MUITO ALÉM DA SALA DE AULA: ALGUNS PRINCÍPIOS EDUCATIVOS EM ASSENTAMENTOS DO MST EM MINAS GERAIS BEYOND THE CLASSROOM: SOME EDUCATIONAL PRINCIPLES IN SETTLEMENTS OF THE MST IN MINAS GERAIS Écio Antônio Portes* Alexandra Resende Campos** Mariana Carlinda Ferreira Moura** Valéria de Oliveira Santos** Resumo O presente trabalho procura mostrar - a partir de uma perspectiva etnográfica, apoiado em três relatos de experiências efetuados por estudantes urbanos do Curso de Pedagogia da Universidade Federal de São João del-Rei, que descrevem rotinas em comunidades organizadas pelo MST em Minas Gerais - como o campo pode se transformar em um espaço educativo para além do meramente escolar, mesmo que a escola formal faça parte e esteja no horizonte dos trabalhadores que lutam pela posse da terra. Os relatos permitem ainda extrair alguns princípios pedagógicos mais gerais presentes nas diferentes práticas empreendidas pelo MST. Palavras-chave: MST, Educação Não-formal, Práticas Educativas. Abstract From an ethnographic perspective, based on three reports of experiments carried out by urban students of the Course of Pedagogical Studies of the Federal University of São João del Rei, which describe the daily life in communities organized by the MST in Minas Gerais, this work endeavors to show how the country can be transformed into an educational space, beyond the school space itself, even though the formal school may be part of and remains in the horizon of the workers who fight for the ownership of the land.The reports here studied allow for the realization of some general pedagogical principles present in the diverse practices engendered by the MST. Key words: Non-formal Education, Educational Practices. 1 Introdução O cenário rural vem se configurando como importante espaço de pesquisas e discussões. Isso se deve ao fato da complexidade dos fenômenos sociais que as populações rurais vêm enfrentando, desde a segunda metade do século XX, em função da degradação propiciada pela penetração do sistema capitalista nos modos de produção dos pequenos camponeses e agricultores. Segundo Vendramini (2004), a modernização da agricultura favoreceu a concentração da propriedade de terra e a subordinação do trabalhador do campo às novas exigências das agroindústrias, destruindo as pequenas unidades de produção.

No que se refere ao contexto educacional, é possível verificar uma série de estudos e pesquisas que vêm enfatizando os diversos problemas confrontados nesse espaço. A literatura concernente aos estudos rurais vem demonstrando que existe um descompasso entre as especificidades culturais desse meio e o currículo utilizado nas escolas rurais. Em estudo apresentado por Schutz e Chesterfield (1978), é possível constatar algumas alternativas educacionais para o meio rural com ênfase nos problemas enfrentados pela inadequação do currículo. Também são relevantes os estudos que abordam as relações do processo de modernização do campo com a educação rural (Barrero, 1987), os programas extensionistas e as interferências causadas no modo de vida do camponês. O descaso do governo em relação a essa modalidade de ensino pode ser verificado em Arroyo (1982), em que é evidenciada a maneira como os projetos educacionais para o campo, ao longo da história, foram abordados como uma educação de cunho exclusivamente utilitarista e associada ao desenvolvimento tecnológico do campo. É possível afirmar que os estudos relacio-nados à educação rural são diversificados e apontam as precariedades enfrentadas nesse meio. Dentre elas, podemos citar a insuficiência dos materiais pedagógicos, a evasão escolar, a baixa qualificação do corpo docente, dificuldades para transportar os alunos à escola e condições inadequadas das instalações dos prédios escolares, entre outros problemas (Cavalcante, 2003). Entretanto, pesquisas e estudos mais recentes revelam alguns avanços e conquistas, ainda que gradativas, relacionadas à educação rural, ao ressaltar que essa modalidade de ensino deve ser valorizada, dada a riqueza cultural e as especificidades dessa população. Além disso, a ampliação e o reconhecimento do direito de todos à educação contribui para tais avanços. Os movimentos que priorizam uma educação básica do campo, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), objetivam construir um processo pedagógico em que os conteúdos escolares estejam voltados e interligados com a realidade do meio social desses sujeitos e baseado no tipo de cidadão que pretendem formar. O MST apareceu no bojo da formação de vários movimentos sociais ocorridos nos anos setenta. Segundo Fernandes (1999), "no início desse período, no campo, em diversos estados, aconteceram lutas localizadas que deram origem ao MST" (p. 66). Essas lutas, segundo o autor, traziam em si uma experiência comum: sua forma de organização. Em pesquisa realizada em um assentamento rural do Rio Grande do Sul, Knijnik (2003) analisa a experiência de um projeto centrado na matemática em que os alunos da 7ª série participam da elaboração de problemas relacionados às atividades produtivas do próprio assentamento. Dessa forma, os alunos lidam com problemas matemáticos provenientes de seu meio e também trabalham em conjunto, envolvendo as famílias assentadas e o agrônomo que acompanha as atividades técnicas e administrativas. Também se destacam algumas pesquisas que analisam os processos educativos e os métodos pedagógicos utilizados em escolas ligadas ao MST, como, por exemplo, a de Caldart (2003a, 2003b). Segundo Menezes Neto (2003), em trabalho realizado sobre a experiência do Curso Técnico em Administração Cooperativa (TAC), mantido pelo MST, é significativo o número de alunos que, após se formarem, pretendem contribuir com seus conhecimentos técnicos para o desenvolvimento dos assentamentos. Aliás, esse também é um dos princípios da pedagogia desse Movimento. O conhecimento deve propiciar o desenvolvimento no interior dos assentamentos no que se refere à produção, à saúde, às formas mais sofisticadas do cultivo da terra, de acesso à educação e ao saber e, também, deve suprir as necessidades dos filhos dos trabalhadores rurais. Em pesquisas recentes sobre o campo, Arroyo (2004) mostra que existe uma relação entre movimentos sociais e educação. Ressalta a forma como esses sujeitos estão inseridos em um processo educativo e destaca que, no interior dessas práticas, existe um "movimento pedagógico" que não fica restrito a uma educação escolar. Como afirma Pereira (2003), para os educadores do MST, o processo educativo não está

presente somente nas salas de aula, mas em vários momentos e espaços em que estes sujeitos estão inseridos. De acordo com esses autores, é possível afirmar que existe um "movimento pedagógico" no interior desses movimentos, especificamente o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), no qual centraremos nosso foco de análise. Trata-se de um processo educativo não formal que está presente no cotidiano desses sujeitos e pode ser verificado se levarmos em consideração as relações que se estabelecem no interior dos acampamentos e assentamentos, nos propósitos de lutas, nas assembléias, nas mobilizações, nas místicas, nas cirandas e nas reuniões de setores, dentre outras. Acrescenta-se, também, para o enriquecimento dessas práticas, o ideal de coletividade proposto pelo Movimento, possibilitando um processo de humanização entre os Trabalhadores Rurais Sem-Terra. É por esse ambiente de interação que o processo pedagógico se faz presente, apresentando-se como amplo e ilimitado. Nesse sentido, o presente texto procura mostrar como o campo se transforma em um espaço educativo, que não se resume meramente a uma educação escolar, mesmo que ela faça parte da luta. Foi essa singularidade que orientou o nosso olhar diante das experiências vividas. Para tanto, utilizaremos três relatos distintos que descreverão o cotidiano e a rotina de algumas áreas que se encontram sob a orientação do MST (pré-assentamento e assentamento)1. É importante ressaltar que as experiências vivenciadas e relatadas foram propiciadas devido à participação de três estudantes do Curso de Pedagogia da Universidade Federal de São João del-Rei, UFSJ, no 3º EIV/MG (Estágio Interdisciplinar de Vivência nos Acampamentos e Assentamentos da Reforma Agrária de Minas Gerais) em janeiro de 2006. Para a consecução do objetivo proposto, utilizamos a perspectiva apresentada por Geertz (1989) e Fonseca (1999), no que se refere à etnografia, pois o estágio implicava em uma convivência diária e prolongada com os moradores dos acampamentos e assentamento visitados. Para a composição do texto, priorizamos os dados produzidos pela observação direta e participativa efetuada por nós, como passamos a relatar e analisar a seguir. 2 O Pré-assentamento Estrela do Norte2 Após cinco dias intensos de preparação na cidade de Belo Horizonte, os estagiários foram divididos em duplas pela comissão organizadora do 3º EIV/MG. Cada dupla foi redistribuída para áreas distintas entre acampamentos e assentamentos da Reforma Agrária de Minas Gerais, permanecendo durante quinze dias no local. Dessa forma, fui enviada, juntamente com outra estagiária, para o Pré-Assentamento Estrela do Norte. Localizado a vinte quilômetros da cidade de Montes Claros, norte de Minas Gerais, o Estrela do Norte fica em uma das regiões de maior conflito agrário, onde o latifúndio é mais predominante historicamente. Surgiu em abril de 2003, quando mais de cem famílias participaram da ocupação de uma fazenda que atualmente abriga um total de trinta e uma famílias. Apesar de ser uma região seca, de calor intenso, em janeiro, mês em que o estágio se realizou, a paisagem do local era bastante vistosa. Em frente ao Estrela do Norte, encontrase uma grande serra, dando a impressão de ser uma muralha coberta por plantas e árvores. Além disso, em várias áreas é possível se deparar com lagos e lagoas, embora mais afastados das casas e barracos. Algumas famílias moram em barracos de lona preta e outras habitam algumas casas velhas, que aparentam ter sido de antigos empregados da fazenda. A sede do pré-assentamento, onde acontecem reuniões, cursos, festas e outros eventos, dá mostras de ter sido um casarão luxuoso e ainda se encontra em bom estado de conservação. Possui um amplo quintal ao redor da casa e uma grande piscina que permanece sempre vazia devido à escassez de água próximo à sede. Cada família possui sua "roça", onde planta milho, feijão, melancia, quiabo, maxixe, abobrinha, mandioca etc. Inicialmente, organizaram uma criação coletiva de galinhas e porcos.

Entretanto, devido a algumas dificuldades que surgiram, os animais foram distribuídos entre as famílias. Algumas famílias também possuem algum gado. Com o leite, fabricam queijo e requeijão para o consumo próprio e, às vezes, vendem o excedente para os moradores de Montes Claros. Pela participação no 3º EIV, tive a oportunidade de conviver com essas famílias e participar do cotidiano e dos modos de organização dos diferentes sujeitos que compõem o pré-assentamento Estrela do Norte. Nos primeiros dias, muitos moradores me observavam de forma curiosa. Outros demonstraram saber que se tratava apenas de uma universitária e que o meu objetivo era conhecer um pouco do dia-a-dia das famílias. No começo, algumas pessoas manifestavam certa timidez diante da minha presença. Mas, com o decorrer dos dias, foi possível cultivar amizades e conhecer um pouco de cada família. Durante estes dias, fiquei hospedada em uma casa, onde um jovem casal e seus três filhos pequenos, com dez, oito e seis anos de idade, me receberam. Na mesma casa, também moravam um senhor e mais três rapazes. Montaram uma cama na sala, onde eu dormia e deixava minha mala durante o dia. Como todas as outras casas que existem no local, a que eu estava era bastante velha e simples, sem luxo e grande conforto. Todas as manhãs em que o pai das crianças saía para ir ao curral cuidar do gado e tirar leite, levava um de seus filhos. Para as crianças, parecia ser a melhor parte do dia. Presenciei várias cenas delas reclamando com sua mãe por não tê-las acordado cedo para acompanhar o pai. O mais velho ficava, grande parte do dia, falando sobre vacas e cavalos. Às vezes, relatava algum acontecimento anormal que havia se sucedido com seu potro, principalmente quando o animal ficava nervoso e dava pequenas galopadas. Também presenciei cenas dos irmãos mais velhos colocando o caçula na garupa do potro para buscar o gado no pasto, transmitindo, mesmo que indiretamente, conhecimentos relacionados à melhor forma de lidar com esses animais. Ajudei nas tarefas rotineiras. Debulhava milho, buscava água para encher os vasilhames da casa, ia para a "roça" colher milho, feijão, maxixe e quiabo, varria o quintal e ajudava nas tarefas domésticas. Tais fatos contribuíram para suavizar o modo como as pessoas me enxergavam. Gradativamente, fui deixando de ser apenas uma universitária para ser uma companheira e amiga de algumas famílias, principalmente das crianças e adolescentes. Outro fato também que propiciou uma melhor interação com as famílias se deu em uma noite em que ocorreu a distribuição de alguns mantimentos excedentes que estavam na sede. A convocação se deu pelo estouro de rojão, sinal característico para convocar de forma rápida as famílias à sede (as mesmas se reuniram em menos de dez minutos). Também participaram da distribuição dos mantimentos dois militantes responsáveis pelo setor de educação que visitavam o pré-assentamento. Um deles proferiu um pequeno discurso abordando questões sobre a importância de todas as crianças estudarem, falou ainda de um projeto futuro de implantação de uma escola no pré-assentamento, enfatizando a importância da busca do conhecimento como principal aliado para a obtenção dos propósitos de luta defendidos pelo Movimento. Em seguida, fui convidada para me apresentar às famílias, embora tivesse estabelecido certa proximidade com alguns sujeitos, outros ainda me ignoravam e me tratavam como uma estranha. Após uma breve apresentação, fui aplaudida e novamente me convidaram para cantar o hino do MST e hastear a bandeira do Movimento, em companhia de um Sem-Terra que está cursando Pedagogia da Terra na Universidade Federal de Minas Gerais. Todos cantavam o hino, as crianças ficaram na frente dos adultos e todos erguiam o braço esquerdo para cantar o refrão. "Vem, lutemos punho erguido, nossa força nos leva a edificar. Nossa pátria livre e forte construída pelo poder popular". Depois que terminaram de cantar, um dos dirigentes do Estrela do Norte pediu a palavra. Ressaltou a

importância de todos continuarem firmes no propósito de luta do Movimento, destacando todos os avanços que obtiveram desde quando ocuparam a terra, principalmente pelo fato de terem construído um projeto para montar uma cooperativa para produzir requeijão. Enfatizou, também, que deveriam mostrar para os moradores de Montes Claros que estavam produzindo e tirando o próprio sustento da terra que ocuparam. No final de sua fala, todos que estavam ali pronunciaram algumas palavras de ordem. "Estrela do Céu; estrela do Che; somos Sem-Terra do MST". É importante destacar que as crianças participaram o tempo inteiro das comemorações, cantando o hino e proferindo palavras de ordem, o que desperta nelas um interesse sobre os ideais propostos pelo Movimento, sobre a história de luta dos Sem-Terra. Essas manifestações incorporadas, também, influenciam a formação dessas crianças. Aos poucos, consegui interagir com vários sujeitos, o que possibilitou observar e vivenciar como as questões educativas não-formais são marcantes na rotina das crianças e dos adultos. Durante o dia, quase todos os adultos trabalham e só descansam no período da noite. Como as crianças estavam em período de férias escolares, ficavam brincando o dia todo; às vezes, davam um pequeno auxílio nos trabalhos rotineiros, como buscar água para encher os vasilhames de suas casas ou buscar ovos no galinheiro. Interessante ressaltar que, quando essas crianças realizavam essas atividades, presenciavam outras ajudando-as a concretizar tais tarefas. Também são comuns reuniões no período da noite ou no final da tarde para tratar de assuntos referentes ao setor de produção, saúde, educação e possíveis problemas que surgem no interior do pré-assentamento. Tive a oportunidade de participar de duas dessas reuniões. Uma para tratar questões referentes à área em que cada família possuía sua "roça" e a outra para discutir a implantação de uma horta medicinal. Na primeira, a dirigente responsável pelo setor de produção desenhou um mapa do pré-assentamento, em um grande papel e pediu para que cada família demarcasse a localização de sua roça. Muitos demonstraram dificuldades em localizar a sua posse no mapa. Os Sem-Terra interagiram e ajudaram a localizar a "roça" de seus companheiros. Alguns relataram o fato de enfrentar problemas com pragas. A dirigente do setor de produção é engenheira agrícola e apontou algumas soluções para sanar os problemas levantados. Na reunião referente à implantação da horta medicinal, a interação foi significativa. O objetivo da mesma era discutir sobre a diversidade de plantas que eles iriam cultivar e como utilizariam uma verba que haviam recebido para a concretização do projeto. Apesar de participarem da reunião somente os responsáveis pelo setor de saúde, totalizando umas oito pessoas, todos apontaram soluções para os possíveis obstáculos que poderiam enfrentar em relação ao clima e deram sugestões quanto aos tipos de plantas que poderiam cultivar. Um senhor também sugeriu que comprassem um livro que tratasse sobre os diversos tipos de plantas medicinais, pois a utilização desse material facilitaria a seleção das espécies. Cabe ressaltar, também, que uns sete dias antes da realização dessa reunião alguns Sem-Terra saíram em cavalgada pela região em companhia da engenheira agrícola. Tinham como objetivo coletar mudas de plantas para serem utilizadas na horta medicinal. Os tipos de plantas que eles encontraram foram discutidos e citados durante a reunião. Nessas reuniões, é explícita a troca de conhecimentos entre esses sujeitos. Alguns Sem-Terra contribuem com o conhecimento que têm em relação ao assunto abordado, que é debatido e discutido até se chegar a um ponto comum. Em relação aos filhos dos trabalhadores rurais Sem-Terra, foi possível constatar, por meio de conversas informais, principalmente entre os adolescentes, que eles valorizam a escolarização como um importante meio para adquirir conhecimentos e se tornarem cidadãos mais conscientes da realidade social em que estão inseridos. Também, por essas conversas, pude presenciar um conflito interno entre dois adolescentes. Questionado por um amigo se naquele ano ele iria participar de alguma ocupação, o jovem prontamente respondeu "vou participar de todas que for possível", revelando o espírito de solidariedade que o MST procura criar nos jovens. O primeiro, com certa indignação, não aceitou a opinião de seu companheiro, argumentando: "A gente vai pra oitava série, vai ter formatura. Esse ano não vou fazer ocupação, não", revelando suas preocupações com um futuro pessoal mais imediato.

É comum crianças e adolescentes discutirem sobre os cursos de que já participaram, ligados ao Movimento. Em uma das casas que eu visitei, usava uma blusa estampada com o rosto de Che Guevara. Imediatamente um rapaz me abordou com um livro que enfatizava a vida do revolucio-nário e a sua biografia. Ressaltou que ganhou esse material em um curso de que participara em Belo Horizonte. Ele, sua irmã e sua mãe falaram com entusiasmo sobre o curso e sobre o material que haviam recebido, entre eles o livro de Che Guevara. Quanto ao futuro profissional desses jovens, a maioria ainda não tinha uma meta definida em suas vidas, com exceção de uma adolescente que demonstrou interesse em ser professora e outra, que, segundo sua mãe, pretende continuar seus estudos e, posteriormente, se tornar uma militante. Em relação a esta última, foi possível verificar que ela pretende estudar no Rio Grande do Sul, em uma escola técnica mantida pelo MST. Ela pretende fazer o curso Técnico em Administração Cooperativista - TAC. Porém, seu interesse em se tornar uma militante, segundo ela ressaltou, também se liga ao fato de os militantes do MST viajarem, a trabalho, por todo o país. Por meio dessa informação, foi possível verificar que a aspiração que essa garota apresenta em ingressar no TAC e o desejo futuro de se tornar uma militante não se revelam somente como um meio de valorizar o conhecimento como instrumento para contribuir para o desenvolvimento de áreas pertencentes ao MST. Mas, também, demonstra um desejo individual, talvez reprimido em detrimento dos ideais coletivistas propostos pelo Movimento, utilizando como estratégia para ter "uma vida mais confortável", como ela mesma afirmou, ao "viajar pelo país". Quase todas as noites os jovens do Estrela do Norte se reúnem na sede para bater papo, escutar música, jogar baralho e, às vezes, tocar violão. Nesse ambiente, os jovens conversam sobre vários assuntos, namoro e acontecimentos internos do pré-assentamento, entre outros. Enfim, foram diversos os momentos em que presenciei o processo de ensino-aprendizagem como elemento fundamental para constituir a formação básica desses sujeitos como cidadãos que lutam pela concretização de seus sonhos e direitos. Apesar de existirem algumas contradições internas, os diferentes sujeitos se constroem coletivamente devido ao processo educativo que ocorre no interior dos acampamentos e assentamentos pertencentes ao MST. Na minha experiência, pude ver um pouco da pedagogia do MST, diferente daquela ressaltada diariamente nos noticiários da grande imprensa. Pude ver um pouco de uma pedagogia miúda, que não serve como notícia, mas se revela eficiente no cotidiano das famílias 3 O Assentamento Gilberto de Assis3 Este Assentamento localiza-se na fazenda São Paulina, na cidade de Resplendor, na região do Vale do Rio Doce, e existe há cerca de um ano e sete meses. Essa região não possui um histórico de luta pela terra nem de ocupações. Aqui, a repressão é menor do que em outras regiões do Estado de Minas Gerais. A maior parte das fazendas, incluindo a São Paulina, foram compradas pelo INCRA para assentar as famílias. A única ocupação na região aconteceu há cerca de oito meses. O assentamento Gilberto de Assis tem esse nome em homenagem a um jovem militante da região que ajudou na ocupação do Acampamento Chico Mendes e faleceu após uma cirurgia. Os assentados e, principalmente, os jovens militantes, têm grande admiração por esse jovem e o consideram um exemplo. Esse assentamento possui características de um Pré-Assentamento: as famílias ainda moram próximas umas das outras em barracos de lona e adobe. O INCRA dividiu os lotes e muitas famílias já sabem onde construir e plantar, porém ainda não receberam auxílio do Governo Federal, como as verbas para construção das casas e as cestas básicas. Grande número de famílias é de origem urbana e proveniente de

um acampamento chamado Padre Higino, que fica próximo à cidade de Governador Valadares. Essas famílias reclamam muito, pois o Padre Higino é um acampamento que existe há cerca de cinco anos, possui melhores condições estruturais do que o Gilberto de Assis e fica próximo à cidade, o que facilita o acesso a escolas e a atendimento médico. Este problema da dificuldade de acesso às cidades próximas é um dos maiores empecilhos enfrentados pelos assentados. Outro problema é a questão climática. A região é muito quente e seca, o que muitas vezes leva ao risco de se perder toda a plantação devido à seca. Apesar do clima, a região é rica em minas de água e muito bonita. Os assentados plantam em roças separadas alimentos, tais como milho, arroz e mandioca, e alguns possuem criações e gado, de onde tiram o leite. Tanto a plantação quanto a criação de animais são para a subsistência das próprias famílias e eles se ajudam trocando alimentos e até doando uns aos outros. Os assentados possuem certa dificuldade de trabalhar em conjunto. Um exemplo disso é a horta comunitária que eles possuíam, a qual deveria ser cuidada pelas mulheres, mas, devido à falta de organização, essa horta foi tomada pelo mato. Uma questão cultural predominante na região e que atinge latifundiários, pequenos proprietários e assentados, é a imigração ilegal para os Estados Unidos. Aqui, o canto da sereia encanta a todos! O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra realiza um trabalho intensivo de conscientização e formação de militantes junto aos assentados, independente do pertencimento racial, da origem geográfica (urbana ou rural), da idade, do sexo ou do grau de escolaridade. O Gilberto de Assis possui uma turma de alfabetização de jovens e adultos que funciona em um curral desativado. A turma é pequena e a educadora é uma voluntária com formação de nível médio. A educação dentro de um assentamento não se resume à educação escolar. Todos falam com muita propriedade da necessidade do conhecimento e da escolarização das crianças e dos jovens, mas valorizam a formação para a militância, que muitas vezes acontece informalmente, nas conversas, nas reuniões de núcleos e brigadas ou até mesmo na preparação para as ocupações. O modelo de organização do MST garante que os assentamentos sejam espaços informais de educação. As brincadeiras das crianças giram em torno do campo, as cirandas falam da luta pela terra e da importância da resistência. Os adultos discutem sobre política, sobre o papel e a atuação dos coordenadores de setores, gerenciam e aplicam o modelo de organização do MST de acordo com suas necessidades, pois são autônomos para tomar decisões desde que atendam e respeitem as demandas do coletivo. Muitas vezes, fui questionada pelos assentados sobre o porquê de estar estagiando em um assentamento e, em outros momentos, fui cobrada sobre o que pretendia fazer depois que retornasse à universidade. Alguns falavam sobre a importância da nossa presença lá como arma para desfazer a imagem que a cidade tem sobre os trabalhadores Sem-Terra, imagem formada principalmente pela grande mídia ao denunciar "invasão".4 Um fato importante durante o período em que fiquei nesse assentamento foi perceber a importância que eles dão ao papel do professor, uma valorização diferente da que percebo na cidade. Eles não falam, por exemplo, da profissão do professor pensando no retorno econômico dessa profissão e, sim, da importância do educador na transformação da sociedade. Importante ressaltar que esses diálogos sobre educação não foram travados com pessoas graduadas, mas com sujeitos que não sabiam ler ou escrever e, mesmo assim, tinham uma concepção ampla sobre o que é a educação. As reuniões de setor se constituem em um outro espaço importante de educação e formação. Uma senhora me relatou a necessidade que sentiu de voltar à escola para aprender a ler e a escrever, para poder acompanhar melhor a reunião e anotar os pontos mais importantes, pois, às vezes, a memória falha. Essas

reuniões contam com a presença de crianças, jovens e adultos. Durante meu estágio, tive a oportunidade de participar de uma reunião de Brigada, ou seja, o encontro de coordenadores de setor (saúde, educação, produção, frente de massa, formação) de vários assentamentos e acampamentos de uma região. Nesse caso, foi a reunião da Brigada Quilombo dos Palmares, constituída pelo Acampamento Chico Mendes, Assentamento Gilberto de Assis, Roseli Nunes e Dorcelina Forlador. Nesses encontros, que duram de três a quatro dias, são discutidas as dificuldades e as alternativas, são feitos relatos e até elaboradas estratégias de ocupação nas reuniões de frente de massa, que são mais reservadas devido à necessidade de sigilo sobre algumas estratégias e até para a segurança dos coordenadores. O nível de consciência e participação dos militantes é significativo. Tudo é organizado de forma a agregar, inclusive os assentados mais recentes, criar neles um sentimento de pertença para que eles sintam legitimidade na luta. Para isso, procuram envolver essas pessoas nas coordenações de setores, contemplando a questão de gênero, já que geralmente para cada setor são escolhidos um homem e uma mulher, sem excluí-los, por exemplo, por falta de escolaridade. Outro ponto forte nessa organização é a articulação pela base e a rotatividade dos coordenadores, o que possibilita que todos aprendam a desenvolver a função e evita a formação de líderes, o que é combatido a todo o momento pelo MST. O ambiente também tem uma função pedagógica importante, ornamentado com coisas do campo, como folhas de bananeira e cana-de-açúcar, bandeiras do MST e movimentos parceiros, a imagem de Che Guevara está sempre presente, o que seduz muito os jovens, e faixas com palavras de ordem que são puxadas pelos palestrantes, dirigentes ou até pelos militantes que estão assistindo, toda vez que se percebe cansaço nos participantes. As reuniões sempre se iniciam e se encerram com o Hino do MST e, inclusive, se fala da importância de conhecer e entender a letra do mesmo, a simbologia das cores da bandeira e a postura que se deve ter durante a execução do hino. Todos se voltam para o lado da bandeira, tomam posição de sentido e cantam. Durante o refrão, todos cerram os punhos e os erguem em sinal de luta, acompanhando a letra. É importante ressaltar que todos têm muito respeito nessa hora, inclusive as crianças. Eles tiram os chapéus ou bonés, que só devem continuar na cabeça se forem do MST. Durante essas reuniões, tive contato com uma atividade que não conhecia, a mística, que, segundo uma assentada que cursa Pedagogia da Terra na Universidade Federal de Minas Gerais, serve para preparar os militantes, envolvê-los. Por isso, a mística geralmente trata do tema do dia: é como um jogo dramático, geralmente não tem texto e é de curta duração. Realmente, a mística cria uma emotividade, uma abertura maior para o tema a ser tratado. Em uma dessas místicas, eles utilizaram o barro, que, depois soube, tem uma forte simbologia para os militantes, pois remete à terra, sua fonte de subsistência, motivo de luta e por onde chegarão à transformação social que almejam. Os jovens gostam muito desse momento, que geralmente eles criam e participam. Esse momento de criação é rápido, geralmente uns vinte minutos, antes da reunião. Eles têm um poder de síntese muito grande e são muito criativos, e todos criam expectativas em torno da mística. Os momentos descontraídos, como rodas de conversa ou de viola, sempre se tornam espaços de discussão, pois ali estão reunidas pessoas de vários lugares, com vários níveis de escolaridade, de vivência e, geralmente, com problemas parecidos, como a dificuldade de mobilização, do trabalho coletivo, problemas com alcoolismo e dificuldades de respeitar regras do coletivo, da dificuldade de mudar uma visão capitalista que todos já possuem, entre outras mais específicas. Um dos dirigentes falou-me que, hoje, a maior dificuldade não está na luta pela terra, e, sim, na luta ideológica. Durante todo o estágio, ficou muito latente essa questão da educação não-formal, da conscientização que ocorre em todos os momentos e espaços. Algumas vezes, situações são criadas com um cunho pedagógico, mas, ainda assim, são diferentes das criadas na escola. Porém, a própria rotina, o histórico de exclusão da maioria faz com que eles vivam sempre em formação. Por ser uma estudante na área da educação, conversei muito sobre esse tema, fui muito questionada e também muito respeitada, e pude perceber a concepção deles, a importância que dão à educação, a consciência que eles têm da necessidade de conteúdos que

digam respeito à realidade, nesse caso, à realidade do campo e de um Movimento social específico que luta pela posse da terra e pela organização daqueles que nela trabalham. Um assentamento do MST é um importante e rico espaço extra-escolar de formação. Importante demais para ser ignorado pelos estudantes de Pedagogia. 4 Assentamento Barro Azul5 Conforme o método de seleção realizado pela Comissão Organizadora do 3º Estágio Interdisciplinar de Vivência, fui, juntamente com um estudante de Ciências Biológicas da UFMG, para o assentamento Barro Azul, localizado a 25 quilômetros de Governador Valadares. Assim que chegamos à cidade de Governador Valadares, buscamos informações sobre a localização do assentamento Barro Azul. Nessa busca por informações, percebi que as pessoas se limitavam a designar os moradores do assentamento somente por "sem-terra" e apenas assim os reconheciam. Ainda na cidade, encontramos o Sr. José Moisés, um morador do assentamento que nos levou até o local. Durante todo o caminho, ajudou-nos com as malas e nos indagou sobre o que fazíamos. O Sr. José gentilmente nos conduziu até a casa em que ficaríamos por algum tempo. Nessa região, estão concentradas cinqüenta e seis famílias, as quais, ainda que morando em uma região mais afastada das demais famílias, possuem também um terreno na Agrovila. Os moradores do local fixaram moradia, tendo como parâmetros a comodidade e o tempo necessários para se chegar à lavoura. O assentamento está localizado em uma região de clima extremamente quente e de pouca incidência de chuvas, o que ocasiona longos períodos de estiagem. Fundado em 1996, sofre de inúmeros problemas, segundo os próprios moradores, reflexo da rápida transição da condição de acampamento a assentamento. Um grande problema é a contradição do que é ressaltado pelo Movimento e o que realmente se desenvolve na área. Das contradições existentes está a separação das famílias em duas cooperativas formadas segundo os interesses das mesmas. Outra é a divisão de trabalhos específicos destinados a homens e mulheres, mesmo que o posicionamento do Movimento seja contrário a essa divisão de tarefas. Foi, ainda, possível perceber, ao visitar algumas casas, que há certa divergência quanto à atual situação econômica de cada família, pois algumas vivem prioritariamente do que é produzido em sua terra, enquanto outras recebem ajuda extra, vista nas aposentadorias recebidas pelo casal ou na comercialização de verduras, frutas e derivados do leite. Esse assentamento é marcado pela existência de práticas educativas formais, tendo em vista a escola "Assentamento Agrário Barro Azul", que cuida da formação das crianças nas quatro sé-ries iniciais do ensino fundamental. O conteúdo disciplinar desenvolvido por essa escola, com base em relatos de alguns sujeitos, não estabelece um eixo de interação com as práticas sociais, as práticas de cultivo e criação formadas e sustentadas pelos moradores da área. Pelo que pude verificar, pelas conversas com as crianças, alunas da escola, há um distanciamento e, até mesmo, negação por parte das professoras com relação às atividades desenvolvidas dentro desse assentamento, cabendo aos pais, ainda que indiretamente, a função de informar e educar seus filhos sobre as reais necessidades do local, as técnicas de plantio e criação de animais, dentre outras práticas existentes na área. Os pais realizam um trabalho freqüente junto a seus filhos, ainda que desestruturado e inconsciente, de inculcação do respeito e afeto pela terra em que vivem, de maneira a produzir nos mesmos o desejo de ajudá-los na "roça" da família. Há também a relação estabelecida entre as mulheres, especialmente entre as garotas, com idade entre 13 e 16 anos, e algumas donas-de-casa em manter conversas informais e descontraídas a respeito de seus relacionamentos afetivos, caracterizando-se como uma das práticas educativas informais desenvolvidas no

local, onde foi possível perceber a formação de um vínculo estreito e afetivo entre essas mulheres. Já em relação ao conhecimento que os pais possuem a respeito da escola, apesar de reconhecerem seu significado simbólico, não efetivam estratégias para prolongarem a vida escolar de seus filhos. Reconhecem que não têm capital econômico para mantê-los em uma universidade particular; logo, buscam nas escolas do Movimento uma oportunidade para a continuidade da escolarização dos mesmos. A escola, para eles, não é vista como a instituição que propiciará a ascensão social de seus filhos, mesmo porque não é o que almejam. Lutam por uma outra concepção de sociedade, mais fraterna, mais solidária, mais igualitária. Contudo, o processo de escolarização é tido como uma oportunidade que seus filhos têm de capacitação e, se possível, conforme os interesses demonstrados pelos mesmos, de trabalharem em prol do Movimento. Os jovens, em sua grande maioria, demonstraram incerteza quanto à futura trajetória escolar e à inserção em alguns setores do Movimento. Habita neles o prazer de "lidar" com a terra, por um lado. Vêem em seus pais figuras fortemente marcadas pelo orgulho que têm de ser "proprietários" da terra, algo precioso para as famílias, e constroem, junto a eles, práticas educativas informais que se estabelecem ao trabalharem ladoa-lado nas plantações, ao venderem nas cidades próximas os produtos produzidos por eles próprios, provenientes do contato diário com a terra. Por outro, está presente o ceticismo quanto à aquisição incerta de poderem ocupar, no futuro, uma "posição" dentro do Movimento. As crianças, embora demonstrem um grande desejo de trabalhar com seus pais na lavoura, dedicam grande parte de seu tempo a brincadeiras, algumas criadas por elas, outras semelhantes àquelas encontradas em rodas de crianças da zona urbana. Ocupam-se, ainda, com passeios a lugares próximos a suas casas. As crianças mais velhas são encarregadas, enquanto as mães trabalham, das tarefas do lar, como os serviços domésticos, alimentar criação, varrer, lavar e preparar o almoço, além de cuidar dos irmãos mais novos. Essas crianças incorporam as ordens dos pais e as têm como uma obrigação que cabe somente a elas executar. Mesmo sendo crianças, essas atividades são vistas pelos pais como naturais e que podem e devem ser realizadas pelos primogênitos. Um dia, antes do término do estágio, pude confirmar isso ao observar a dedicação das crianças como sujeitos responsáveis pelo cuidado e manutenção da casa, ao vê-las preparando o almoço enquanto o pai se dedicava ao trabalho artesanal, utilizando o barro como matéria-prima. O pai utilizava os trabalhos artesanais como uma forma de lazer e de descanso. Essa atividade não era vista como uma forma de aumentar a sua renda. Desde o primeiro passo na preparação do barro até a finalização da peça, as crianças permaneciam atentas, sentadas, cada qual em seu lugar, com o material necessário para a fabricação dos bonecos. Durante o processo de trabalhar o barro, estabeleceu-se uma troca de informações entre as crianças e o artesão. Uma troca que se configurava em uma inversão de papéis, em que quem ensinava também aprendia. Pude claramente perceber a relação dialógica que se estabeleceu entre o senhor e as crianças durante o trabalho artesanal. O trabalho manual com a argila, material tão comum na região, propicia interação dos diferentes sujeitos do assentamento. Cria-se, a partir desse envolvimento, uma relação pedagógica em que não há professor nem aluno, mas sujeitos que aprendem juntos, que trocam experiências e sustentam o caráter dialógico da educação. Assim como os demais moradores, esse senhor também se dedica à criação de algumas cabeças de gado, mas, também, como uma forma de inovação, à criação de caprinos. Segundo ele, são animais que apresentam no mercado inúmeras vantagens comerciais, dentre elas diminuição das despesas em relação ao que é gasto na criação de bovinos e um rápido e lucrativo retorno econômico. Para tanto, é necessário um investimento inicial de que ele não dispõe para, então, aumentar e desenvolver sua criação. Para conhecer mais detalhadamente sobre o projeto que tenta implementar em sua propriedade, ele dispõe de uma apostila que

especifica a origem, o tamanho, a alimentação utilizada, o período e os tipos de vacinas a serem aplicadas e os cuidados específicos com cada animal. Esse material foi produzido pela Universidade Federal de Viçosa, que mantém uma comunicação com o assentamento, algo em que o assentado não quis entrar em detalhes. Na área próxima à Agrovila, há uma criança de 12 anos, surda-muda que, a despeito de suas limitações, desenvolveu junto às outras crianças sistema eficiente de comunicação, fundado em gestos criados por elas, as quais conseguem se entender. Essa criança, inclusive, estudou na escola do assentamento e, hoje, está em uma escola da zona urbana. A relação estabelecida entre essas crianças ultrapassa o sistema informal de comunicação criado e mantido por elas, caracterizando-se, também, como atos significativos pelos quais a criança portadora de necessidades materializa seus desejos, questionamentos e dúvidas. Foi possível perceber que essa criança reconhece suas limitações, não se esquivando do convívio social por ser aceita por todos. Em sua família, mais precisamente entre ela e suas irmãs, existe uma cumplicidade, um respeito mútuo, um cuidar recíproco visto durante os passeios que fazíamos. Essas relações estabelecidas não somente entre as crianças, mas também entre os vários sujeitos pertencentes ao assentamento, se constituem como práticas educativas informais quando eles compartilham suas experiências vivenciadas dentro e fora do local, como a troca de experiências mantidas entre os moradores do assentamento e os sujeitos externos ao Movimento. Essas trocas transformadoras interferem diretamente nas práticas sociais e demais práticas existentes dentro do assentamento, enriquecendo a todos. Na casa em que estava hospedada, tive a oportunidade de conversar com uma estudante que freqüenta o curso de Pedagogia da Terra, na UFMG. Segundo ela, o curso difere em alguns aspectos do curso tradicional de Pedagogia. As estudantes, envolvidas com o Movimento, ficam hospedadas em um sítio, com horários definidos para a realização das atividades próprias do Movimento. Elas permanecem durante dois meses estudando e dois meses nas áreas onde moram. Essa forma peculiar do curso atende às necessidades e objetivos do Movimento. Na casa, há vários livros provenientes da participação da estudante em reuniões e livros, também, oriundos da participação de seu pai em reuniões do sindicato que preside. Em uma conversa com ele, falava-me de sua posição contrária ao capitalismo, de sua visita a Cuba e de sua trajetória como operário antes de entrar para o Movimento dos Sem-Terra. Durante duas horas, expôs veementemente suas idéias, como foi visitar Cuba, algumas contradições vistas por ele durante sua permanência por lá, para concluir dizendo como o sistema capitalista corrompe a população brasileira. Pensar em ir para um assentamento, tendo apenas como referência o conhecimento que a mídia e a opinião popular divulgam sobre a organização e a formação dessas áreas, a princípio me influenciou e me fez refletir muito sobre participar ou não do estágio. Vencida a barreira do desconhecido e já dentro do assentamento Barro Azul, área para a qual fui indicada para passar os doze dias de estágio, minha opinião a respeito começou a se transformar já no primeiro contato significativo com um morador do assentamento. Assim como ele, os demais moradores foram extremamente receptivos, abrindo suas casas simples, porém acolhedoras, para uma jovem estudante que pouco tinha para dar a eles. Senti na pele as dificuldades pelas quais essa gente passa, dia após dia, mas, também, pude compartilhar seus sonhos e alegrias. A vontade de trabalhar na terra, de produzir a subsistência da família, bem como a esperança de uma vida melhor presa nos olhos das crianças são circunstâncias muito fortes que me levaram a refletir sobre o que realmente tem valor na vida. Porém, nem tudo são flores. Confesso que, como habitante de espaço urbano, estar em uma casa na qual os moradores recebem "visitas" de escorpiões, aranhas caranguejeiras, sapos e tratam isso com a maior naturalidade foi um tanto difícil. Mas acabei me acostumando a essas situações no decorrer da experiência que foi única e muito enriquecedora. 5 Algumas Considerações

A pedagogia ensinada nas Faculdades de Educação é, quase que exclusivamente, urbana. As disciplinas que cuidam de outros processos educativos possuem pouco espaço na grade curricular e são oferecidas como disciplinas eletivas e, às vezes, vistas como coisas "exóticas". Os currículos dos cursos de Pedagogia auxiliam a compreensão de processos educativos urbanos formais e pouca atenção dão àqueles espaços educativos não-formais, a exemplo dos acampamentos e assentamentos do MST. Os processos vividos pelos sujeitos sob a orientação do MST se revelam capazes de promover uma igualdade de oportunidade para todos, dentro de seus limites, e se apresentam como radicais, considerando-se uma pedagogia da formação e da organização dos diferentes sujeitos em um espaço de conflito, construído via enfrentamento. A presença de estudantes de Pedagogia em espaços como os aqui descritos enriquece enormemente a formação dos estudantes nos seguintes pontos: 1) eles passam por um processo de formação oferecido pelo MST para que possam se adaptar às condições de vida que irão encontrar no campo (preparam comida, distribuem, lavam pratos, banheiros, participam de trabalhos em equipe sem poder escolher os parceiros, moram de forma coletiva, desenvolvem atividades culturais, cantam e atuam, fazem reuniões); 2) essa vivência prepara esses estudantes urbanos para a vida dura do campo, para a forma de morar, de se cuidar, de se manter, para a rusticidade das habitações e mesmo dos trabalhos rurais que devem ser feitos; 3) esse contato, se não horroriza os estudantes urbanos, prepara os mesmos para ter uma experiência mais humana, para reconhecer a condição do outro, para desenvolver a solidariedade; 4) a observação metódica do cotidiano dos assentamentos (como as aqui apresentadas e discutidas) propicia aos estudantes a construção de percepções que eles jamais teriam, somente em uma sala de aula, de ver/viver uma cena rica em processos educativos não-formais, não-institucionalizados do ponto de vista escolar; 5) essa vivência ensina a eles que, por mais que se observe uma cena, o relato vem marcado pela experiência de quem observa, pela formação que tem o observador, pelas expectativas (negativas ou positivas) dos fenômenos observados, pelos desejos de quem observa, pelas características e pela história dos locais observados, como mostram os três diferentes relatos aqui transcritos. Os relatos permitem que observemos, como seguem, alguns princípios educativos comuns aos três assentamentos, que norteiam as ações dos assentados e daqueles que lutam para organizá-los, seja para novas ocupações, seja para se fazerem merecedor da terra conquistada por meio de processos dolorosos de embate com proprietários, órgãos de repressão, governos (federal, estadual e municipal) para fazer valer o princípio de que todos têm direito à terra e à vida com dignidade. No nosso caso, denominamos princípios pedagógicos as construções teóricas elaboradas a partir de um conjunto de ações rotineiras, estruturadas e estruturantes, levadas a cabo pelo conjunto dos sujeitos que se abrigam sob a bandeira do MST, que possuem visibilidade nas rotinas e se refletem no cotidiano dos sujeitos e em suas ações desenvolvidas de forma individual, junto à família e ao coletivo propriamente dito. Práticas que têm como fim a construção de um espaço mais humano, solidário e coletivo, mas que são, sobretudo, educativas. A percepção de algumas contradições no interior dos assentamentos, em nossa opinião, é importante para o aperfeiçoamento das práticas empreendidas pelo Movimento, pois auxiliam aqueles que estão envolvidos cotidianamente com a cena ao perceberem e discutirem a existência das mesmas. 1) Fica evidente nos relatos a visão que se tem da infância e o lugar que a criança ocupa nos assentamentos. A criança, nos assentamentos observados, é uma criança ativa, de ação, pois participa de todas as discussões empreendidas nos limites dos assentamentos, não é excluída das discussões e auxilia nos encaminhamentos, a seu modo, à sua forma de participar. Elas brincam, como observamos, mas também cuidam de atividades rotineiras delegadas por seus pais, que auxiliam no processo de formação desses filhos de trabalhadores rurais, propiciando lições de cooperação e solidariedade.

2) As conversas informais e reuniões mantidas entre os jovens filhos dos Sem-Terra propiciam a troca de experiência e auxiliam na compreensão dos debates internos e externos aos assentamentos, funcionando como uma espécie de orientação dos destinos a serem trilhados no que diz respeito à formação escolar e à participação nos destinos do Movimento. 3) A concepção de sujeito que brota dos relatos apresentados vai muito além daquela com a qual trabalhamos, de sujeito escolarizado, pois, inclui, sem distinção de pertencimento social, racial ou de gênero, todos que servem ao Movimento no processo, de ocupação, de organização e de ampliação dos limites do Movimento. 4) O coletivismo e a solidariedade são elementos estruturantes das ações do Movimento que demandam um processo de conscientização ideológica dos mais desgastantes, pois os integrantes do Movimento são sujeitos provenientes de diversas frações sociais, possuem diferentes níveis de escolaridade e concepções diversas de mundo. 5) Observa-se uma luta constante dos dirigentes na construção de processos que promovam uma mudança conceitual dos assentados para se chegar aos ideais do Movimento. 6) As decisões contam com a participação de todos e são tomadas após exaustivos processos de discussão dos mais díspares pontos de vista, o que expressa um importante processo de construção de identidade dos diferentes sujeitos que integram o Movimento. Para terminar, podemos dizer que a construção de uma imagem social mais aceitável do Movimento por parte da população esbarra nas campanhas movidas pela grande imprensa, diante do "dever" de noticiar "invasões" e os processos que cercam as mesmas. Entretanto, noticiar a produtividade de um assentamento e a melhoria de vida daqueles que lá habitam não se constitui, necessariamente, em matéria importante a ser divulgada e, ainda, pode soar como um incentivo a novas "invasões". Podemos dizer, ainda, que a luta principal dos assentados é pela constituição do assentamento de forma digna, com condições para morar, para plantar, para cuidar e para se educar. Assim, as práticas educativas informais estão presentes no cotidiano dos sujeitos que compõem o MST, apresentando-se, em maior ou menor proporção, em função do engajamento político de cada assentamento ou acampamento. Mesmo assim, predomina nas práticas dos sujeitos que ocupam esses espaços a determinação pelo trabalho coletivo. Após observarmos as áreas rurais sob orientação do MST, foi possível verificar que as práticas educativas são valorizadas como instrumento privilegiado de obtenção de seus propósitos de luta política, tendo como fim a reforma agrária. Mesmo que exista uma série de práticas não-escolares, como mostramos, fundadas no coletivismo e na solidariedade, a escola formal está no horizonte de todos. Apesar do trabalho ideológico existente, constatamos que as contradições internas estão presentes e podem ser explicadas pelo grau de formação político-cultural que cada sujeito possui e mesmo pelo seu grau de engajamento na luta pela terra. Por se tratar de um Movimento disposto a receber e incorporar famílias provenientes dos mais diferentes meios sociais e de formação profissional variada, o processo de conscientização daqueles que se engajam no Movimento se torna amplo e complexo, propiciando a divergência nas práticas e pensamentos. Mas, como mostram os relatos, as formas coletivas e solidárias de formação e organização têm lugar central nas práticas dos sujeitos com os quais convivemos neste rico estágio de formação cultural e humana.

Notas

Pré-assentamento: é quando a terra se encontra em processo de encaminhamento jurídico, existindo uma grande probabilidade de se obter o título provisório de pertencimento da mesma. Trata-se do processo de transição do acampamento para o assentamento. Configura-se assentamento o fato dos Sem-Terra possuírem as garantias jurídicas de permanecerem na terra. Os lotes são demarcados e divididos entre as famílias em que se encontram aptas a receber verbas públicas para a estruturação do assentamento e possuírem, também, autonomia irrestrita na organização do mesmo. 1

2

Relato produzido por Alexandra Resende Campos.

3

Relato produzido por Mariana Carlinda Ferreira Moura.

Existe, aqui, uma discussão que está longe de ser semântica, é conceitual. A mídia utiliza sempre a expressão INVASÃO, para se referir ao direito da propriedade privada. Já o MST utiliza o termo OCUPAÇÃO, para se referir sempre ao direito do trabalhador à posse da terra improdutiva. 4

5

Relato produzido por Valéria de Oliveira Santos.

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Dados dos autores: *Écio Antônio Portes Doutor em Educação – UFMG – e Professor do Departamento de Ciências da Educação – UFSJ Endereço para contato: Universidade Federal de São João del-Rei Campus Dom Bosco Praça Dom Helvécio, 74 – Dom Bosco 36301-160 São João del-Rei, MG – Brasil Endereço eletrônico: [email protected] **Alexandra Resende Campos **Mariana Carlinda Ferreira Moura **Valéria de Oliveira Santos Acadêmicas do Curso de Pedagogia da UFSJ

Data de recebimento: 25 jan. 2007 Data de aprovação: 12 jun. 2007