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Michel Foucault e o Modernismo Literário Fabiano Barboza Viana*
RESUMO Para além da discussão sobre os limites da modernidade (circunscrita de diferentes modos nos textos de juventude e nos últimos trabalhos), interessa-nos a importância atribuída por Michel Foucault, sobretudo na década de 1960, à produção dita “literária”, do final do século XIX à primeira metade do século XX “no que tange uma experiência inumana da literatura” como atualidade. Neste momento, as referências à literatura contemporânea serão recorrentes, resguardando um espaço específico no campo do saber para a reflexão sobre as obras de autores como Mallarmé, Blanchot, Proust, Bataille, “os novos romancistas”, entre outros. Para Foucault, obras como as de Raymond Roussel ofereceriam uma alternativa à crise do conhecimento, esse fundado num discurso dialético, humanista e fenomenológico. Com efeito, a literatura colocaria a nu um espaço próprio de desdobramento, onde as representações do pensamento ocidental seriam levadas ao paroxismo: experiência da morte, do pensamento impensável, da repetição da linguagem, da finitude. Para tratar das origens dessas questões, trataremos do problema do “ser da linguagem”, tal como desenvolvido em obras como História da Loucura e As Palavras e as Coisas, de forma a demonstrar como esse problema aparece em algumas escritas da modernidade. PALAVRAS-CHAVE: Literatura, Linguagem, Experiência.
Literatura e Linguagem
As reflexões sobre a literatura ocuparam lugar privilegiado na obra de Michel Foucault na década de 1960. Em Les mots et les choses será investigada a literatura da modernidade, tal
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Aluno do Programa de Mestrado em Filosofia da USP. Bolsista SEESP. E-mail:
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187 como aparece no final do século XVIII. Nesse contexto, a literatura será espaço de investigação da cisão fundamental entre “subjetividade” e o “ser linguagem”. Do ponto de vista de uma “experiência limite” do pensamento, a literatura representa um espaço alheio aos métodos de análise tradicionais na filosofia e nas ciências humanas, como a fenomenologia, a hermenêutica e o estruturalismo. Isto porque, o ser da literatura, compreendido como linguagem, escaparia das abstrações e abordagens científicas dos métodos em questão, tão logo abre um espaço autônomo. Neste sentido, em as Palavras e as Coisas, e em outros “ditos e escritos” dos anos 1960, a literatura se configura como espaço alternativo a um modo de produção discursivo e analítico dos saberes instituídos. Isto ocorreria devido ao reaparecimento da linguagem semelhante ao que se dava na episteme renascentista. Façamos em linhas gerais o percurso de Foucault.
Experiência Trágica, Representação e Reaparecimento da Linguagem
Para compreender o sentido de literatura desenvolvido por Foucault, é importante situar a noção de “experiência trágica do mundo”, conforme se dá na episteme renascentista. Nessa ordem cognitiva do mundo, a linguagem aparece:
(...) em seu ser bruto e primitivo, sob a forma simples, material, de uma escritura, de um estigma sobre as coisas, de uma marca repartida pelo mundo e que forma parte de suas mais inapagáveis figuras 1.
Com a noção de “signatura” a racionalidade renascentista manifesta seu fundamento por meio das noções de mimesis, de semelhança, de analogia e de simpatia. Nos interessa, neste momento, as duas noções intermediárias. Como lembra Foucault: “Até o fim do século
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FOUCAULT, M. Les mots et les choses. Une archéologie des sciences humanires. Paris : Gallimard, 1986. 57 p.
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188 XVI, a semelhança desempenhou um papel decisivo no saber da cultura ocidental” 2. Estabelecer o sentido de algo era encontrar suas relações de semelhança (a título de exemplo, poderíamos pensar na proporção áurea enquanto signo aritmético de uma constante natural, e na leitura alegórica das sagradas escrituras). Por sua vez, a relação entre linguagem e mundo era tomada sob a forma da analogia, e não da representação como ocorrerá na episteme clássica. Como funcionaria, entretanto, a semelhança e a analogia? Justamente a noção de “signatura” operava as analogias. Na “assinatura”, a linguagem é compreendida como uma marca, um estigma, um sinal escrito. Cada objeto do mundo carregaria essa assinatura do Criador. O mundo, compreendido como “texto”, porta os estigmas, os quais, o “comentário” (pensemos na prática da exegese cristã) interpreta-os e os converte em signos das coisas. Há, assim, um movimento de mão-dupla do macrocosmo para o microcosmo, fundamentado no pensamento analógico, da participação do universal em todas as coisas.
A linguagem, como verbo
originário, asseguraria essa unidade do mundo feita por correspondências. Todavia, esse espaço da linguagem será radicalmente alterado na época clássica, segundo a formação histórica foucaultiana. De um movimento circular e infinito da assinatura para o cosmos, do texto para o comentário, a linguagem será condenada a um espaço de clausura. O funcionamento da linguagem ficará restrito ao campo da representação. “As palavras e as coisas vão separar-se”3, e o sentido se configurará por meio da reduplicação da própria representação, ao invés da semelhança. A obra de Cervantes marcará essa mudança de paradigma:
Dom Quixote é a primeira das obras modernas porque vemos aí a razão cruel das identidades e das diferenças zombar incessantemente dos signos e das similitudes, porque a linguagem rompe seu velho parentesco com as coisas para entrar nesta soberania solitária de onde ela só reaparecerá, em seu ser abrupto, como literatura; porque a semelhança entra em uma idade que é para ela a idade da desrazão e da imaginação4.
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Idem, 32 p. Idem, 58 p. 4 Idem, p.63. 3
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189 Deste modo, o problema da linguagem será reduzido às relações entre significante e significado num “domínio de representação”, ou seja, a constituição da unidade do signo lingüístico e, apenas numa abordagem formal, a possibilidade de uma referência ao mundo (a semiótica estruturalista pode ser vista como um desdobramento tardio dos problemas aqui colocados). Percebe-se, de saída, uma tendência a colocar entre parênteses o mundo, já que a episteme clássica é marcada pelo exame da produção de significado dentro do discurso. Com a linguagem submetida à ordem das representações, seu estatuto será reduzido à categoria de expressão do pensamento autodeterminante. Rompe-se com o pensamento analógico, no qual o mundo era tratado como texto infinito, dado o caráter inesgotável do comentário. Ora, será nas ruínas desse “ser vivo da linguagem”, existente na episteme renascentista, que ela retornará no final do século XVIII. O espaço privilegiado dessa reincidência da linguagem será a literatura, tão logo possa ser compreendida como lugar de origem do próprio vir-a-ser da linguagem. Escapando à redução da representação, do funcionamento do discurso, das correlações fechadas do significante e do significado, a literatura moderna (diferente do Renascimento que ainda tinha o verbum criador como ideia reguladora) consubstancia esse movimento ilimitado da linguagem. Como afirma Foucault:
A partir do século XIX, a literatura restabelece a linguagem em seu ser, mas não ainda como apareceria no final do Renascimento. Porque, agora, não há mais uma palavra primeira absolutamente inicial pela qual se encontrava fundado e limitado o movimento infinito do discurso. De agora em diante a linguagem vai crescer sem ponto de partida, sem fim e sem promessa. O percurso desse espaço vão e fundamental é o que traça a cada dia o texto de literatura”.5
Um dos tópicos fundamentais de Foucault para compreender essa viragem da linguagem é a noção de ausência de obra. Se a desrazão era condição de possibilidade duma experiência trágica do mundo, na modernidade a escrita da loucura torna-se a condição de possibilidade da experiência literária de vanguarda. Se “sob a consciência crítica da loucura e de suas formas filosóficas ou científicas, morais ou médicas, uma surda consciência trágica nunca 5
Idem, 59 p.
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190 cessou de velar”6, teremos agora o que Foucault chamará de experiência limite no espaço da literatura:
Era necessário que esse novo modo de ser da literatura fosse desvelado em obras como as de Artaud ou de Roussel, e por homens como esses. Em Artaud, a linguagem, rechaçada como discurso e retomado na violência plástica do golpe, é reenviada ao grito, ao corpo torturado, à materialidade do pensamento, à carne. Em Roussel, a linguagem [a língua], reduzida a pó por um acaso sistematicamente manejado, relata indefinidamente a repetição da morte e o enigma das origens desdobradas. E, como se essa prova das formas da finitude na linguagem não pudesse ser suportada ou como se ela fosse insuficiente (talvez sua própria insuficiência era insuportável), foi dentro da loucura que ela se manifestou. A figura da finitude se dá assim na linguagem (como o que se desvela nela), mas também antes que ela, mais aqui, nesse região informe, muda, insignificante onde a linguagem pode liberar-se. E é nesse espaço, assim posto a descoberto, que a literatura – com o surrealismo primeiro (mas sob uma forma travestida), depois, cada vez mais puramente com Kafka, com Bataille, com Blanchot – se dá como experiência: como experiência da morte (e no elemento da morte), do pensamento impensável (e em sua presença inacessível), da repetição (da inocência originária, sempre aí, no ponto mais próximo à linguagem e mais afastado dela), como experiência da finitude (capturada na abertura e na exigência dessa finitude)”7.
No caso de Antonin Artaud, citado pelo filósofo, podemos pensar nas glossolalias, o “falar em línguas”, marcado pelo uso convulsivo de fonemas não semantizados. Como lembra Octávio Paz, no ensaio Leitura e Contemplação, publicado no livro Convergências, esse tipo de expressão de “estados alterados de consciência” é primitivo, presente em rituais e doutrinas místicas. Ao deslocar as palavras do domínio da representação, atingindo estágios para além do uso significativo da linguagem, Artaud encenaria justamente o gesto de apropriação da linguagem arcaica, presente na experiência trágica do mundo. Do mesmo modo, “a violência plástica do golpe”, recupera a densidade do corpo e a materialidade do mundo esvaecida na episteme clássica. Já com Raymond Roussel, teremos a literatura como desvio da língua, como propõem Roland Barthes, e, portanto, como forma de subversão sistemática das orações
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Idem, 47 p. Idem 395 p.
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191 correntes na língua francesa. Trata-se das operações produzidas pelos procédés de Roussel8. Linguagem retroalimentada, dobra de si, aponta justamente para uma ausência, um vazio para além de seu movimento reflexivo. Daí a linguagem literária como forma de figuração da finitude: linguagem manifestada na sua espessura de modo a deslocar a nova e já moribunda invenção da modernidade – o homem.
Fragmentação da linguagem e Reaparecimento da Linguagem: Considerações Finais
De modo geral a literatura será um setor privilegiado da crítica ao racionalismo clássico e a ordem das representações. Assume um pensamento de extração nietzschiniana ao deslocar uma “dialética da história”, fundada no conflito da razão e do seu ser outro, para reivindicar na modernidade, a permanência das estruturas da experiência trágica do mundo. Nessa implicação de razão e desrazão, Michel Foucault irá incorporar a sua experiência filosófica um conjunto de ideias pertencentes a certo modernismo literário simbolizado por Maurice Blanchot e sua noção de “pensamento do fora”, Georges Bataille e a noção de “transgressão”, Pierre Klossowski e a noção de “simulacro”, entre outros. Com esses autores, Foucault faz a hipótese de formas de experiência nas quais a categoria de sujeito perderia seu status de categoria originária. Modalidade na qual a linguagem novamente disseminada abriria um novo horizonte de expectativas. Daí a importância atribuída a autores como o já mencionado Raymond Roussel, por liberar a linguagem (na própria espessura) da clausura dos signos e da consciência intencional da fenomenologia:
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Segundo Focault: “Roussel utilizou sucessivamente dois procedimentos. Um consiste em tomar uma frase, ou um elemento de frase qualquer, depois repeti-la, idênticas, salvo ligeiro contratempo que estabelece entre as duas formulações uma distância onde a história inteira deve se precipitar. O outro consiste em tomar, de acordo com o acaso em que ele se oferece, um fragmento de texto e depois, por uma série de repetições transformadoras, dele extrair uma série de motivos absolutamente diferentes, heterogêneos entre si, e sem ligação semântica ou sintática: o jogo consiste então em traçar uma história que passa por todas as palavras dessa forma obtidas”. FOUCAULT, M. “Sete Proposições sobre o Sétimo Anjo”. p. 307.
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192 A linguagem já dita, a linguagem como já estando lá, determina o que se pode dizer depois, independentemente, ou dentro de um quadro linguistico geral. É precisamente isso o que me interessa. E o jogo de Roussel, dando somente em algumas de suas obras a possibilidade de encontrar o já dito, e construindo com essa linguagem inventada, de acordo com as regras dele, um certo número de coisas, mas com a condição que haja sempre referência ao já dito. 9
A subversão do discurso, compreendido como enunciados efetivos que subsistem na tessitura das formações discursivas atuais, seria uma das entradas de leitura na obra de Roussel. Esse partiria do já pronunciado, das frases “absolutamente cotidianas ouvidas ao acaso”10, não com a intenção de produzir uma representação verossimilhante em seus romances e peças teatrais, mas de subvertê-las e transformá-las a ponto de construir figurações extraordinárias. Sob as imagens do texto configurado, persistiria um outro texto abandonado na forma de ruína, retorcido, cuja natureza permaneceria na forma de incógnita. Para além dos procedimentos adotados, e explicitado pelo autor em obra publicada postumamente 11, a linguagem enquanto materialidade fundante escaparia das possibilidades de positivação. Na impossibilidade de uma apreensão conceitual dessa zona indeterminada, indicada pelo nome “linguagem”, o que a escrita de Roussel faz é mostrar o seu funcionamento, desde sua aparição mediante “máquinas feita de palavras”, até as ruínas de uma matriz de linguagem extinta. A partir dessa presença de uma ausência fundamental, amplifica-se a virtualidade do vazio a contrapelo de um espaçamento vertiginoso e repetitivo de uma linguagem intransitiva. Em termos foucaultianos, a experiência limite estaria exatamente na transgressão dos modelos convencionais das frases, no autotelismo de uma linguagem dessubjetivada e na negação de um centro ou fundamento que ordenasse a priori as possibilidades de representação.
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FOUCAULT, M. “Arqueologia de uma Paixão”. p. 404. In : Ditos e Escritos III. Org. MOTTA, B. M. Trad. Inês Autran Dourado Barbosa. 2ºed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. 10 11
FOUCAULT, M. “Arqueologia de uma Paixão”. p. 404. Ver “Como escrevi alguns de meus livros” de Raymond Roussel.
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193 BIBLIOGRAFIA
FOUCAULT, M. Les mots et les choses. Une archéologie des sciences humanires. Paris : Gallimard, 1986 FOUCAULT, M. Raymond Roussel.Trad. Manoel B. Motta e Vera Lúcia A. Ribeiro. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1999. FOUCAULT, M. A ordem do discurso. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. 11. ed. São Paulo, Edições Loyola, 2004. FOUCAULT, M. Ditos e Escritos III. Org. MOTTA, B. M. Trad. Inês Autran Dourado Barbosa. 2ºed. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2006. PAZ, Octávio. Convergencias, Editora Seix Barral, coleção Biblioteca Breve, Barcelona, 1991.
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