desenvolvimento social (e.g. baixa taxa de analfabetismo). No âmbito político especificamente, acompanhou-se, como na América Latina de uma forma geral, o forte crescimento da esquerda, com a Frente Ampla, findando com a centenária primazia dos partidos tradicionais, passando-se, portanto, de bipartidarismo predominante para multipartidarismo polarizado, e da atuação de agremiações menores, como o Independente, que elegeu dois deputados em 2009, devendo-se enfatizar, ainda, a grande importância das facções intrapartidárias (sublemas), como o Espacio 609 frenteamplista, do qual surgiu o atual Presidente José Mujica. Quanto à reforma política promovida em 1997, os dois turnos possibilitam, no primeiro, o voto sincero em diversas forças políticas e, no tour de ballotage, a coligação de partidos para alcançar a maioria absoluta. A candidatura única para presidência e o fim da acumulação de votos, por sua vez, acarretariam uma maior competição entre os diferentes grupos internos de cada agremiação, exigindo maior consenso; sendo que se a finalidade de tais mudanças era conter a esquerda, decerto não lograram êxito. Em relação à organização dos poderes, verifica-se, inicialmente, que a relação entre os órgãos políticos ocasiona discussões acerca do sistema de governo, em virtude da introdução de elementos do parlamentarismo (e.g. censura) ao modelo presidencial, o que, atrelado ao Conselho de Ministros, possibilita a atenuação do excesso de personalismo da figura do Presidente, patologia comumente presente na América Latina. Todavia, ressalte-se que os institutos do parlamentarismo são raramente utilizados e não produzem efeitos jurídicos imediatos em relação ao Chefe de Governo, mas tendem a assegurar a governabilidade, possibilitando ao Presidente da República dar prosseguimento aos seus planos de governo com o apoio das maiorias legislativas, atribuindo-lhe também consideráveis poderes, como controle orçamentário, 35Acerca

da ação de amparo no Uruguai, confira: GALLICHIO, Eduardo G. Esteva. La jurisdicción constitucional em Uruguay. In: GARCIA BELAUNDE, D.; SEGADO FERNANDEZ, F. (Coord.). La jurisdiccion constitucional em Iberoamerica. Madrid: Dykinson S.L., 1997. p. 918-925. 36De conformidade com a pesquisa desenvolvida pela “The Economist” acerca da democracia no mundo, o Uruguai, ao lado da Costa Rica, são os únicos países latino-americanos considerados como full democracies, que, no total, são em 26 (15,6% dos 167 países pesquisados). O Uruguai, contudo, é mais bem colocado, ocupando a 21ª posição, na frente de Japão, Itália e França. DEMOCRACY index 2010. Disponível em: . Acesso em: 02 abr. 2011. Outrossim, de acordo com pesquisa do Instituto pela Economia e pela Paz de 2011, o Uruguai é a nação mais pacífica da América Latina e ocupa a 21ª posição no mundo. 37TRANSPARENCY International. Disponível em: . Acesso em: 03 abr. 2011. Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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competências privativas e pedido de urgência. Os mecanismos de democracia semidireta, mesmo enfrentando desconfianças, são de extrema importância no cenário político uruguaio, recordando-se que, tal como no Chile, foi uma manifestação popular em plebiscito que enfraqueceu a ditadura. A experiência peculiar destes instrumentos, tanto no uso sistemático do referendo, com regulamentação mais ampla do que a brasileira, quanto das iniciativas, possibilitando a realização de consultas não dependentes da discricionariedade dos representantes políticos, permite a participação do povo nos rumos estatais. O Judiciário exerce função essencial no controle de constitucionalidade de leis, ou normas com força de lei, oferecendo uma interessante experiência de controle concentrado em contraste ao sistema difuso pátrio, com incidente de inconstitucionalidade no molde europeu, previsão de via de ofício e legitimação ampla. Por fim, conclui-se que o pluralismo e consensualismo institucional uruguaios, necessários ao desenvolvimento e consolidação da democracia, permitem, por meio da engenharia constitucional, freios e amparos recíprocos, com recursos de accoutability vertical, pelo povo, e horizontal, entre poderes, ainda que, na prática, nem sempre se alcance um acordo, podendo acarretar um bloqueio político; objetivando-se, portanto, o equilíbrio na governança. As realidades política e normativa ora analisadas auxiliam na compreensão da posição privilegiada do Uruguai na América Latina, quanto aos seus indicadores sócioeconômicos, proporcionam valorosas reflexões acerca do seu arcabouço jurídico e de suas instituições fortes, e demonstram práticas democráticas que podem ser observadas por outros países, principalmente quando se discute um neoconstitucionalismo latino-americano já sujeito a críticas (e.g. o fortalecimento exacerbado do Executivo e desvios pela democracia direta). Trata-se, pois, como retratado na canção de Jorge Drexler, de um país com nome de rio, um paraíso esquecido, um campo acostado ao mar, poucos caminhos abertos, alguns anos dourados e um povo acostumado a sentir saudade. Referências ALTMAN, David. Democracia directa en el continente americano: ¿autolegitimación gubernamental o censura ciudadana? Política y Gobierno, México, v. 12, n. 2, p. 203-232, 2005. BALMELLI, Carlos Mateo. El desarrollo institucional. Asunción- Paraguay: PNUD, 2004. BAYCE, Rafael. Poder Judiciário, juízes e acesso à justiça no Uruguai. In: ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS (Org.). Justiça: promessa e realidade: o acesso à justiça em países íbero-americanos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. p. 51-107. CAETANO, Gerardo; RILLA, José. Historia contemporânea del Uruguay: de la colônia al Mercosur. Uruguay: Editorial Fin de Siglo, 1994. CAGGIANO, Monica Herman Salem. Direito parlamentar e direito eleitoral. Barueri, SP: Manole, 2004. CAGNONI, José Aníbal. El derecho constitucional Uruguayo. 2. da. ed. actual. y ampl.. Montevideu: Impresora Grafinel, 2006. CASAS, Juan Carlos. Um novo caminho para a América Latina. Tradução de Clóvis Brigagão e Cinthia Barki Brigagão. Rio de Janeiro: Record, 1993. CHASQUETTI, Daniel. El processo constitucional en el Uruguay del siglo XX. In: NAHUM, Benjamin (Ed.). El Uruguay del siglo XX: la política. Montevideo: EBO-ICP, 2002. t. 2, p. 65-93. DAHL, Robert A.. Um prefácio à democracia econômica. Tradução: Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990. DEMOCRACY index 2010. Disponível em: . Acesso em: 02 abr. 2011.

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III. COSTA RICA: A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E OS ASPECTOS CONTEMPORÂNEOS DE DIREITO CONSTITUCIONAL NA AMÉRICA LATINA Ana Paula Fuliaro∗ Introdução O presente trabalho visa a se debruçar, de maneira breve, sobre os alguns dos aspectos de Direito Constitucional da República da Costa Rica, principalmente tentando traçar um paralelo com o cenário atual brasileiro bem como de outros países da América Latina. De início, deve-se considerar a relevância do estudo do constitucionalismo naquele país, tendo em vista suas prementes peculiaridades no contexto latino-americano, tais como: (i) a longevidade de sua Constituição, o que deságua na longevidade de sua democracia, (ii) a identificação de estabilidade de suas instituições, (iii) a relação do Estado com as normas de Direito Internacional, dado que, entre outras razões, hospeda a sede da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Neste cenário, oportuno avaliar como a Costa Rica se comporta diante de alguns dos fenômenos atuais do constitucionalismo. Para tanto, extraiu-se como ponto de referência para análise a tendência de concentração da Jurisdição Constitucional e todas as suas decorrências É neste sentido que se pretende avaliar o constitucionalismo na Costa Rica, passando-se a desenvolver de maneira mais precisa os pontos aqui declinados. 1. Costa Rica – aspectos gerais Não parece possível iniciar qualquer estudo jurídico sobre a Costa Rica sem que seja avaliada a longevidade de sua Constituição, que data do ano de 1949. Daí já se passa a distinguir o país em análise da maioria dos países da América Latina, que passaram pela experiência de exercício do poder político por regimes autoritários, notadamente entre as décadas de 60 e 80. Nessa maioria de países, o que se verificava à época eram golpes de forças autoritárias, com substituição ou supressão de textos constitucionais em sentido estrito. Do lado oposto, a Costa Rica já havia passado por suas sangrentas lutas contra o governo autoritário e detinha, na mesma época, sua Constituição Política e as instituições se desenvolviam de maneira democrática. Não se desconsidera, aqui, as dificuldades econômicas, culturais e sociais enfrentadas por este país até os dias de hoje. O que se ressalta é que, do ponto de vista jurídico, a manutenção de uma mesma Constituição desde 1949, possibilitou o desenvolvimento da democracia e o fortalecimento das instituições. Parece não ser outra senão essa a razão para que, no ano de 2010, a Costa Rica fosse considerada, pela revista “The Economist”, uma das únicas vinte e seis (em um universo de cento e sessenta e sete países) “democracias plenas” do mundo, dividindo tal qualificação, na América Latina, apenas com o Uruguai1.



Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Mestranda em Direito do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Advogada em São Paulo.

1ROSSI,

Clóvis. Brasil é 47º em ranking mundial de democracia. Folha de S. Paulo, São Paulo, 17 dez. 2010. Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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Nesse mesmo sentido, é de se ressaltar ainda que os critérios utilizados para a formação deste ranking (bem como seus próprios resultados) revelam bastante inspiração na ideia de critérios e graus de evolução da Poliarquia de Robert Dahl2. Desta maneira, ao se afirmar que a Costa Rica pode ser tratada como uma democracia plena, estão sendo considerados, por exemplo, altos índices de cultura política e de participação política, o que parece evidenciar esse maior vigor que a Costa Rica apresenta, em termos constitucionais, com relação à maioria dos países da América Latina. 2. Jurisdição Constitucional Do ponto de vista do controle de constitucionalidade e, portanto, da Jurisdição Constitucional, a Carta costarriquenha demonstra caminhar no mesmo sentido de abstração e concentração. Isso porque, após reforma acontecida em 1975, o artigo 10 do texto constitucional, passou, não só a contemplar a inconstitucionalidade dos atos dos Poderes Executivo e Legislativo praticados em desacordo com a Constituição ou Tratados Internacionais dos quais a Costa Rica seja parte (de acordo com os limites do Direito Internacional), como também a atribuir à Corte Suprema de Justiça, mediante quórum qualificado, declarar a inconstitucionalidade das disposições do Poder Legislativo e dos decretos do Poder Executivo. Em seguida, no caminho da concentração e da especialização, identifica-se, em 1989, a criação da Sala Constitucional, dentro da Suprema Corte, como o órgão interno exclusivo para tratar das questões de controle de constitucionalidade. Desta maneira, salvo os casos específicos da Justiça Eleitoral (que serão tratados a seguir), o controle concreto e difuso de constitucionalidade praticamente foi abolido. Praticamente, porque o que resta aos demais magistrados, que não compõem a Sala Constitucional da Suprema Corte, é identificar eventuais inconstitucionalidades em casos concretos e formular consulta à Sala Constitucional sobre o assunto3. 2.1. Justiça Eleitoral Com relação à Justiça Eleitoral, a Constituição costarriquenha traz uma estrutura específica e peculiar. Isso porque a parte final do artigo 9º, em conjunto com os artigos 99 a 104, todos da carta constitucional, delineiam o denominado “Tribunal Supremo de Elecciones” TSE, independente dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e a quem compete, de forma exclusiva e independente, “la organización, dirección, y vigilancia de los actos relativos ao sufragio, así como las demás funciones que le atribuyen esta Constituición y las leyes.”4. Os membros do TSE são nomeados pela Corte Suprema de Justiça, mas guardam relação de independência quanto a esta. Nesse sentido, surgem conflitos com relação ao controle de constitucionalidade em determinados casos. Isso porque, conforme explicitado acima, o artigo 10 da Constituição, atribuiu tal atividade à Corte Suprema de Justiça com exclusividade. Contudo, o item 3 do artigo 102 da mesma carta constitucional prescreve que cabe ao TSE interpretar de forma exclusiva e obrigatória as disposições constitucionais e legais referentes a matéria eleitoral, acrescendo, o seguinte artigo 103, que as resoluções do TSE são irrecorríveis, salvo nos casos de prevaricação. 2DAHL,

Robert A. Poliarquia: participação e oposição. São Paulo: Edusp, 2005. Victor. El control de constitucionalidad en la Constituición costarricensede 1949: algunos antecedentes históricos. In: Constituición y justicia constitucional. Costa Rica: Colegio de Abogados de Costa Rica, 2009. 4COSTA RICA. Constituición Política de la República de Costa Rica (1949). Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2010. (1949, Artigo 9º, parte final.) 3OROZCO,

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Diante deste conflito, nota-se divergência na doutrina sobre a competência do TSE nos casos de controle de constitucionalidade5. De todo modo, a jurisprudência da própria Sala Constitucional tem se consolidado no sentido de permitir o exercício do controle de constitucionalidade pelo TSE quanto a matérias eleitorais6 em sentido amplo (sufrágio ativo e passivo), podendo haver, contudo, controle da Sala Constitucional com relação à jurisprudência estabelecida pelo TSE7, o que parece demonstrar uma forma de equilíbrio de forças, já que são Poderes independentes. De todo modo, as discussões relatadas pela doutrina e as demais verificadas nesta pesquisa não apontam para uma atitude legiferante sobre a matéria eleitoral, tanto pelo TSE quanto pela Suprema Corte. Afirma-se isso em contraposição à postura do Tribunal Superior Eleitoral brasileira, bem como do Supremo Tribunal Federal brasileiro, que adotam postura muito mais incisiva no que tange à criação de normas que, em regra, estariam restritas ao âmbito do Poder Legislativo, o que se verifica, por exemplo, nos casos emblemáticos da “verticalização de coligações”, “cláusula de barreira”, “fidelidade partidária” e, mais atualmente, na substituição da coligação pelo Partido no caso de formação das listas de suplência. Assim, apresenta-se bastante robusto o sistema de Jurisdição Constitucional em matéria eleitoral na Costa Rica, mas parece haver uma postura de menor ingerência de ambos os Poderes (Judiciário e TSE) nas decisões reservadas, em princípio, ao Poder Legislativo, parte do que se tem costumado denominar de politização da justiça ou politização da justiça. 2.2. Aplicabilidade dos direitos sociais Outra questão que se faz meditar no Brasil bem como em alguns outros países da América Latina diz respeito à ação do Poder Judiciário no que tange à implementação dos direitos econômicos, sociais e culturais. Notam-se, na Constituição da Costa Rica, poucas referências expressas e precisas à garantia e implementação de tais direitos. Contudo, a jurisprudência já desenvolveu o raciocínio de que tais direitos fazem partes das garantias a serem asseguradas aos seres humanos em geral, bem como os reconhece nos tratados internacionais dos quais a Costa Rica faz parte8. Neste aspecto, a jurisprudência reconhece os direitos econômicos, sociais e culturais como direito subjetivo a ser pleiteado em juízo em busca de sua efetivação. Ao contrário do que se disse sobre a atitude legiferante em matéria eleitoral, neste caso a jurisprudência se manifesta de maneira muito mais incisiva, controlando a destinação de recursos designados para tal finalidade, por exemplo. É verdade que não se conseguiu identificar na pesquisa posturas mais duras como as que se verificam no Judiciário brasileiro, que chega a determinar que seja fornecido determinado medicamento, mesmo que o Poder Executivo tenho feito a escolha, por suas razões de gestão, de que este não deveria constar de sua lista de distribuição gratuita. Contudo, verificando-se a ênfase e, até mesmo, o entusiasmo com que a jurisprudência costarriquenha trata do assunto, talvez se esteja no mesmo caminho do Judiciário brasileiro. Pode-se refletir, ainda, que talvez tal postura não seja tão incisiva quanto à do Brasil em razão da concentração do controle

5HERNÁNDEZ

VALLE, Rubén. El juez constitucional en materia electoral en Costa Rica. Revista Iberoamericana de Derecho Procesal Constitucional, n. 10, p. 117-130, jul./dic. 2008. 6CARVAJAL PÉREZ, Marvin et al. (Coords.). Constituición y justicia constitucional. Costa Rica: Colegio de Abogados de Costa Rica, 2009. p. 80-81. 7HERNÁNDEZ VALLE, Rubén. op. cit., p. 117-130. 8BARQUERO KEPFER, Maricruz. El régimen jurídico de los derechos sociales, económicos y culturales. In: Constituición y justicia constitucional. Costa Rica: Colegio de Abogados de Costa Rica, 2009. p. 290-293. Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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de constitucionalidade, enquanto aqui as ordens podem surgir de todo e qualquer juiz, no seu exercício legítimo de controle difuso e concreto de constitucionalidade. 2.3. Direito à paz: parâmetro de controle de constitucionalidade Por fim, ao se refletir sobre o controle de constitucionalidade no cenário costarriquenha, não se pode afastar a questão do direito à paz como parâmetro de controle. É verdade que o direito à paz, assim enunciado, não consta do texto constitucional. A referência que se faz consta do artigo 12 da Constituição, que proíbe a existência de Exército como instituição permanente, ficando, a vigilância e permanente da ordem pública, a cargo de forças policiais necessárias. Ademais, consta da própria história constituinte da qual resultou a atual Constituição da Costa Rica a opção por não haver exército para se buscar uma postura de preservação da vida, após enfrentamentos sangrentos, optando-se por eliminar tanto quanto possível a existência de armas e posturas beligerantes no país. Por fim, a Costa Rica firmou Tratado Internacional comprometendo-se a manter posição de neutralidade diante de quaisquer conflitos bélicos, mesmo que não envolvam diretamente a sua própria soberania (no caso de comprometimento da própria soberania, estratégias específicas para o caso concreto podem ser aparelhadas). E foi diante desta junção de fatores que a doutrina e a jurisprudência passaram a tratar o direito à paz como inserto na ordem constitucional costarriquenha, sendo válido, portanto, como parâmetro para exercício das atividades do Poder Executivo ou do Poder Legislativo, sob pena de nulidade dos atos praticados em razão de inconstitucionalidade9. Tal parâmetro de controle de constitucionalidade chama a atenção do analista, ao se compreender a importância do denominado direito à paz como plano de ação e tomada de decisões do Poder Executivo. Além disso, quanto mais se buscar integrações regionais, como é o caso do Mercosul para o Brasil, maior deveria ser essa preocupação dos líderes dos países que o compõem. Tal postura arrefeceria também, talvez, o clima impreciso de segurança que se verifica em alguns países da América Central, como o recente episódio de Honduras, além de poder diminuir o ritmo de hostilidade que vem sendo desenvolvido pela Venezuela em face da Colômbia. Conclusões Pelo estudo realizado, foi possível identificar qual a posição da República da Costa Rica especialmente no que toca ao tema da Jurisdição Constitucional. É verdade que as instituições de cada país refletem, em grande medida, as experiências vividas em cada deles. De todo modo, o sistema costarriquenho sugere reflexões que podem dialogar com o sistema brasileiro e com o sistema latino-americano em geral, sugerindo, com as devidas adaptações, medidas que auxiliem outros países a construir a mesma força de instituições presentes na Costa Rica, que a fazem ser uma das “democracias plenas” segundo os levantamentos desenvolvidos.

9MIRANDA,

Haideer. El derecho a la paz (la abolicion del ejército y las fuerzas armadas). In: Constituición y justicia constitucional. Costa Rica: Colegio de Abogados de Costa Rica, 2009. p. 11-37. Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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Referências BARQUERO KEPFER, Maricruz. El régimen jurídico de los derechos sociales, económicos y culturales. In: In: Constituición y justicia constitucional. Costa Rica: Colegio de Abogados de Costa Rica, 2009. p. 290-293. BETHELL, Leslie. Central America since independence. Cambridge: Cambridge University Press. CAGGIANO, Monica Herman Salem. Direito parlamentar e direito eleitoral. Barueri, SP: Manole, 2004. CARVAJAL PÉREZ, Marvin et al. (Coords.). Constituición y justicia constitucional. Costa Rica: Colegio de Abogados de Costa Rica, 2009. COSTA

RICA.

Constituición

Política

de

la

República

de

Costa

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(1949).

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. Acesso em: 20 nov. 2010. DAHL, Robert A.. Poliarquia: participação e oposição. São Paulo: Edusp, 2005. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Princípios fundamentais do direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009. GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. HERNÁNDEZ VALLE, Rubén. El juez constitucional en materia electoral en Costa Rica. Revista Iberoamericana de Derecho Procesal Constitucional, n. 10, p. 117-130, jul./dic. 2008. MIRANDA, Haideer. El derecho a la paz (la abolicion del ejército y las fuerzas armadas). In: Constituición y justicia constitucional. Costa Rica: Colegio de Abogados de Costa Rica, 2009. p. 11-37. OROZCO, Victor. El control de constitucionalidad en la Constituición costarricensede 1949: algunos antecedentes históricos. In: Constituición y justicia constitucional. Costa Rica: Colegio de Abogados de Costa Rica, 2009. ROSSI, Clóvis. Brasil é 47º em ranking mundial de democracia. Folha de S. Paulo, São Paulo, 17 dez. 2010.

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IV. A ORGANIZAÇÃO JURÍDICO CONSTITUCIONAL DAS INSTITUIÇÕES POLÍTICAS NO EQUADOR Bruno César Lorencini∗ Introdução A proposta de analisar as instituições políticas no Equador sob um enfoque jurídico, isto é, a partir de normas constitucionais de cunho organizativo, especialmente as referentes às estruturas, funções e limitações dos Poderes Legislativo e Executivo, traz intrínseco o risco de nos situarmos exclusivamente no campo do formalismo, uma vez que o país, na mesma condição que outros latino-americanos1, situa-se dentre aqueles que Wiarda e Kline identificam como “formalmente democráticos, mas com fracas instituições”2. De fato, o noticiário político recente do Equador3 retrata o quadro de instabilidade institucional que se mantém desde 1979, com o término do regime militar e a instalação do regime democrático4. As causas de aludida instabilidade política são variadas e de naturezas igualmente diversas. Relatório de progresso econômico e social da América Latina, lançado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento em 2006 aponta, por exemplo, a fragmentação do sistema político-partidário, que causa sensíveis prejuízos em termos de governabilidade, como uma das causas da fragilidade democrática no Equador5. O mesmo relatório, ao constatar que as instituições políticas do Brasil e do Equador têm diversas características em comum - como a já citada fragmentação política, a existência de poderes constitucionais incomumente fortes a favor do Presidente e a existência de regras eleitorais similares6 -, conclui que a



Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Doutorando em Direito do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

1Conforme

WIARDA, Howard J.; KLINE, Harvey F. A concise introduction to Latin American politics and development. Colorado: Westview Press, 2007, os países que se encontram na mesma situação que o Equador são Bolivia, El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicaragua, Paraguai e Peru, p. 195. 2Id. Ibid., p. 195. 3Exemplos recentes da instabilidade institucional: (i) em setembro de 2010 o Presidente Rafael Correa decretou estado de exceção, em decorrência de protestos de policiais e militares descontentes com o governo. No episódio, o Presidente chegou a ser agredido fisicamente, acusando a atuação da oposição como causa do tumulto (fonte: ÚLTIMO Segundo. Disponível em: . Acesso em: 04 jun. 2011); (ii) no início de 2011, o Presidente Rafael Correa submeteu a referendo popular proposta de reforma constitucional, em cujo bojo está a previsão de reformar o Judiciário e regular a imprensa; segundo parte dos analistas políticos do país, por trás da proposta está a tentativa do Presidente em fortalecer o Executivo em detrimento dos demais poderes e reprimir as forças da oposição ao governo (fonte: CONSULTOR Jurídico. Disponível em: . Acesso em: 04 jun. 2011); (iii) a FOLHA de S. Paulo, (São Paulo, 22 jul. 2011, Caderno Mundo, p. A16), traz notícia sob seguinte título: Jornal é condenado por falar mal de Correa. O caso trata da condenação dos irmãos Carlos, César e Nicolás Pérez, editores do jornal com maior tiragem do país, por terem escrito artigo desfavorável ao presidente Rafael Correa, criticando-o por conceder perdão aos responsáveis pelo levante policial contra ele em 30 de setembro de 2010. Segundo registra a notícia, o caso representa mais uma “vitória do presidente equatoriano contra a imprensa”; importante destacar, contudo, que, neste último caso, os fatos da condenação dos jornalistas ter decorrido de decisão judicial e dos termos utilizados contra Correa (chamado de ditador reiteradas vezes) terem fugido à técnica jornalística não parecem indicar aí uma situação de anormalidade institucional. 4Entre 1997 e 2005, seis presidentes equatorianos sucederam-se no cargo de forma anormal, em regra depostos por força de golpes de Estado. Referida fase teve seu capítulo final com a saída do poder do coronel aposentado Lúcio Gutiérrez, em 2005, derrubado pela falta de apoio das Forças Armadas e por protestos populares. O atual presidente, Rafael Correa, tomou posse do cargo no início de 2007 e, inobstante as instabilidades políticas, parece possuir força política suficiente para conduzir regularmente seu mandato. 5BANCO INTERAMERICANO DE DESENVOLVIMENTO. A política das políticas públicas: progresso econômico e social na América Latina. David Rockfeller Center for Latin American Studies. Harvard University. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006. p. 161. 6Id. Ibid., p. 167. Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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democracia brasileira é “mais forte e mais estável que no Equador”7, e fundamenta seu parecer exatamente na diferença qualitativa das instituições políticas nos dois países: Em certa medida, as diferenças nos resultados de políticas podem estar associadas a diferenças substanciais na qualidade das instituições que o Capítulo 6 identificou como essenciais para uma boa formulação de políticas. Enquanto o Brasil tem um Congresso com capacidades relativamente boas de formulação de políticas, uma burocracia forte e um Judiciário independente, o Equador carece desses elementos. Enquanto no Brasil o principal foco do presidente (pelo menos em tempos recentes) tem sido a manutenção da estabilidade macroeconômica, o presidente do Equador às vezes vê-se envolvido numa difícil batalha pela sobrevivência política, o que o impede de se concentrar no longo prazo.8

Outro ponto relevante, também comum a diversos países latino-americanos, é a presença de alto índice de corrupção no sistema político equatoriano, e o comprovado impacto que referido fator exerce na estabilidade democrática do país9. De fato, a organização não governamental Transparency International indica o Equador, em 2010, na 127ª posição no ranking global de corrupção, à frente apenas do Paraguai e da Venezuela na América do Sul10. A correlação entre corrupção e democracia está no fato de que a percepção generalizada acerca da presença de um sistema político corrupto acarreta a perda da legitimidade das instituições perante os cidadãos e, por conseguinte, a falta de estabilidade e confiança para seu bom funcionamento. É o que aponta relatório da Universidade de Pittsburgh (Estados Unidos da América), produzido em 2004: Em diversas maneiras, a mais importante razão para estudar a corrupção a longo prazo é o possível impacto que ela pode ter sobre a estabilidade democrática. Tem havido muito especulação acerca dos efeitos da corrupção nos países democráticos. A tese é que países com altos níveis de corrupção não podem ter a expectativa de assegurar a lealdade de seus cidadãos por muito tempo. Tais países estão suscetíveis a enfrentar instabilidade política que podem levar ao seu declínio. Até recentemente, contudo, referida especulação não foi suportada por pesquisas empíricas. Como parte do Projeto de Opinião Pública Latino Americana da Universidade de Pittsburgh, contudo, estudos têm sido produzidos em um número de países latino americanos nos quais tem sido empiricamente demonstrado que cidadãos que foram vítimas de corrupção tendem a apoiar menos seus sistemas políticos que aqueles que não o foram11.

Em que pese tal cenário, a Constituição equatoriana não deixa dúvidas acerca de seu viés democrático. Constata-se, assim, uma situação que, longe de ser exclusividade equatoriana, é comumente

7BANCO

INTERAMERICANO DE DESENVOLVIMENTO. A política das políticas públicas: progresso econômico e social na América Latina, cit., p. 167. 8Id. Ibid., p. 168. 9Verificar relatório do Departamento de Ciência Política da University of Pittsburgh, que, no ínterim do denominado Latin American Public Opinion Project, realizou estudo no ano de 2004 acerca da consolidação da democracia no Estado equatoriano, concluindo pelos altos índices de corrupção percebidos pela população do país, o que tem impacto direto na legitimidade das instituições políticas, com os efeitos daí reflexos. Fonte: VANDERBILT University. Disponível em: . Acesso em: 08 abr. 2011. 10Fonte: ONG Transparência Internacional. Disponível em: . Acesso em: 17 jul. 2011. 11VANDERBILT University. cit., p. 149. Tradução livre nossa. No original: “In many ways, the most important long-term reason to study corruption is the possible impact that it may have on democratic stability. There has been much speculation as to the effect of corruption on democratic countries. The thesis is that countries with high levels of corruption cannot expect to hold onto the loyalty of their citizens over the long run. Such countries are likely to be faced with political instability that could ultimately lead to their overthrow. Until recently, however, that speculation was not supported by empirical findings. As part of the University of Pittsburgh Latin American Public Opinion Project, however, studies have been carried out in a number of Latin American countries in which it has been shown empirically that citizens who have been victims of corruption are less supportive of their political systems than those who have not.” Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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vivenciada em países de democratização recente, qual seja o aparente divórcio entre a promessa constitucional e a realidade político-social regulada. Konrad Hesse deixa claro que a “realização” de qualquer Constituição depende do compromisso de suas normas com a realidade histórica, sob pena de permanecerem “letra morta”12; o mesmo autor ressalta, contudo, que a Constituição, atendido o primeiro critério de que suas normas partam das realidades da situação histórica, possui a capacidade de desenvolver e coordenar referida realidade, permitindo que esta avance no sentido da concretização do conteúdo constitucional. Trata-se do princípio da força normativa da Constituição, que deixa claro essas duas facetas, indissociáveis, das normas constitucionais. No presente artigo, a proposta é avaliar se a interpretação da Constituição equatoriana permite constatar o atendimento ao princípio da força normativa, no que tange à organização político-institucional, principalmente no que diz respeito aos dois poderes essencialmente políticos13, que são o Executivo e o Legislativo. Em outros termos, o que se procurará responder é se as normas constitucionais estabelecem um caminho para o amadurecimento democrático das instituições equatorianas ou, se ao revés, favorecem a instabilidade cotidianamente presenciada. 1. A organização político-constitucional do Equador O capítulo primeiro do título inaugural da constituição equatoriana, este último sob a nomenclatura “Elementos Constitutivos do Estado”, estabelece os denominados princípios fundamentais do Estado equatoriano, prevendo o artigo 1º que: O Equador é um Estado constitucional de direitos e justiça, social, democrático, soberano, independente, unitário, intercultural, plurinacional e laico. Organiza-se em forma de república e se governa de maneira descentralizada. A soberania radica no povo, cuja vontade é o fundamento da autoridade e se exerce através dos órgãos do poder público e das formas de participação direta previstas na Constituição. Os recursos naturais não renováveis do território do Estado pertencem a seu patrimônio inalienável, irrenunciável e imprescritível.14

Percebe-se do texto que, ao revés de outras constituições democráticas – caso da brasileira, em seu artigo 2º -, a Constituição equatoriana não elenca a separação de poderes como princípio fundamental do Estado. A relevância ou irrelevância de tal silêncio – que, por si só, não permite avaliar se a separação dos poderes foi valorada pelo constituinte originário como elemento essencial da organização política equatoriana -, deve ser extraída da análise das normas constantes do Título IV da Constituição Equatoriana, que trata da Participação e Organização do Poder. Em outras palavras, apenas a partir da atividade hermenêutica exercida sobre as normas que traçam a relação entre os Poderes e delineiam os freios e contrapesos que permitem o equilíbrio institucional, é que será possível concluir acerca do papel exercido pelo princípio da separação dos poderes na organização política do país. É importante dizer que há quem não enxergue na fórmula da separação de poderes qualquer vinculação com o princípio democrático. José Sanchez-Parga, por exemplo, entende que no modelo de 12HESSE,

Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998. p. 47. 13Escapa aos limites deste artigo a difícil discussão acerca do Judiciário exercer ou não função política. 14No original: Art. 1.- El Ecuador es un Estado constitucional de derechos y justicia, social, democrático, soberano, independiente, unitario, intercultural, plurinacional y laico. Se organiza en forma de república y se gobierna de manera descentralizada. La soberanía radica en el pueblo, cuya voluntad es el fundamento de La autoridad, y se ejerce a través de los órganos del poder público y de lãs formas de participación directa previstas en la Constitución. Los recursos naturales no renovables del territorio del Estado pertenecen a su patrimonio inalienable, irrenunciable e imprescriptible. Tradução livre do autor. Fonte: CORTE CONSTITUCIONAL DEL ECUADOR. Disponível em: . Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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democracia presidencialista, como o adotado no Equador, a fórmula constitui “uma anomalia ou, se preferir, uma irregularidade”,15 já que permite a existência de uma “maioria parlamentar em oposição (“separada”) de um governo com minoria no Congresso”. O autor aponta em sua obra, com o sugestivo título La Pugna de Poderes16, a formulação clássica da separação de poderes no modelo presidencialista como uma das causas da crise de governabilidade que tem caracterizado a política equatoriana. Referida crítica possui caráter minoritário na doutrina publicista, pois tem prevalecido o entendimento de que valores decorrentes da doutrina da separação de poderes, como as ideias de limitação e desconcentração do poder, possuem forte conotação democrática. Sob tal premissa, efeitos colaterais, como a mencionada crise de governabilidade, deveriam ser resolvidos a partir de instrumentos paralelos, como a reforma do sistema eleitoral ou a otimização do sistema partidário. Como ressalta Dahl17, uma das vantagens da democracia é evitar o domínio autocrático, valorizando o governo popular; sob referido sentido, a existência de poderes autônomos, com funções de limitação recíproca, apresenta-se adequada ao paradigma democrático. Em que pese a divergência, cujo aprofundamento não se adéqua aos limites deste artigo, a tarefa aqui proposta é examinar a organização político-institucional prevista na Constituição equatoriana, sob a perspectiva da separação de poderes, iniciando pelo Poder Legislativo. 2. A relação entre os Poderes Legislativo e Executivo no Equador O Poder Legislativo no Equador adota o modelo unicameral, composto pela Assembleia Legislativa. O Poder Executivo, por sua vez, tem sua chefia no Presidente da República, que exerce as funções de governo e de representação do Estado nas relações internacionais, tendo auxílio nos Ministros de Estado por ele nomeados. Trata-se, portando, de um Estado organizado sob o modelo presidencialista de governo, seguindo tendência adotada de forma geral na América Latina. A relação, do ponto de vista normativo-constitucional, entre os Poderes Legislativo e Executivo no Equador será abordada sob dois aspectos. O primeiro no que diz respeito ao exercício da função legislativa, por intermédio da atuação de cada poder no processo legislativo. Após, será analisada a função fiscalizadora de um poder sobre o outro, conforme a ideia de limitação recíproca. Quanto à função legislativa, o Poder Executivo interage com o Legislativo por intermédio dos tradicionais mecanismos da iniciativa, da sanção e do veto de projetos de lei. Em relação ao veto, há algumas complexidades na relação entre os poderes a serem destacadas. Primeiro, o artigo 138 da Carta prevê que o veto total poderá ser derrubado pela Assembleia “depois de um ano contado a partir da data em que foi emitido”. Referido prazo causa certa perplexidade, já que não resta clara sua razão de ser e causa forte restrição ao Legislativo em sua função precípua, no exercício da qual deve predominar sobre os demais poderes. Provavelmente, o que se busca é impedir a pressão por parte do Legislativo ao Executivo mediante projetos de lei desfavoráveis ao governo, mas é questionável até que medida questões pontuais, como a referida, podem justificar a distorção no equilíbrio entre os poderes. Tratando-se de veto parcial, deverá o Presidente da República apresentar um texto alternativo, que não poderá incluir matérias não contempladas no projeto inicial; referido texto deverá ser objeto de deliberação da Assembleia no prazo de 30 (trinta) dias, sendo possível à Casa ratificar o projeto inicial ou 15SANCHEZ-PARGA,

José. La pugna de poderes: análisis crítico del sistema político ecuatoriano. Quito: Abya-Yala, 1998. p 28. O autor ressalta a inexistência de ligação entre a fórmula da separação de poderes e a doutrina democrática: “De hecho, la idea de uma “separación de poderes” no tiene justificación histórica en las instituciones democráticas ni tampoco en el mismo pensamiento político constitucionalista o del “buen gobierno”. 16SANCHEZ-PARGA, José. op. cit. O conflito de poderes (tradução nossa). 17DAHL, Robert A. Sobre a democracia. Tradução Beatriz Sidou. Brasília: Ed. da UnB, 2001. p. 59. Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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aprovar o texto alternativo do Presidente; superado o prazo, na omissão da Assembleia, as alterações serão consideradas acolhidas. Novamente aqui se destaca certo desequilíbrio a favor do Executivo no processo legislativo, impondo ao Legislativo um prazo peremptório para sua atuação, o que, ante as características próprias do poder – atuação deliberativa e formação plural -, pode resultar em movimentos oportunistas a favor do governo. Há, ainda, mais um mecanismo previsto na Constituição para que o Poder Executivo exerça influência decisiva no processo legislativo. Trata-se do envio de projetos de lei qualificados como urgentes, para os quais a Assembleia Legislativa terá o prazo máximo de 30 (trinta) dias para apreciar, sob pena de sua promulgação como Decreto-Lei do Executivo, produzindo efeitos desde logo18. Se por um lado, aludido mecanismo é restringido pela possibilidade da Assembleia a qualquer tempo modificar ou derrogar o Decreto-Lei, e ainda pela previsão de que, enquanto se discute um projeto qualificado como urgente, o Presidente não poderá enviar novo (salvo no caso de ter sido decretado estado de exceção), por outro lado abre excelente espaço para que o Executivo legisle de forma autônoma, aproveitando-se das já mencionadas características que conferem lentidão à atividade deliberativa. A partir desta análise, é possível concluir que há, do ponto de vista normativo-constitucional, espaço para o estabelecimento de conflitos entre Executivo e Legislativo em relação ao exercício da função legislativa, conflitos estes muitas vezes decorrentes de questões alheias ao objeto legislado, que é utilizado como manobra de pressão política. Os reflexos de referidos conflitos são relatados por Sanchez-Parga: O “conflito legislativo” entre o Congresso e o Governo tem consequências diretas sobre a efetividade da mesma legislação, e indiretamente sobre a cultura legislativa da sociedade nacional, o que se traduz, por sua vez, em uma cultura de ilegalidade. Ao separar-se e com frequência opor-se o poder legislativo e o poder executivo, tem lugar uma separação entre a produção das leis e a produção de regulamentos e normas para sua aplicação, controle e sanção, as quais estariam a cargo da execução governamental. Como resultado, muitas leis restam sem aplicação, não é controlada sua observância, nem sancionadas suas transgressões. Desta maneira, o instituto da lei recebe no país não somente graves limitações de ineficiência, ineficácia e inefetividade, senão também um profundo e muito generalizado descrédito. Esta precária cultura cívica de ilegalidade se expressa no ditado “a lei se acata mas não se cumpre”.19

Em sede conclusiva acerca da função legislativa, é possível dizer que a instabilidade política, se não é promovida, também não é contida por seu tratamento normativo-constitucional. E a tendência final dos conflitos entre poderes em tal seara é a conclusão de que no Equador se reproduz o fenômeno relatado por Manoel Gonçalves Ferreira Filho, de que “no mundo contemporâneo, a realidade da separação dos poderes é muito diferente da doutrina que a seu respeito ainda se ensina. O ponto central da diferença é predomínio do Executivo, que, absorvendo em boa parte o campo de deliberação do Legislativo, se transformou em Governo.”20. Agora, do ponto de vista da função fiscalizadora, é possível apontar a pujança do Legislativo em relação ao Executivo. Neste aspecto, vale ressaltar que a Assembleia tem prerrogativa (i) conhecer dos 18Artigo

140 da Constituição Equatoriana. José. op. cit., p. 82. 20FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Princípios fundamentais do direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 262. Tradução livre nossa. No original: “La ‘pugna legislativa’ entre el Congresso y el Gobierno tiene consecuencias directas sobre la efectividad de la misma legislación, e indirectamente sobre la cultura legislativa de la sociedad nacional, lo que se traduce a su vez en uma cultura de la ilegalidad. Al separarse y com frecuencia oponerse el poder legislativo y el poder ejecutivo, tiene lugar uma separación entre la producción de las leyes e la producción de regulaciones y normas para su aplicación, control y sanción, las cuales estarían a cargo de la ejecución gubernamental. Como resultado de ello, muchas leyes quedan sin aplicación, no es controlada su observancia ni sancionadas sus trangresiones. De esta manera, la institucionalida de la ley acusa em el país no solo graves limitaciones de ineficiencia, ineficacia e inefectividad, sino también um profundo y muy generalizado descrédito. Esta precaria cultura cívica de ilegalidad se expresa en el dicho “la ley se acata pero no se cumple”. 19SANCHEZ-PARGA,

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informes anuais que devem ser apresentados pelo Presidente, decidindo a respeito; (ii) fiscalizar os atos das funções executivo, eleitoral e de transparência e controle social e os outros órgãos do poder público, sendolhe assegurado o requerimento das informações que considerar necessárias; (iii) autorizar, mediante aprovação de dois terços dos seus membros, o ajuizamento de ação penal contra o Presidente da República ou Vice-Presidente da República, quando a autoridade competente a solicite fundamentadamente; e (iv) iniciar processo político21 contra o Presidente ou Vice-Presidente da República, mediante solicitação de um terço de seus integrantes, nos casos de delitos contra a segurança do Estado, concussão, corrrupção, peculato, enriquecimento ilícito, genocídio, tortura, desaparecimento forçado de pessoas, sequestro e homicídio por razões políticas ou de consciência. As disposições acima elencadas não representam, do ponto de vista da experiência constitucional democrático-ocidental, grande novidade. Maior complexidade no equilíbrio institucional entre os poderes, entretanto, revelam as disposições do artigo 130 da Carta, que preveem que a Assembléia Nacional poderá destituir a Presidente ou o Presidente da República nos seguintes casos: (i) por se arrogar de funções que não lhe competiam constitucionalmente, condicionado a prévio parecer favorável da Corte Constitucional; (ii) por grave crise política e comoção interna. No mesmo dispositivo, a Carta prevê que esta faculdade poderá ser exercida apenas uma vez durante o período legislativo, nos três primeiros anos do mesmo. Ainda nesta toada, a Constituição atribui à Assembléia Nacional o “enjuiciamiento político” - pelo não cumprimento das funções assinaladas pela Constituição e pela lei - dos Ministros de Estado, Procurador Geral do Estado, Controlador Geral do Estado, Fiscal Geral do Estado, Defensor do Povo, Defensor Público Geral, dos membros do Conselho Nacional Eleitoral, Tribunal Contencioso Eleitoral, Conselho da Justiça e Conselho de Participação, Cidadania e Controle Social, e das demais autoridades que a Constituição determine, durante o exercício do cargo e até um ano depois de seu término. Interessante notar a repercussão de tais atribuições da Assembleia Nacional. A Constituição utiliza o termo “faculdade”, ao se referir ao ato de destituição do Presidente da República, e ressalva a possibilidade de sua utilização apenas “uma vez durante o período legislativo, nos três primeiros anos do mesmo”. O termo faculdade tem a conotação de discricionariedade, possibilitando a interpretação de que os membros da Assembleia Nacional podem decidir por conveniência e oportunidade acerca da destituição do Presidente da República. Ainda que se oponha a referido argumento o fato da norma em comento trazer hipóteses vinculativas - como o fato do Presidente se arrogar de funções que não lhe competiam constitucionalmente ou existir grave crise política e comoção interna -, fácil notar que se trata de hipóteses constituídas por conceitos jurídicos indeterminados, de conteúdo aberto e permissivo à valoração daqueles responsáveis por sua interpretação, no caso os membros da Assembleia Nacional22. O risco de referidas disposições, novamente, reside em sua utilização indevida como mecanismo de pressão de um poder sobre o outro. Especial destaque em tal sentido recebe a possibilidade de enjuiciamiento político em relação a Ministros e outras autoridade do Executivo, que pode reverter em um modelo de pressão da oposição frente ao Governo. É o que relata Sanchez-Parga:

21O

início de referido proceso político será submetido à admissibilidade da Corte Constitucional, mas não é necessária a existência de prévio proceso criminal. 22No caso da primeira hipótese – o Presidente arrogar-se de funções que não lhe competiam constitucionalmente-, a Constituição traz salutar medida, consistente na exigência de prévia autorização da Corte Constitucional. Ainda que no modelo constitucional equatoriano, não seja possível integrar a Corte Constitucional no âmbito do Poder Judiciário – em razão do tratamento segmentado que a própria Constituição confere à Corte, não a integrando no capítulo da função judicial -, sem dúvida a previsão de um controle jurídico da admissibilidade do processo político de destituição do Presidente da República diminui em muito sua discricionariedade. Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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Os atores ou promotores das ameaças de juízos políticos são sempre deputados ou partidos da oposição, que questionam alguma decisão ou atividade de um ministro ou autoridade do governo. Não se deve subestimar o impacto e consequências políticas do que se pode considerar uma simples “ameaça de ajuizamento”, uma vez que ela contribui para sensibilizar a opinião pública contra o Governo, fortalece a oposição parlamentar contra o Executivo e com muita frequencia tende a debilitar a posição do Ministro ou autorizada ameaçada. E, em rera, as reiteradas ameaças de ajuizamento terminam desembocando em um juízo político.23

Em relação à atividade fiscalizadora por parte do Executivo em relação ao Legislativo, merece destaque a norma do artigo 148 da Constituição, que prevê a possibilidade do Presidente da República dissolver a Assembleia Nacional quando, a seu juízo, esta se tiver arrogado de funções que não lhe competem constitucionalmente. Embora se reitere aqui a demasiada abertura interpretativa da norma, há ao menos um mecanismo de controle, que é o prévio pronunciamento favorável da Corte Constitucional. De fato, a Corte é um órgão autônomo a todos os poderes, atuando, ao menos no plano teórico, de forma independente. O mesmo artigo 148, contudo, prevê ainda outras hipóteses de dissolução da Assembleia pelo Presidente, vinculadas à constatação que aquela tem, de forma injustificada e reiterada, obstruído a execução do Plano Nacional de Desenvolvimento, ou no caso de grave crise política e comoção interna. Aqui já não há o mecanismo de controle pela Corte Constitucional e, outrossim, as normas possuem o mesmo teor aberto e altamente interpretativo das anteriores. Assim, neste aspecto, trata-se de um poder exacerbado, que pode ser utilizado de forma desviada pelo Presidente da República24. Conclusões Do ponto de vista constitucional, constata-se uma relação pendular entre Executivo e Legislativo, no que diz respeito ao exercício das funções legislativa e fiscalizadora. De um lado, no processo legislativo, há espaço para um predomínio do Executivo, que pode se aproveitar de mecanismos como o veto parcial e o processo de urgência para sobrepor sua vontade, aproveitando-se da natural lentidão da Assembleia Nacional na produção legislativa, decorrente de sua atuação deliberativa e conflituosa. Por outro lado, em relação à atividade fiscalizadora, constata-se certo predomínio do Legislativo, que pode fazer uso de mecanismos como o enjuiciamiento político para pressionar politicamente o Executivo. Por mais que exista a hipótese de dissolução da Assembleia pelo Presidente da República, a excepcionalidade e o caráter radical da medida – assim como é a destituição do Presidente da República pela Assembleia - tornam-na mecanismo de menor importância no jogo político entre os poderes. A conclusão final é que as normas da Constituição não alcançam um escopo de enfrentar a instabilidade institucional vivenciada no Equador, uma vez que deixam lacunas para a utilização desviada de mecanismos de interferência entre os poderes como forma de pressão política, o que apenas favorece o quadro já apontado.

23SANCHEZ-PARGA,

José. op. cit., p. 84. Tradução livre nossa. No original: Los actores o promoteres de las amenazas de juicio político son simpre diputados o partidos de la oposición, que cuestionan alguna decisión o actividad de un Ministro o autoridad del Gobierno. No hay que subestimar el impacto e consecuencias políticos de lo que se puede considerar una simple “amenaza de enjuiciamiento”, ya que Ella contribuye a sensibilizar la opinión pública em contra del Gobierno, fortalece la oposición parlamentaria contra el Ejecutivo y com mucha frecuencia tiende a debilitar la posición del Ministro o autoridad amenazado de juicio. Y por lo general reiteradas amenazas de enjuiciamiento terminan desembocando en um juicio político. 24Foi a ameaça realizada pelo Presidente Rafael Correa em decorrência do conflito ocorrido em setembro de 2010, cuja responsabilidade imputou à oposição. Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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Assim, o princípio da força normativa da Constituição no Equador, para fazer valer seu predicado de alteração da realidade histórica, deve contar com o aperfeiçoamento das próprias normas regentes da organização político-institucional equatoriana, sob pena da democracia no país continuar em um plano ideal, longe de ser concretamente vivenciada.

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Transparência

Internacional.

Disponível

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V. CONSTITUCIONALISMO NO CHILE Cristina Godoy Bernardo de Oliveira∗ Introdução Tendo em vista a gradativa integração entre os países da América Latina, observa-se a necessidade de compreender os sistemas jurídicos de nossos vizinhos, os quais possuem um processo de desenvolvimento histórico semelhante ao do Brasil. Dessa maneira, verificando-se semelhanças e diferenças, não apenas podemos melhor captar as características fundamentais de suas arquiteturas normativas e políticas, como podemos aumentar a nossa comunicação com países tão próximos a nossa realidade. Neste artigo, portanto, pretende-se apresentar o movimento histórico-constitucional do Chile, sendo a análise centrada na figura do Presidente da República que participa como peça-chave no delineamento constitucional chileno. Além disso, expor-se-ão os aspectos fundamentais da Constituição de 1980 e suas reformas primordiais. Os sistemas eleitorais e o controle de constitucionalidade serão brevemente trabalhados, de forma que se pontuarão os elementos mais marcantes. 1. História Constitucional1 No que tange ao âmbito político-religioso, o Chile configurava um patronato de exequatur, tendo em vista a união entre Igreja e Estado que durou até 1925. Esta configuração política do Chile passou a sofrer transformações, sendo que despontou um grande personagem na história chilena: Don Arturo Alessandri Palma (1868-1950). Foi Ministro das Indústrias e Obras Públicas em 1898 e ingressou ao Senado em 1915. Seu primeiro mandato presidencial foi de 19201925 o qual se caracterizou pela conturbação. Don Arturo Alessandri, formado por padres franceses em Santiago, era influenciado pelas idéias da Europa na época; resultando, portanto, na sua defesa por leis sociais, por impostos progressivos e pela separação do Estado e da Igreja. Em 5 de setembro de 1924, foi aprovado pelo Congresso um “pacote de leis” encaminhado por Don Arturo Alessandri, sendo os assuntos tratados por referidas leis: a-) Contrato de trabalho; b-) Seguro Obrero; c-) Lei de Acidentes de Trabalho; d-) Tribunais de conciliação e arbitragem; e-) Leis de organização sindical; f-) Lei de organizações corporativas e g-) Lei de Fundos de Previdência Privada. Em 1924, iniciou-se um processo de instabilidade no cenário político chileno, resultando na renúncia de Don Arturo Alessandri em 1924 e na instauração de uma junta militar composta por Altamirano, Neff e Venet. Na Itália, Don Arturo Alessandri realiza uma visita ao papa Pio XI e debate o assunto concernente à relação entre Estado e Igreja. Em 23 de novembro de 1925, Don Arturo Alessandri recebe um telegrama em Roma informando que houve um golpe do golpe e a junta foi dissolvida, assumindo o poder Emilio Bello e



Professora de Filosofia do Direito, Idioma Instrumental e Instituições do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo Campus Ribeirão Preto. Graduada em Direito pela Universidade de São Paulo. Especialista em Direito Público pela Universidade de São Paulo. Doutora em Filosofia do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

1Em

virtude da delimitação epistemológica do presente estudo, iniciar-se-á a análise da História das Constituições chilenas com a Constituição de 1833, ou seja, quando o Chile já era uma República Presidencialista e inseria-se no movimento do constitucionalismo moderno. Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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outros generais, sendo que a junta propõe que Don Arturo Alessandri reassuma a presidência. Em 20 de março de 1925, Don Arturo volta ao poder; porém não mais assumindo a presidência de um governo de direito, mas sim, de um governo de fato respaldado pela ajuda militar. Desde o início de seu primeiro mandato presidencial, Don Arturo Alessandri havia manifestado seu interesse em reformar a constituição de 1833. Em 4 de abril de 1925, uma Comissão Constituinte é convocada, não sendo eleita, mas sim, designada; iniciando seus trabalhos em 16 de abril. Foram constituídas duas subcomissões: a-) Subcomissão de reformas constitucionais propriamente ditas e b-) Subcomissão do processo de concretização da reforma constitucional. Em 30 de agosto de 1925, foi convocada a população para referendar a nova Constituição. Apenas 42,17% da população tinha direito de participar desta votação, sendo que desta percentagem, houve uma aprovação de 93,90%. Assim, o presidente promulgou a Constituição por meio de juramento, destacando em seu discurso que uma de suas grandes tarefas foi efetivada. As alterações advindas com a Constituição de 1925 foram inúmeras, cumprindo-se estabelecer um paralelo entre esta e a Constituição anterior de 1833. Primeiramente, deve-se destacar a melhor técnica da Constituição de 1925 concernente ao agrupamento das garantias constitucionais. Além disso, o termo Poder Judiciário passou a substituir a antiga denominação Administração da Justiça (Artigo 108, Constituição de 1833). Finalmente, a Constituição de 1925 estabelece a diferença entre cidadania e nacionalidade que não existia na Constituição de 1833. Podem-se enumerar, sinteticamente, as seguintes novidades trazidas pela Constituição de 1925: a-) Separação entre Igreja e Estado; b-) Aumentaram-se as garantias constitucionais; c-) Separação de Poderes; d-) Presidencialismo; e-) Ministros não podem ser parlamentares; f-) Tribunal Eleitoral; g-) Criação das Assembléias Provinciais e dos Tribunais Administrativos (mas, nunca foram regulamentados por lei); h-) Controle de Constitucionalidade (artigo 86, Constituição de 1925); i-) Supressão do Conselho de Estado e da Comissão Conservadora (que funcionava durante o período de recesso eleitoral); Estas foram as inovações trazidas pela Constituição de 1925 do Chile, demonstrando uma maior preocupação com a consolidação das instituições do Estado e com a proteção dos direitos sociais. Importante destacar as características da Constituição de 1925 do Chile: escrita, dogmática, semi-rígida, breve, republicana e unitária. Por fim, cumpre-se mencionar a missão Kemerer, constituída por especialistas norte-americanos, que tinha como escopo criar a Controladoria Geral da República (1927) e criar o Banco Central aos moldes das reservas federais dos EUA (1925). Em dezembro de 1925, assumiu a presidência Emiliano Figueroa Larrain, o qual renunciou em 1927, assumindo o cargo, o ex-ministro de guerra de Figueroa, Carlos Ibáñez. Carlos Ibáñez foi responsável por uma nova transformação do Chile, sendo que foi presidente duas vezes: 1927-1931 e 1952-1958. No seu primeiro mandato, pode-se asseverar que as ações mais marcantes foram: deportações em massa (notadamente, Don Arturo Alessandri e seus aliados); censura na liberdade de imprensa; estabelece-se a Linha da Concórdia com a assinatura do tratado entre Chile e Peru em 1929 Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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(Arica para o Chile e Tacna para o Peru); criação dos Carabineros do Chile (instituição policial fardada destinada a garantir a ordem pública, a aplicação das leis e a soberania); grande crise econômica com a queda do preço do cobre e a quebra da bolsa de Nova York; o Congresso era manipulado pelo presidente (violando a Constituição de 1925, o Congresso foi escolhido em eleições fechadas) e realização de grandes obras públicas. Em 26 de julho de 1931, Ibáñez renuncia devido à grave crise em que o Chile encontrava-se e entrega-se o mandato para o presidente do Senado, Pedro Opazo Letelier o qual transmite para o então ministro do interior, Juan Esteban Montero Rodríguez (1931-1932). O Parlamento não aceitou a renúncia de Ibáñez e acusou-o de abuso do poder e desmandos em relação ao Parlamento. Além disso, Ibáñez foi expulso do Exército e perdeu qualquer privilégio de função; porém, antes de ser condenado, fugiu sem autorização do país. Juan Esteban Montero assume ao cargo, mas logo delega ao seu primeiro-ministro, Carlos Truco, o qual chama as eleições e Juan Esteban Montero é empossado Presidente em 4 de dezembro de 1931. Em 4 de junho de 1932, Juan Esteban Montero é deposto e começa a república socialista do Chile. Este governo teve duração de 100 dias, sendo governado por Carlos Dávila mediante decreto-lei. O decretolei 520 foi responsável pela estatização das empresas e controle dos preços pelo governo. Em seguida, temse o governo provisional de Bartolomé Blanche até a realização das eleições em outubro de 1932, quando foi eleito Don Arturo Alessandri Palma para o seu segundo mandato. Neste segundo governo de Don Arturo Alessandri, verificam-se os seguintes acontecimentos: a-) Restauração da ordem pública, sendo criadas milícias republicanas para a defesa do sistema constitucional; b-) A Administração das Finanças ficou a cargo de Gustavo Ross; c-) Fundação do Partido Socialista; d-) Em 1933 e 1934, surge o Partido Nacional Socialista, liderado por Jorge González von Mareet . Em 1937, o Movimento Nacional Socialista do Chile (MNS) obteve 2,04% dos votos, garantindo-lhe três assentos no Congresso, sendo um dos parlamentares, González von Mareet, mas no dia da abertura das sessões do Congresso Nacional, houve uma discussão entre os parlamentares devido à forte polarização ideológica e González von Mareet disparou seu revólver dentro do Congresso, ocasionando sua perda do mandato; e-) Em 13 de outubro de 1935, funda-se a Falange Nacional (1935-1957), nome adotado pela Juventude Conservadora ao negar apoio ao candidato oficial- Gustavo Ross- indicado pelo Partido Conservador; f-) A Tragédia do Seguro Operário em 5 de setembro de 1938 que implicou na morte de sessenta estudantes nazistas no prédio do Seguro Obrero2. Nas eleições presidenciais de 1938, a Frente Popular ( partido radical, socialista, democrático e comunista) apoiava Don Pedro Aguirre e os Liberais e Conservadores apoiavam Gustavo Ross. A vitória triunfante foi de Pedro Avelino Aguirre Cerda o qual tinha descendência basca e pertencia ao Partido Radical. Don Pedro Avelino Aguirre Cerda foi grande incentivador da educação técnica, mineradora e industrial; criando, por conseguinte, a Corporação de Fomento da Produção (CORFO) que foi grande responsável pelo progresso industrial do Chile. Em 1941, morreu no exercício do mandato presidencial. Em 1942, tornou-se presidente, Juan Antonio Rios Morales, membro do Partido Radical. Enfrentou um período difícil para o Chile durante a II Guerra Mundial, pois as invasões alemãs no Chile eram inúmeras, as colônias e os descendentes alemães no país eram numerosos, as exigências dos Aliados eram constantes quanto ao rompimento com Eixo e declarou-se guerra ao Japão. Neste contexto de grandes intervenções no governo chileno, operou-se a primeira reforma constitucional de relevância no país. 2ORTIZ

ZÁRATE, Verónica Valdivia. El golpe después del golpe. Santiago: LOM, 2003. p. 206: “Luego de la tragedia de septiembre de 1938- la masacre de sesenta jóvenes nazis en el edificio del Seguro Obrero- y posterior a la derrota de los países del Ejo en la Segunda Guerra Mundial, ese desafió se convirtió en un dilema entre vida o muerte, dado el descrédito que se cernió sobre el fascismo y su cercanía con todas las vertientes de nacionalismo.” Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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A Lei 7.727 de 1943 reforma a Constituição com a finalidade preponderante de fornecer o caráter constitucional à Controladoria Geral da República e estabelecer normas concernentes à divisão política e administrativa do país. Em 1946, faleceu o então presidente Juan Antonio Rios Morales, convocando-se novas eleições cujos candidatos foram: Gabriel Gonzalez Videla, Eduardo Crruz Coke, Fernando Alessandri Rodriguez e Bernardo Ibañez. Gabriel Gonzalez Videla foi eleito; porém não obtivera a maioria absoluta dos votos. Durante o mandato de Juan Antonio Rios Morales, Gabriel Gonzalez era embaixador no Brasil. Em pouco tempo de governo, Gabriel Gonzalez constata a oposição comunista, acarretando a aprovação da “lei de defesa permanente da democracia”, excluindo o partido comunista e socialista do governo. Devido à declaração da ilegalidade destes partidos, diversos deputados e senadores perderam seus cargos, dentre eles, Pablo Neruda. O governo de Gabriel Gonzalez foi marcado pelo desenvolvimento industrial e pela aprovação em 1949, do direito de voto e a elegibilidade da mulher. Em 1952, foram convocadas novas eleições, concorrendo à presidência: Carlos Ibañez (partido socialista, agrário, laborista), Pedro Enrique Alfonso Barros (partido radical), Arturo Matte Larrain e Salvador Allende Gossens. O candidato Carlos Ibañez logra a vitória em 4 de setembro de 1952, já contando com 75 anos de idade. Neste período de seu segundo mandato, o Chile passar por um período de forte instabilidade econômica e inflação (chegando a 80%), forçando Carlos Ibañez a convocar assessores norteamericanos para auxiliá-lo, chamando-se de “missão Klein Sacks”. As soluções apresentadas em decorrência da “Missão Klein Sacks” foram: medidas liberais, reforma do comércio exterior, supressão de subsídios, eliminação de reajustes automáticos dos salários públicos e privados, modificação do estatuto do Banco Central do Chile e criação do Banco do Estado do Chile. A política de substituição de importações falha e o país entra em recessão. A exportação do cobre corresponde a 70% do comércio exterior do Chile. A população revolta-se em decorrência das medidas efetuadas pelo governo chileno. Devido às ameaças ao governo, Ibañez declara o estado de sítio; todavia, o Congresso rechaçou. Em 1957, a Federação de Estudantes da Universidade do Chile protestou em razão do aumento das passagens de transporte público, sendo duramente enfrentada esta manifestação, acarretando um saldo de 20 mortos e grande dano material ao centro de Santiago. Quanto ao âmbito jurídico, relevante destacar a reforma da Constituição (Lei 12.548 de 1957) em relação à obtenção da nacionalidade chilena, pois se estabeleceu o requisito de residência por mais de 10 anos pelos cidadãos espanhóis. Hoje, pela Constituição de 1980, é necessária a residência por 5 anos independentemente da nacionalidade de origem (artigo 14 da Constituição de 1980). Por fim, importante salientar que havia um estreito vínculo entre Peron e Ibañez, pois na década de 40, Ibañez era coronel e adido militar da embaixada chilena na Argentina, fato que viabilizou o contato entre ambos. O Partido Radical do Chile acusou Ibañez de receber financiamento de campanha de Peron, uma vez que este tinha o ideal de criar um país bioceânico. A acusação de comprometimento da segurança nacional foi julgada pelos parlamentares, mas a maioria votou contra (48 votos contra, 30 a favor e 37 abstenções), não sendo processado Ibañez o qual morreu em 1961. A decepção da população com o populismo desastroso de Ibañez viabilizou a vitória de Jorge Alessandri Rodriguez, filho de Arturo Alessandri Palma. Jorge Alessandri obteve nas eleições de 1958 cerca de 31,06% dos votos; Salvador Allende, candidato da Frente Popular, com 28,9% dos votos e Eduardo Frei Montalva, Partido Democrata-Cristão, conseguiu 20,7% dos votos. Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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Jorge Alessandri Rodriguez procedeu a uma importante reforma na constituição, com a Lei 15.295 de 1963, modificando as bases do direito de propriedade e permitindo a expropriação por causa de utilidade pública. Inicia-se, assim, a implementação de um projeto de reforma agrária. No cenário econômico, deve-se mencionar a criação das empresas estatais Entel Chile, Enami e Ladeco. Buscou-se ajuda dos EUA, recorrendo-se da Aliança para o Progresso. Em 21 de maio de 1960, o Chile passou pelo primeiro abalo sísmico com epicentro em Concepción e em 22 de maio de 1960, o segundo abalo sísmico tem seu epicentro em Valdivia, arrasando todos os povoados entre Chillán e Chiloé. Calcula-se que o valor estimado para as reparações foi de 422 milhões de dólares. Aproximando-se as eleições de 1964, ápice da Guerra Fria, tornou-se evidente o medo da vitória de Allende por alguns setores da sociedade, pois este estava despontando simpatias para com o comunismo. Em decorrência deste fato, observou-se um apoio em massa dos partidários de direita ao candidato Eduardo Frei Montalva, o qual pertencia ao Partido Democrata-Cristão, que tinha como lema “Revolução em Liberdade”. A marcha da Pátria Jovem, visando ao apoio a Eduardo Frei, era um indicativo do êxito que seria obtido nas eleições. Os resultados das votações foram: 56% dos votos para Eduardo Frei e 40% para Allende. No plano jurídico, importante destacar duas reformas realizadas durante o governo de Eduardo Frei Montalva: a-) Lei 16.615 de 1967- Redefine o direito de propriedade, buscando-se uma efetivação da reforma agrária; b-) Lei 17.284 de 1970- As principais alterações foram :redução da idade para votar de 21 anos para 18 anos; permissão do voto de analfabetos, criação do Tribunal Constitucional, incorporação do conceito de Decretos com força de lei (D.F.L.) que antes eram tidos como costume constitucional; facilitação da saída do Presidente do território nacional; torna os plebiscitos mais acessíveis, reforma diversas faculdades administrativas do Presidente; modificação do procedimento de reforma constitucional e regulação do funcionamento das comissões mistas do Congresso . Nas eleições de 1970, concorreram: Salvador Allende, Radrimiro Tomic e Arturo Alessandri. Salvador Allende venceu; todavia, não obteve maioria absoluta dos votos, logo, precisou assinar um estatuto de garantias constitucionais para obter apoio no Parlamento. Neste estatuto, protegia-se a liberdade de opinião, de imprensa, de trabalho, de educação e dos direitos políticos. O programa apresentado por Salvador Allende para instituir no Chile visando a reformas possuía como principais pontos: 1-) Reajuste do salário-mínimo; 2-) Congelamento dos preços de artigos de primeira necessidade; 3-) Programas habitacionais; 4-) Controle de Inflação; 5-) Aumento da produção nacional; 6-) Melhora dos Serviços de saúde; 7-) Criação do sistema único de seguridade social; 8-) Intensificação do processo de reforma agrária; 9-) Nacionalização do cobre, do salitre e do carvão e 10-) Reorganização da economia . Na década de 50, formou-se um grupo de Trozkistas que passou a ser sucedido pelo MIR, grupo este que recebeu formação em Cuba, quando já estava no poder Fidel Castro. O MIR inicia práticas de seqüestros de aviões, assaltos a bancos e supermercados e ocupam embaixadas. Os miristas caem na clandestinidade, incitando camponeses a invadirem terras. Foram presos; contudo, Salvador Allende indultaos na expectativa de não tê-los mais como opositores de seu governo, mas a História provou o contrário. Em setembro de 1973, declara-se, no decreto-lei nº 1, a junta de governo constituída por Augusto Pinochet, Jose Merino, Gustavo Leigh e Cesar Mendoza. O decreto-lei nº 2 designava como presidente da Junta Augusto Pinochet. O decreto-lei nº 3 declara estado de sítio e o DL nº 4 decreta a zona limítrofe. Com o DL nº 27 de 24 de setembro de 1973, o Congresso Nacional foi dissolvido. Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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Com o Decreto-lei nº 77, os partidos de caráter marxista foram declarados ilícitos e dissolvidos. O DL nº 78 declara em recesso todos os partidos políticos e o DL nº 119 dissolve o Tribunal Constitucional. Em 25 de outubro, a Junta designa a Comissão Constituinte para elaborar uma nova Constituição para o Chile. Participaram desta comissão: Enrique Ortúzar Escobar, Sergio Diez Abogado, Enrique Evans de la Cuadra, Gustavo Lorca, Jaime Guzman Errazuriz, Jorge Ovalle Quiroz, Alejandro Silva Bascuñan e Alicia Romo Roman. Alejandro Silva Bascuñan, Jorge Ovalle e Enrique Evans discordaram das ideologias defendidas pelo governo e retiraram-se da Comissão Constituinte, sendo substituídos por: Luz Bulnes Aldunate, Raul Vertelsen e Juan de Dios Carmona. O Decreto-Lei 3464 de 11 de agosto de 1980 aprova o anteprojeto da Constituição e convoca o plebiscito (na realidade, referendum) para ratificação. Em 11 de setembro de 1980, realizou-se o plebiscito (referendum) e 65,71% dos votos foram de SIM para a nova Constituição. A Constituição foi definitivamente aprovada e publicada em 24 de outubro de 1980. 2. Constituição do Chile de 1980: Reformas, Regime de Governo e Situação Eleitoral Nos últimos trinta anos da Constituição de 1980 do Chile, observaram-se grandes alterações no que se refere à organização política, embora o núcleo dos direitos fundamentais tenha sido preservado3. Em 1989, foram efetuadas modificações constitucionais relevantes no que concerne ao fortalecimento da democracia: a-) eliminação do art.8º da Constituição Chile que dispunha a existência de um pluralismo ideológico limitado; b-) reconhecimento do poder social, retirando a exclusividade do poder político existente em tempos de regime militar; c-) redução do mandato presidencial e d-) retirada do texto constitucional da disposição referente à composição do Senado de uma parcela não eleitos4. Com a reforma de 2005, o Conselho de Segurança passou a ter uma função meramente assessora em relação às decisões presidenciais e os membros das Forças Armadas deixaram de gozar de inamovibilidade, bastando um informe feito pelo Presidente à Câmara dos Deputados e Senadores para afastá-los (artigo 104 da Constituição do Chile). Quanto ao procedimento de reforma constitucional, inicialmente, era semelhante ao estabelecido pela Constituição de 1833, mas devido a diversas modificações entre 1989-2005, passou-se a aumentar a flexibilidade para alterações5.

3CARRASCO

DELGADO, Sergio. La evolución político-constitucional de Chile. Estudios Constitucionales, ano 6, n. 2, p. 301324. Disponível em: . 4Id. Ibid.: “De especial importancia han sido las modificaciones correspondientes a composición del Senado y más precisamente la que suprimió la institución de los senadores incorporados, designados o institucionales. Su establecimiento tiene antecedentes de antiguo en la evolución constitucional chilena. Así principalmente lo propiciaron el constituyente Mariano Egaña Fabres en el Voto Particular formulado en la etapa final de elaboración de la Constitución Política de 1833; el Presidente de la República Arturo Alessandri Palma en la subcomisión de reforma donde se elaboró la Constitución de 1925; el Presidente Carlos Ibáñez del Campo en el proyecto de reforma constitucional de 1955 y el Presidente Jorge Alessandri Rodríguez en el proyecto de reforma constitucional de 1964 así como en el Consejo de Estado al elaborarse la Carta de 1980. La institución de integración mixta del Senado, sólo encontró acogida en la última oportunidad señalada y así se mantuvo por dieciséis años. La crítica sustancial de ser estimada un enclave autoritario, que alteraba la generación por votación popular de sus integrantes, fue atenuándose ante el hecho de que la primera generación de sus miembros, si bien cercanos en sus nombramientos al gobierno militar, habitualmente actuaron como factor facilitador de muchas decisiones y también porque la segunda generación de sus miembros fue más cercana a los gobiernos de la Concertación de Partidos por la Democracia, incluso algunos de los senadores designados o institucionales de la segunda etapa representaron en su ejercicio a partidos políticos. En definitiva, sin mayores discrepancias y a partir de diferentes motivaciones, la institución se suprimió totalmente, sin que variara el número de senadores elegidos”. 5Id. Ibid.: “No obstante lo cual cabe consignar que, como ha sido la constante histórica chilena, la rigidez del mecanismo inicial no impidió que, frecuentemente, como ya se ha señalado, se le incorporaran numerosas modificaciones”. Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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No que tange à composição da Suprema Corte, com a Reforma de 1997, sua constituição passou a ser fruto da participação dos três poderes, ou seja, “considerando la formación de una quina por la Corte Suprema, el nombramiento y proposición, por el Presidente de la República y el acuerdo del Senado por los dos tercios de sus miembros en ejercicio. Disponiéndose, también, que cinco de sus integrantes sean abogados extraños a la administración de justicia y derogando la inamovilidad en caso de edad de los magistrados de los tribunales de justicia, quienes pasaron a cesar en sus cargos al cumplir setenta y cinco años de edad, sin perjuicio de otros motivos y con la sola excepción del presidente de la Corte Suprema.”6 . Com a reforma de 2005, o Tribunal Constitucional chileno adquiriu um maior número de integrantes: 10 membros, sendo sua composição decorrente da participação dos três poderes na seguinte proporção: 3 (órgãos executivos): 4 (órgãos legislativos): 3 (órgãos judiciais). Além disso, as atribuições do Tribunal Constitucional tornaram-se mais extensas, resultando em várias críticas. Podem-se mencionar as seguintes competências: “el control previo de constitucionalidad de las leyes interpretativas de la Constitución, de las leyes orgánicas y de las normas de los tratados que versen sobre materias de éstas; las cuestiones de constitucionalidad de los autos acordados, de los proyectos de reformas constitucionales, de ley y de los tratados; de la convocatoria a plebiscito; la resolución sobre inaplicabilidad e inconstitucionalidad de preceptos legales; los reclamos sobre promulgación de la ley; la resolución sobre constitucionalidad de decretos o resoluciones del Presidente de la República representados de inconstitucionalidad la Contraloría; la declaración de inconstitucionalidad de organizaciones, movimientos o partidos políticos y la responsabilidad de personas participantes en los hechos que motiven la declaración; el informe al Senado en el caso de inhabilidad del Presidente de la República; la resolución de contiendas de competencia que no correspondan al Senado; lo correspondiente a inhabilidades de los Ministros de Estado; el pronunciamiento sobre inhabilidades, incompatibilidades y causales de cesación de los parlamentarios; la calificación de la inhabilidad y pronunciamiento sobre la renuncia de parlamentarios y la resolución sobre la constitucionalidad de los decretos supremos cuando se refieran a materias propias de ley”7. Por outro lado, o sistema presidencial de governo sofreu poucas alterações desde a Constituição de 1980, procurando-se reduzir sua força por meio da limitação do período do mandato, sendo que no Chile não é admitida a reeleição. Assim, a duração do mandato presidencial passou de 8 (oito) anos para 6 (seis) e na última reforma, estabeleceu-se um lapso de 4 (quatro) anos sem reeleição. Com o período de mandato presidencial reduzido e com o aumento do grau de importância dos partidos políticos, verifica-se uma relação conflituosa entre Presidente-Congresso-Partidos Políticos, sendo que a harmonização destes dá-se mediante a indicação presidencial aos cargos de Ministros e altos funcionários conforme a proporção representativa do Poder Legislativo. Verifica-se que há tentativas em reduzir o poder presidencial, como a possibilidade de interpelar ministros e constituir comissões especiais dada à Câmara dos Deputados. Embora sejam fornecidos instrumentos ao Poder Legislativo, constata-se pouco emprego destes, existindo raros momentos em que foram utilizados, como se pôde observar em 2008, quando foi interpelado o Ministro da Educação. Após o plebiscito de 5 de outubro de 1988, notou-se uma intensificação das atividades partidárias, relacionando-se de maneira mais direta com o povo. Neste período, notou-se a combinação entre os principais partidos, podendo-se dividi-los em dois grandes grupos: Aliança Democrática (DC, PS, PPD e PRSD) e Aliança por Chile (UDI e RN). Principalmente, a partir de 1990, observou-se entre os cidadãos certo acordo em relação a esta composição binária, havendo na história do Chile movimentos cíclicos de consenso.

6CARRASCO 7Id.

DELGADO, Sergio. op. cit.

Ibid. Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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Devido a esta organização partidária, constata-se um sistema eleitoral denominado de sistema binominal. Cumpre-se destacar que este sistema é diverso do existente na Inglaterra. O binominalismo configura-se da seguinte maneira: “Chile está dividido en 60 distritos y 19 circunscripciones. Encada distrito son elegidos 2 diputados y en cada circunscripción son elegidos 2 senadores. Las circunscripciones corresponden salvo algunas excepciones a las regiones (algunas regiones están subdivididas en 2 circunscripciones). La principal característica de este sistema es dar representación parlamentaria a las dos primeras mayorías (1+1 en cada distrito/circunscripción), si es que la lista más votada no dobla el porcentaje de votos alcanzado por la segunda de mayor votación. En la práctica, una lista que obtiene el 34% de los votos obtiene la misma representación parlamentaria de una que alcanza el 66% de votación. Por lo tanto, ambas obtienen el 50% de los escaños”8. O sistema binominal foi instituído no Chile com o principal escopo de evitar dispersão eleitoral e pulverização partidária. Este sistema eleitoral é alvo de diversas críticas, notadamente, dos partidos minoritários e do Partido Comunista, uma vez que constitui uma barreira para maiores participações no cenário político chileno. Foram apresentadas diversas propostas de reforma, mas não obtiveram sucesso, devido à negação da oposição. Para esclarecer melhor o assunto, importante expor o quadro geral das eleições das últimas décadas no Chile9: Año Elecc.

Partido/ Pacto

T% Votación

T% Elegidos

Diferencia

1989

P.D.C. Concertación R.N. Pacto D. y P. P.D.C. Concertación R.N. Pacto U. por P. P.D.C. Concertación R.N. Pacto U. Ch. P.D.C. Concertación UDI Pacto A. Ch. P.D.C. Concertación R.N. Pacto U. Ch.

26,4 51,3 19,8 33,9 27,16 55,46 16,25 36,51

32,5 60,0 26,7 40,0 30,83 57,43 24,16 39,52

+6,1 +8,7 +6,9 +6,1 +3,67 +1,97 +7,91 +3,01

22,98 50,46 16,78 36,21 18,90 47,90 25,40 44,30 19,02 47,41 20,48 35,47

31,6 57,43 20,83 39,13 20,00 52,50 29,16 47,49 17,50 54,16 28,33 44,99

+8,68 +6,03 +4,05 +2,92 +1,10 +4,60 +3,76 +3,19 -1,52 +6,75 +7,85 +9,52

1993

1997

2001

2005

Em suma, o sistema binominal garante uma duradoura estabilidade política no Chile, por outro lado, gera grande insatisfação por parte dos partidos independentes e os minoritários.

8VEJMELKA, 9Tabela

Jan. Chile en los años 90: Sistema político, sistema partidista y problemas actuales. Praga: RI, 2005. p. 3. extraída de CARRASCO DELGADO, Sergio. op. cit., p. 301-324. Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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3. Tribunal Constitucional: Controle de Constitucionalidade preventivo e a posteriori O Controle de Constitucionalidade preventivo realizado pelo Tribunal Constitucional pode ocorrer nas seguintes hipóteses: a-) Leis orgânicas constitucionais anteriores à promulgação e leis interpretativas: realizando-se o controle preventivo, a Casa de origem do projeto deve necessariamente recorrer, apresentando o projeto em 5 (cinco) dias. b-) Projetos de Reforma Constitucional e Tratados submetidos à aprovação do Congresso: o controle preventivo pelo Tribunal Constitucional apenas poderá ser realizado à requerimento do Presidente da República, de qualquer uma das Casas Legislativas ou de um quarto de seus membros. Já o controle a posteriori ocorrer após a promulgação da lei, podendo-se enumerar as seguintes situações em que se exerce o controle de constitucionalidade: 1-) questões referentes a decretos com força de lei; 2-) Representação feita pela Controladoria quanto à inconstitucionalidade de decreto ou resolução emanados do Presidente da República; 3-) Inconstitucionalidade quanto à convocação para plebiscito; 4-) Processos de perda de investidura de Ministros do Estado etc. Todas as condições para o exercício do controle de constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional estão previstas no artigo 82 da Constituição de 1980 do Chile. Apesar de este tópico do artigo limitar-se a análise do Controle de Constitucionalidade ao exercido pelo Tribunal Constitucional, cumpre-se mencionar que os órgãos competentes para velar a supremacia constitucional são: Tribunal Constitucional, Tribunais de Justiça, Controladoria Geral da República, Órgãos Administrativos de Controle Interno e Congresso Nacional. Conclusões Para compreender o constitucionalismo chileno, primeiramente, deve-se observar a evolução histórica do regime político do Chile e destacar os elementos presentes hodiernamente decorrentes da experiência anterior do regime militar. Desde a Constituição de 1980, apesar das diversas reformas sofridas, não houve mutações significativas no que concerne aos seguintes assuntos: direitos fundamentais, sistema político presidencial, sistema eleitoral e autonomia do Banco Central. Quanto ao sistema presidencial, cumpre-se salientar que a força da figura do Presidente da República foi enfraquecida com a redução do mandato para 4 (quatro) anos sem reeleição; todavia, o seu papel central no quadro político permanece. Já em relação ao sistema binominal cumpre sua função de estabilização e redução da dispersão política, embora seja alvo de variadas críticas, devido ao impacto negativo que exerce sobre os partidos menores e independentes. Enfim, pode-se constatar que o cenário constitucional e político do Chile atual é fruto das diversas experiências vividas ao longo da história, não se observando tradições institucionais de caráter permanente.

Referências BLANC R., Neville; NOGUEIRA A., Humberto; PFEFFER U., Emilio; VERDUGO M., Mario. La Constitución Chilena. Valparaíso, Chile: Centro de Estudios y Asistencia Legislativa, 1990. BRAVO L., Bernardino. El Presidente en la historia de Chile. Santiago, Chile, 1998. CARRASCO DELGADO, Sergio. La evolución político-constitucional de Chile. Estudios Constitucionales, ano 6, n. 2, p. 301-324. Disponível em: . Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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CEA EGAÑA, José Luis. Derecho constitucional chileno. Santiago: Universidad Católica de Chile, 2004. t. 1 e 2. ORTIZ ZÁRATE, Verónica Valdivia. El golpe después del golpe. Santiago: LOM, 2003. QUINZIO FIGUEIREDO, Jorge Mario. Justiça Constitucional em Chile. Cadernos Constitutionales, Méxicocentroamérica, n. 38, 2000. VEJMELKA, Jan. Chile en los años 90: Sistema político, sistema partidista y problemas actuales. Praga: RI, 2005. ZÚÑIGA U, Francisco. Reforma constitucional. Santiago, Chile, 2004.

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VI. BREVES APONTAMENTOS JURÍDICOS SOBRE A CONSTITUIÇÃO E A DEMOCRACIA NA VENEZUELA Evandro Fabiani Capano∗ Introdução O presente ensaio pretende, em breves apontamentos, trabalhar o conceito de Democracia e, pela análise da atual Constituição da República Bolivariana da Venezuela, verificar a existência de instrumentos jurídicos que possam sustentar e caracterizar um Regime Democrático. O método será a verificação de direitos do homem e de liberdades públicas1 na atual Constituição Venezuelana, não tendo, então, o texto preocupação de escansão, no sentido mesmo de contar sílabas métricas da sociologia ou mesmo da economia, no objeto de estudo. Assim, tendo por arrimo o parâmetro “direitos do homem”, o texto evoluirá para a análise da Organização do Estado na Constituição Bolivariana, realizando o fechamento de uma reflexão que possa aferir se presentes instrumentos jurídicos de uma ordem democrática. 1. Regime Democrático Antes de iniciarmos propriamente a análise do Regime de Governo que a Constituição Venezuelana desenhou, necessário se faz alguns apontamentos para definirmos o fenômeno “Regime Democrático”. Nos séculos mais recentes, a democracia, repudiada por muitos dos pensadores da Antigüidade, como Platão, que a considerava um governo de plebe, assentou-se como autêntica expressão da vontade popular, ou do governo pelo povo e para o povo. A democracia resulta do conjunto das pessoas subordinadas ao mesmo ordenamento jurídico, providas de capacidade para exercer os direitos políticos; sem ter personalidade jurídica, o povo tem, contudo, poder jurídico, posto que titular da soberania, estando capacitado e exercê-la nos termos da Constituição. Usando a concepção de Lincoln, podemos definir democracia como o "governo do povo, pelo povo e para o povo" sendo esse fenômeno um processo de convivência social em que o poder emana do povo, há de ser exercido, direta ou indiretamente, pelo povo e em proveito do povo. A democracia em termos de participação, contudo, tem, através dos séculos, apresentado formas diferentes. São conhecidas as democracias: direta, semidireta e indireta. ∗

Advogado. Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2003). Doutorando em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professor na cadeira de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Presidente da Comissão de Direito Militar e Assessor da Presidência do V Tribunal de Ética e Disciplina, estes na Secção Paulista da Ordem dos Advogados do Brasil. Ocupou os cargos de Presidente da Comissão de Segurança Pública da Secção Paulista da Ordem dos Advogados do Brasil, Chefe de Gabinete da Secreta ria de Estado da Educação de São Paulo, Coordenador de Polícia do Gabinete do Secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo e Chefe de Gabinete da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social do Município de São Paulo.

1A

diferenciação existe na doutrina: "Cette première définition présente un intéret non négligeable pour l'éclaircissement de la notion de libertés publiques, si on accepte de la faire descendre de ses hauteurs métaphysiques. Elle permet em effet de souligner que 'droits' et 'libertés' ne sont pas synonyines. L´expression 'droits' ést beaucoup plus cornpréhensive que le mot 'libertés'" (Esta primeira definição apresenta um interesse não negligenciável para o esclarecimento da noção de liberdades públicas, aceita-se fazê-lo descer das suas alturas metafísicas. Permite com efeito sublinhar que 'direitos' e 'liberdades' não são sinônimos. A expressão 'd ireitos' é muito mais compreensiva que a palavra 'liberdades'— Tradução livre). LEBRETON, Giles. Libertés publiques et droits de l'homme. Paris: Armand Colin-Dalloz. 1999. p. 11. Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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Na primeira, as decisões fundamentais são tomadas pelos cidadãos em assembléia, e como vimos, era praticada pelos atenienses da época de Péricles e mais recentemente os suíços, em alguns de seus cantões, Glaris, Appenzell etc.2 Tal tipo de democracia não é mais praticada, atualmente, por nenhum Estado, não apenas pela dificuldade de reunir-se a população para a resolução dos problemas comuns, como também pela incapacidade do povo de compreender os problemas técnicos e complexos do Estado. Nesse ponto, necessário se faz conceituar minimamente democracia, o que não é tarefa fácil. De nada vale um conceito restrito que torne inviável o enquadramento de realidades, como o liberalismo e o socialismo democrático, ou alargar a definição a ponto do seu desvirtuamento enquanto regime. Nesse sentido, entendemos democracia como um conjunto de regras que estabelecem “quem” e com “quais” procedimentos são tomadas as decisões políticas3. Em síntese, para uma ordem política ser democrática, deve conter necessariamente a determinação de quem são os autorizados a decidir e o quantum participativo para ser reconhecido como decisão, que haja alternativas reais de escolha e sua viabilidade, e respeito ao dissenso, como na lição de Bobbio4: “No entanto, mesmo para uma definição mínima de democracia, como é a que aceito, não bastam nem a atribuição a um elevado número de cidadãos do direito de participar direta ou indiretamente da tomada das decisões coletivas, nem a existência de regras de procedimento como a da maioria. [...] é preciso que aqueles que são chamados a decidir ou a eleger os que deverão decidir sejam colocados diante de alternativas reais e postos em condição de escolher entre uma e outra”.

Assim ocorre, por exemplo, nas eleições, quando votamos nesse ou naquele candidato, ou mesmo quando, em sede referendária, confirma-se ou rejeita-se um texto normativo. Por essa razão, os direitos de liberdade, da livre comunicação dos pensamentos e das opiniões, de reunião, de associação, de consciência, de independência e integridade da pessoa humana, de ocupação etc, são importantes e constituem base do exercício dos direitos políticos e da participação. Podemos, assim, entender democracia como o processo decisório, que conta com a participação do “maior número” possível dos interessados, onde há opções reais de escolha, com preservação efetiva do dissenso livre, respeitados os critérios do seu exercício. Stepan5

Em complemento ao conceito mínimo apresentado por Bobbio, colacionamos a definição de Linz e para democracia consolidada, que coloca em relevo importantes aspectos do regime: “Tendo estruturado dessa forma nossas questões, nosso argumento exige definições de transição democrática completa e de democracia consolidada. Neste livro, sempre que tentarmos estabelecer até que ponto um determinado país conseguiu avançar na direção de complementar a transição para a democracia, usaremos o seguinte padrão de definição: Uma transição democrática esta completa quando um grau suficiente de acordo foi alcançado quanto aos procedimentos políticos visando obter um governo eleito; quando um governo chega ao poder como resultado direto do voto popular livre; quando esse governo tem, de fato a autoridade de gerar novas políticas; e quando os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, criados pela nova democracia, não têm que, de jure, dividir o poder com outros organismos.”

2FERREIRA

FILHO, Manoel Gonçalves. A democracia no limiar do século XXI. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 9. de reflexão amplamente abordada por Norberto Bobbio, in O futuro da democracia. São Paulo: Paz e Terra, 2002. p. 30: “Afirmo preliminarmente que o único modo de se chegar a um acordo quando se fala de democracia, entendida como contraposta a todas as formas de governo autocrático, é o de considerá-la caracterizada por um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar decisões coletivas e com quais procedimentos”. 4BOBBIO, Norberto. op. cit., p. 33. 5LINZ, Juan J.; STEPAN, Alfred. A transição e consolidação da democracia, São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 22. 3Trata-se

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Merece ainda comento a expressão “democracia representativa” que significa genericamente que as deliberações coletivas, isto é, deliberações que dizem respeito à coletividade inteira, são tomadas não diretamente por aqueles que dela fazem parte, mas por pessoas eleitas para esta finalidade, como já exposto em capítulo anterior. O ponto a destacar é que democracia representativa significa, genericamente, que as deliberações concernentes à coletividade inteira são tomadas, não diretamente por aqueles que dela fazem parte, mas por pessoas eleitas para essa finalidade e que a deterioração do sistema representativo, no sentido de não correspondência com o “esperado” ou com o “divulgado” como meta a ser cumprida no correr do mandato, nos leva ao debate sobre legitimidade e identificação. Com relação à época contemporânea em que vivemos, assistimos a ascensão das massas e como resultado, o reflexo do crescimento do anseio do povo em participar nas questões do governo, com efeitos profundos no sistema político, gerando novos paradigmas, como apontado por Sartori6: “Segundo o remodelamento total da teoria da sociedade de massas feito por Kornhauser no fim dos anos 50, uma sociedade atomizada é fácil de mobilizar e manipular. O homem da massa é isolado, exposto, e, por isso, disponível; seu comportamento tende a ser um comportamento extremo, onde as formas ativistas de resposta e intervenção no processo político são a alternativa à apatia. Desse modo, uma sociedade de massa está exposta à dominação carismática e à mobilização total.”

Especificamente no objeto de pesquisa, a democracia participativa tem origem nos movimentos revolucionários iniciados no fim do século XVIII e princípio do século XIX com o contratualismo rousseauniano e a filosofia dos jusnaturalistas. Seus instrumentos têm, com freqüência, caráter secundário ou complementar frente aos sistemas representativos. De atividade pouco contínua, no mais das vezes extraordinária, a participação direta do povo no governo manifesta-se quase que com exclusividade sob forma de sufrágio. É assim que a democracia participativa, muitas vezes chamada de semidireta7 afigura-se como opção tendente a arrefecer a democracia direta pura e a representativa pura, que face ao inconformismo dos cidadãos, com práticas adversas da efetiva e verdadeira democracia que implica identidade entre povo e governo, frustra-os com poucos recursos de modificação do quadro representativo. Com essas luzes, podemos passar a uma análise da Constituição da República Bolivariana de Venezuela, para aferir se presentes instrumentos que possam garantir, pelo menos in thesi, uma ordem democrática. 2. A Constituição Bolivariana A Constituição Venezuelana foi promulgada em dezembro de 1999, e em seu preâmbulo substitui a fórmula de “Estado de Direito” por uma expressão mais significativa: “Estado de Justiça”. Resta claro, pois, que a Constituição da Venezuela, pelo menos do ponto de vista formal, revela a preocupação no atingimento não de um mero Estado de Direito, o que reverbera na discussão da existência de uma sociedade mais comprometida com um ideal de Justiça social em evolução para a democracia social, motivo pelo qual o artigo 2º reitera a ideia de “ Estado democrático e social de Direito e de Justiça”. O artigo 5° da Constituição diz que o povo venezuelano exercerá sua soberania de modo direto e indiretamente:

6SARTORI, 7Ver

Giovanni. A teoria da democracia revisitada. São Paulo: Ática, 1994. p. 48. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 95. Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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“La soberanía reside intransferiblemente en el pueblo, quien la ejerce directamente en la forma prevista en esta Constitución y en la ley, e indirectamente, mediante el sufragio, por los órganos que ejercen el Poder Público.”

Ensinam Nogueira e Rizzoto que a “formatação jurídico-política do Estado venezuelano, expressa na Constituição em vigor, elaborada e confirmada em Referendo Aprobatório, em 1999, indica, em alguns dispositivos que este Estado transita da condição de democracia representativa para a democracia participativa, e também pelas ações concretas dos poderes que o compõe.”8 Ainda, importante anotar que a sítio oficial da presidência da republica venezuelana define o governo como: “Democrático, participativo, protagónico, electivo, descentralizado, alternativo, responsable, pluralista y de mandatos revocables.”9 A Constituição da Venezuela, na “Organização do Estado”, optou pela criação de uma república federal, dividida em 23 estados, um Distrito Capital, que compreende a cidade de Caracas e sua área metropolitana, as Dependências Federais, formada por 72 ilhas e ilhotas na sua maioria sem população humana e um Território em Reclamação contra a Guiana, conhecido como Guayana Esequiba. O sistema de governo adotado é o presidencialista e fez previsão da existência de cinco poderes: executivo, legislativo, judiciário, cidadão e eleitoral. O Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República, eleito por sufrágio universal e com mandato de seis anos, podendo ser reeleito sem limitação. Exerce simultaneamente a chefia de Estado e a chefia de governo e possui, entre suas atribuições, a nomeação do Vice-Presidente da República e de seus Ministros. O Presidente da República é o Comandante-em-Chefe das Forças Armadas - Força Armada Nacional da República Bolivariana da Venezuela (Fuerza Armada Nacional, FAN), nos termos do artigo 328 da Constituição, composta por cinco componentes: o Exército, a Marinha de Guerra, a Força Aérea, a Gurda Nacional e a Milícia Nacional de Venezuela, sendo que em 2008, cerca de 600.000 soldados foram incorporados em um novo ramo, conhecido como Reserva Armada. Os Estados membros da federação possuem um governador, eleito para um período de quatro anos. Ainda, há previsão de um governador para o “Distrito Capital” e o poder municipal é exercido por alcaides eleitos para mandato de quatro anos. O Poder Legislativo é composto pela Assembleia Nacional, parlamento unicameral, com representantes dos povos indígenas da Venezuela. Os membros da Assembleia são eleitos para um período de 5 anos, podendo ser reeleitos para mais dois mandatos. Entre as funções da Assembleia Nacional estão a feitura de leis e o orçamento e designar os embaixadores. É importante apontar que antes da aprovação da Constituição de 1999 a Venezuela tinha um parlamento bicameral, composto pelo Senado e pela Câmara dos Deputados. O Supremo Tribunal de Justiça, órgão máximo do poder judiciário, é constituído por 36 membros eleitos para um mandato único de doze anos, sendo designados pela Assembleia Nacional. O Poder Cidadão é exercido pelo Conselho Moral Republicano integrado pelo Defensor do Povo, pelo Fiscal Geral e pelo Controlador Geral da República, nos termos do artigo 273 da Constituição e são órgãos do Poder Cidadão a Defensoria do Povo, o Ministério Público e a Controladoria Geral da República.

8NOGUEIRA,

Francis Mary Guimarães; RIZZOTTO, Maria Lucia Frizon. O processo de universalição da educação escolar na Venezuela: as missões Robinson, Ribas e Sucre. Disponível em: . 9GOBIERNO BOLIVARIANO DE VENEZUELA. Disponível em: . Acesso em: 20 jul. 2011. Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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O Artigo 274 da Constituição garante ao Poder Cidadão independência e seus órgãos gozam de autonomia funcional, financeira e administrativa, estando aparelhado para prevenir, investigar e sancionar os fatos que atentem contra a ética pública e moral administrativa, bem como velar pela boa gestão e pela legalidade do uso do patrimônio público, o cumprimento e a aplicação do princípio da legalidade em toda a atividade administrativa do Estado, promover a educação como processo criador da cidadania, assim como a solidariedade, a liberdade, a democracia, a responsabilidade social e o trabalho. Importante colocar em evidência, por constituir um instrumento de garantia da democracia, que a Defensoria do Povo tem a seu cargo a promoção, defesa e vigilância dos direitos de garantias estabelecidos na Constituição e dos Tratados Internacionais sob direitos humanos, além dos interesses legítimos, coletivos e difusos, dos cidadãos. A Defensoria do Povo será dirigida por um Defensor do Povo designado por um período de sete anos, nos termos do artigo 289 do texto constitucional. O Conselho Nacional Eleitoral (CNE), Poder independente da República Bolivariana da Venezuela, é responsável e garantidor da transparência dos processos eleitorais e referendos que se levam a cabo na nação e constitui a representação visível do Poder Eleitoral, instituído como resultado da promulgação da Constituição do ano 1999. Antes desse ano, levava o nome de Conselho Supremo Eleitoral e não constituía um poder independente. E após termos pincelado apontamentos sobre os poderes do Estado Venezuelano, é importante colacionar que o Título III da Constituição consagra os Direitos Humanos, in verbis: “DE LOS DERECHOS HUMANOS Y GARANTÍAS, Y DE LOS DEBERES DE LOS Derechos HUMANOS Y GARANTÍAS, Y DE LOS DEBERES Capítulo I Capítulo I Disposiciones Generales Disposiciones Generales Artículo 19. El Estado garantizará uma persona Toda, Conforme al principio de progresividad y sin discriminación alguna, el goce y Ejercicio irrenunciable, indivisíveis e interdependiente de los derechos Humanos. Su respeto y garantía son obligatorios para los órganos del Poder Público de conformidad con la Constitución, los tratados sobre derechos humanos suscritos y ratificados por la República y las leyes que los desarrollen. Su respeto y garantía obligatorios filho parágrafo Los Organos del Poder Público de conformidad con la Constitución, los derechos tratados Sobre Humanos ratificados suscritos y por la República y las leyes Que desarrollen los.

Conclusão É verdade que a dimensão jurídica pode não corresponder à dimensão sociológica do fenômeno constitucional. E não nos é estranho que o termo totalitarismo refere-se a uma concepção política que exalta o Estado, a nação ou uma classe social, às quais o indivíduo deve estar totalmente submetido, vale dizer, todos os aspectos de sua vida privada passam para um segundo plano, imolando-se o indivíduo no altar do coletivismo grosseiro, sem chance para a participação. Vale a pena conferir a lição de Hannah Arendt10, no sentido de nos dar uma visão do totalitarismo: “A história ensina que a subida ao poder e à posição de responsabilidade, afeta profundamente a natureza dos partidos revolucionários. A experiência e o bom senso tinham o direito de esperar que o totalitarismo no poder perdesse aos poucos o ímpeto revolucionário e o caráter utópico, que o afã diário de governar e a posse do verdadeiro poder moderassem as pretensões do movimento e destruíssem gradualmente o mundo fictício criado por suas organizações. [...]mais perturbador ainda era o modo pelo qual os 10ARENDT,

Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Cia das Letras, 2000. p. 442 e 444.

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regimes totalitários tratavam a questão constitucional. Nos primeiros anos de poder, os nazistas desencadearam uma avalanche de lei e decretos, mas nunca se deram ao trabalho de abolir oficialmente a Constituição Weimar; chegaram até a deixar mais ou menos intactos os serviços público – fato que levou muitos observadores locais e estrangeiros a esperar que o partido mostrasse comedimento e que o novo regime caminhasse rapidamente para a normalização. Mas, após a promulgação das Leis de Nuremberg, verificou-se que os nazistas não tinham o menor respeito sequer pelas suas próprias leis. Em vez disso, continuou “a constante caminhada na direção de setores sempre novos”, de modo que, a final, “o objetivo e a alçada da polícia secreta do Estado”, bem como de todas as outras instituições estatais ou partidárias criadas pelos nazistas, não podiam “de forma alguma definir-se pelas leis e normas que as regiam”.

Não se pense, sem embargo do exposto, que a ideia totalitária é recente. Já em Platão e Aristóteles encontram-se os germes da moderna doutrina totalitária. Em Aristóteles, por exemplo, várias impostações do moderno Estado totalitário podem ser observadas em sua obra intitulada Política.11 Importante frisar que um Estado autoritário diverge de um Estado Totalitário, no sentido de que, em maior ou menor escala, não se fiam em uma ideologia e permitem um relativo pluralismo político, ensejando alguma participação. Por final, realizamos tais ponderações, pois é público e notório, e portante independe de prova, que muitos enquadram o Estado Venezuelano como uma Ditadura ou um Estado Totalitário. Porém, como frisamos no início desse ensaio, a análise desse texto está afeta à detecção jurídica de instrumentos que caracterizam, pelo prisma e pela ciência do Direito, um Estado Democrático. E nesse sentido, é forçoso reconhecer que a Constituição da Republica Bolivariana da Venezuela possui um instrumental jurídico adequado para supedâneo a um Estado Democrático.

Referências ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Cia das Letras, 2000. ARISTÓTELES. A política. Tradução Nestor Silveira Chaves. 2. ed. rev. Bauru, SP: Edipro, 2009. BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. São Paulo: Paz e Terra, 2002. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A democracia no limiar do século XXI. São Paulo: Saraiva, 2001. ______. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2002. GOBIERNO BOLIVARIANO DE VENEZUELA. Disponível em: . Acesso em: 20 jul. 2011. LEBRETON, Giles. Libertés publiques et droits de l'homme. Paris: Armand Colin-Dalloz. 1999. LINZ, Juan J.; STEPAN, Alfred. A transição e consolidação da democracia, São Paulo: Paz e Terra, 1999. NOGUEIRA, Francis Mary Guimarães; RIZZOTTO, Maria Lucia Frizon. O processo de universalição da educação escolar

na

Venezuela:

as

missões

Robinson,

Ribas

e

Sucre.

Disponível

em:

. SARTORI, Giovanni. A teoria da democracia revisitada. São Paulo: Ática, 1994.

11ARISTÓTELES.

A política. Tradução Nestor Silveira Chaves. 2. ed. rev. Bauru, SP: Edipro, 2009. (Livro Primeiro, Capítulo II, Livro Sétimo, Capítulos I e XVI, e Livro Oitavo, Capítulo I). Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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VII. A REELEIÇÃO E O TERCEIRO MANDATO PRESIDENCIAL EM XEQUE: TENSÕES DEMOCRÁTICAS NA COLÔMBIA E A ATUAÇÃO DA CORTE CONSTITUCIONAL Marcelo Mazotti∗ Introdução Todo aquele que caminha em direção ao sol será acompanhado de sua sombra. É assim que a América Latina busca reconstruir seus governos no século XXI, rumo à edificação de sociedades livres e democráticas, mas sempre atenta às forças centralizadoras de outrora que lhe acompanham sorrateiramente. O presente trabalho visa dar continuidade a trajetória iniciada pela série Culturalismo Jurídico, organizada pelos ilustres professores Cláudio Lembo e Monica Herman Salem Caggiano, onde se lança um olhar crítico e denso sobre as relações jurídicas e políticas na América Latina, com ênfase, sobretudo, às legislações de cada país e suas repercussões na esfera política e social. A primeira obra, “Voto nas Américas”1, apresenta uma minuciosa pesquisa acerca dos aspectos eleitorais de diversas nações latino-americanas, correlacionando-os ao sistema brasileiro e promovendo um debate sobre suas virtudes e deficiências. Por sua vez, no presente artigo, tem-se como foco o sistema constitucional colombiano e as crises ocorridas nos últimos anos decorrentes das sucessivas tentativas do Poder Executivo em dilatar o mandato presidencial, colocando-o em confronto com os Poderes Legislativo e Judiciário. A Colômbia, em sua recente história, sofreu severos abalos políticos desde a crise secular entre liberais e conservadores, culminando em conflitos civis armados, um breve governo militar e a criação das famigeradas “organizações militares revolucionárias”2 em meados do século XX. Todavia, desde a promulgação da Constituição de 1991, o país tem buscado solidificar, ano a ano, suas estruturas jurídicas e políticas, inobstante os percalços encontrados durante este árduo percurso de tensões e instabilidade3. Curiosamente, a tão almejada estabilidade assumiu contornos questionáveis durante o governo Uribe, cuja base política de confronto às entidades paramilitares lhe rendeu popularidade interna e prestígio internacional de tal monta, que duas propostas de dilatação do mandato presidencial foram realizadas: a primeira delas pretendia permitir a reeleição presidencial (vedada originalmente) e a segunda permitiria o terceiro mandato sucessivo. Tais propostas significaram um verdadeiro rompimento com mais de duzentos anos de tradição republicana daquele país, visto que desde a Constituição de 1886 não era permitido o exercício de mandatos ∗

Mestrando em Direito do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Membro da Comissão de Direito Constitucional da OAB-SP. Sócio do escritório FOZ Advogados e consultor do IBRAP – Instituto Brasileiro de Administração Pública. Autor da obra “As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei.

1LEMBO,

Claudio; CAGGIANO, Monica Herman Salem. O voto nas Américas. Barueri, SP: Minha Ed.: 2008. termos foram colocados entre aspas, pois não se adota um rigorismo conceitual acerca dos movimentos e organizações internacionalmente conhecidos na Colômbia, como a FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), o ELN (Exército da Libertação Nacional) e outras entidades paramilitares, tendo em vista que várias são as qualificações a eles conferidas, variando desde movimentos políticos legítimos a organizações terroristas e narcotraficantes. 3Para um estudo histórico profundo acerca do constitucionalismo colombiano, ver BOTERO BERNAL, Andréso (Coord.). Origen del constitucionalismo colombiano. Ponencias del III Seminario Internacional de teoria general del derecho. Medelín: Universidad de Medellín, 2006. (Colección Memorias Juridicas n. 1). 2Os

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consecutivos pelo Presidente da República, sendo raríssimos aqueles que ocuparam a Presidência por mais de uma vez em períodos alternados. Em razão da reforma constitucional que ambos os projetos propunham, a Corte Constitucional foi acionada a se manifestar, exercendo a difícil tarefa de julgar a adequação de tais preceitos normativos ao texto e espírito da Lei Maior, modificada por duas vezes de forma aguda em um breve período. Iniciaremos nosso trabalho com uma análise geral da Carta de 1991 e dos mecanismos de controle de constitucionalidade ali previstos, de forma a alcançarmos um substrato normativo e teórico necessário para nos inserirmos na ordem jurídico-constitucional colombiana. Posteriormente, verificaremos as reformas constitucionais propostas e como elas foram questionadas perante a Corte Constitucional. Por fim, analisaremos as decisões da Corte e quais os seus reflexos para a vida jurídica e política da Colômbia. Ao longo do estudo, faremos uma análise comparativa entre o sistema jurídico colombiano e o brasileiro, a fim extrairmos valiosas lições acerca das relações travadas entres os Poderes Públicos e a sociedade colombiana, em um debate conflitante, porém salutar para o amadurecimento das instituições democráticas. 1. A Constitución Política de Colombia de 1991: visão panorâmica e criação da Corte Constitucional Desde a promulgação da Acta de Independencia de 1810, documento que pôs fim ao regime colonialista espanhol e inaugurou a ordem republicana na Colômbia, o país atravessou diversos períodos de transformações e instabilidade constitucional. Nos séculos XIX e XX tornou-se corriqueiro o desejo de se romper imediatamente com o “antigo regime” e construir uma “nova ordem”, embasada, principalmente, em um documento jurídico que, por si só, acabaria com as desigualdades políticas do sistema anterior e daria respostas às mazelas sociais. Como resultado, inúmeras Constituições foram editadas nos últimos dois séculos4, o que gerou um constitucionalismo débil e volátil, como nos ensina o eminente jurista Manuel Fernando Quinche Ramirez5. A despeito dos avanços e retrocessos encontrados nas Cartas colombianas desde 1810, o fato é que a promulgação da Constitución Política de Colombia de 1991 é, sem sobra de dúvida, um marco fundamental na vida institucional desse país, representando um elevado compromisso com as práticas mais profundas e elevadas da democracia moderna. A presente Carta contém todos os elementos próprios do constitucionalismo contemporâneo, estruturando-se sob a égide do exercício democrático do poder de forma direta e participativa, da separação

4Após

a independência colombiana, nove constituições foram elaboradas, nomeadamente: “Constitución de la República de Colombia” (1821); “Constitución Política de la República de Colombia” (1830); Constitución del Estado de Nueva Granada” (1831); “Constitución de la República de Nueva Granada” (1843); “Constitución de la República de la Nueva Granada” (1853); “Constitución de la Confederación Granadina” (1858); “Constitución de los Estados Unidos de Colombia” (1863); “Constitución Política de la República de Colombia (1886) e a atual “Constitución Política de Colombia” (1991). 5Transcorrido casi 200 años de vida republicana, uno de los rasgos más notórios de los paises andinos, es el de haber contado desde su independencia com constituciones, pero sin edificar debidamente un Estado constitucional democratico. Más aún, dichos países no han logrado contar con una Constitución sólida que les permita erigirse de modo definitivos con estadonación, debido em parte a que su constitucionalismo ha estado signado por dos fenómenos: la debilidad y la volatilidad. Se trata de un constitucionalismo débil, en un doble sentido. En primer lugar, por cuanto las constituciones allí expedidas no han logrado mantenerse en el tiempo, ni la identificación de sus usuarios con el texto constitucional; y en segundo lugar, la dinámica de ese constitucionalismo es circular; en la medida en que descansa sobre una creencia falsa, según la cual, los problemas de los distintos países se solucionam simplesmente con la expedición de más normas. QUINCHE RAMIREZ, Manuel Fernando. Derecho constitucional colombiano de la Carta de 1991 y sus reformas. 3. ed. Bogotá: Editorial Universidad del Rosario, 2009. p. 34. Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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dos poderes, da consagração dos direitos e garantias dos homens, da supremacia da Constitucional e o decorrente controle de constitucionalidade das leis. Politicamente, a Colômbia constitui-se em um Estado Social, republicano, unitário, presidencialista e descentralizado administrativamente (art. 1º). Apresenta, em linhas mestras, a clássica divisão tripartite de poderes: Poder Executivo, Poder Legislativo e Poder Judicial (art. 113). O primeiro é exercido pelo Presidente da República e o segundo pelo Congresso da República, organizado por meio de um sistema bicameral, composto pela Câmara de Representantes e pelo Senado. Por fim, cumpre salientar o extenso rol de direitos assegurados constitucionalmente, subdividindo-os em direitos fundamentais (arts. 11 a 41), econômicos, sociais e culturais (arts. 42 a 77) e coletivos e do meioambiente (arts. 78 a 82), sendo diversos deles considerados de aplicação imediata (art. 85). Em resumo, não há dúvidas que a atual Carta enceta um importante marco na história constitucional colombiana, estabelecendo uma nova relação político-institucional entre os Poderes, além de prover o Estado de inúmeros mecanismos normativos para concretização dos direitos humanos, manchados pela histórica desigualdade social e a famigerada violência armada de grupos militares e paramilitares que se proliferaram em meados do século XX. Todavia, não há que se negar as críticas às principais fragilidades da Carta, em especial, o caráter extenso e prolixo de sua normatização, o excesso de concentração de poder no Executivo, e a necessidade de políticas públicas para a concretização dos direitos humanos, ao invés de largas promessas em âmbito normativo6. Um dos traços mais marcantes da Constituição de 1991 é a criação inédita da Corte Constitucional7 como órgão especial de controle de constitucionalidade em solo colombiano, reformando o modelo anterior que conferia a Corte Suprema de Justicia tanto competência para conhecer das ações de inconstitucionalidade, quanto competência recursal última do Poder Judiciário. A Corte Constitucional colombiana, portanto, aproxima-se de um modelo de Tribunal Constitucional “puro”, em oposição àqueles “híbridos” que são responsáveis tanto pela jurisdição constitucional quanto pela última instância recursal das jurisdições ordinárias, como é o caso do Supremo Tribunal Federal brasileiro. Quanto a sua competência, extenso é o número de ações constitucionais que visam não só combater toda e qualquer norma incompatível com o Texto Maior, assim como garantir o cumprimento das já existentes em sua plenitude, seja em controle abstrato ou concreto, difuso ou concentrado, por provocação ou de ofício8. Sob uma perspectiva comparada com o direito brasileiro, analisado de forma ampla e sem as minúcias inerentes a cada sistema jurídico, podemos relacionar a acción publica de inconstitucionalidad com a ação direta de inconstitucionalidade (ADI), sem, contudo, encontrar correspondente normativo com a ação direta de constitucionalidade (ADC). A acción publica de inconstitucionalidad pode ser iniciada tanto por provocação quanto automaticamente. No primeiro caso, a legitimidade para ajuizá-la compete a qualquer cidadão, bastando-lhe 6Revelando

espírito ácido e cético no que tange a concretização da Carta pelas instâncias políticas, ver GOMÉZ SERRANO, Laureano. El control constitucional em Colombia: evolución histórica. Bucaramanga: Ed. UNAB, 2001. p. 198-199. 7De acordo com a Carta de 1991 e a legislação complementar (Ley 270-96), a Corte Constitucional é formada por nove Magistrados, sendo que a nomeação é feita por votação do Senado da República, a partir de listas tríplices formuladas pelo(a): Presidente da República (3 listas), Corte Suprema de Justiça (3 listas) e Conselho de Estado (3 listas). Há requisitos constitucionais para exercer o cargo, cujo mandato é de oito anos, sendo vedada a recondução. 8A preocupação constituinte em preservar e concretizar os ditames constitucionais foi tamanha que foram elencadas sete “ações constitucionais” no Texto Magno, nomeadamente: acción publica de inconstitucionalidad, acción de tutela; acción de cumplimiento; acción popular; acción de grupo; acción de pérdida de investidura e habeas corpus. Utilizamos a classificação de QUINCHE RAMIREZ, Manuel Fernando. op. cit., p. 353. Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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a qualidade de pessoa humana, nacionalidade colombiana, ser maior de idade (18 anos), e não ter os direitos de cidadania suspendidos por decisão judicial9. Inegavelmente, tal legitimidade confere um caráter profundamente democrático às argüições de inconstitucionalidade e privilegia o acesso à Corte de modo muito mais amplo do que o sistema brasileiro. Por outro lado, não é menos verdadeiro que tal amplitude provoca um elevadíssimo número de petições à Corte que podem travar seu bom funcionamento10. A Carta ainda prevê uma forma de controle automático (ex officio), sendo que determinadas leis não poderão entrar em vigor e produzir efeitos enquanto não forem analisadas pela Corte. Isto ocorre em hipóteses excepcionais, como é o caso da lei convocatória de Assembléia Constituinte ou de reforma constitucional via referendo11. Dito mecanismo “automático” não encontra paralelo em solo brasileiro, haja vista a construção teórica da presunção de constitucionalidade e legalidade que goza toda norma emanada pelo Poder Legislativo, só podendo ser questionada por meio de provocação dos entes competentes. Em contrapartida, se é certo que determinadas matérias sofrem um controle prévio de constitucionalidade, também é certo que tal controle se resume a vícios procedimentais na elaboração e aprovação da norma, não podendo a Corte se manifestar quanto ao seu conteúdo. Tal restrição está enraizada na ideia de que determinadas decisões políticas competem, exclusivamente, às instâncias legislativas, cabendo ao judiciário apenas o controle procedimental. Em especial, nota-se uma grande preocupação do Poder Constituinte Originário em prover qualquer cidadão de todos os meios possíveis para o fiel cumprimento da Carta, garantindo-lhe mecanismos plurais e abertos de acessibilidade às Cortes. Diz-se ‘plurais’ pois há múltiplas formas de acionar o Poder Judiciário, não sendo raros os casos em que, em uma mesma situação, mais de uma ação é cabível. A expressão ‘aberto’, por sua vez, é utilizada para indicar a livre acessibilidade do cidadão a estas ações constitucionais, sendo que em alguns casos não é sequer necessário a contratação de advogado, tampouco há requisitos formais quanto ao petitório. A importância de tais mecanismos fica mais nítida quando se verifica que na reforma constitucional em que se pretendia estabelecer a reeleição, foi interposta uma ação de inconstitucionalidade por uma simples cidadã e, no caso do terceiro mandato, a Corte analisou a questão em razão do controle automático. Ambos os controles inexistem no Brasil. Isto equivale a dizer que as balizas instituídas pela Carta de 1991 foram uma das principais responsáveis pela possibilidade de análise das supracitadas normas reformadoras, o que talvez não ocorresse caso a legislação fosse mais restritiva. Méritos de uma Constituição que visa o aprimoramento de sua legislação de modo democrático e aberto, inobstante o fato de que tal postura conduz, inevitavelmente, a sofrer os prejuízos do excessivo número de recursos que daí advém. 2. O mandato presidencial em xeque Após a visão panorâmica da Carta Constitucional, cumpre-nos analisar, notadamente, o mandato presidencial colombiano e as suas sucessivas alterações ao longo da história e as argüições de inconstitucionalidade delas decorrentes. 9QUINCHE

RAMIREZ, Manuel Fernando. op. cit., p. 356. no ano de 2009, tramitou nos Tribunais colombianos mais de 1.500.000 (um milhão e quinhentas mil) ações de tutela. Id. Ibid., p. 368. 11É competência da Corte Constitucional nos termo do art. 241: “2. Decidir, con anterioridad al pronunciamiento popular, sobre la constitucionalidad de la convocatoria a un referendo o a una asamblea constituyente para reformar la Constitución, sólo por vicios de procedimiento en su formación”. (g.n.) 10Apenas

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2.1. A tradição republicana secular da Colômbia e o mandato único A história constitucional colombiana, desde sua independência e o advento da república, revela um caráter restritivo quanto ao mandato presidencial, o que foi mantido e acentuado no texto de original de 1991. De acordo com a Constituição de 1886, a reeleição presidencial somente era possível para mandatos não sucessivos, o que premiava o bom dirigente com a possibilidade de ocupar o cargo novamente, mas também exigia a alternância de poder imediatamente ao final de cada mandato. A Constituição de 1991, porém, foi mais rígida do que sua antecessora, vedando qualquer hipótese de reeleição, seja em mandatos intercalados ou sucessivos. A fórmula encontrada foi a do mandato único, positivada no art. 197 do texto original da Carta12. Quanto à duração do mandato presidencial, diversas foram as modificações ao longo da história, onde se tem notícia de curtos períodos de 2 (dois) anos, até mandatos mais extensos de 6 (seis) anos13. Todavia, com a expedição do Acto Legislativo 3 de 1910, o mandato presidencial foi fixado em 4 (quatro) anos, o que se manteve, em linhas gerais14, até o momento, conforme reza o art. 190 da Carta atual15. Nota-se, portanto, que na história política colombiana há uma especial preocupação com a alternância do poder no cargo executivo máximo, sendo as normas constitucionais altamente restritivas quanto ao longo exercício do poder pela mesma pessoa. Sob o manto normativo da Constituição de 1991, tais postulados foram cumpridos pelos Presidentes que estiveram no poder, sendo eles: César Gaviria Trujillo (1990-1994), Ernesto Samper Pizano (1994-1998) e Andrés Pastrana Arango (1998-2002). Todavia, com a eleição de Álvaro Uribe em 2002, tal continuidade seria rompida, tendo em vista a reforma constitucional proposta pelo então Presidente e seus aliados, visando instituir a reeleição por uma única vez e mantendo o período quatrienal do mandato. 2.2. A reeleição instituída pelo Acto Legislativo n. 2 de 2004 No ano de 2002 foi eleito Presidente da República da Colômbia, Sua Excelência Álvaro Uribe, cujo mandato extinguir-se-ia em 2006. Todavia, em razão das circunstâncias políticas e a alta popularidade favoráveis ao então Presidente, foi aprovado na Câmara de Representantes e no Senado o Acto Legislativo n. 2 que modificava o art. 197 da Constituição, substituindo a regra do mandato único pela possibilidade de exercício de 2 (dois) mandatos, sucessivos ou não. O novo teor normativo da Constituição foi aprovado com o seguinte texto: “Artículo 197. Nadie podrá ser elegido para ocupar la Presidencia de la República por más de dos períodos”. Para deixar clara a situação do atual mandatário, em face das eventuais dúvidas acerca do direito intertemporal, foi acrescido o parágrafo transitório com o seguinte teor: “Quien ejerza o haya ejercido la

12ARTICULO

197.- No podrá ser elegido Presidente de la República el ciudadano que a cualquier título hubiere ejercido la Presidencia. Esta prohibición no cobija al Vicepresidente cuando la ha ejercido por menos de tres meses, en forma continua o discontinua, durante el cuatrienio. (...) 13GARCÍA-HERREROS, Orlando. Apuntes de derecho constitucional colombiano. 2. ed. Bogotá: Universidad Sergio Arboleda, 2008. p. 175. 14Deve-se ressaltar a existência de períodos excepcionais em que houve morte do mandatário ou exercício do poder pelos militares, caso em que, o mandato de quatro anos não foi respeitado. 15ARTICULO 190º—El Presidente de la República será elegido para un período de cuatro años, por la mitad más uno de los votos que, de manera secreta y directa, depositen los ciudadanos en la fecha y con las formalidades que determine la ley. Si ningún candidato obtiene dicha mayoría, se celebrará una nueva votación que tendrá lugar tres semanas más tarde, en la que sólo participarán los dos candidatos que hubieren obtenido las más altas votaciones. Será declarado Presidente quien obtenga el mayor número de votos. Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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Presidencia de la República antes de la vigencia del presente Acto Legislativo sólo podrá ser elegido para un nuevo período presidencial”. O referido Acto Legislativo foi impugnado por meio de ação pública de inconstitucionalidade proposta por Blanca Linday Enciso e de acordo com as prerrogativas conferidas a todo e qualquer cidadão colombiano16. Em extenso julgamento realizado em 09.10.05, a Corte decidiu pela constitucionalidade da lei em questão no julgamento da Sentencia C-1040-05, sob o fundamento principal de que, em sede de reforma constitucional, cabe a Corte apenas a verificação de vícios procedimentais, não sendo de sua competência a avaliação da conveniência das decisões políticas. A la Corte le está vedado controlar las reformas constitucionales por su contenido material, es decir, que no puede ejercer un control de fondo para juzgar si la reforma es contraria al contenido de la Constitución. En la Carta de 1991 no existen cláusulas pétreas, normas intangibles o principios inmodificables. Todas las normas de la Constitución tienen la misma jerarquía y no es posible juzgar si una norma de la Constitución viola otra norma de la misma Constitución considerada superior, sin perjuicio de que unas normas constitucionales sean más importantes que otras, lo cual es un asunto diferente. Tampoco existen en Colombia normas supraconstitucionales que sirvan de parámetro para juzgar la validez del contenido de una reforma constitucional17.

Todavia, a Corte ainda teria que se manifestar acerca do juicio de sustitución de la Constitución, criação jurisprudencial formulada na histórica Sentencia C-551-2003. Este “juízo” assenta-se na distinção terminológica entre “reformar” e “substituir” a Constituição, sendo que, segundo esta teoria, o Poder Legislativo detém competência apenas para “reformar” a Constituição, o que não significa ter competência para substituí-la, operação muito mais profunda que altera o núcleo da Carta. Neste segundo caso, somente uma Assembleia Constituinte, democraticamente eleita, poderia realizá-la, vez que é dotada do Poder Constituinte Originário18. Sobre este ponto respondeu a Corte negativamente, asseverando que não havia ocorrido tal modificação estrutural, sendo que cabia aos poderes políticos avaliar a oportunidade e conveniênica da reeleição. Neste sentido: Permitir la reelección presidencial -por una sola vez y acompañada de una ley estatutaria para garantizar los derechos de la oposición y la equidad en la campaña presidencial- es una reforma que no sustituye la Constitución de 1991 por una opuesta o integralmente diferente. Los elementos esenciales que definen el Estado social y democrático de derecho fundado en la dignidad humana no fueron sustituidos por la reforma. El pueblo decidirá soberanamente a quién elige como Presidente, las instituciones de vigilancia y control conservan la plenitud de sus atribuciones, el sistema de frenos y contrapesos continua operando, la independencia de los órganos constitucionales sigue siendo garantizada, no se atribuyen nuevos poderes al Ejecutivo, la reforma prevé reglas para disminuir la desigualdad en la contienda electoral que será administrada por órganos que continúan siendo autónomos, y los actos que se adopten siguen sometidos al control judicial para garantizar el respeto al Estado Social de Derecho. No es suficiente una mera reminiscencia histórica, para señalar que el constituyente primario habría tenido como 16ARTICULO

241º—A la Corte Constitucional se le confía la guarda de la integridad y supremacía de la Constitución, en los estrictos y precisos términos de este artículo. Con tal fin, cumplirá las siguientes funciones: 1. Decidir sobre las demandas de inconstitucionalidad que promuevan los ciudadanos contra los actos reformatorios de la Constitución, cualquiera que sea su origen, sólo por vicios de procedimiento en su formación. 17COLOMBIA. Tribunal Constitucional. Sentencia C-1040/05. Bogotá, 19 de outubro de 2005. 18Nos termos da própria Corte emanados na Sentencia C-1040-05: “El fenómeno jurídico de la sustitución de la Constitución se presenta cuando un elemento definitorio de la esencia de la Constitución de 1991, en lugar de ser modificado, es reemplazado por uno opuesto o integralmente diferente. Así, después de la sustitución de la Carta, como es imposible reconocerla en su identidad básica, no cabe afirmar que la Constitución reformada sigue siendo la Carta de 1991. Al Congreso de la República le está vedado sustituir la Constitución, en forma total o parcial, permanente o transitória”. Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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propósito limitar el poder del Presidente de la República y que por consiguiente no es de recibo una reforma que vaya en contravía con ese objetivo. (...) Hay quienes pueden considerar que no existe en el país la suficiente madurez política para asumir un esquema de reelección inmediata, o que la reforma puede conducir a escenarios de confrontación violenta o inestabilidad institucional, o que el Presidente, se vería acrecentado por efecto de la posibilidad de reelección y podría ser utilizado para el propósito reeleccionista. Pero tales consideraciones, en cuanto no sean expresión de una objetiva sustitución o destrucción del diseño institucional, pertenecen al ámbito de la valoración política, de los análisis sobre oportunidad y conveniencia y no pueden ser objeto de decisión por el juez constitucional. (g.n)19

Ao lado destas considerações sobre os limites do controle de constitucionalidade da lei, ainda foram apresentadas diversas outras alegações, todas elas rechaçadas pela Corte, tais como: vícios de procedimentos nos trabalhos legislativos, violações ao direito das minorias parlamentares e quebra da isonomia no pleito. Não se pode dizer que a referida decisão gozou de consenso no ambiente acadêmico20, todavia, estabeleceu um marco jurídico fundamental na jurisprudência da Corte Constitucional, cuja consistência seria posta à prova anos depois com as novas reformas patrocinadas pelo mesmo governo Uribe em 2010. 2.3. O referendo popular e o polêmico terceiro mandato Após a reforma constitucional realizada pelo Acto Legislativo 2 de 2004 e a sua declaração de constitucionalidade pela Corte colombiana, o então presidente Álvaro Uribe concorreu à reeleição e sagrouse vitorioso para o quatriênio 2006-2010. De acordo com as normas em vigor, seu mandato encerrar-se-ia, necessariamente, em 2010, sem qualquer possibilidade de um novo mandato. Todavia, almejando concorrer novamente para o cargo, o então Presidente se viu forçado a modificar mais uma vez o art. 197 da Constituição, além de encontrar uma justificativa forte e legítima o suficiente para que a sociedade e as forças políticas aprovassem o temerário terceiro mandato. Por este motivo, optou-se por fazer um referendo nacional, dada a sua conhecida natureza democrática que lhe é intrínseca, onde o povo colombiano seria conclamado a se manifestar e conferir maior legitimidade à mudança. De acordo com a Constituição colombiana e a Ley 134-94, dito referendo possui 4 (quatro) fases distintas e consecutivas: I) iniciativa de lei popular para realização do referendo; II) aprovação desta lei por cada uma das Casas do Congresso; III) controle automático da lei convocatório pela Corte Constitucional21 e IV) consulta popular sobre a norma jurídica objeto do referendo. No caso em questão, foi elaborada uma lei popular e colhidas as assinaturas necessárias para seu encaminhamento a Câmara de Representantes e ao Senado, onde foi aprovada e convertida na Ley 135409. De acordo com seus termos, os eleitores se manifestariam contra, a favor ou votariam em branco em 19COLOMBIA.

Tribunal Constitucional. Sentencia C-1040/05. Bogotá, 19 de outubro de 2005. uma visão crítica acerca da Sentencia C-1040/05, ver QUINCHE RAMIREZ, Manuel Fernando. op. cit., p . 525-530. 21As características de tais controles foram enunciadas pela própria Corte na Sentencia C-141-10 El control de constitucionalidad que ejerce la Corte Constitucional sobre la ley mediante la cual se convoca un referendo constitucional se caracteriza por ser previo al pronunciamiento popular; concentrado, por estar exclusivamente a cargo de la Corte Constitucional; judicial, por la naturaleza del órgano que lo lleva a cabo; automático, ya que opera por mandato imperativo de la Carta Política; integral, pues corresponde a la Corte verificar todos los eventuales vicios en el procedimiento legislativo; específico, por cuanto la Corte sólo puede examinar los vicios de procedimiento de la ley, ya que no le corresponde estudiar su contenido material; participativo, pues se faculta a los ciudadanos a coadyuvar o impugnar la constitucionalidad; definitivo, porque el texto sometido a control no podrá volver a ser objeto de pronunciamiento por parte del Tribunal Constitucional; y delimitado por la propia Constitución en los artículos 379 y 241 ord. 2º. (g.n.). COLOMBIA. Tribunal Constitucional. Sentencia C-1040/05. Bogotá, 19 de outubro de 2005. 20Para

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relação à seguinte modificação constitucional: ARTÍCULO 1o. El inciso 1o del artículo 197 de la Constitución Política quedará así: “Quien haya sido elegido a la Presidencia de la República por dos períodos constitucionales, podrá ser elegido únicamente para otro período”. De se observar que o texto normativo não alterava a regra geral insculpida no caput do art. 197 onde se prevê a possibilidade do exercício de apenas dois mandatos por uma pessoa. Inobstante esta aparente contradição, o propósito claro da lei era permitir o terceiro mandato do atual Presidente, o que levantou sérias dúvidas quanto aos riscos que tal fato poderia trazer a democracia colombiana, associado às polêmicas envolvendo procedimentos obscuros e alegações de favorecimentos a parlamentares para aprovação do referendo. Foi neste ambiente de conturbação política e dúvidas jurídicas que a Corte máxima se viu compelida a se pronunciar por imperativo constitucional, o que o fez por meio da Sentencia C-141-10 onde julgou inconstitucional a Ley 1354-09. Na avaliação da Corte, foram numerosos os vícios encontrados no trâmite da lei, desde a sua iniciativa popular até a aprovação congressual. Primeiramente a Corte ponderou que havia vício no procedimento da iniciativa legislativa popular. As irregularidades foram suscitadas, em parte, por meio de uma investigação administrativa realizada pelo Consejo Nacional Electoral, que detectou um financiamento muito acima do permissivo legal para os atos necessários para a campanha e colheita de assinaturas da lei. A Corte foi enfática ao asseverar que o financiamento abusivo da campanha não gera apenas uma mera irregularidade de valores despendidos. Independente da origem lícita ou ilícita de tais recursos, o certo é que o fator econômico, por si só, pode viciar a manifestação de vontade popular, pois inibe o pluralismo. Há um elo indissociável entre o elemento econômico e o pluralismo político, na medida em que os demais setores da sociedade não possuem igual patamar econômico para difundirem sua opinião, ocorrendo grave violação da igualdade e retração das correntes políticas divergentes. Em adição ao superfinancimento da campanha, o Consejo Nacional Electoral ainda encontrou diversas falhas em sua transparência contábil, o que culminou na ausência de certificação de regularidade dos procedimentos, conforme exigência do art. 27 da Ley 134-9422. Conforme restou assentado, apenas estes motivos, por si só, seriam suficientes para a declaração de inconstitucionalidade da Ley 1354-09, porém, as demais alegações ainda deveriam ser debatidas. O segundo ponto focou a alteração indevida do texto normativo e a violação do princípio da igualdade. Isto porque a redação original do projeto de lei de iniciativa popular estava assim redigido: “Quien haya ejercido la Presidencia de la República por dos períodos constitucionales, podrá ser elegido únicamente para otro período.” Dito texto foi modificado pelo Senado que substituiu a expressão “haya ejercido” por “haya sido elegido”, sendo tal redação aprovada em definitivo. Tal alteração, sob a ótica da Corte, modificou substancialmente o conteúdo normativo, pois deixou de significar uma faculdade aberta a todo e qualquer governante que tenha exercido dois mandatos em qualquer período histórico (expressão “haya ejercido”), passando a restringir tal faculdade apenas àquele que fora eleito por duas vezes consecutivas (expressão “haya sido elegido”). Tal fato tem dimensão ímpar na história republicana colombiana, pois raros são aqueles que ocuparam o cargo máximo por duas vezes, sendo que o único a fazê-lo de forma consecutiva foi o próprio Álvaro Uribe. 22Artículo

27. Certificación. La organización electoral certificará, para todos los efectos legales, el cumplimiento de los requisitos exigidos para la realización de los mecanismos de participación ciudadana. Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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Sendo assim, decidiu a Corte que a modificação realizada pelo Senado foi inconstitucional, pois desviou a vontade popular expressa no texto original da lei, assim como violou o princípio da igualdade na medida em que estabeleceu uma previsão normativa de caráter personalíssima, vez que apenas seria aplicável a uma pessoa determinada, afastando-se da exigência de universalidade e generalidade das leis. O terceiro vício analisado pela Corte dizia respeito a alegada nulidade do Decreto 4742 de dezembro de 2008, que convocava, extraordinariamente, os parlamentares para votação na plenária da Câmara de Representantes. O Tribunal acolheu a arguição de inconstitucionalidade e anulou tal decreto, posto que não havia respeitado a publicidade prévia exigida constitucionalmente, tendo sido publicado após a realização da sessão. A quarta alegação de inconstitucionalidade, de importância e relevo ímpar na história colombiana, foi a da nulidade dos votos de cinco parlamentares da Câmara de Representantes. De acordo com o art. 108 da Constituição colombiana, é facultado aos partidos políticos a elaboração de estatutos que prevejam seus regimes de bancada e disciplina partidária, permitindo a aplicação de sanções aos infratores, inclusive, com a suspensão de direito ao voto e a expulsão. Busca-se, neste caso, um sistema político que, ao menos em tese, privilegia as decisões coletivas dos partidos por meio do regime de bancadas, onde se exige a fidelidade de seus membros às diretrizes estabelecidas por cada um dos partidos. Tal característica, todavia, não significa um modelo estanque e radical, vez que é facultada a troca de partidos e o voto contrário às diretrizes em razão da escusa de consciência. Durante o trâmite legislativo da Ley 1354-09, cinco Representantes do Partido Cambio Radical manifestaram-se favoravelmente ao terceiro mandato, inobstante a diretriz contrária de sua bancada. Em consequencia, ditos Representantes foram chamados para responder internamente perante o Consejo de Control Etico de seu partido, onde restou decidido que tais parlamentares teriam o direito de voto suspenso. Ato contínuo, foi comunicado à Mesa Diretiva da Câmara de Representantes que os cinco parlamentares não poderiam votar a supracitada lei. Em sua defesa, os parlamentares alegaram que, em data anterior aos fatos, haviam se desfiliado do partido, integrando agora o Partido de la U da base governista. Inobstante os reclamos do Partido Cambio Radical, os sobreditos parlamentares acabaram por ter seus votos contabilizados no Parlamento, sendo decisivos para a aprovação da lei em tela. A Corte Constitucional, em análise detalhada sobre os elementos colacionados nos autos23, decidiu que a conduta dos parlamentares, antes de significar um exercício constitucional de livre filiação partidária respaldado na Constituição e normas legais24, demonstrava uma clara manobra política, com o intuito deliberado de transgressão partidária para formação de maioria conjuntural, o que não é respaldado pela Lei Maior. Neste sentido: Analizada en su conjunto la anterior actuación queda evidenciada claramente la trasgresión del artículo 108 constitucional, supuestamente amparada por la permisión temporalmente establecida en el Acto legislativo 01 de 2009 de cambiar de partido. No obstante, en este caso, el transfuguismo fue un cambio consciente y deliberado de partido con fines claramente coyunturales, específicamente para conformar las mayorías en una votación particular durante el trámite de la Ley 1354 de 2009, el cual supuso el

23Em

especial, refere-se a existência de processos disciplinares do Partido Cambio Radical em que os parlamentares sequer responderam ou manifestaram escusa de consciência. Tais procedimentos iniciaram-se anteriormente à troca de partidos, o que indica uma forte evidência de que os parlamentares visavam se imiscuir das sanções internas. Além do mais, várias alegações de favorecimento e corrupção foram feitas, sendo afastadas pela Corte vez que ainda estavam sub judice, e deste fato nada se podia extrair. 24Acto Legislativo 01 de 2009. Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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quebrantamiento de la disciplina de bancada, la vulneración el artículo 108 constitucional y una maniobra deliberada para escapar del poder disciplinario de su bancada original.

Em consequência, a Corte considerou inválidos os votos conferidos pelos cinco parlamentares e que não poderiam ser contabilizados na votação da Ley 1354-09. Tal fato, por si só, não geraria qualquer efeito jurídico mais gravoso, não fosse a peculiaridade de que os cinco votos foram determinantes para a aprovação da lei. A Câmara de Representantes possui 166 membros, sendo que o quorum de maioria simples é de 84. No caso da Ley 1354-09, sua aprovação ocorreu com 85 votos favoráveis, incluindo os dos parlamentares impugnados. Deste modo, a invalidade de tais votos gerou, necessariamente, a não aprovação do diploma legislativo dada a ausência de maioria simples. Sendo assim, a lei foi considerada inconstitucional por não atingir o quorum necessário, em razão de anulação de votos dos parlamentares infiéis. Por fim, cumpre destacar a polêmica criação jurisprudencial do juicio de sustitución de la Constitución. No caso do Acto Legislativo 2 de 2004 que instituía a reeleição, a Corte ponderou que não havia a “substituição” da Carta Magna, já que suas estruturas permaneciam intactas. Todavia, em relação a Ley 1354-09, a mesma Corte decidiu que a reforma desejada substituiria a Constituição, na medida em que alterava os fundamentos basilares da democracia e da separação dos poderes instituída em 1991, provocando aguda concentração de forças nas mãos de uma só pessoa - o Presidente da República -, e inibindo a regular manifestação das minorias e da oposição. Esta matéria não foi alvo de consenso entre os Magistrados. De acordo com os votos vencidos, a criação teórica do juicio de sustitución fundamenta-se em uma distinção artificial criada pela Corte e que promove, por via transversa, o controle de constitucionalidade material das leis que não é previsto constitucionalmente. Na opinião do Magistrado Humberto Antonio Sierra Porto, o art. 241.2 confere competência à Corte para análise exclusiva dos vícios de procedimento da lei convocatória do referendo. Desta forma, na medida em que a própria Constituição não prevê o controle substancial de tais leis, não cabe à Corte fazê-lo sob um juízo sem fundamento normativo, e que pressupõe a criação de parâmetros subjetivos dos “elementos estruturais da Constituição”. Tais “elementos”, antes de mais nada, referem-se a limites materiais de reforma que não encontram guarida no Texto Maior colombiano, onde não se encontra qualquer menção a “cláusulas pétreas” ou “normas imodificáveis” como ocorrem em outros países25. Deste modo, pode-se dizer que o Poder Constituinte Originário claramente optou por uma Constituição de cunho procedimental, instituindo meios democráticos para se alterar a Carta sem, contudo, estabelecer limites materiais a tais modificações.

25Conforme

o voto do Magistrado: Si bien se afirma que la Constitución de 1991 no establece ninguna cláusula pétrea o inmodificable, las decisiones que defienden las tesis de la sustitución de la constitución parten de la existencia de unos elementos estructurales que no pueden ser modificados sustancialmente, lo que convierte precisamente a tales elementos estructurales en una cláusula pétrea operante como límite material al poder de reforma, además anunciarse que el control de la sustitución de la Constitución no reviste las mismas características de un control material, pero por la manera como se adelante este peculiar juicio de constitucionalidad, los supuestos elementos estructurales terminan por convertirse en parámetro para enjuiciar la constitucionalidad de la reforma, por lo que la figura de los vicios de sustitución de la Constitución implica un control del contenido de las reformas constitucionales y no se entiende como se pueda ejercer un control de esta naturaleza sin la existencia de límites materiales al poder de reforma. COLOMBIA. Tribunal Constitucional. Sentencia C141/10. Bogotá, 26 de fevereiro de 2010. Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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Sob um viés positivista, o Magistrado Nilson Pinilla Pinilla sustentou que o art. 241, caput estabelece cláusula restritiva de controle de constitucionalidade, cuja ampliação pela Corte é vedada26. Em conclusão, ambos aludem ao temerário uso do juicio de sustitución, na medida em que ele cria uma faculdade amplíssima aos Magistrados de julgar a constitucionalidade das leis democraticamente aprovadas, com base em critérios subjetivos e ocasionais. Tal atitude conduz ao decisionismo judicial, entre nós mais referido como ativismo judicial27. Neste ponto, cabe destacar novamente um trecho do voto vencido do Magistrado Humberto Antonio Sierra Porto: Por otra parte resulta cuando menos ingenuo suponer que enunciar las distintas etapas del juicio de sustitución lo despoja de subjetivismo, cuando precisamente toda la descripción del juicio de sustitución es la máxima expresión del subjetivismo judicial. En efecto, es el juez constitucional quien identifica los elementos esenciales, los particulariza y demuestra su naturaleza esencial y definitoria en el texto constitucional, al suscrito Magistrado se le escapan los elementos objetivos comprendidos en esta operación, la cual depende por completo de la voluntad del intérprete y es un típico ejercicio del criticado decisionismo judicial28.

Sendo assim, verifica-se que não houve consenso quanto a aplicação do juicio de sustitución, tampouco quanto a seu critérios definidores de aferição dos “elementos estruturais da Constituição”, assim como seu uso eleva exponencialmente os poderes da Corte de forma questionável. Inobstante este aspecto controverso, a Ley 1354-09 foi julgada inconstitucional em sua totalidade e, por consequência, o então Presidente Álvaro Uribe não pode concorrer ao terceiro mandato, sendo eleito como sucessor sua Excelência Juan Manuel Santos, que fora Ministro da Defesa durante o governo Uribe. 3. A Corte Constitucional e a limitação do mandato presidencial Após os estudos realizados, podemos concluir que a Constituição colombiana de 1991 apresenta um grande compromisso com o ideal democrático, sustentado, principalmente, na separação e alternância do poder, aliado à consagração de direitos e garantias fundamentais e formas concretas de assegurá-los judicialmente. Neste sentido, a Carta possui mecanismos múltiplos e abertos de controle de constitucionalidade, significando, sob um aspecto, um grande avanço no acesso e debate das questões constitucionais, fazendoo de forma ampla e transparente. Por outro lado, tais mecanismos causam grandioso acúmulo de ações perante a Corte, derivado da amplíssima legitimação conferida a qualquer cidadão para suscitá-las por meio de inúmeras ações processuais. Muito embora estes amplos mecanismos possam ser questionados sob a ótica de sua eficiência e celeridade, o fato é que os dois diplomas legislativos que visavam alterar o mandato presidencial foram

26(...)

En efecto, la mencionada preceptiva comienza por establecer que “A la Corte Constitucional se le confía la guarda de la integridad y supremacía de la Constitución, en los estrictos y precisos términos de este artículo”. Luego, el numeral 2° de la misma norma, que fija como una de tales competencias la de decidir, previamente al pronunciamiento popular, sobre la constitucionalidad de la convocatoria a un referendo para reformar la Constitución, advierte en su parte final que dicha atribución se refiere sólo a lo relacionado con “vicios de procedimiento en su formación” (no está en cursiva ni en negrilla en el texto original). COLOMBIA. Tribunal Constitucional. Sentencia C-141/10. Bogotá, 26 de fevereiro de 2010. 27Sobre o ativismo judicial, verificar o fecundo estudo realizado por CAGGIANO, Monica Herman Salem. A emergência do Poder Judiciário como contraponto ao bloco monocolor Legislativo/Executivo. In: MORAES, Alexandre (Coord.). Os 20 anos da Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Atlas, 2009. Sobre o mesmo tema, assumindo uma crítica contrária ao ativismo, ver RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. 28COLOMBIA. Tribunal Constitucional. Sentencia C-141/10. Bogotá, 26 de fevereiro de 2010. Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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analisados pela Corte por estes mecanismos peculiares (não adotados em vários países), seja por via do controle automático (Sentencia C-141-10) ou pela famigerada legitimação cidadã (Sentencia C-1040-05). Não se sabe, a rigor, se estes diplomas normativos teriam sido questionados por outros meios, caso os controles supramencionados não existissem. Todavia, é importante olhar com atenção tal fato para que seja feita um justo balanceamento entre as consequencias positivas e negativas de um instituto jurídico e não julgá-lo apaixonadamente a partir de visões unilaterais. No que tange aos limites de reforma constitucional, a Carta colombiana adota uma postura procedimental pouco encontrada nas Constituições dos países da América Latina, na medida em que sustenta a supremacia do Poder Legislativo para alterar as normas constitucionais, sem quaisquer limites previstos em cláusulas imodificáveis (pétreas), tampouco permitindo que o Judiciário interfira nas decisões políticas dos Parlamentares, cabendo a Corte Constitucional apenas a aferição de vícios nos procedimentos legislativos29. Neste ínterim, a criação jurisprudencial do juicio de sustitución pela Corte Constitucional não encontra respaldo no texto constitucional colombiano, como também não nos parece adequado ao espírito da Carta que possui clara orientação procedimental. Embora alguns advoguem em contrário, o juicio de sustitución, atua como um verdadeiro meio de controle material das leis. Concordamos com as ponderações apresentadas pelos Magistrados Humberto Antonio Sierra Porto e Nilson Pinilla Pinilla, na medida em que o considera como um mecanismo artificial e enviesado de controle material de constitucionalidade, padecendo de inúmeras críticas quanto ao seu caráter discricionário e subjetivista. Um aspecto importante que deve ser ressaltado, mas é pouco claro à primeira vista, é que tanto os argumentos especulativos dos Magistrados no juicio de sustitución quanto a votação dos Parlamentares se apresentaram em “sintonia” quanto a adoção da reeleição e a rejeição ao terceiro mandato. No primeiro caso, houve uma votação majoritária do Congresso Nacional para adotar a reeleição, o que culminou na aprovação do Acto Legislativo 02 de 2004. A Corte, por seu turno, julgou que não havia qualquer “substituição da Constituição”, visto que restavam intactas as instituições democráticas, em especial, a separação dos poderes e o pluralismo político. Em contrapartida, no caso do terceiro mandato, não se verificou a mesma posição favorável do Poder Legislativo, como demonstra a apertada votação da Ley 1354-09 e a duvidosa troca de partidos por cinco Representantes, que culminou em sérias alegações de favorecimentos ilícitos. Anulando-se o voto destes cinco parlamentares, conforme determina a legislação, o diploma não alcançou a maioria. A Corte, por sua vez, em extenso estudo teórico acerca das razões históricas, políticas e jurídicas dos limites ao mandato presidencial, concluiu que a reforma desejada abalava a Carta, não sendo adequada às aspirações democráticas ali instituídas. Sendo assim, não se pode minimizar o fato de que no seio do próprio Poder Legislativo não houve apoio incondicional às medidas propostas, o que culminou na rejeição dos parlamentares ao terceiro mandato. Embora tenha sido necessário o julgamento do Poder Judiciário para legitimar definitivamente tal rejeição, o fato é que a decisão da Corte não se encontra em total dissonância da vontade parlamentar, inclusive, diversos aspectos tratados nos julgamentos foram reminiscências dos debates parlamentares, notando-se uma forte interação entre os Poderes (ao menos em nível argumentativo), o que não torna a Corte um órgão ilhado e arbitrário. 29Esta

visão procedimentalista, inclusive, não adota, rigorosamente, a clássica concepção entre Poder Constituinte Originário (PCO) e Poder Constituinte Derivado (PCD), posto que o Poder Legislativo contemporâneo seria condicionado e limitado (PCD), porém, estando ausente os limites materiais de reforma, deixa de sê-lo. Sobre o poder constituinte, ver a obra clássica: FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O Poder Constituinte. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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Deste modo, concluímos que o sistema plural e aberto de controle de constitucionalidade foi salutar em dois momentos críticos da vida política colombiana, sendo que as forças representativas, sem nenhum desmerecimento, também atuaram de forma a reprimir o prolongamento temerário do mandato presidencial, o que poderia colocar em sérios riscos a tradição republicana de alternância do poder. O juicio de sustitución, por seu turno, deve ser visto com cautela e apreensão, na medida em que pode atuar favoravelmente como um limite a atividade legislativa desenfreada, mas que, no fundo, não encontra respaldo na Carta Constitucional e envereda o Magistrado por vias subjetivas e discricionárias, cuja cautela e sensatez são as únicas fronteiras ao julgamento. Ao Poder Executivo, cabe a lição histórica de que, independente dos projetos que estão em pauta em benefício da Nação, o exercício da democracia exige uma gestão plural do Estado e não a predominância de uma mente, por mais virtuosa que ela possa ser.

Referências BOTERO BERNAL, Andréso (Coord.). Origen del constitucionalismo colombiano. Ponencias del III Seminario Internacional de teoria general del derecho. Medelín: Universidad de Medellín, 2006. (Colección Memorias Juridicas n. 1). CAGGIANO, Monica Herman Salem. A emergência do Poder Judiciário como contraponto ao bloco monocolor Legislativo/Executivo. In: MORAES, Alexandre (Coord.). Os 20 anos da Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Atlas, 2009. COLOMBIA. Tribunal Constitucional. Sentencia C-141/10. Bogotá, 26 de fevereiro de 2010. ______. Tribunal Constitucional. Sentencia C-1040/05. Bogotá, 19 de outubro de 2005. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O Poder Constituinte. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. GARCÍA-HERREROS, Orlando. Apuntes de derecho constitucional colombiano. 2. ed. Bogotá: Universidad Sergio Arboleda, 2008. GOMÉZ SERRANO, Laureano. El control constitucional em Colombia: evolución histórica. Bucaramanga: Ed. UNAB, 2001. LEMBO, Claudio; CAGGIANO, Monica Herman Salem. O voto nas Américas. Barueri, SP: Minha Ed.: 2008. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2009. QUINCHE RAMIREZ, Manuel Fernando. Derecho constitucional colombiano de la Carta de 1991 y sus reformas. 3. ed. Bogotá: Editorial Universidad del Rosario, 2009. RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. ______. Controle de constitucionalidade no Brasil: perspectivas de evolução. São Paulo: Saraiva, 2010.

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VIII. REFORMA POLÍTICA NO PERU Tatiana Penharrubia Fagundes∗ Introdução A alternância de períodos democráticos - regidos por Constituições - com períodos autoritários decorrentes de golpe de estado que derrubaram a Lei Maior e instalaram o regime ditatorial - apresenta-se como um ponto comum entre os países que integram a América Latina. A forma como cada Estado enfrentou suas crises foi determinante para a instauração de regimes democrático-constitucionais sólidos – como ocorreu com o Brasil, Argentina e Uruguai – ou regimes em que a democracia e o sistema constitucional ainda estão se consolidando. É nesta segunda situação que se encontra o Peru, o que fez Enrique Bernales Ballesteros afirmar que “esta inestabilidad fue determinante para la fragilidad del sistema político y concomitante en la del régimen constitucional”.1 No mesmo sentido, Domingo García Belaunde e Francisco Eguiguren Praeli afirmam que “en el Perú, las instituciones democráticas y el régimen constitucional han tenido, y aún tienen, una vigencia más formal que real, no obstante estar recogidas en los textos constitucionales y en los discursos políticos”.2 Para que possamos tratar do tema “A Reforma Política no Peru” é necessário, inicialmente, analisarmos quais as consequências que estas constantes lutas pelo poder causaram ao regime democrático peruano que, não obstante, vem se firmando desde a queda do Presidente Alberto Fujimori, no ano 2000. 1. O cenário político peruano: a constante alternância entre o regime democrático-constitucional e o regime autoritário A história peruana registra diversos momentos de instabilidade e de substituição dos governos democráticos por ditaduras que, por sua vez, quando enfraquecidas, propiciam o restabelecimento do modelo constitucional e da democracia. Foi esta a realidade ocorrida entre os anos de 1930 e 1968. Os governantes democráticos de então não conseguiram chegar ao fim de seus mandatos e acabaram sendo derrubados pelos militares. O principal motivo que levou aos golpes decorreu do fato de o governo não possuir a maioria parlamentar, o que, à evidência, levou a diversas crises políticas entre o Executivo e o Legislativo3, impedindo o primeiro de



Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde também foi Professora de Teoria do Estado e da Constituição e de Direito Constitucional. Doutoranda em Direito do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Assessora de Secretaria I do Tribunal de Contas do Município de São Paulo.

1BERNALES

BALLESTEROS, Enrique. Una Constitución estabel para institucionalizar el Perú. Revista Peruana de Derecho Público, Lima, año 2, n. 3, p. 30, jul./dic. 2001. 2GARCÍA BELAUNDE, Domingo; EGUIGUREN PRAELI, Francisco José. La evolución político-constitucional del Perú 1976-2005. Estudios Constitucionales, Santiago, v. 6, n. 2, p. 371-398, 2008. Disponível em: . Acesso em: 20 dez. 2009. 3Esta situação – modelo constitucional rompido pelo golpe – pode ser ilustrada pelo governo de Fernando Belaunde, que deveria encerrar-se em julho de 1969, mas que foi antecipado pelo golpe de estado de 3 de outubro de 1968, encabeçado pelo General Juan Velasco Alvarado. Segundo Domingo García Belaunde e Francisco José Eguiguren Praeli “muchas de las propuestas reformistas del gobierno de Belaunde (Alianza Acción Popular-Democracia Cristiana) fueron bloqueadas en el Congreso dominado por la coalición conservadora formada por el partido del general Odría (ex Presidente 1948-50 de facto y 1950-56 em dudosas elecciones) y el APRA. El Parlamento interpeló y censuró reiteradamente a los ministros, creando um clima de inestabilidad política que deterioró severamente al régimen. Ello favoreció el golpe militar del general Velasco”. GARCÍA BELAUNDE, Domingo; EGUIGUREN PRAELI, Francisco José. op. cit., p. 372. Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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governar. Tal cenário resultou na ingovernabilidade e propiciou a ruptura do modelo constitucional com a conseqüente tomada do poder por meio do golpe de estado. Entre os anos de 1968 e 1980, o país passou a ser regido pelo regime ditatorial4 caracterizado pela concentração do poder e pela perseguição aos partidos políticos “tradicionais”. Não obstante, a queda desse governo militar deveu-se à instalação da crise econômica e da inflação no país, situação que mobilizou as massas e levou, no ano de 1977, à ocorrência de protestos nacionais, que enfraqueceram os militares, acelerando sua saída5. A queda do regime militar levou à promulgação da Constituição de 1979 e, em 1980, os novos governantes foram eleitos pelo povo. Entre os anos de 1980 e 1992, o Peru teve três Presidentes consecutivos eleitos pelo povo Fernando Belaunde Terry (1980-1985), Alan García Perez (1985-1990) e Alberto Fujimori6 (1990-1995) – o que fazia crer que se iniciava no país um período de estabilidade política e de fortalecimento da democracia. O governo de Fujimori não contava, no entanto, com o apoio da maioria no Congresso, fazendo renascer o temor da crise de governabilidade, que poderia novamente resultar na ruptura do modelo constitucional. E isto de fato ocorreu. Entretanto, diferentemente do que aconteceu nos anos de 1930 a 1968, em que os Presidentes não conseguiram completar seus mandatos, o Presidente Fujimori, então eleito pelo povo, deu um autogolpe em 5 de abril de 1992, instaurando um governo autoritário, que contou com a maciça colaboração das Forças Armadas e com o apoio das elites políticas e econômicas. Ocorre que a pressão externa por parte dos Estados Unidos da América e da União Europeia, bem como de organismos internacionais - como a Organização dos Estados Americanos (OEA) –, que condenaram o golpe, fez com que Fujimori tivesse que restabelecer a ordem institucional. Tal se deu com a convocação do Congresso Constituinte7 que, após ser eleito pelo povo, deveria elaborar uma nova Constituição. É promulgada, então, a Constituição de 19938, que 4Dentre

as medidas impostas encontram-se a realização da reforma agrária, a estatização dos jornais de circulação nacional, o controle da televisão (em afronta à liberdade de expressão e de informação), a intervenção do Estado na atividade econômica e empresarial. Para maiores detalhes consultar: GARCÍA BELAUNDE, Domingo; EGUIGUREN PRAELI, Francisco José. op. cit., p. 372-373. 5Domingo García Belaunde e Francisco José Eguiguren Praeli ensinam que a retirada do governo militar não foi imediata. A ele competiu realizar a transferência do poder para a democracia. Consoante os autores, “el gobierno militar manifestó que no se retiraria inmediatamente, pero sí puso fecha a su salida, difundiendo um cronograma de ‘transferencia del poder’ que concluiría com la elección democrática de um gobierno em 1980, que asumiría sus funciones el 28 de julio de esse año. Previamente, se convocaria a una Asamblea Constituyente, encargada exclusivamente de elaborar uma nueva Constitución, que debería, según la propuesta gubernamental, ‘constitucionalizar e institucionalizar las reformas estructurales realizadas por el Gobierno Revolucionario de la Fuerza Armada”. GARCÍA BELAUNDE, Domingo; EGUIGUREN PRAELI, Francisco José. op. cit., p. 373. 6Alberto Fujimori chegou ao poder por meio de eleições diretas ocorridas no ano de 1990. Ele concorreu com Mario Vargas Llosa, que venceu o primeiro turno, mas com uma votação bem menor do que a esperada. No segundo turno, Alberto Fujimori obteve 57% dos votos e sagrou-se vencedor. Foi a primeira vez que se utilizou o instituto do segundo turno em uma eleição presidencial no Peru desde sua previsão na Constituição de 1979. 7Sobre o tema proferem Domingo García Belaunde e Franciso José Eguiguren Praeli: “Sin embargo, rápidamente el régimen dictatorial de Fujimori se vio forzado, principalmente por presión de la comunidad internacional (OEA), a emprender el retorno a la normalidad institucional. La salida política fue anunciar la convocatória al ‘Congreso Constituyente Democrático’, elegido por votación popular, que elaboraria una nueva Constitución y cumpliría funciones legislativas, para completar el período del parlamento que había sido arbitrariamente disuelto. Dichas elecciones carecieron de transparencia y equidad, por lo que algunos partidos democráticos decidieron abstenerse de participar. El respaldo popular que ostentaba para entonces Fujimori y el descrédito de los partidos, determinaron que el fujimorismo ganara ampliamente las elecciones y gozara de uma cómoda mayoría parlamentaria”. GARCÍA BELAUNDE, Domingo; EGUIGUREN PRAELI, Francisco José. op. cit., p. 383. 8Consoante assinala Mercedes García Montero, “La nueva Constitución fue el instrumento mediante el cual Fujimori intentó recuperar la institucionalidad que él mismo había violado trás el autogolpe. Fue aprobada por el Congreso Constituyente Democrático en el que Fujimori consiguió la mayoría com ayuda de um nuevo movimiento afín al Gobierno Nueva Mayoría, que proclamaba nuevos perfiles de líderes exentos de ambición política, que se autorreconocían como auténticos defensores y promotores del pueblo, y posteriormente ratificada popularmente por un estrecho margem em um referéndum celebrado el 31 de octubre de 1993 cuya limpieza fue puesta em duda”. GARCÍA MONTERO, Mercedes. La década de Fujimori: ascenso, mantenimiento y caída de um líder antipolítico. América Latina Hoy, Salamanca, n. 28, p. 70-71, ago. 2001. Disponível em: . Acesso em: 02 mar. 2011. Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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foi ratificada por referendo popular de 31 de outubro do mesmo ano. Esta Constituição apenas formalmente consagrava a democracia, pois, na prática, suas normas continuavam sendo autoritárias e existiam para atender aos interesses do Presidente Fujimori, que ainda governava e que foi reeleito em 1995. Foi somente a partir das eleições do ano 2000 que Fujimori começou a perder seu poder. Ele foi eleito para o seu terceiro mandato, mas os resultados da eleição foram contestados pela oposição, gerando uma grande crise política9, que necessitou ser intermediada por uma missão internacional da OEA. Sua derrota final deveu-se a outro escândalo: um de seus aliados foi flagrado em um vídeo10 entregando dinheiro a um parlamentar da oposição, para que este passasse ao partido do governo. Tal prática, na verdade, já vinha acontecendo e foi graças a ela que o partido de Fujimori conseguiu a maioria parlamentar, com a mudança de partido de vários congressistas da oposição mediante pagamento em dinheiro. A consequência do conhecimento público de tais atos de corrupção foi imediata: Fujimori anunciou que reduziria seu mandato presidencial para um ano, sendo convocadas novas eleições presidenciais para 28 de julho de 2001, data em que também ocorreram eleições para o Parlamento, cuja primeira medida foi a eliminação do instituto da reeleição11. Em novembro de 2000, aproveitando-se de uma viagem feita ao exterior, Fujimori refugiou-se no Japão (pois possuía nacionalidade japonesa) e renunciou ao mandato presidencial, enviando uma carta, que foi transmitida por fax, ao Congresso. Este, no entanto, não aceitou a renúncia e destituiu Fujimori por incapacidade moral12. Os dois vice-presidentes da República também renunciaram e o Congresso declarou vago o cargo de Presidente da República. 9É

que os primeiros resultados davam a vitória, por uma pequena margem de votos, ao candidato oposicionista Alejandro Toledo. Quem se sagrou vencedor, no entanto, foi Alberto Fujimori. A oposição acusou-o de manipulação eleitoral, questionando sua legitimidade. Esta situação produziu um escândalo político e enfraqueceu o poder de Fujimori. 10Acerca deste vídeo asseveram Domingo García Belaunde e Franciso José Eguiguren Praeli que “... se difundió en una emisora de televisión por cable, caracterizada por su independencia política y postura crítica al régimen, um video que mostraba los momentos em que Vladimiro Montesinos entregaba dinero a um congresista electo para su paso al oficialismo (setiembro de 2000). El escândalo fue inmediato y rotundo. La oposición se fue haciendo más forte (...)”.GARCÍA BELAUNDE, Domingo; EGUIGUREN PRAELI, Francisco José. op. cit., p. 388. 11O instituto da reeleição foi inserido na Constituição de 1993. Para permitir que o Presidente Fujimori participasse das eleições presidenciais de 2000 (ele já havia sido Presidente duas outras vezes), a maioria do Congresso promulgou uma lei, - a “Ley de Interpretación Auténtica” (Ley nº 26657/96) -, que determinava que, de acordo com a Constituição de 1993, o Presidente poderia participar do pleito eleitoral. A interpretação dada à Constituição foi a de que o instituto da reeleição só poderia ser usado da promulgação da Constituição em diante, não se considerando para a contagem da reeleição o mandato anterior (1990-1995) do Presidente Fujimori. A Lei de Interpretação Autêntica entendeu, assim, que o primeiro mandato do Presidente Fujimori, na vigência da Constituição de 1993, foi cumprido no período de 1995-2000 e que, por esta razão, teria ele direito a candidatar-se à reeleição em 2000. Eis o texto da lei em comento: “Artículo Único – Interprétase de modo auténtico, que la reelección a que se refiere el Artículo 112º de la Constitución, está referida y condicionada a los mandatos presidenciales iniciados com posterioridad a la fecha de promulgación del referido texto constitucional. Em consecuencia, interprétase auténticamente, que en el cómputo no se tiene em cuenta retroactivamente, los períodos presidenciales iniciados antes de la vigência de la Constitución. La presente norma se ampara em el Artículo 102 y em la Octava Disposición Final y Transitoria de la Constitución. Comuníquese al señor Presidente de la República para su promulgación. Em Lima, a los veintitrés dias del mês de agosto de mil novecientos noventa y seis”. GARCÍA MONTERO, Mercedes. op. cit., p. 75. Esta Lei provocou descontentamento por parte do Poder Judiciário, a quem competia, na verdade, a interpretação da Constituição. Houve, de fato, violação ao princípio da separação de Poderes. 12A Resolución Legislativa del Congreso nº 009-2000-CR, assinada por Valentín Paniagua Corazao, Presidente do Congresso e Luz Salgado Rubianes de Paredes, Primeira Vice-Presidente do Congresso declarou a incapacidade moral do Presidente da República, Alberto Fujimori e tornou vago o seu cargo. Dispunha: “Artículo 1º - Declaración de permanente incapacidad moral del Presidente de la República. Declárase la permanente incapacidad moral del Presidente de la República, ciudadano Alberto Fujimori Fujimori, según lo establecido em el inciso 2) del artículo 113º de la Constitución Política del Perú. Artículo 2º Declaración de vacancia de la Presidencia de la República. Declárase la vacancia del la Presidencia de la República, debiendo aplicarse las normas de sucesión establecidas por el artículo 115º de la Constitución Política del Perú. POR TANTO: Cúmplase y publíquese. Dada em el Palacio del Congreso, em Lima, a los veintiún días del mês de noviembre de dois mil”. Resolución Legislativa declarando la permanente incapacidad moral del Presidente de la República y la vancancia de la Presidencia de la República, 21 de noviembre de 2000. Resolución Legislativa del Congreso nº 009-2000-CR. Valentín Paniagua Corazao – CONGRESO DE LA REPUBLICA DEL PERU. Resolución Legislativa del Congreso nº 009-2000-CR. Valentín Paniagua Corazao – Presidente del Congreso de la República.. Disponível em: . Acesso em: 02 mar. 2011. Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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Até que se realizassem novas eleições, assumiu o governo de transição13 o Presidente do Congresso, Valentín Paniagua, que buscou restabelecer o Estado de direito e a democracia no país. O novo Presidente foi eleito em segundo turno, no ano de 2001. Tratava-se de Alejandro Toledo, cujo governo também se desenvolveu sob as vigas democráticas sendo, entretanto, marcado por escândalos familiares e de parlamentares ligados ao seu partido, enfraquecendo-o. Foi nesta época, também, que começaram as tratativas para a total reforma da Constituição de 1993, tendo em vista que ela havia sido elaborada segundo os interesses de Fujimori. Um projeto de Constituição foi redigido e havia a pretensão de submetê-lo a referendo popular. A falta de apoio político, no entanto, fez o projeto ser abandonado. Atualmente, durante a vigência do mandato de Alan García Pérez14, eleito em 2006, estão em andamento no Congresso Peruano algumas propostas de reforma política, dentre as quais aquela que pretende o retorno do sistema bicameral no Legislativo, por exemplo. De se destacar, por fim, que no dia 10 (dez) de abril de 2011 foram realizadas eleições presidenciais e parlamentárias no país. No primeiro turno das eleições presidenciais, os candidatos Keiko Fujimori, filha do ex-Presidente Alberto Fujimori, obteve 23,6% dos votos e Ollanta Humala, que de acordo com a Revista Veja é amigo de Hugo Cháves15, conseguiu 31,7% das intenções de voto. O segundo turno ocorreu no dia 05 de junho de 2011 sagrando-se vencedor o nacionalista Ollanta Humala, que obteve pouco mais de 51% dos votos16. Quanto às eleições para o Congresso unicameral, estiveram em disputa as 130 (cento e trinta vagas) já que, no país, o Congresso renova-se em sua totalidade, juntamente com a escolha do novo Presidente da República. Antes, porém, de adentramos no estudo da reforma política, mister se faz tecer alguns comentários a respeito das Constituições peruanas do século XX.

13De

acordo com Enrique Bernales Ballesteros, “una transición democrática es um proceso de reestruturación institucional. Las normas jurídicas dictadas durante la dictadura se examinan a luz de um contexto en el que lo que se busca es recuperar el Estado de derecho. Por esa razón, desde que se constituyó, em noviembre de 2000, el gobierno de transición de Valentin Paniagua tuvo entre sus principales objectivos la reconstrucción del Estado de derecho y la recuperación y fortalecimiento de las instituciones políticas destruidas por el gobierno dictatorial de Alberto Fujimori. No era posible asumir la transición sin una reforma que abascase el texto constitucional. No obstante, dado el breve tiempo asignado al gobierno de transición y que el principal encargo recebido era garantizar las elecciones generales, se abstuvo de convocar a una asamblea constituyente. Con buen tiono optó, sí, por sentar las bases de una reforma constitucional posterior, uma vez instalado el gobierno elegido por el pueblo”. BERNALES BALLESTEROS, Enrique. Los caminos de la reforma constitucional en el Perú. Acervo de la Biblioteca Jurídica Virtual del Instituto de Investigaciones Jurídicas de la UNAM. Disponível em: . Acesso em: 20 fev. 2011. 14O Presidente Alan García Pérez deixará o governo no dia 28 de julho de 2011, após cinco anos de mandato. Assumirá, em seu lugar, Ollanta Humala, que conquistou o cargo após disputa eleitoral com a candidata Keiko Fujimori. 15De acordo com reportagem da Revista Veja, a candidata Keiko Fujimori pretende, se ganhar, conceder indulto presidencial a Alberto Fujimori e libertá-lo da prisão. O ex-Presidente foi preso na década de noventa, após autorizar os esquadrões da morte a massacrarem civis na tentativa de combater o grupo terrorista Sendero Luminoso. O candidato Ollanta Humala, ainda segundo a Revista, por seu turno, conta com a simpatia do Presidente Venezuelano Hugo Cháves. Um dos dois – Alberto Fujimori ou Hugo Cháves – terão influência no novo governo peruano. Como afirma Felipe Ortiz de Zevallos, presidente da Apoyo, instituto de opinião pública de Lima, citado na reportagem de Veja, EM AMBOS os casos, a preservação do estado de direito no Peru está ameaçada. Veja, São Paulo, 20 abr. 2011. p. 82. 16De acordo com o Jornal Folha online, que levou em consideração os dados divulgados pelo ONPE (Escritório Nacional de Processos Eleitorais), após a apuração de 90,5% dos votos, Ollanta Humanla venceu a disputa eleitoral com 51,36% dos votos contra 48,63 de Keiko Fujimori. Para maiores detalhes consultar: PRESIDENTE do Peru saúda vitória de Ollanta Humala. Folha Online, São Paulo, 06 jun. 2011. Disponível em: . Acesso em: 19 jul. 2011. Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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2. As Constituições peruanas de 1979 e de 1993: aspectos marcantes A alternância de regimes democrático-constitucionais com autoritários deu ao Peru diversas Constituições ao longo dos tempos, o que conduz Enrique Bernales Ballesteros a afirmar que “el Perú figura em el concierto mundial como uno de los países que mayor número de veces ha cambiado de Constitución. Pocas de ellas aportaron novedades importantes; muchas fueron innecesarias y ninguna de ellas logro afianzar al Estado e institucionalizar el país”17. Não obstante as críticas do autor, as Constituições do século XX foram quatro: a Constitución para la Republica del Peru (1920), a Constitución Política de la República (1933), a Constitución Política del Perú de 1979 e a Constitución Política del Perú de 1993. Interessa, para o nosso estudo, traçar algumas considerações somente sobre as duas últimas, porque a Constituição de 1979 foi regida pelos princípios democráticos e emergiu da derrota do governo militar de 1968-1980, enquanto a de 1993, ao contrário, foi elaborada durante o governo Fujimori e apresentou traços de puro autoritarismo. Além disso, diferentemente do que ocorreu no Brasil, em que o regime militar foi substituído pelo democrático, inclusive com a promulgação da “Constituição Cidadã”, de 1988, no Peru ainda vige a Constituição de 1993, muito embora o Estado peruano tente, desde a queda de Fujimori, aprovar reformas na Constituição, com o intuito de democratizá-la. Assim, faz-se preciso apresentar alguns pontos importantes de ambas as Constituições, para que, em seguida, possamos analisar a necessidade de reforma política no Peru. No que tange ao regime político, a Constituição Política do Peru de 1979 pregou o presidencialismo híbrido e tratou de fortalecer os poderes do Presidente da República e do Poder Executivo. Isto porque o passado histórico (1968-1980) havia mostrado diversos Presidentes que não conseguiram terminar seus mandatos, em razão de não obterem a maioria parlamentar. Tal medida constitucional foi tomada, pois, para evitar a ingovernabilidade. Como reflexos deste fortalecimento, a Constituição trouxe as seguintes disposições: 1) como novidade, a eleição do Presidente da República passou a exigir mais da metade dos votos válidos emitidos e, caso esta maioria não fosse alcançada, os dois candidatos mais votados deveriam disputar o voto em um segundo turno18, sendo o mandato presidencial reduzido para cinco anos, não se admitindo a reeleição; 2) tal como previsto na Constituição de 1933, o Presidente da República continuou sendo o Chefe de Estado e de Governo, a ele competindo a nomeação e a remoção do Presidente do Conselho, escolhido dentre os membros do Conselho de Ministros; 3) também foi preservado o sistema bicameral do Congresso, como estatuía a Constituição anterior; 4) estabeleceu-se a faculdade de o Presidente da República dissolver a Câmara, nos casos de censura ou do voto de desconfiança a três Conselhos de Ministros. O Presidente podia dissolver a Câmara uma única vez, mas não no último ano do seu mandato. Se a dissolução ocorresse, deveriam ser realizadas eleições em trinta dias, sob pena de a Câmara dissolvida retomar suas funções.

17Ainda

segundo o autor, institucionalizar o país significa “... lograr que las reglas prevalezcan a los actos. Es establecer um marco que impida la concentración del poder y las decisiones arbitrarias. Em cierto modo ello puede facilitar la estabilidad y continuidad de la democracia pese la sucesión de coyunturas difíciles. Por cierto, ninguna Constitución puede, por si sola, alcanzar que um país funcione como um todo sólido, coherente y perfectamente institucionalizado”. BERNALES BALLESTEROS, Enrique. Una Constitución estabel para institucionalizar el Perú, cit., p. 27-28. E mais para a frente, conclui, “Pero es obvio que la existencia de una Constitución inteligentemente elaborada, construida a partir de sabias dosis de realismo, audacia y prudencia, rodeada del respeto ciudadano que la hacen durable, es um pilar fundamental para la institucionalización de um país”. Id. Ibid., p. 28. 18Na Constituição de 1933, caso o candidato não obtivesse mais de um terço dos votos válidos na eleição, a escolha do novo Presidente seria feita pelo Congresso, dentre os candidatos mais votados. Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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Por sua vez, a Constituição Política do Peru de 1993, vigente até os dias de hoje, acentuou o regime presidencial híbrido e fortaleceu ainda mais os poderes do Presidente da República, mas, diferentemente da anterior, tratou de diminuir as atribuições do Parlamento. Dentre seus dispositivos, destacam-se: 1) a preservação da eleição do Presidente da República em dois turnos e para um mandato de cinco anos, autorizando-se, no entanto, a reeleição, para o período imediatamente subseqüente. O instituto da reeleição foi, no entanto, posteriormente proibido por meio da Lei nº 27365, de 5 de novembro de 2000, que alterou o artigo 112 da Constituição, não admitindo a reeleição imediata do Presidente da República; 2) a manutenção das funções de Chefe de Estado e de Chefe de Governo na pessoa do Presidente da República, incluindo-se a possibilidade dele expedir decretos de urgência em matéria econômica e financeira, e permitindo que a partir desta Constituição, o Presidente do Conselho de Ministros pudesse ser um Ministro “sem carteira”, isto é, “ejercer dicha función sin necesidad de que ocupe simultáneamente otro ministerio”19; 3) pela primeira vez na história peruana, o sistema bicameral do Congresso, com a eleição pelo sistema de representação proporcional, foi substituído por uma estrutura unicameral, composta por cento e trinta membros que seriam escolhidos, a partir das eleições de 1995, pelo sistema de distrito nacional único20; 4) garantiu-se ao Presidente da República o poder de dissolver o Congresso quando este tiver censurado ou negado confiança a apenas dois Conselhos de Ministros, ao contrário da Constituição anterior, que possibilitava a dissolução pelo Presidente após a queda de três Conselhos de Ministros. Compreendidos os principais aspectos de cada uma das Constituições e o cenário em que se encontra o Peru na atualidade, é possível passar, em seguida, à análise do contexto que propicia a realização da reforma política no Peru. 3. A necessidade de uma reforma constitucional Desde a queda do regime Fujimori, o Peru procura realizar uma reforma constitucional com o intuito de implantar o Estado Democrático de Direito no país e, com isso, proteger direitos fundamentais, como a dignidade, a liberdade e a igualdade dos cidadãos. Para tanto, após a declaração da permanente incapacidade moral21 do Presidente Alberto Fujimori, a Lei 27600, de 15 de dezembro de 2001, declarou a vacância do cargo de Presidente da República e determinou à “Comisión de Constitución, Reglamento y Acusasiones Constitucionales” que apresentasse um projeto de reforma total da Constituição de 1993, levando em consideração a Constituição histórica do Peru e, em particular, o texto da Constituição de 1979 que, após aprovado pelo Congresso, deverá ser submetido a um referendo popular, findo o qual será ab-rogada a Constituição de 1993 (art. 2º)22. De acordo, ainda, com o disposto no art. 3º23 da mencionada lei, o processo de reforma constitucional deverá ser debatido nacionalmente, com a intensa participação da população na discussão das

19GARCÍA

BELAUNDE, Domingo; EGUIGUREN PRAELI, Francisco José. op. cit., p. 384. sistema de distrito nacional único “favorecía el centralismo y facilitaba la digitación de los candidatos al parlamento por el Presidente Fujimori”. GARCÍA BELAUNDE, Domingo; EGUIGUREN PRAELI, Francisco José. op. cit., p. 384. 21Dispõe o art. 1º, da Lei 27600, de 15 de diciembre de 2001: “Artículo 1.- Supresión de firma - Suprímese la firma de Alberto Fujimori Fujimori, del texto de la Constitución Política del Estado de 1993, sin perjuicio de mantener su vigencia, en aplicación de la Resolución Legislativa N.º 009-2000-CR, que declaró su permanente incapacidad moral y, en consecuencia, la vacancia de la Presidencia de la República”. GARCÍA BELAUNDE, Domingo. Las Constituciones del Perú. 2. ed. rev. corr. y aum. Lima, 2005.p. 659-660. Livro Digital. 22Dispõe o art. 2º, da Lei 27600, de 15 de diciembre de 2001: “Artículo 2.- Objeto de la ley - La Comisión de Constitución, Reglamento y Acusaciones Constitucionales, propondrá un proyecto de reforma total de la Constitución, tomando en cuenta la Constitución histórica del Perú y en particular el texto de la Constitución de 1979. Tras su aprobación por el Congreso será sometido a referéndum. De ser aprobado quedará abrogada la Constitución de 1993. GARCÍA BELAUNDE, Domingo. op. cit., p. 659-660. 23Dispõe o art. 3º, da Lei 27600, de 15 de diciembre de 2001: 20O

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propostas. Já o art. 4º estabelece que a “Comisión de Constitución, Reglamento y Acusasiones Constitucionales” “centralizará los proyectos y difundirá las iniciativas que se sometan a su conocimiento para los fines a que se refiere la presente Ley”.24 Em que pese a referida lei seja de 2001 e inúmeras sejam as propostas, até a presente data não se logrou êxito na ab-rogação da Constituição de 1993. O Peru ainda discute os projetos de lei que visam à reforma da Constituição, outrora elaborada sob as vigas autoritárias. Apresentamos, em seguida, alguns projetos de lei ou temas relevantes relacionados, ambos, à “Reforma Política” no Peru e que mantêm liame com o objeto de nosso estudo. 4. Os Projetos de reforma política 4.1. Declaração de nulidade da Constituição de 1993, restituição da vigência da Carta Política de 1979 e estabelecimento de processo de reforma constitucional Mantendo estrita ligação com a Reforma Política, o tema nos chama a atenção, porque totalmente diferente da realidade brasileira, o “Proyecto de Ley nº 129, de 04 de septiembre de 2006”, - em trâmite no Congresso Peruano -, visa a declarar a nulidade da Constituição de 1993 (art. 1º); convalidar os atos jurídicos celebrados pelo Estado e pelo Governo desde que eles não estejam eivados de corrupção, o mesmo ocorrendo para os resultados das eleições nacionais, regionais e municipais efetuadas sob a vigência da Constituição de 1993 (art. 2º); restituir, a partir da aprovação da mencionada lei, a Constituição Política de 1979 (art. 3º) e; aprovar um projeto para reforma e modernização da Constituição de 1993, que deverá ser elaborado pela “Comisión de Constitución, Reglamento y Acusaciones Constitucionales” e aprovado pela maioria absoluta dos membros do Congresso, após o que deverá ser ratificado por um referendo. Este poderá ser omitido se o projeto for aprovado em duas legislaturas ordinárias sucessivas, com votação, em cada caso, superior a dois terços do número legal de congressistas (art. 4º). As razões para tal proposta fundamentam-se em decisão do Tribunal Constitucional, que reconheceu o Congresso da República como fonte originária de poder, competindo-lhe a “responsabilidad de terminar de consolidar de manera definitiva el proceso de reinstitucionalización democrática. Y dentro de él, la decisión de optar politicamente por el marco constitucional más conveniente, deviene en prioritária e insoslayable”.25 Assim é que o Congresso peruano é competente para decidir qual o melhor mecanismo para promover as mudanças políticas e legislativas de interesse da Nação. 4.2. A necessidade do retorno ao sistema bicameral no Congresso Na questão referente à estrutura dos órgãos do poder, a reforma que se propõe diz respeito ao retorno do sistema bicameral no Congresso, tal como previsto na Constituição de 1979, mas pela primeira vez suprimido na Constituição de 1993 (art. 90), já que o objetivo desta era submeter a Câmara única ao Poder Executivo que, naquele momento, sagrou-se fortalecido com o golpe de estado.

“Artículo 3.- Participación de la sociedad civil - El proceso de reforma se llevará a cabo promoviendo el más amplio debate nacional, mediante la permanente realización de eventos académicos como fórums, conversatorios, entre otros actos que tiendan a la difusión y discusión de las propuestas para el cambio constitucional”. GARCÍA BELAUNDE, Domingo. op. cit., p. 659-660. 24Dispõe o art. 4º, da Lei 27600, de 15 de diciembre de 2001: “Artículo 4.- Competencia de la Comisión de Constitución, Reglamento y Acusaciones Constitucionales - La Comisión de Constitución, Reglamento y Acusaciones Constitucionales centralizará los proyectos y difundirá las iniciativas que se sometan a su conocimiento para los fines a que se refiere la presente Ley”. GARCÍA BELAUNDE, Domingo. op. cit., p. 659-660. 25EXPOSICION de Motivos Del Proyecto de Ley nº 129/2006. Disponível em: . Acesso em: 02 mar. 2011. Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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As críticas ao sistema unicameral residem na dificuldade que o Poder Legislativo enfrenta ao executar suas tarefas típicas. É que, sem a outra Câmara, para realizar o controle interno, a elaboração e a aprovação das leis ressentem-se de solidez e, ainda, a função de fiscalização que o Poder Legislativo exerce sobre os demais Poderes pode não ocorrer, bastando, para tal, que o governo detenha a maioria parlamentar na única Câmara. O sistema bicameral, por outro lado, é importante para os freios e contrapesos – princípio da separação de Poderes –, dentro do próprio Legislativo. Com efeito, conforme assinala Francisco Miró Quesada Rada, “la introducción del bicameralismo permite que funcionen los pesos y contrapesos al interior del congreso, estableciéndo-se mecanismo de control intraorgánico, tan importante para el ejercicio del poder em ambas cámaras”.26 4.3. Relacionamento entre o Presidente da República e o Governo no sistema “presidencial híbrido” 4.3.1. A necessidade de as funções de Chefe de Estado e de Chefe de Governo serem exercidas por pessoas diferentes Todos os países da América Latina, ao se tornarem independentes, foram influenciados pela Constituição dos Estados Unidos da América, de 1787 e também adotaram o sistema presidencial de governo em suas Constituições. Característica comum dos ordenamentos latinos é a existência de um Poder Executivo forte, o que leva à personificação do poder na figura do Presidente da República. Assim é que Marvin Carvajal Pérez explica que “o modelo presidencialista latino-americano caracteriza-se por estabelecer um Poder Executivo forte, onde a figura do Presidente é determinante na condução da vida política e econômica nacional. As suas atribuições chegam até a ultrapassar as clássicas fronteiras dos outros poderes, intervindo diretamente na atividade legislativa, e com maior ou menor intensidade, também na judiciária”.27 O Estado Peruano também possui um Poder Executivo forte, entretanto, diferentemente da maioria dos países latinos, optou por um regime presidencial híbrido, na medida em que incorporou a tal sistema de governo institutos do parlamentarismo. Herdou do presidencialismo a regra de o Presidente da República ser eleito diretamente pelo povo e reunir as funções de Chefe de Estado e Chefe de Governo e, do parlamentarismo, a existência de um Conselho de Ministros, que também compõe o Poder Executivo, ao qual compete referendar os atos presidenciais, a responsabilidade política ministerial por meio de interpelação e censura, a possibilidade de dissolução do Congresso (Constituição de 1979) e “una impropria especie de ‘voto de confianza’ parlamentaria al inicio de la gestión política del Consejo de Ministros (Carta de 1993)”.28 O problema decorrente deste modelo é que, no sistema parlamentar, o Presidente da República atua como Chefe de Estado, representando a Nação e, nessa função, goza da inviolabilidade e da irresponsabilidade política, enquanto que o Chefe de Governo (geralmente o Primeiro Ministro) é quem realmente exerce a função executiva, assumindo a responsabilidade política, constitucional e jurídica por seus atos e omissões. No Peru, entretanto, ambas as figuras estão centralizadas no Presidente da República, que acaba sendo politicamente irresponsável.

26QUESADA

RADA, Franciso Miró. Análisis del Proyecto de Ley sobre la Reforma Constitucional del Perú. Anuario de Derechos Humanos, nueva época, v. 4, p. 376, 2003. 27CARVAJAL PÉREZ, Marvin. O presente dos sistemas de governo na América Latina. Prismas: dir., pol. públ. e mundial, Brasília, v. 5, n. 1, p. 37, jan./jun. Brasília: 2008. Disponível em: . Acesso em: 02 mar. 2011. 28EGUIGUREN PRAELI, Francisco José. El Congreso, el Gobierno y sus relaciones políticas, en la propuesta de reforma constitucional. Revista Peruana de Derecho Público, Lima, año 2, n. 3, p. 49, jul./dic. 2001. Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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Por outro lado, os Ministros atuam como meros “colaboradores” do Presidente da República e não possuem competências autônomas próprias. Como consequência, quando ocorre a responsabilidade política, eles caem. Há, assim, uma mera troca de Ministros, mantendo-se, no entanto, a política de governo inalterada. Necessário, pois, por primeiro, separar as funções de Chefe de Estado e de Governo, atribuindo-as a pessoas diferentes, redistribuir as competências entre eles, deixando ao Presidente da República um rol reduzido delas, “a ser utilizadas en momentos puntuales o excepcionales”29 e ao Primeiro Ministro – figura a ser criada – as atribuições da direção da política interna, externa e de defesa do país. Fala-se, pois, na possibilidade de o país adotar o regime semi-presidencial30. 4.3.2. A renovação parcial do Congresso a cada dois anos e a oposição responsável A fim de tornar viável as relações entre o Presidente da República e o Governo objetiva-se, também, a reforma da Constituição de 1993 no que tange à renovação da metade do Parlamento a cada dois ou três anos, ao invés de uma única renovação de todo o Parlamento, como ocorre sob a égide da Constituição de 1993. E isto tem uma razão de ser. Atualmente, as eleições dos parlamentares e do Presidente da República ocorrem no mesmo dia e os mandatos têm a mesma duração: cinco anos. Tal sistema apresenta peculiaridades atinentes às eleições Presidenciais e do Congresso unicameral. No que tange à primeira, há vários candidatos à Presidência da República que defendem os mesmos projetos e, como consequência, acabam dividindo a preferência dos eleitores, não sendo incomum as eleições em que não obtêm a maioria e acabam não se elegendo no primeiro turno. Foi o que aconteceu nas últimas eleições presidenciais, ocorridas no dia 10 (dez) de abril do corrente, em que três candidatos liberais - o empresário Pedro Paulo Kuczynski, o ex-Prefeito de Lima Luis Catañeda e o ex-Presidente Alejandro Toledo - defendiam a continuidade das políticas econômicas e institucionais que fizeram a pobreza cair em mais de 30% (trinta por cento). Os três dividiram os votos liberais e, como nenhum deles obteve a maioria, nenhum passou para o segundo turno31. De outro lado, a renovação única do Congresso pode fazer com que os parlamentares já eleitos pertençam aos partidos da oposição, gerando um “parlamento fragmentado que responde a los resultados de

29José

Carlos Remotti Carbonell sugere que sejam competências do Presidente da República: “nombrar al Primer Ministro o Presidente del Consejo de Ministros requiriendo para ello del respaldo mayoritario del Congreso, así como proceder a su cese. A propuesta del Primer Ministro nombrar a los demás ministros. Aceptar la dimisión del Primer Ministro; presidir, cuando asista, el Consejo de Ministros; promulgar las leyes y normas con valor de ley; así como expedir los Decretos aprobados por el Consejo de Ministros; disolver anticipadamente al Congreso si considera que tal medida es necesaria para los intereses generales; ejercer la representación exterior del Estado”. Para outras funções, consultar: REMOTTI CARBONELL, José Carlos. Perú: la necesidad de una reforma constitucional: un punto de partida. In: Araucaria. Revista Iberoanericana de Filosofia, Política y Humanidades, n. 15, abr. 2006. Disponível em: . Acesso em: 02 mar. 2011. 30Francisco Eguiguren Praeli explica que o regime semi-presidencial consiste em “mecanismo moderador del régimen presidencial y del poder del Presidente de la República, mediante la incorporación de elementos del régimen parlamentario, especialmente la conversión del Primer Ministro o del Presidente del Consejo de Ministros em um Jefe de Gobierno, com lo cual esta función dejaría de corresponderle al Presidente de la República”. EGUIGUREN PRAELI, Francisco José. La responsabilidad del presidente: razones para una reforma constitucional. Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2007. p. 43. No Brasil, Manoel Gonçalves Ferreira Filho explica que o sistema semi-presidencial ou misto apresenta as seguintes características: “1) um Presidente da República independente, com legitimidade democrática, eleito diretamente pelo povo; 2) gozando de poderes de participação ativa no governo; mas 3) governo parlamentar – ou seja, com governo de gabinete presidido por um Chefe de Governo; 4) sujeito esse gabinete à responsabilidade política. Nesse modelo, o Presidente da República detém um verdadeiro Poder Moderador”. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Princípios fundamentais do direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 261. 31Para maiores informações ver: Veja, São Paulo, 20 abr. 2011. p. 82. Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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la primera vuelta electoral”32, exigindo que o Presidente eleito em segundo turno firme acordos para aprovar seus projetos. Já a renovação parcial do Congresso, a cada dois ou três anos, pode corrigir a composição parlamentar no caso da aprovação, pelo povo, do desempenho do Presidente da República, do Primeiro Ministro e da própria oposição parlamentar. Isso significa que o Presidente poderá ter ou não a maioria parlamentar a seu favor. No primeiro caso – maioria favorável – pode o Presidente da República nomear o Primeiro Ministro de sua confiança e aprovar suas normas com tranquilidade. Na hipótese de não possuir a maioria do Congresso, deverá negociar com a oposição a escolha do Primeiro Ministro. Isto faz surgir, então, outro fenômeno, a oposição responsável, que poderá, inclusive, vir a assumir o governo caso o Primeiro Ministro indicado pelo Presidente caia. Como assinala José Carlos Remotti Carbonell, “la oposición no estará necesariamente em una campaña permanente de desprestigio del Gobierno, sino que podrá arrimar el hombro empujando el carro de la gobernabilidad. Dependiendo de los acuerdos a los que se lleguen entre el Presidente y la oposición, esta última podrá también lograr su incorporación al Gobierno, con lo que ello supondría de trabajo conjunto y de aumento de la estabilidad política, cosa muy necesaria em el Perú”.33 4.4. A proibição da reeleição imediata do Presidente da República A matéria atinente à reeleição já mereceu diversas interpretações no Peru e nos países da América Latina. Uma característica comum a tais países consistia na proibição do instituto da reeleição. A Constituição Peruana de 1979, seguindo estes moldes, não admitia que o Presidente da República participasse do pleito eleitoral no período imediatamente subsequente ao término do seu mandato (reeleição imediata). Os motivos de tal proibição eram vários: necessidade de combater a concentração do poder nas mãos do Presidente, funcionando a proibição como um freio a tal abuso34; impedir o fortalecimento do Poder Executivo e o enfraquecimento do Poder Legislativo, já que o país adota um regime “presidencial híbrido”; garantir a isonomia entre os candidatos na corrida presidencial, uma vez que o candidato que tem a máquina atuando a seu favor já sai em posição de vantagem com relação aos demais concorrentes, etc. A Constituição Peruana de 1993, por seu turno, na contramão do que previam as Constituições latino-americanas35 e para atender aos anseios do Presidente Fujimori, que tinha dado um autogolpe, foi uma das primeiras a estabelecer a possibilidade da reeleição imediata do Presidente da República, por um período, findo o qual seria preciso esperar o transcurso de um período mínimo para adquirir novamente o direito de se candidatar ao cargo e de ser novamente eleito36. O que se vê, portanto, é que o instituto da reeleição foi inserido na Constituição com o intuito tão somente de legitimar a perpetuação no poder do 32CARBONELL,

José Carlos Remotti. Perú: la necesidad de una reforma constitucional. Un punto de partida. In: Araucaria. Revista Iberoanericana de Filosofia, Política y Humanidades. nº 15. Abril de 2006. http://alojamientos.us.es/araucaria/nro15/monogr15_5.htm, acesso em 02/03/11. 33REMOTTI CARBONELL, José Carlos. op. cit. 34 Como ensina Mario Castillo Freyre, “la prohibición de reelección inmediata – como uno de los frenos primordiales para combatir los abusos en el poder – se encuentra em casi todas las Constituciones latinoamericanas. Sin embargo, las de República Dominicana y Nicaragua, nada dicen al respecto”. CASTILLO FREYRE, Mario. Todos los poderes del Presidente. Lima: Fondo Editorial de la Pontifícia Universidad Católica del Perú, 1997. p. 168. 35A Argentina aprovou o instituto da reeleição na Reforma Constitucional de 1994, beneficiando a reeleição do então Presidente Menem. No Brasil, a Emenda Constitucional nº 16, de 4 de junho de 1997 propiciou a reeleição do então Presidente Fernando Henrique Cardozo. Tal emenda modificou o § 5º do art. 14 da Constituição Federal de 1988, autorizando a reeleição do Presidente da República, dos Governadores de Estado e do Distrito Federal e dos Prefeitos para um período subsequente. Recentemente, assistimos à aprovação da reeleição – mediante referendos populares – na Bolívia e na Venezuela, sendo que nesta última o Presidente Hugo Chaves conseguiu aprovar a reeleição indeterminada, em afronta ao princípio democrático. 36Dispunha o artigo 112 da Constituição Peruana de 1993: “Artículo 112°.- El mandato presidencial es de cinco años. El Presidente puede ser reelegido de inmediato para un período adicional. Transcurrido otro período constitucional, como mínimo, el ex presidente puede volver a postular, sujeto a las mismas condiciones.” GARCÍA BELAUNDE, Domingo. op. cit., p. 622. Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 3, 2011

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Presidente golpista. Daí porque, no Peru, esse instituto estava ligado aos ideais autoritários e caudilhistas e não aos democráticos. Este dispositivo foi, no entanto, modificado pela Lei nº 27365, de 5 de novembro de 2000, restabelecendo-se, após a queda do Presidente Fujimori, a proibição da reeleição, ao estabelecer que “el mandato presidencial es de cinco años, no hay reelección inmediata. Transcurrido otro período constitucional, como mínimo, el ex presidente puede volver a postular, sujeto a las mismas condiciones”. A partir do ano 2000, portanto, o ordenamento constitucional peruano vigente não admite a reeleição imediata, mas autoriza o ex-Presidente a concorrer de novo ao cargo presidencial depois de cumprir o tempo mínimo de afastamento do poder. 4.5. Outros temas sobre a Reforma Política Outros temas são objeto de reforma política, dentre os quais: a necessidade de que o Poder Judiciário seja um órgão autônomo, independente e imparcial, capaz de resolver os conflitos a ele levados e não um órgão subordinado aos interesses políticos ou econômicos, tal como já ocorreu na história do país; o entendimento de que as Forças Armadas integram o Estado de Direito e, por isso, devem obediência ao poder constitucional, não se aliando, assim, àqueles que desejam a prática do golpe de estado e; a questão do voto facultativo, existindo atualmente um texto substitutivo no Congresso com o intuito de que o voto seja obrigatório para as eleições presidenciais e do Congresso da República e facultativo para as demais. Tais temas, no entanto, merecerão análise pormenorizada em outra oportunidade. Conclusões Após a análise da história peruana, de suas Constituições e das propostas de Reforma Política, podemos constatar os motivos pelos quais dissemos, na Introdução deste trabalho, que a democracia peruana ainda está se consolidando no país. O Peru já teve, ao longo de sua história, mais de dez Constituições, algumas com pouquíssimo tempo de vigência, como as de 1823, 1826 e 1828, que alternaram democracias com ditaduras. No século XX, foram quatro: as de 1920, 1933, 1979 e 1993, a primeira e a terceira democráticas, a segunda e a quarta ditatoriais. Tais exemplos confirmam o que asseveramos no início, no sentido de que as constantes lutas pelo poder e a alternância entre regimes democrático-constitucionais e ditatoriais em muito enfraqueceram a solidificação democrática, tanto no panorama institucional, como na realidade social. Esta alternância e, consequentemente, as instabilidades política, econômica e social causadas, talvez sejam as razões pelas quais o processo de Reforma Política, iniciado após a queda do governo Fujimori, em 2000, ainda não tenha logrado êxito no país. Quanto às matérias relativas à reforma, a que chama a nossa atenção e que merece maior cuidado hoje em dia é a que busca o retorno do bicameralismo no Congresso, pois, consoante se verifica no cenário internacional, a maioria dos países democráticos adotam o Legislativo bicameral, servindo este como freio e contrapeso ao Poder Executivo. O Peru encontra-se, assim, na contramão da história mundial, vez que o unicameralismo está associado a um governo forte e centralizado na figura do Presidente da República, o que pode, novamente, levar a um governo ditatorial. Vê-se, pois, a importância que a Reforma Política apresenta para a consolidação do regime democrático no Peru, tanto em relação à questão do bicameralismo, quanto no que tange aos outros aspectos tratados neste artigo.

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CADERNOS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO ESTUDOS E DOCUMENTOS DE TRABALHO

Normas para Apresentação

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Normas para Apresentação

A apresentação do artigo para publicação nos Cadernos de Pós-Graduação em Direito deverá obedecer as normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) ● Titulo: Centralizado, em caixa alta. Deverá ser elaborado de maneira clara, juntamente com a versão em inglês. Se tratar de trabalho apresentado em evento, indicar o local e data de realização. ● Identificação dos Autores: Indicar o nome completo do(s) autor(res) alinhado a direita. A titulação acadêmica, Instituição a que pertence deverá ser colocado no rodapé. ● Resumo e Abstract: Elemento obrigatório, constituído de uma seqüência de frases concisas e objetivas e não de uma simples enumeração de tópicos, não ultrapassando 250 palavras. Deve ser apresentado em português e em inglês. Para redação dos resumos devem ser observadas as recomendações da ABNT - NBR 6028/maio 1990. ● Palavras-chave: Devem ser apresentados logo abaixo do resumo, sendo no máximo 5 (cinco), no idioma do artigo apresentado e em inglês. As palavras-chave devem ser constituídas de palavras representativas do conteúdo do trabalho. (ABNT - NBR 6022/maio 2003). As palavras-chave e key words, enviados pelos autores deverão ser redigidos em linguagem natural, tendo posteriormente sua terminologia adaptada para a linguagem estruturada de um thesaurus, sem, contudo, sofrer alterações no conteúdo dos artigos. ● Texto: a estrutura formal deverá obedecer a uma seqüência: Introdução, Desenvolvimento e Conclusão. ● Referências Bibliográficas - ABNT – NBR 6023/ago. 2000. Todas as obras citadas no texto devem obrigatoriamente figurar nas referências bibliográficas. São considerados elementos essenciais à identificação de um documento: autor, título, local, editora e data de publicação. Indicar a paginação inicial e final, quando se tratar de artigo de periódicos, capítulos de livros ou partes de um documento. Deverão ser apresentadas ao final do texto, em ordem alfabética pelo sobrenome do autor. ● Citações: devem ser indicadas no texto por sistema numérico, obedecendo a ABNT - NBR 10520/ago. 2002. As citações diretas, no texto, de até 3 linhas, devem estar contidas entre aspas duplas. As citações diretas, no texto, com mais de três linhas devem ser destacadas com recuo de 4 cm da margem esquerda, com letra menor que a do texto utilizado e sem aspas.

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