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TRADUÇÃO DE EDMUNDO BARREIROS

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Copyright © 2013 by Hugh Howey título original Shift preparação André Marinho revisão Flora Pinheiro diagramação Ilustrarte Design e Produção Editorial

cip-brasil. catalogação na fonte sindicato nacional dos editores de livros, rj H845s

Howey, Hugh Ordem / Hugh Howey ; tradução Edmundo Barreiros. – 1. ed. – Rio de Janeiro : Intrínseca, 2015. 512 p. ; 23 cm. Tradução de: Shift Sequência de: Silo Continua com: Legado ISBN 978-85-8057-681-8 1. Ficção americana. I. Barreiros, Edmundo. - II. Título.

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cdd: 813 cdu: 821.111(73)-3

[2015] Todos os direitos desta edição reservados à editora intrínseca ltda. Rua Marquês de São Vicente, 99, 3º andar 22451-041 — Gávea Rio de Janeiro — RJ Tel./Fax: (21) 3206-7400 www.intrinseca.com.br

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Para aqueles que estão completamente sozinhos

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Em 2007, o Centro para Automação em Nanobiotecnologia (CAN) projetou as plataformas de hardware e software que um dia levariam à criação de robôs menores que células humanas para realizar diagnósticos médicos, reparos e até se autorreproduzirem. No mesmo ano, a rede de TV CBS reprisou um programa sobre os efeitos do propranolol em vítimas de traumas graves. Haviam descoberto que um simples comprimido podia apagar a lembrança de qualquer evento traumático. Quase ao mesmo tempo na longa história da humanidade, a espécie humana havia descoberto os meios para provocar sua destruição completa. E a habilidade de esquecer que tal destruição já havia ocorrido.

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PRIMEIRO TURNO — LEGADO

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PRÓLOGO Ano 2110 Sob as colinas do condado de Fulton, Geórgia

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roy voltou à vida e se viu no interior de um caixão. Ele despertou em um mundo de confinamento, com uma grossa placa de vidro coberta de gelo muito perto de seu rosto. Formas escuras se moviam do outro lado, na escuridão congelada. Ele tentou levantar os braços, bater no vidro, mas seus músculos estavam fracos demais. Tentou gritar, mas só conseguiu tossir. Sentia um gosto ruim na boca. Os ouvidos ressoaram com o ruído metálico de trancas pesadas se abrindo, o chiado do ar, o ranger de dobradiças havia muito inativas. As luzes no alto eram fortes; as mãos sobre ele, quentes. Eles o ajudaram a se sentar enquanto Troy não parava de tossir. Sua respiração formava nuvens no ar gelado. Alguém tinha água. Comprimidos a tomar. A água estava fria; os comprimidos, amargos. Troy se esforçou para beber alguns goles. Não conseguia segurar o copo sozinho. Suas mãos tremiam enquanto as memórias irrompiam, cenas de longos pesadelos. A sensação de um tempo remoto e dias passados se misturando. Sentiu um calafrio. Uma bata cirúrgica de papel. A dor do esparadrapo sendo arrancado. Um puxão no braço. Um tubo puxado de sua virilha. Dois homens vestidos de branco o ajudaram a sair do caixão. O vapor emanava ao seu redor, o ar se condensando e se dispersando. Sentado e piscando os olhos contra a luz ofuscante, exercitando as pálpebras havia muito fechadas, Troy olhou para a fileira de caixões cheios de vivos que se estendia junto às paredes distantes e curvas. O teto parecia baixo; podia sentir a pressão sufocante da terra acumulada acima deles. E os anos. Tantos tinham se passado. Todo mundo que ele amava devia estar morto. Tudo estava morto.

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Os comprimidos machucaram sua garganta. Ele tentou engolir. Memórias desapareceram como sonhos ao acordar, e ele sentiu que perdia a capacidade de se relacionar com tudo que conhecia. Caiu para trás, mas os homens de macacão branco perceberam o que ia acontecer. Eles o seguraram e o puseram no chão. A bata de papel roçava em sua pele trêmula. Imagens ressurgiram em sua mente; lembranças se lançavam como bombas e desapareciam. O efeito dos comprimidos não ia além disso. Levaria tempo para destruir o passado. Troy começou a chorar cobrindo o rosto com as mãos, enquanto outra, solidária, pousava em sua cabeça. Os dois homens de branco permitiram que ele tivesse aquele momento. Não apressaram o processo. Era uma cortesia passada de uma alma despertada para a seguinte, algo que todos os homens adormecidos em seus caixões um dia acordariam para descobrir. E, por fim... esquecer.

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1 Ano 2049 Washington, D.C.

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s altos armários de vidro para guardar troféus já tinham sido usados como estantes de livros. Havia indícios disso. As prateleiras tinham séculos, ao passo que as dobradiças e as pequenas fechaduras das portas de vidro aparentavam apenas poucas décadas. A moldura dos vidros era de cerejeira, mas o restante era de carvalho. Alguém tinha tentado minimizar a diferença com algumas camadas de verniz, mas as texturas das madeiras eram bem distintas. A cor não era perfeita. Para olhos muito observadores, detalhes como esse eram gritantes. O deputado Donald Keene reuniu essas informações sem querer. Ele simplesmente viu que muito tempo atrás uma grande limpeza havia sido feita para abrir espaço. Em algum momento no passado, a sala de espera do senador começou a perder os livros jurídicos obrigatórios até sobrarem apenas alguns. Esses volumes jaziam silenciosos nos cantos mal-iluminados dos armários. Estavam trancados lá dentro, com as lombadas marcadas por rachaduras, couro velho descascando como pele queimada pelo sol. Alguns dos colegas novatos de Keene enchiam a sala. Andavam de um lado para outro, agitados com o início do mandato. Como Donald, eram jovens e ainda incorrigivelmente otimistas. Estavam trazendo mudanças para a Colina do Capitólio. Esperavam realizar alguma coisa que seus antecessores não tivessem realizado. Enquanto esperavam a vez para falar com o grande senador Thurman, de seu estado de origem, a Geórgia, eles conversavam nervosamente entre si. Eram como um grupo barulhento de padres, pensou Donald, todos em fila para falar com o papa e beijar seu anel. Ele respirou fundo e se concentrou no conteúdo do armário. Perdeu-se nos tesouros atrás

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do vidro, enquanto um colega da bancada da Geórgia tagarelava sobre os Centros de Controle e Prevenção de Doenças de seu distrito. — ...e eles têm esse guia detalhado em seu site, esse manual de ação e prontidão para o caso de, escutem só essa, um apocalipse zumbi! Dá para acreditar nisso? Zumbis, porra! Como se até o CCPD achasse que algo pudesse dar errado e de repente nós todos fôssemos começar a comer uns aos outros... Donald conteve um sorriso, temendo que seu reflexo fosse visto no vidro. Ele se virou e viu uma coleção de fotografias nas paredes. Em cada uma delas o senador estava ao lado de um dos últimos quatro presidentes. A mesma pose e o mesmo aperto de mão em todas as fotos, o mesmo fundo sem janelas, com bandeiras e enormes brasões elaborados. O senador parecia quase o mesmo ao longo dos anos. Seu cabelo era branco no começo e continuava assim. Parecia completamente intocado pelo passar das décadas. Ver as fotos lado a lado de algum modo desvalorizava todas elas. Pareciam encenadas. Falsas. Era como se todos os homens mais poderosos do mundo tivessem implorado pela oportunidade de posar ao lado de uma imagem de papelão recortada, uma atração de beira de estrada. Donald riu, e o deputado de Atlanta se juntou a ele. — É demais, não é? Zumbis. Muito engraçado. Mas pense comigo, ok? Por que o CCPD teria esse manual se não...? Donald queria corrigir o colega, contar a ele do que realmente estava rindo. Veja os sorrisos, ele queria dizer. Os sorrisos estavam nos rostos dos presidentes. O senador parecia preferir estar em qualquer outro lugar. Era como se cada um naquela sucessão de comandantes supremos soubesse quem era o homem mais poderoso, quem ainda estaria ali muito depois de eles próprios terem deixado o cargo. — ...são conselhos do tipo: todos devem ter em casa um taco de beisebol, lanternas e velas, não é? Só por garantia. Você sabe, para esmagar uns cérebros. Donald pegou o celular e checou a hora. Olhou para a porta e se perguntou por quanto tempo ainda teria que esperar. Guardou o aparelho, virou outra vez para o armário e analisou uma prateleira em que havia um uniforme militar arrumado cuidadosamente, como se fosse um delicado origami. A parte superior esquerda do peito do dólmã exibia uma sequência de medalhas; as mangas estavam dobradas e presas com alfinetes

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para destacar os galões dourados que decoravam os punhos. À frente do uniforme, havia uma coleção de moedas decorativas em um suporte de madeira feito sob medida, símbolos de respeito e estima dos homens e mulheres que estavam na ativa. Tanto o uniforme do passado como o suporte com a coleção de moedas do pessoal na ativa diziam muita coisa. Eram os marcos de duas guerras. Uma em que o senador lutara quando jovem, e outra pela qual ele batalhara para evitar, quando já era mais velho e sábio. — ...é, parece loucura, eu sei, mas você sabe o que a raiva faz com um cachorro? Quer dizer, o que ela realmente faz, a parte biológica? Donald se inclinou para examinar as moedas decorativas. O número e o lema em cada uma delas representavam um grupo que tinha entrado em combate. Ou seria um batalhão? Não conseguia lembrar. Sua irmã Charlotte devia saber. Ela estava ali em algum lugar, no campo de batalha. — Ei, você não está nem um pouco preocupado? Donald percebeu que a pergunta tinha sido dirigida a ele. Então virou-se e olhou para o falante deputado. Ele devia ter trinta e poucos anos, mais ou menos a mesma idade que Donald. Ele podia ver no homem seu próprio cabelo rareando, o início de sua própria barriguinha, aquela degradação desconfortável rumo à meia-idade. — Se estou preocupado com zumbis? — Donald riu. — Não, eu não diria isso. O deputado se aproximou de Donald, seus olhos focando o aprumado uniforme, como se no interior da vestimenta ainda houvesse o peitoral atlético de um guerreiro. — Não — disse o homem. — Preocupado em falar com ele. A porta da recepção se abriu, e então pode-se ouvir os sons dos telefones do outro lado. — Deputado Keene? Uma recepcionista idosa estava parada junto à porta. A blusa branca e a saia preta evidenciavam um corpo magro e atlético. — O senador Thurman vai recebê-lo agora — informou ela. Donald deu um tapinha no ombro no deputado de Atlanta quando passou por ele. — Ei, boa sorte — balbuciou o homem enquanto ele se afastava. Donald sorriu. Resistiu à tentação de se virar e dizer a ele que conhecia muito bem o senador, que tinha brincado de cavalinho em seus

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joelhos quando era criança. Só que Donald estava preocupado demais em esconder o próprio nervosismo para fazer isso. Ele atravessou a grossa porta, constituída por painéis de diversos tipos de madeira de lei, e entrou no santuário particular do senador. Isso não era como entrar em uma casa para buscar a filha de um homem e levá-la para um encontro. Era diferente. Era a pressão de encontrá-lo como um colega, ao passo que Donald ainda se sentia como o menininho que cavalgava no joelho do senador. — Por aqui — indicou a recepcionista. Ela conduziu Donald por entre duas fileiras de mesas grandes e ocupadas, com uma dezena de telefones chamando em toques curtos. Homens e mulheres jovens, de terno e camisas impecáveis, seguravam um aparelho em cada mão. Suas expressões entediadas sugeriam que aquela era uma quantidade normal de trabalho para uma manhã de dia útil. Donald esticou a mão ao passar por uma das mesas e sentiu a madeira com as pontas dos dedos. Mogno. Os assessores ali tinham mesas melhores que a dele. E a decoração era constituída por um carpete macio, antigas e largas cornijas, teto revestido e lustres pendentes que deviam ser de cristal de verdade. Ao fundo da sala barulhenta, outra porta de painéis de madeira se abriu e dela surgiu o deputado Mick Webb, que havia terminado uma reunião. Mick não viu Donald. Estava concentrado demais na pasta aberta que tinha à sua frente. Donald parou e esperou que o colega e velho amigo de faculdade se aproximasse. — E aí? — perguntou a Mick. — Como foi? Mick ergueu os olhos e fechou rapidamente a pasta. Em seguida, enfiou-a embaixo do braço e balançou a cabeça. — É, é... Foi ótimo. — Ele sorriu. — Desculpe se demoramos muito. O velho não queria me largar. Donald riu. Ele acreditava nisso. Mick fora eleito com facilidade. Ele tinha o carisma e a confiança que acompanhavam o fato de ser alto e bonito. Donald costumava brincar que se o amigo não fosse tão ruim com nomes, um dia seria presidente. — Sem problema — respondeu Donald. Ele apontou com o polegar para trás por cima do ombro. — Eu estava fazendo novos amigos. Mick deu um sorriso forçado.

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— Aposto que sim. — É. Bem, vejo você de novo na fazenda. — Com certeza. — Mick bateu em seu braço com a pasta e seguiu para a saída. Donald captou o olhar da recepcionista e se apressou. Ela gesticulou para que ele entrasse no gabinete pouco iluminado e fechou a porta em seguida. — Deputado Keene. O senador Paul Thurman estava de pé atrás de sua mesa e estendeu-lhe a mão. Deu um sorriso familiar, que Donald conhecia tanto de fotos e da TV quanto de sua infância. Apesar da idade, quase uns setenta anos (se é que já não tinha isso), o senador estava saudável e em boa forma. Sob a camisa social, havia o corpo atlético típico dos militares; o pescoço grosso destacava-se acima do colarinho e da gravata; os cabelos brancos continuavam curtos e bem-aparados, como se o homem ainda estivesse na ativa. Donald atravessou a sala escura e apertou a mão do senador. — É bom vê-lo, senhor. — Sente-se, por favor. — Thurman soltou a mão de Donald e gesticulou na direção de uma das cadeiras diante da mesa. Donald ocupou o assento de couro vermelho-vivo com ilhoses dourados, que lembravam os fortes rebites de uma viga de aço. — Como vai Helen? — Helen? — Donald ajeitou a gravata. — Ótima. Ela voltou para Savannah. E gostou muito de vê-lo na recepção. — Sua esposa é linda. — Obrigado, senhor. Donald estava se forçando a relaxar, o que não ajudava. O gabinete parecia escuro, mesmo com as luzes acesas. As nuvens lá fora haviam ficado feias, baixas e escuras. Se chovesse, ele teria que voltar ao gabinete pelo túnel. Odiava o túnel. Apesar de o lugar ter sido decorado com carpetes e pequenos lustres, Donald ainda sabia que estava sob a terra. Os túneis em Washington o faziam sentir como um rato circulando pelos esgotos. Sempre parecia que o teto estava prestes a desabar. — O que está achando do emprego até agora? — O emprego é bom — disse. — É muito trabalho, mas é bom. Ele ia perguntar ao senador como Anna estava, mas a porta às suas costas se abriu antes que pudesse fazer isso. A recepcionista entrou, tra-

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zendo duas garrafas de água. Donald agradeceu, girou a tampa e viu que já estava aberta. — Espero que não esteja ocupado demais para trabalhar em algo para mim — propôs o senador Thurman, erguendo uma sobrancelha. Donald tomou um gole e se perguntou se aquela era uma habilidade que ele podia aprender, aquele erguer de sobrancelha. Despertava o impulso de pular em posição de sentido e bater continência. — Ah, eu arranjo tempo — respondeu. — Depois de todo o seu apoio à minha campanha? Sem ele, acho que eu não teria conseguido passar nem das primárias. Brincou com a garrafa de água no colo. — Você e Mick Webb se conhecem há tempos, não é? Dois Bulldogs? Donald levou um segundo para entender que o senador estava se referindo à mascote de sua faculdade. Não tinha passado muito tempo na Geórgia acompanhando esportes. — Sim, senhor. Força, Bulldogs! Torceu para que fossem as palavras certas. O senador sorriu e se debruçou para a frente, de modo que o rosto ficou no foco da luz suave que iluminava sua mesa. Donald observou as sombras de rugas que, de outro modo, seriam quase imperceptíveis. O rosto magro de Thurman, de queixo quadrado, provavelmente fazia com que parecesse mais jovem de frente que de perfil. Ali estava um homem que chegava aonde queria abordando os outros diretamente, em vez de emboscá-los. — Você estudou arquitetura na Universidade da Geórgia. Donald assentiu. Era fácil esquecer que conhecia Thurman melhor do que o senador o conhecia. Um ganhava muito mais manchetes de jornal que o outro. — Isso mesmo. Já durante a faculdade, eu comecei a pensar em fazer mestrado. Mas percebi que poderia ajudar mais governando as pessoas do que criando caixas para elas. Ele fez uma careta ao se ouvir dizendo essa frase. Era um clichê de faculdade, algo que devia ter deixado para trás junto com coisas como amassar latas de cerveja na testa e correr atrás de qualquer rabo de saia. Donald se perguntou pela enésima vez por que ele e os novos deputados tinham sido convocados. Quando recebeu o convite, achou que fosse uma visita social. Depois, Mick começou a se vangloriar da própria reunião, e Donald achou que era alguma espécie de formalidade ou tradição. Na-

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quele momento, porém, ele começava a desconfiar que se tratava de um jogo de poder, uma chance de conquistar republicanos da Geórgia, para quando Thurman precisasse de um voto em particular na câmara menos importante. — Diga, Donny, você é bom em guardar segredos? O sangue de Donald gelou. Ele se forçou a rir para espantar o nervosismo. — Eu consegui ser eleito, não consegui? O senador Thurman sorriu. — Então provavelmente aprendeu a melhor lição que existe sobre segredos. — O homem ergueu a garrafa de plástico como se estivesse fazendo um brinde. — A negação. Donald assentiu e tomou um gole de sua água. Não tinha certeza de aonde aquilo ia dar, mas já estava se sentindo desconfortável. Percebia que estava perto de um daqueles acordos de bastidores cuja eliminação ele havia prometido a seus eleitores, caso fosse eleito. O senador se recostou na cadeira. — A negação é o tempero secreto desta cidade — disse ele. — É o sabor que une todos os outros ingredientes. Sabe o que eu digo a todos os recém-eleitos? Que a verdade virá à tona, ela sempre vem, mas virá misturada com um monte de mentiras. — O senador girou uma das mãos no ar. — Você precisa negar verdades e mentiras com a mesma convicção. Deixe que os sites e os fofoqueiros que reclamam da ocultação de fatos confundam o público por você. — Hã, sim, senhor. Donald não sabia o que dizer além disso, então tomou outro gole de água. O senador tornou a erguer uma sobrancelha. Ficou imóvel por um instante, depois, do nada, perguntou: — Você acredita em alienígenas, Donny? Donald quase soltou água pelo nariz. Cobriu a boca com a mão, engasgou e teve que secar o queixo. O senador não se alterou. — Alienígenas? — Donald sacudiu a cabeça e passou a palma da mão molhada na coxa. — Não, senhor. Quer dizer, não aquele tipo que abduz pessoas. Por quê? O jovem se perguntou se aquilo era alguma espécie de briefing. Por que o senador tinha perguntado se sabia guardar segredos? Seria uma iniciação de segurança? O senador continuava em silêncio.

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— Eles não existem — disse Donald, por fim. E procurou algum movimento ou sinal de seu interlocutor. — Ou existem? O homem mais velho deu um sorriso. — Essa é a questão — respondeu. — Existindo ou não, o blá-blá-blá lá fora seria exatamente o mesmo. Você ficaria surpreso se eu lhe contasse que eles são muito reais? — Nossa, claro, eu ficaria surpreso. — Bom. O senador empurrou uma pasta para o outro lado da mesa. Donald a olhou e ergueu a mão. — Espere. Eles existem ou não? O que o senhor está tentando me dizer? O senador Thurman riu. — Claro que não. — Ele tirou as mãos da pasta e apoiou os cotovelos na mesa. — Você já viu quanto a NASA quer de nós para voarem até Marte e voltar? Não há como irmos até outra estrela. Nunca. E ninguém virá até aqui. Ora, por que fariam isso? Donald não sabia em que pensar, o que estava bem longe de como ele se sentira um minuto antes. Tinha entendido o que o senador queria dizer, como a verdade e a mentira pareciam preto e branco, mas, quando misturadas, tornavam tudo cinza e confuso. Baixou os olhos para a pasta. Era parecida com a que Mick estava carregando, e isso o fez pensar no gosto do governo por coisas ultrapassadas. — Isso é negação, certo? — Ele estudou o senador. — É isso o que o senhor está fazendo agora. Está tentando me confundir. — Não. O que estou dizendo é que é melhor você parar de assistir a tantos filmes de ficção científica. Na verdade, por que acha que esses cientistas sempre estão sonhando em colonizar outro planeta? Tem ideia de quanto isso custaria? É ridículo. Não compensa. Donald deu de ombros. Não achava ridículo. Tampou outra vez a água. — Está em nossa natureza sonhar com espaços abertos — retrucou. — Encontrar lugares para nos espalharmos. Não foi assim que viemos parar aqui? — Aqui? Na América? — O senador riu. — Nós não viemos aqui e encontramos uma área vazia. Fizemos um bando de gente ficar doente, matamos as pessoas e abrimos espaço à força. — Thurman apontou para

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a pasta. — O que me traz a isso. Eu tenho uma coisa em que gostaria que você trabalhasse. Donald pousou a garrafa no forro de couro da enorme mesa e pegou a pasta. — É algo vindo dos comitês? Tentou conter a empolgação. Era sedutor pensar em ser coautor de um projeto de lei em seu primeiro ano de mandato. Abriu a pasta e virou-a na direção da janela, onde nuvens de tempestade se aglomeravam. — Não. Nada do gênero. Isso é sobre as InConDes. Donald assentiu. É claro. O preâmbulo sobre segredos e conspirações de repente fez todo o sentido, assim como aqueles tantos representantes da Geórgia na sala de espera. Aquilo tinha a ver com as Instalações de Contenção e Descarte, apelidadas de InConDes, que estavam no centro do novo projeto de lei de energia do senador, o complexo que um dia abrigaria a maior parte do combustível nuclear usado no mundo. Ou, segundo os sites aos quais Thurman tinha se referido, seria a próxima Área 51, ou o lugar onde uma superbomba nova e aperfeiçoada estava sendo construída, ou uma prisão de segurança máxima para libertários que tivessem comprado armas demais. E assim por diante. Havia boatos suficientes lá fora para esconder qualquer verdade. — É — disse Donald, desanimado. — Tenho recebido telefonemas muito interessantes do meu distrito. — Ele não ousou mencionar um sobre homens-lagarto. — Quero que o senhor saiba que, particularmente, sou cem por cento a favor dessa instalação. — Ele olhou para o senador. — Fico feliz que a votação não tenha sido aberta, é claro, mas já era hora de alguém oferecer o seu quintal, não é mesmo? — Exatamente. Pelo bem comum. — O senador Thurman deu um grande gole de água, recostou-se em sua cadeira e pigarreou. — Você é um jovem inteligente, Donny. Nem todo mundo enxerga quanto isso ajudará nosso estado. Um verdadeiro salva-vidas. — Ele sorriu. — Desculpe, ainda chamam você de Donny, não é? Ou é Donald agora? — Tanto faz — mentiu Donald. Ele não gostava mais de ser chamado de Donny, mas mudar de nome no meio da vida era praticamente impossível. Ele voltou para a pasta e virou a carta da primeira página. Por baixo havia um desenho que lhe pareceu deslocado. Era... familiar demais. Familiar, mas, mesmo assim, não pertencia àquele lugar... Era de outra vida.

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— Você já viu os relatórios econômicos? — perguntou Thurman. — Sabe quantos empregos esse projeto de lei criou da noite para o dia? Quarenta mil, assim. — Ele estalou os dedos. — E isso só na Geórgia. Muitos vão ser no seu distrito, muitos carregamentos, muitos estivadores. Claro, agora que foi aprovado, nossos colegas menos espertos estão reclamando que também deviam ter tido a chance de incluir propostas... — Eu desenhei isso — interrompeu Donald, pegando a folha de papel. Ele mostrou o desenho a Thurman, como se o senador fosse ficar surpreso ao ver que aquilo tinha saído da pasta. Donald se perguntou se aquilo era coisa da filha do senador, algum tipo de piada ou cumprimento de Anna. Thurman assentiu. — Sim, bem, mas precisa de mais detalhes, não acha? Donald estudou o projeto arquitetônico e se perguntou que tipo de teste era aquele. Ele se lembrava do desenho. Fora um projeto de última hora para sua aula de arquitetura sustentável do último ano da faculdade. Não tinha nada de incomum nem maravilhoso; era apenas uma grande estrutura cilíndrica com cerca de cem andares de vidro e concreto, e sacadas arborizadas, e um recorte lateral do prédio que revelava níveis intercalados de habitação, trabalho e comércio. O projeto dele era simples onde, Donald lembrava, os colegas tinham se arriscado; era utilitário onde poderia ter sido ousado. Arbustos verdes se projetavam do teto plano — um clichê horrível, uma resposta à neutralização de carbono. Em suma: era insípido e sem graça. Donald não conseguia imaginar um projeto tão banal se erguendo nos desertos de Dubai, ao lado da grandiosa nova geração de arranha-céus autossustentáveis. E com certeza não compreendia para que o senador poderia querer usar aquilo. — Mais detalhes — murmurou ele, repetindo as palavras do senador. Folheou o restante do conteúdo da pasta em busca de alguma pista, algum contexto. — Espere. — Donald estudou uma lista de exigências escrita como se por um cliente em potencial. — Isso parece uma proposta de projeto. Palavras que ele já esquecera ter aprendido chamaram sua atenção: fluxo de tráfego interno, planta do andar, aquecimento, ventilação, refrigeração, hidropônico... — Você não vai contar com a luz do sol. A cadeira do senador Thurman rangeu quando ele se debruçou na mesa.

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— Como? — Donald ergueu a pasta. — O que exatamente o senhor quer que eu faça? — Eu sugeriria algo como as lâmpadas que minha mulher usa. — Ele formou um pequeno círculo com os dedos e apontou para o centro. — Ela consegue fazer sementinhas brotarem no inverno. Usa umas lâmpadas que me custaram uma fortuna. — O senhor quer dizer luzes de cultivo. Thurman estalou os dedos de novo. — E não se preocupe com os custos. Pode usar o que for necessário. Também vou lhe conseguir ajuda com a parte mecânica. Um engenheiro. Uma equipe inteira. Donald folheou o restante do conteúdo da pasta. — Isso é para quê? E por que eu? — Isso é o que chamamos de edifício só por garantia. Provavelmente nunca vai ser usado, mas não vão nos deixar armazenar o combustível nuclear por lá se não pusermos esse treco por perto. É como a janela do meu porão. Eu tive que baixá-la ou minha casa não ia passar na inspeção. Foi para fazer uma... Como é mesmo? — Saída de emergência — disse Donald, a expressão lhe ocorrendo naturalmente. — Isso, saída de emergência. — Ele apontou para a pasta. — Esse prédio é como a minha janela, algo que precisamos construir para que o restante passe pela inspeção. É para onde, no caso improvável de um ataque ou vazamento, os empregados das instalações iriam. Um abrigo. E precisa ficar perfeito, ou o projeto vai ser derrubado em um piscar de olhos. O fato de nosso projeto de lei ter sido aprovado e assinado não significa que ele vá se concretizar, Donny. Havia um projeto no Oeste que foi aprovado décadas atrás e tinha até verba para a construção. Mas, no fim, não deu em nada. Donald sabia do que ele estava falando. Uma instalação de contenção debaixo de uma montanha. Os rumores no Capitólio eram de que o projeto da Geórgia tinha as mesmas chances de sucesso. Quando pensou nisso, o peso da pasta de repente triplicou. Estavam lhe pedindo que participasse de um futuro fracasso. E ele teria que apostar seu cargo recém-conquistado nisso. — Coloquei Mick Webb para trabalhar em algo relacionado também. Logística e planejamento. Vocês dois vão ter que trabalhar juntos

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em algumas coisas. E Anna vai tirar uma licença do emprego no MIT para ajudar. — Anna? Donald estendeu a mão trêmula para pegar a garrafa de água. — É claro. Ela vai ser a engenheira-chefe do projeto. Na pasta estão os detalhes sobre o que ela vai precisar em relação a aproveitamento de espaço. Donald tomou um grande gole de água e teve dificuldade para engolir. — Há muita gente que eu poderia pedir para participar, claro, mas esse projeto não pode dar errado, entende? Ele precisa funcionar como uma família. Por isso eu quis chamar conhecidos, pessoas de confiança. — O senador Thurman entrelaçou os dedos. — Se essa é a única coisa que você foi eleito para fazer, quero que você faça bem feita. Foi por isso que resolvi apoiar sua candidatura, para começo de conversa. — É claro. — Donald assentiu para disfarçar sua confusão. Incomodara-o, durante as eleições, que o apoio do senador se devesse aos antigos laços familiares. Isso, agora, era de certo modo ainda pior. Donald não tinha usado o senador, de jeito nenhum; acontecera exatamente o contrário. Enquanto estudava o desenho em seu colo, o deputado recém-eleito sentiu o emprego para o qual não estava tão bem-preparado começar a escapar de suas mãos, apenas para ser substituído por outro que parecia igualmente intimidador. — Espere. Ainda não entendi. — Ele estudou o desenho antigo. — Por que as luzes de cultivo? — Porque, Donny... O prédio que quero que projete para mim... ele vai ser subterrâneo.

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