MÚSICA POPULAR NO BRASIL E PROTESTANTISMO: UMA HISTÓRIA DE ENCONTROS E DESENCONTROS SÉRGIO PAULO DE ANDRADE PEREIRA1 Introdução A música popular praticada no Brasil é plural. Sua história de fusões é marcada por dezenas de gêneros e estilos musicais, sejam essas fusões trabalhadas na forma instrumental ou em canções, com orquestras, bandas de rock ou em formato solo. No entanto, uma parcela significativa dessa produção não é conhecida da maioria da população brasileira, mesmo após mais de 40 anos de produção ininterrupta de alguns. São mais de 60 compositores, duos, bandas entre outras formações que produziram centenas de álbuns de música brasileira, cuja fé e valores do protestantismo estão presentes em boa parte da poética, recursos musicais e discursos empregados. Não há na academia, ainda, trabalhos relevantes sobre o porquê desses encontros e desencontros na história da música popular brasileira. Esperamos que este artigo - que pretende levantar alguns dos aspectos relacionados ao fato de que a música popular e os protestantismos brasileiros estão intrinsecamente ligados - colabore com futuros trabalhos que se aprofundem no tema.
Encontros: a comunicação com a música popular do Brasil Todo artista é aprendiz de alguém Gerson Borges
Desde os anos 1970, e mais especificamente a partir do álbum De Vento em Popa (1977), da missão e grupo musical Vencedores por Cristo, há uma nítida influência entre a produção musical feita por compositores protestantes e a música popular do Brasil. A canção-título do álbum foi composta por Aristeu Pires. Sua letra é:
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Sérgio Paulo de Andrade Pereira (Sérgio Pereira) é músico (faz parte do duo Baixo e Voz, criado em 1991), historiador, educador e escritor. Colunista da revista Bass Player Br. e revisor pedagógico dos livros didáticos de História do Sistema Mackenzie de Ensino. Mestre em Educação, Arte e História da Cultura (Universidade Presbiteriana Mackenzie) e licenciado em História (Centro Universitário Barão de Mauá). Cursa uma disciplina como aluno especial no doutorado do Programa de Pós Graduação em Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal do ABC (UFABC).
2 De vento em popa, o sol por cima, embaixo o mar, A voz tão rouca já desafina se vai cantar. E os dois no barco rasgando as ondas, Vagando ao som das canções do cais, Ou de outro pileque, achando até que encontrou a paz. Mas veja lá no fim da história o que fica, Veja o que restou do pobre rapaz, Vendo que por baixo o mar já se agita E por cima o sol calor já não traz. Pense, talvez seja esta a sua vida, Lute até encontrar um mundo melhor. Onde a dor no peito não tem guarida, Onde brilhe sempre o sol... Jesus batendo à tua porta deseja entrar Não lhe importa tua vida torta, quer te salvar De um mundo torpe, de uma vida morta, De um sul sem norte, da morte enfim. E um novo riso te por nos lábios, Uma nova vida que não tem fim! Abre o coração, derruba a muralha! Deixa que Jesus te abrace também, Deixa que te inunde um amor que não falha, É o desejo de quem só te quer bem. Canta ao mundo inteiro uma vida tão linda, Conta o que é ter perdão pelo amor, Quantas bênçãos há na graça infinda. Vive pra Jesus, o Senhor!
De Vento em Popa foi um divisor de águas2, pois até por volta dos anos 1960, a música praticada por protestantes era quase toda estrangeira, seja no formato litúrgico europeu que utilizava apenas hinários e órgãos – e mais à frente pianos – e, no máximo grupos corais, que mesmo trabalhando repertórios populares, eram todos eles cantatas e canções traduzidas do inglês (CAMARGO FILHO, 2009:42). A partir de 1977, várias gerações de artistas protestantes passaram a compor e gravar músicas que tinham como base os ritmos e instrumentos característicos brasileiros. Compositores como João Alexandre e Guilherme Kerr Neto escreveram obras que marcaram os anos 1980 e início dos anos 1990 no meio protestante, ao trabalhar canções que falavam sobre assuntos para além dos temas tradicionais cristãos, como é o caso de Mal Amada, gravada no álbum Estações do Amor (1990):
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A qualidade da produção musical em De Vento em Popa já foi reconhecida por artistas como Ed Motta (CABRAL; PEREIRA, 2011:132) e o crítico Régis Tadeu (TADEU, 2011) que o indicaram em redes sociais e blogs.
3 Passa das seis e a luz deste dia Vai se escondendo, sumindo no céu... Ele abre a porta sem grande euforia, Volta pra casa a cumprir seu papel. Troca de roupa e devora a comida Toda a atenção pro jornal. Poucas palavras contém nossa vida, Pra ele isso é tão normal... Passa das onze e essa noite ele cisma Que os meus carinhos precisa demais. Muitas palavras, sorrisos, sofisma, Como se eu fosse objeto e não mais. Logo ele alcança o que quer e adormece, Morre um pedaço de mim. Choro depois – é o que sempre acontece – E eu vivo morrendo assim, Morro vivendo assim... Passa das três da manhã, novo dia...
Ainda nos anos 1990, despontaram compositores como Gladir Cabral que escreveram sobre variados assuntos, dentre eles a escravidão africana, na canção Navio Negreiro, gravada primeiramente pelo grupo vocal feminino Quarteto Vida, no álbum À Capela, de 1991: Cruzando o tempo, daqui se vê Muito negreiro vendendo o que Traz escondido em seu mal querer Áfricos, tráficos, vida e ser Varando as ondas escuto a dor Feito um lamento: ai, meu Senhor! Onde a razão trata do furor Canta a vingança da clara dor Por todo mar, liberdade Há muito tom de verdade Cada lugar do oceano Faz onda como desejar Todo escravo é desejo a fim De espaço aberto de além de si Vive na espera de ser feliz Na volta à terra de seu país Toda corrente é quimera só De quem pretende guardar a nó A força viva de um ser menor A força, a vida de um ser melhor Todo negreiro é navio mercê De muitas ondas de outro querer Quem prende alguém a qualquer dever Torna-se escravo até sem saber
4 Quem é mais livre, corrente ou pé Mordaça ou voz, sombra ou luz, até E eis o silêncio, a resposta é: Livre é quem vive de fé em fé
Carlinhos Veiga foi outro compositor que não se ateve apenas à temática de histórias bíblicas ou aos jargões evangélicos em suas letras. A canção Menino (parceria com João Inácio), do álbum homônimo de 1999, apresenta uma preocupação com questões sociais: Menino tá na rua Nas esquinas, nas calçadas Sua casa, sua vida, Seu abrigo e ganha-pão Seu barato é cheirar cola Alegria tá na esmola De dia é vigia, De noite é ladrão Ê menino onde está seu pai, sua mãe e seus irmãos? Ê menino onde está sua paz, seu sorriso e canção? Ê menino onde você vai, por aí, sem direção? Ê menino onde está sua paz? Vida e sonho é jogar bola Quem me dera estar na escola Um trabalho, uma família Um amigo, um irmão Esperança de um futuro Um caminho menos duro Mais respeito, mais justiça Mais abraço, mais paixão Ê meu tio, o que é a paz, o sorriso, o coração? Ê meu tio onde está a luz que clareia a escuridão? Ê meu tio onde está a fé, alegria e esperança? Ê meu tio onde está a paz?
Nos anos 2000, diversos outros compositores caminharam por essa poética mais livre como Glauber Plaça e Jorge Camargo, que escreveram sobre o amor (assim como centenas de outros compositores brasileiros), respectivamente, em O Teu Olhar (álbum Outras Praias, 2008): O teu olhar cor do céu Me leva sempre a voar Voar sobre as águas dos teus segredos Pousar nos teus lábios No teu corpo andar Me mostre o caminho dos teus desejos
5 Lua tão clara sua pele nua Ilumina cada verso e som da canção Que é pra você menina Beleza rara que é tão sua Tão felina Que me ensina o que quer Que é tão linda Que é de mulher E neste dia doce melodia Vou cantar viver este meu bem querer Vou deslizar no teu mar, quero me perder Porque não há nada em qualquer lugar Que me leve a querer outro alguém Vou voar Cor do céu O teu olhar
E em O Amor é Assim Mesmo (álbum Tudo que é Bonito de Viver, 2011): O amor resiste ao tempo Torna quem é fraco em forte Passa os corações a limpo O amor é sempre o norte O amor trata as feridas Cura as marcas do passado Lembra datas esquecidas O amor é um aliado Na luta contra as tempestades Na força contra os vendavais Da graça que concede àqueles Que não desistirão jamais Da lágrima que escorre quente Nas horas de alegria e dor Do riso que enche o rosto amado Olhando para o seu amor O amor é assim mesmo Surpreende a quem já sabe Ou pensa que sabe e cisma Em querer que o amor acabe O amor é assim mesmo Vive para a eternidade Ainda que andando a esmo Encontra o lar cedo ou tarde
Em 2005, a dupla Baixo e Voz (Sérgio Pereira e Marivone Lobo) lançou o álbum Cores. Algumas das canções desse CD trabalham temas do cotidiano, como é o caso de Florescer que, segundo suas autoras - Marivone Lobo e Silvia Mendonça -, descreve um motorista de
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um carro que nota um lírio brotando em meio à cena de uma grande cidade, e fica extasiado com sua “insistência” em existir, mesmo em meio ao caos urbano: Flor no canteiro Central brotou Lírio dobrado Vestido com cuidado Quem te deu de beber? Quem te pôs como um vaso Na janela do carro? A vida teima em florescer No meio da poeira, Do concreto, do asfalto Quem te deu de beber? Primavera pediu em silêncio e As cores lhe disseram: sim
Bandas como Crombie (onde o principal compositor, Paulo Nazareth, é filho de um dos compositores que dialogaram intensamente com a música popular brasileira nos anos 1980, Josué Rodrigues) trabalharam canções como Dolores (parceria de Nazareth com Felipe Vellozo, Gabriel Luz e Filipe Costa), gravada no álbum Casa Amarela, de 2011: Na mesa uma toalha de flores, Dolores cuidou de arrumar. Serviu numa bandeja de cores, Sabores pra gente provar Dá vontade de ficar Um lugar que é tão perto do mar Paredes amarelas, Abertas janelas pra iluminar Os cantos mais bonitos, Encontros de amigos, na sala de estar. Dá vontade de ficar, De morar, demorar vendo o mar. Dolores mora lá.
Ou ainda, artistas como Arlindo Lima, que no álbum Cavalo do Tempo (2012) compôs histórias e “causos”, remetendo ao meio rural. A letra de Pela Luz das Estrelas faz parte desse CD: Pela luz dessas estrelas Volto só na madrugada Levamo sessenta reiz Pra invernar lá no Goiás Volto logo pra ver meu amor
7 Sigo em frente sem certezas Não cavalgo pela estrada Decidi que desta vez Vinha antes dos dimais Corto o campo pra ver meu amor Vou perdido e ferido Rédea solta, pé no estribo Peço a Deus pra me guiar Pelas pata do alazão E que ainda exista algum amor
Por vezes esse grupo é chamado de “MPB cristã” (apesar dos próprios compositores e bandas não se autodenominarem, geralmente, assim), seja devido às influências musicais que citam em suas obras (e em seus discursos), seja pela variedade estilística que trabalham. Gerson Borges, um dos compositores dessa vertente, deixa explícita sua relação com o grupo protestante e também com ícones da MPB na canção Discipulado, gravada no álbum Nordestinamente, de 2009: Gonzagão ouvia Caymmi Que inspirou Buarque e Jobim Os Baianos todos e o time Dos Mineiros, foi sempre assim Que se fez a nossa cantiga A canção do nosso país, Com Noel e o Samba da antiga, As Cantoras do Rádio, Elis Rebanhão misturou de tudo Som Maior bebeu no Tio Sam Grupo Elo fez seu estudo VPC olhou pro amanhã O Guilherme, o Jorge, o Pimenta, O Bomilcar, Rehder, João, Aristeu e uns mais de quarenta Imitei, não tive opção Todo mundo imitou todo mundo Um por um se inspirou em alguém Do mais simples ao mais profundo Não há um que não olhe ninguém Do mais raso ao que vai mais fundo Todo artista é aprendiz de alguém Sabe que o Chico, lá no começo João Gilberto queria ser E compor, se eu não esqueço Como o Tom que o viu nascer O Baião é primo do Samba Dois-por-quatro, é quase igual E a viola, se o dono é bamba Chora em Sampa ou no Pantanal
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Aprendi cantar na igreja Violão ganhei do meu pai E por mais “moderno” que eu seja Hino antigo é bom e não cai Eu sou filho de tudo isso, Que panela é minha canção Celebrando o compromisso Brasileiro de adoração3
Sobre a dicotomia entre o “sagrado” e o “secular”, um dos teóricos mais proeminentes nesse campo de estudo é Paul Tillich, que definiu três princípios a respeito dessa relação. O primeiro é a “consagração do secular”, mostrando que, mesmo sem a participação evidente de grupos religiosos, a cultura de um povo está sempre aberta à atuação do Espírito Santo. O segundo é a “convergência do sagrado e do secular”, onde o secular colabora para que o sagrado não se perca em sua infinitude, apresentando sua base finita (uma vez que o homem é finito). O terceiro é a “pertinência essencial mútua de religião e cultura”, onde Tillich mostra que a cultura atual, apesar de secular e aparentemente autônoma, está imersa no espiritual (CALVANI, 1998:65-66). Podemos notar na música popular brasileira inúmeros casos dessa imersão espiritual nas letras empregadas em canções dos mais variados artistas brasileiros, mesmo que eles não professem de forma clara uma fé religiosa, como por exemplo: Dorival Caymmi em Oração de mãe menininha e Caminhos do mar; Gilberto Gil em Filhos de Gandhi, Iemanjá ou Se eu quiser falar com Deus; Nando Reis em Mantra; Renato Teixeira em Romaria; Vinicius de Moraes e Baden Powell em seus “afro-sambas”; O Rappa em Anjos (Pra Quem tem Fé) e milhares de outras canções e artistas. A canção Sobre o Mesmo Chão (Marcos Almeida), do álbum homônimo de 2012 da banda Palavrantiga, pode ser utilizada para apresentar o diálogo que estes compositores protestantes mantêm com as esferas religiosa e secular: Sobre o mesmo chão está o muro E do lado de lá que você esqueceu Meu chão é um mundo Tem dois lados em guerra Meu mundo é este chão Onde você cresceu e eu também 3
O “compromisso brasileiro de adoração” que Borges se refere em sua canção pode remeter para alguns à panfletagem religiosa, mas no nosso entendimento não foi esse o intuito do autor. Sua ideia é mostrar que o artista protestante brasileiro deve ter um compromisso com sua própria cultura, seja na arte, seja no culto.
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Ao redor de muitos Me apontaram as cercas e os muros Eu quis o Caminho Roguei pela vida E vou subvertendo o mundo Amando a esperança que salta os muros E brinca arteira com tua criança A fé ta na Vida Sobre o mesmo chão Bem dentro do mundo A banda passou O amor se espalhando Ainda está
Na verdade, o “chão” é o mesmo, mas o artista cristão precisa “subvertê-lo”, abrindo caminhos para o dialogismo entre as esferas do “sacro” e “secular” ao mesmo tempo em que busca manter suas convicções religiosas. Para Bakhtin (2003:91), “O homem na arte é o homem integral”, ou seja, não há como fragmentar homens e mulheres em campos religiosos e “seculares”. Se esses indivíduos são artistas, suas obras irão naturalmente refletir não apenas suas convicções políticas, religiosas, sociais e artísticas - e enfim culturais -, mas todas elas juntas, de forma homogênea, porém, nem sempre tão transparentes. A arte musical tem seu lugar na cultura que, segundo Eagleton (2011:184), “[...] não é unicamente aquilo de que vivemos. Ela também é, em grande medida, aquilo para o que vivemos. Afeto, relacionamento, memória, parentesco, lugar, comunidade, satisfação emocional, prazer intelectual [...]”, todos esses, assuntos trabalhados pelo grupo de artistas protestantes. Todavia, a cultura não é imóvel, muito pelo contrário, possui grande flexibilidade e poder de fusão (ou hibridação): “[...] hoje todas as culturas são de fronteira. Todas as artes se desenvolvem em relação com outras artes [...] (CANCLINI, 2006:348). Utilizamos estas letras de canções a fim de dialogar com outro pensamento, de Bakhtin (2003:95): “A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial”, ou seja, se eles escrevem ou se apresentam com letras para além dos temas religiosos tradicionais, isso significa que sua visão de mundo está afinada com a liberdade
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poética encontrada nos compositores “de fora”, que não se declaram de determinada religião. A música popular e os protestantismos brasileiros4 estão, portanto, intrinsecamente ligados. Telo Borges, compositor relacionado ao Clube da Esquina, foi convidado a se apresentar em um dos eventos onde boa parte dos artistas protestantes se apresenta ou tem alguma relação, o Som do Céu5. Em depoimento para o documentário Som do Céu 30 anos (2014), Telo conta que ficou impressionado com a plateia presente, que sabia cantar todas as músicas que apresentou, desde a premiada Tristesse (parceria com Milton Nascimento, que a gravou no álbum Pietá, de 2002) até clássicos de seus irmãos Lô e Márcio Borges e outros compositores como Flavio Venturini, Toninho Horta, Beto Guedes e Fernando Brant. Há, portanto, artistas protestantes ligados à MPB e também um “público de evangélicos”6 que conhece e consome a MPB do Clube da Esquina e toda a diversidade musical popular brasileira. Como exemplos desses compositores e grupos musicais protestantes (atuantes), podemos citar: Airô Barros, Aline Pignaton, Alann Marino, Alma e Lua, Aristeu Pires, Arlindo Lima, Baixo e Voz, Banda Matizes, Bruno Albuquerque, Carlinhos Veiga, Carlos Sider, Carol Gualberto, César do Acordeom, César Elbert, Céu na Boca, Crombie, Diego Venâncio, Edilson Botelho, Edson e Tita Lobo, Elen Lara, Elly Aguiar, Erlon Lemos, Expresso Luz, Daniel Maia, Fabinho Silva e Débora Camargo, Fabrício Matheus, Felipe Silveira, Fernando Merlino, Gerson Borges, Gladir Cabral, Glauber Plaça, Grupo Logos, Guilherme Kerr Neto, Ilma Brescia, Ivan Melo, Jader Gudin e Flávio Régis, João Alexandre, Jorge Camargo, Jorge Ervolini, Josimar Bianchi, Júlia Ribas, Marcos Almeida, Mário Valadão, Miguel Garcia, Nando Padoan, Nelson Bomilcar, Priscila Barreto, Roberto Diamanso, Rubão, Sal da Terra, 4
Apesar do título desse artigo, preferimos utilizar o termo protestantismo no plural, para lembrar que não há apenas “uma voz protestante brasileira”, mas várias (MENDONÇA; VELASQUES FILHO, 1990:11). 5 Dois eventos reúnem todos os anos parte do grupo para apresentações: o Som do Céu, em São Sebastião das Águas Claras (MG), organizado pela missão Mocidade para Cristo (MPC Brasil) há 30 anos, e o Nossa Música Brasileira, em Arujá (SP), organizado pela missão Jovens da Verdade, há 8 anos. 6 A terminologia “público de evangélicos” está sendo usada para mostrar que, apesar dessa plateia ser, por vezes, a mesma que consome música de outros artistas (não declarados como religiosos), ela geralmente também faz a dicotomia entre “sagrado” e “secular”. Ao participar do momento de música em um culto, por exemplo, se vê cantando "apartada das coisas do mundo". Portanto, geralmente o protestante se torna nos eventos cristãos um público ímpar, que vê na música praticada nesse espaço/tempo uma forma de redenção espiritual e não entretenimento ou outras finalidades. No entanto, assim como são vários os protestantismos, entendemos que são várias as percepções e intuitos de cada indivíduo. Não estamos, portanto, generalizando, como se todos os evangélicos pensassem o mesmo em relação à música que consomem e praticam, mas constatando que existe um número considerável de pessoas com essa mentalidade em relação à música.
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Silvestre Kuhlmann, Simonami, Stênio Marcius, Tiago Vianna, Toninho Zemuner e Rubem Amorese, Vavá Rodrigues, Vencedores por Cristo (VPC), Wanda Sá (que possui uma trajetória na história da bossa nova) e Wesley e Marlene. Esse grupo de artistas não se encaixa, geralmente, na estética do gospel (voltada para o mercado de massa), nem no meio alternativo (underground cristão, onde prevalecem bandas de trash metal e outras vertentes focadas em nichos musicais específicos), mas estão inseridos na terminologia “música brasileira”, que se difere do rótulo “MPB”, como geralmente é aplicado: Outra questão que se coloca em termos de conceituação é música “popular” ou música “brasileira”. É comum a junção dos dois adjetivos na expressão “música popular brasileira”. No entanto ao observarmos as práticas referentes a esta representação vamos perceber certas ambiguidades, pois “música popular brasileira” se distancia tanto da noção de música popular enquanto música tradicional, de natureza essencialmente oral e artesanal, quanto da noção de música popular enquanto música de massa. “MPB”, uma rubrica incorporada pela indústria musical para se referir a um segmento do mercado, reflete uma prática e uma concepção por um lado contraditória (popular, mas não comercial, mesmo sendo produzida e distribuída como bem de consumo; próxima às “raízes” rústicas regionais, mas “sofisticada” e “elaborada”) e por outro excludente (nem toda música popular feita e consumida por brasileiros é “brasileira”). (ULHÔA, 1997:1-2). MPB pode servir para Edu Lobo, Guinga, Caetano… E para Skank, Chico Science, Ed Mota, Cássia Eller, Titãs, Paralamas e Sepultura? Quais são as fronteiras que distinguem claramente uma coisa da outra? MPB serve e não serve para definir uma produção de música urbana vital, em processo de transformação, com muita absorção de diferentes sons e dotada de diferentes sotaques, que vão se modulando, se combinando e se contrapondo. (WISNIK, 2007:3).
Citados todos esses compositores e grupos musicais como exemplos, a pergunta é: Porque a maioria deles não é conhecida de uma parcela maior da população brasileira para além das paredes dos templos e dos eventos protestantes?
Desencontros: ruídos na comunicação Sobre o mesmo chão está o muro Marcos Almeida
A comunicação é fruto do pensamento humano e de sua vontade política em compartilhar, guardar e sintetizar novas informações (FLUSSER, 2007:91;94;97). Como escreveu
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Bordenave (1979:17-17), “[...] a comunicação não existe por si mesma, como algo separado da vida da sociedade. Sociedade e comunicação são uma coisa só. Não poderia existir comunicação sem sociedade, nem sociedade sem comunicação”. Para além da linguagem falada e escrita, comunicação é também - entre diversas outras definições – os meios que nos circundam, desde o telefone, passando pelo rádio e TV até a internet. Uma das hipóteses que levantamos para o afastamento da maioria destes compositores e grupos musicais citados com um público maior é o preconceito que esses artistas enfrentaram (e ainda enfrentam) nos meios midiáticos, pois há uma grande dificuldade deles conseguirem rádios, programas de TV, matérias e entrevistas em jornais, revistas e sites de grande circulação para sua divulgação e consequente circulação. A recusa dos meios midiáticos em propagar as obras desses artistas é, possivelmente, um dos principais entraves para conseguirem alcançar as massas. Quem não tem acesso aos meios de comunicação não tem ampla liberdade de expressão. Tuco Egg (2014), organizador do Sarau Facamolada, de Blumenau (SC), conta um exemplo que é ilustrativo dessa problemática: em 2009, levou o CD Cores (2005) da dupla Baixo e Voz a uma rádio FM da cidade a fim de divulgar o evento. Antes mesmo de ouvir, um dos apresentadores, ao ler o nome das músicas disse que não tocaria, pois “aquilo era música de igreja”. Esse e outros episódios semelhantes como a recusa do administrador de um blog chamado “Um que Tenha” em divulgar o CD Viagens de Fé (2008) por ele “conter conotação religiosa” (palavras do administrador, “Fulano Sicrano”) foram motivo para que o duo Baixo e Voz escrevesse em 2010 a Carta aberta ao blog “Um Que Tenha” (e à mídia brasileira), a respeito de sua visão sobre as relações entre música popular, religião e mídia. Privar grupos sociais, sejam eles religiosos ou não, de se comunicarem é fruto de preconceito, autoritarismo ideológico ou disputa de poder. Os únicos meios que esses artistas protestantes têm encontrado para exercer de forma mais livre a promoção de seus trabalhos atualmente são os digitais. Como afirmou Mulgan (apud CASTELLS, 1999, p. 109), “[...] as redes são criadas não apenas para comunicar, mas para ganhar posições, para melhorar a comunicação”. No entanto, essa divulgação se esvai em meio a tanta informação, como “uma gota lançada no oceano da comunicação global” (CASTELLS, 2009:103). Outra hipótese para o afastamento dos artistas protestantes com um público maior ocorre no inverso do primeiro caso: a negação desse grupo de artistas em se relacionar com a mídia, o
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meio fonográfico e em especial com as majors (grandes gravadoras), seja por preconceito, seja por desconhecimento do papel histórico desses meios, o que os levou a trabalhar basicamente em pequenos e médios eventos evangélicos. Sem o aparato industrial fonográfico e os meios de comunicação, seus produtos e shows ficaram sem uma divulgação e distribuição profissionais, impedindo o alcance de outros públicos7. Com o tempo, tal barreira foi sendo rompida por alguns que assinaram contratos com gravadoras, como os grupos Logos na Line Records e o Palavrantiga na Som Livre, ou que passaram a buscar em editais municipais, estaduais e federais os incentivos financeiros para continuarem produzindo CDs e a circularem com seus shows (como foi o caso de Aline Pignaton). Além destas iniciativas, Baixo e Voz, Gerson Borges, Carlinhos Veiga e Vencedores por Cristo já utilizaram o crowdfunding8, como meio de produção de alguns de seus trabalhos. Um terceiro motivo se relaciona à dicotomia entre “arte secular” e “arte sagrada” que, apesar de ser um assunto superado para a maioria desses artistas, continua presente ainda em muitas denominações protestantes. Uma vez que o público desses artistas se restringe praticamente à Igreja evangélica e essa tem restrições em seus eventos e cultos quanto às letras que não trabalham o “sagrado” de forma explícita, o repertório e apresentações desses compositores e bandas foram sendo direcionados apenas à demanda religiosa. Com isso, tornaram-se aos poucos, “artistas exclusivos” de denominações protestantes chamadas de “históricas” como a presbiteriana, batista, metodista, luterana e congregacional, dentro do segmento evangélico. Usar os conceitos de “secular” e “sagrado”9 foi um argumento eficaz tanto da parte da Igreja, que não queria seus membros-artistas “flertando com o mundo”, como da indústria
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Houve quatro tentativas (que não tiveram grande êxito) mais promissoras de reunir esses artistas a fim de distribuir e divulgar seus trabalhos. A primeira delas está relacionada ao VPC Produções e Distribuição; a segunda, com um programa de entrevistas curtas e músicas chamado Plataforma (LPC produções), criado por Jader Gudin (direção) e Davi Heller; a terceira foi a loja virtual VeroShop (atuante); a quarta, uma iniciativa de Jorge Camargo e sua esposa, Ana Paula Spolon, que tentou reunir a maioria do grupo em um blog que divulgaria agendas, biografias e outras informações, chamado “Ajuntamento”. 8 Crowdfunding é uma forma de captação de recursos financeiros que, no caso citado, se vale de plataformas virtuais como Mobilize, Catarse e Embolacha. A ideia é oferecer “recompensas” para pessoas que comprem produtos e serviços que estão em vias de produção e desenvolvimento, viabilizando assim a produção final. 9 A tradição protestante reformada entende que existe o “sagrado” (ou sacro, espiritual) e o “secular” (ou profano, material), não como forças equivalentes, mas opostas. Entretanto, ensinaram que o homem é um só, ou seja, que não pode ter sua vida dividida em caixas estanques entre “sacro” e “profano”. A discussão a que nos referimos está relacionada a uma confusão de parte da Igreja protestante no que tange à dicotomia entre esses
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fonográfica, que encontrou um meio de lucrar com selos relacionados ao gospel, ganhando muito com uma clientela até então inexistente para o mercado da música. Alguns desses problemas foram detectados por parte do grupo e discutidos no 25º Som do Céu (2009), quando foi redigida a Carta do Som do Céu, documento que se tornou um manifesto desses artistas mostrando sua rejeição à dicotomia entre “sagrado” e “secular”, reafirmando seu compromisso com Deus e com a arte (e não com o mercado, apesar de poder se valer dele) e de sua visão a respeito da relação das denominações evangélicas brasileiras com as artes (as igrejas devem ser, na visão desses artistas, promotoras de cultura artística).
Considerações finais Buscamos apresentar nestas poucas páginas algumas possibilidades para o cenário de mais de 40 anos de comunicação (e sua falta) entre os artistas protestantes e a mídia e um público mais expressivo. Boa parte desses compositores, cantores e instrumentistas merece trabalhos acadêmicos exclusivos10, seja frente à sua extensa produção, seja pela excelência em grande parte de suas composições e arranjos ou seja pela relação com as instituições religiosas. Além da música, é bom lembrar que outras linguagens artísticas como as artes visuais, audiovisuais, dança, teatro e literatura também são alvo de artistas relacionados ao grupo citado, levando a outros diálogos sobre arte, religião e cultura. Como escreveu o compositor Marcos Almeida (2012) em seu blog, vivemos tempos de simultaneidades, onde artistas evangélicos (mais especificamente relacionados ao gospel) alcançam reconhecimento do mercado e públicos de massa no Brasil ao mesmo tempo em que diversos outros artistas cristãos continuam surgindo e produzindo arte para além dessa grife. Esses artistas protestantes podem ser encaixados na definição que Canclini utilizou ao citar Caetano Veloso e Astor Piazzola:
dois mundos, o “material” e o “espiritual”. Assim como ensina a tradição reformada, fragmentar a vida entre essas duas esferas é empobrecê-la (ROOKMAAKER apud AMORIM, 2009:115). 10 Um dos compositores protestantes mais influentes, Sérgio Pimenta (já falecido), foi tema de uma dissertação defendida na USP em 2000, de autoria de Érica de C. Vicentini, cujo título é Sérgio Pimenta: canção e propaganda religiosa (1968-1987).
15 São apenas alguns exemplos de artistas anfíbios, capazes de articular movimentos e códigos culturais de diferentes procedências. Como certos produtos teatrais, como grande parte dos músicos de rock, eles mostram que é possível fundir as heranças culturais de uma sociedade, a reflexão crítica sobre seu sentido contemporâneo e os requisitos comunicacionais da difusão maciça. (CANCLINI, 2006:361).
Esperamos que esse artigo colabore para que a academia e mais pessoas conheçam esses e outros artistas que estão ligados não apenas à religião de viés protestante, mas também à história e cultura deste país. Como disse o compositor Lenine, “E pra entender o Brasil, há que se ouvir muitos depoimentos.” (EVANGELISTA). Referências bibliográficas ALMEIDA, Marcos. Aquela trilha está virando caminho. 2012. Disponível em: . Acesso em mai. 2014. AMORIM, Rodolfo. O senhorio de Cristo e a redenção das artes: um olhar sobre a vida, obra e pensamento de Hans Rookmaaker. In: RAMOS, Leonardo; CAMARGO, Marcel; AMORIM, Rodolfo (Orgs.). Fé cristã e cultura contemporânea. Viçosa: Ultimato, 2009. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BORDENAVE, Juan Diaz e CARVALHO, Horacio Martins de. Comunicação e planejamento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. BURKE, Peter. O que é história cultural? Rio de Janeiro: Zahar, 2005. CABRAL, Gladir da Silva; PEREIRA, Sérgio Paulo de A. Contracultura no protestantismo: o álbum De vento em popa (1977). Revista Ciências da Religião – História e Sociedade, São Paulo, v. 10, n. 2, p. 119-139, 2012. CALVANI, Carlos Eduardo B. Teologia e MPB. São Paulo: Loyola/ UMESP, 1998. CAMARGO, Jorge. De vento em popa: fé cristã e música popular brasileira. São Paulo: Reflexão, 2009. CANCLINI, Néstor G. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da Modernidade. São Paulo: Edusp, 2006. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 14. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999. ______. Communication power. Oxford: University Press, 2009. EAGLETON, Terry. A ideia de cultura. São Paulo: Editora Unesp, 2011.
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