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Um Ifistante, Maestro 1 Quando foi entrevistada pelo repórter da Folha de S. Paulo Luiz Antonio Giron, que fazia uma matéria sobre dedos-duros na vi...
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Um Ifistante, Maestro 1

Quando foi entrevistada pelo repórter da Folha de S. Paulo Luiz Antonio Giron, que fazia uma matéria sobre dedos-duros na vida cultural brasileira, condição atribuída, entre Outros, a Flávio Cavalcanti, a jornalista Léa Penteado, que trabalhou com o apresentador durante quatro anos no momento mais fechado do regime militar, negou a acusação, revelando ao repórter fatos desconhecidos pela maioria dos brasileiros. Surpreso, o jornalista da Folha sugeriu à ex-colaboradora do mais polêmico apresentador da TV brasileira que escrevesse um livro sobre o período. Assim surgia UM INSTANTE, MAESTRO!, umlivro que vai surpreender você também. Flávio Cavalcanti foi um dos homens mais poderosos da TV brasileira nos primeiros anos da década de 1970. Seu poder emanava dos números do Ibope. Líder absoluto de audiência, idolatrado por muitos, desprezado por Outros tantos, ninguém lhe negava a condição de "Senhor dos Domingos", aquele que, através dos quadros de seu programa, determinava o que as pessoas discutiriam durante toda a semana em casa ou no trabalho. O perfil que se tem de Flávio Cavalcanti após a leitura de UM INSTANTE, MAESTRO! é de um homem destemido, que conheceu a glória e a decadência sem se livrar desta condição. Léa Penteado trabalhou com Flávio Cavalcanti entre 1971 e 1974, experiência que lhe permitiu não só reproduzir com fidelidade os bastidores da TV, com surpreendentes detalhes da vida de artistas, como apresentar com propriedade a evolução técnica e política da televisão no Brasil nos anos 70. Ela era repórter da revista Amiga quando foi convidada para trabalhar com Flávio Cavalcanti. Depois de quatro anos de assessoria ao apresentador, sua colaboração se transformou numa amizade que, mesmo depois da morte de Flávio, foi mantida por seus filhos. A jornalista trabalhou nos principais órgãos de imprensa do país, o que de certa forma facilitou sua decisão de tornar-se divulgadora. Como divulgadora, associou seu nome a grandes eventos, como as duas versões do Rock in Rio e a Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro. Em janeiro de 1993, foi nomeada Assessora Especial de Promoções e Eventos do Rio de Janeiro.

LÉAPENTEADO

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EDITORP. RECORD

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, Ri. P472i

Penteado, Léa Um instante, maestro! / Léa Penteado. - Rio de Janeiro : Record, 1993. 1. Cavalcanti, Flávio. 2. Televisão - Brasil História. 1. Título.

93-0465

CM - 791.450981 927.9145 CDU - 654.19(81) 92:654.19

Copyright © 1993 by Léa Penteado Foto da capa: Revista Manchete

Direitos exclusivos desta edição reservados pela DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A. Rua Argentina 171 - 20921-380 Rio de Janeiro, Ri - Tel.: 585-2000 Impresso no Brasil ISBN 85-01-04094-0 PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL Caixa Postal 23.052 - Rio de Janeiro, Ri - 20922-970

A Bernardo, meu filho, um pouco da nossa história.

Obrigada, - a Marzinha, Flávio e Fernanda, por me permitirem contar a vida de seus pais. - a Iaiá e Alceu, meus pais, pela minha vida. - à Bloch Editores, pela utilização de seu arquivo de pesquisas e cessão de fotos que compõem o livro. - a Affonso Romano de Sant'Anna e Fundação Biblioteca Nacional, pela facilidade em utilizar seus arquivos. - a Hylde Darossati, por seu inestimável trabalho de pesquisa e assessoramento. - ao Centro de Documentação da TV Globo, pelo acesso às informações sobre Márcia Mendes. - e, ainda, a Angela do Rego Monteiro, Antonio Beilo, Artur Xexéo, Celso da Silva Pereira, Eduardo Sidney, Geraldo Sobreira, Gilda MüIIer, Giuseppe Ghiaroni, Lair Ribeiro, Luiz Antonio Giron, Marcelo Cerqueira, Mari Menda, Maurício Sherman, Moyses Fuks, Regina Echeverria e Vanusa.

Urca, Rio de Janeiro. Janeiro de 1971. Domingo. Um calor insuportável. As duas horas da tarde, uma longa fila saía da porta da TV Tupi e subia a Avenida São Sebastião. Era tão grande que se confundia com as filas dos ônibus que levavam os farofeiros de volta para o subúrbio depois de um belo domingo de praia. A TV Tupi, Canal 6, estava instalada num prédio onde, muitos anos antes, funcionara o Cassino da Urca. O bairro era estritamente residencial, com apenas duas vias principais de acesso. Por um capricho da arquitetura do anos 40,0 prédio unia os dois lados da Avenida João Luís Alves; de um lado funcionava a parte comercial e do outro, os estúdios. Era engraçado ver os funcionários apressados passando de um lado para outro, ziguezagueando na frente dos carros e ônibus. Mas isso já fazia parte da rotina. Afinal, aquela era a maior rede de televisão do país, com afiladas nas principais capitais. Foi a Tupi que colocou no ar a primeira emissora do Brasil, em São Paulo, em 1950. O dono era Assis Chateaubriand, que tinha um império de comunicações, com rádios e jornais em vários estados brasileiros. Após a sua morte, em 4 de abril de 1968, todo esse conglomerado passou a ser administrado por um condomínio, como determinara o testamento por ele deixado. Mas o síndico geral, responsável pela direção desse condomínio, senador João Calmon, preocupava-se muito mais com sua carreira política do que com os caminhos da comunicação. Com isso, novas emissoras foram chegando e ganhando lugar no mercado.

No início da década de 70, os programas de auditório eram ao vivo, e a Tupi, apesar de não estar vivendo seus melhores momentos, com problemas financeiros e uma briga interna entre os condôminos, tinha grandes nomes como Bibi Ferreira, Jota Silvestre e Aérton Perlingeiro no comando de bons programas. Aos domingos, no entanto, tudo mudava. A Urca ficava com outra cara. Dentro da emissora, contra-regras, assistentes de produção, técnicos e músicos corriam de um lado para o outro da emissora, numa função que começava bem cedo. Do lado de fora, os fãs formavam longa fila e vibravam com a chegada dos artistas. Fã é fã em qualquer época, e ali se repetiam os chiliques, gritinhos e desmaios como nos áureos tempos do rádio. Paralelamente a essa agitação, acontecia uma outra não tão alegre junto à porta de serviço da emissora. Eram pedintes que se enfileiravam; a fila da miséria. Doentes, mendigos e necessitados vindos de diversos pontos do país esperavam a chegada do "Senhor dos Domingos", o salvador da pátria que - acreditavam - poderia aliviar todos os males e solucionar os seus problemas. Distante duas quadras da TV Tupi, numa pacata rua residencial, a Candido Gaffrée, havia uma casa branca de dois andares, varandinha, jardim na frente, coqueiro e mangueira no quintal. Era uma casa diferente. Ali produzia-se o programa que fazia o Brasil parar aos domingos. Naquele momento, fechado numa sala superrefrigerada, o todo-poderoso preparava-se para mais um programa. Sabia exatamente o que se passava na porta da emissora. Há seis meses era líder absoluto de audiência. Amado por muitos, odiado por outros tantos, era o apresentador mais polêmico da TV brasileira. Explorava assuntos que eram discutidos na semana seguinte pelos mais diversos segmentos da sociedade, como Congresso, repartições públicas, quartéis, bares, salões de cabeleireiro e universidades. Tanto a esquerda quanto a direita ficavam atentas ao que ele dizia, nem que fosse para discordar. Ele tinha consciência desse poder. Atrás de uma grande mesa, sentado numa poltrona de couro, relia o script do programa. O mesmo script que recebera em sua casa, em Petrópolis, dois dias antes, numa cópia arroxeada, mimeografada em papel-jornal. Idêntica à enviada à Censura. Era um tempo em que ninguém podia abrir a boca no rádio e na TV, nem publicar uma linha num jornal ou revista sem a aprovação da Censura. 10

Depois de aprovado, o script ganhava outro formato na mão do apresentador. O papel-jornal era substituído por papel-ofício, datilografado em máquina elétrica sem um erro. As perguntas das entrevistas eram copiadas em fichas brancas, impecavelmente limpas, sem rasuras. Somados a este farto material, capaz de manter milhares de brasileiros com os olhos pregados no vídeo durante quatro horas, outros textos surgiam de uma fina pasta de couro marrom, como se fizessem parte de um programa diferente. Eram recortes de jornais e revistas, cartas, anotações e algumas folhas de papel datilografadas pelo próprio apresentador com identificações variadas: "Li não sei onde, guardei e dou de graça...", "Criança diz cada uma..." e "Fora de script". Este último, sem dúvida, o mais fascinante. Uma surpresa para os telespectadores, um susto para a produção e um soco no estômago do governo. Conheci esse lado de dentro da televisão no primeiro dia de trabalho. Eu era jornalista e trabalhava como repórter da revista Amiga. Aos domingos era encarregada de ir à Tupi fazer a cobertura do programa. Aos poucos fui conhecendo as pessoas, e um dia acabei sendo convidada para trabalhar com ele. O salário era quatro vezes maior, e não pensei duas vezes. Estava recém-casada, queria fazer análise, e topei a proposta. Um acerto puramente profissional, pois politicamente eu discordava de alguns pontos de vista do apresentador. Mas,já no primeiro dia como sua secretária particular, percebi o quanto valiam o grito, a coragem, num tempo de poucas palavras. Valiam também a audiência, os pontinhos do IBOPE e a ousadia de cutucar a censura com vara curta. O medo estava "fora de script". Ele defenderia sua opinião com unhas e dentes, se fosse preciso, até tirarem o programa do ar. Dramático, teatral, emocionado, ele dominava uma nova linguagem de comunicação e acreditava que TV era "timing": saber a hora do show, segurar o telespectador no suspense de uma boa reportagem. Tirava e colocava os óculos nervosamente, chorava diante das câmeras, vibrava com as entrevistas, ria com os fora de série e se divertia muito com o trabalho pelo qual era regiamente pago. Não era de esquerda nem de direita. Era simplesmente Flávio Cavalcanti.

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Por Que o Livro

Eu tinha 22 anos de idade quando conheci Flávio. Tinha participado de passeatas, cantado músicas de protesto, procurado em delegacias de subúrbio um namorado desaparecido que só foi encontrado no DOPS, levado porrada da polícia no quebra-quebra da Cinelândia e ouvido dezenas de histórias de amigos torturados. Fazia parte de um grupo que veio a se chamar MAU - Movimento Artístico Universitário -, nascido na casa do psiquiatra Aloysio Porto Carreiro, na Rua Jaceguai, 27, Tijuca. Eu era colega de Angela, filha mais nova de Aloysio. Nos fins de semana, o grupo se reunia em sua casa para tocar violão, bater papo, namorar e tomar cerveja. Corria o ano de 1965, um após a revolução. Era sensacional para uma adolescente descobrir aquele clima de protesto e conhecer um mundo politicamente diferente do que tinha aprendido em casa. Com Aloysio e sua mulher Maria Ruth tudo era permitido. Fumar, ficar acordada até o dia amanhecer e, sobretudo, falar de política. Liberdade, liberdade! Aprendia-se muito ouvindo músicas de Sinval Silva a Nelson Cavaquinho, passando por Milton Nascimento e Paulo Sérgio Valle,já despontando como compositores, e acompanhando os novos que ali 13

surgiam como Gonzaguinha (namorando Ângela), Ivan Lins (namorando Lucinha), Aldir Blanc, César Costa Filho, Sílvio Silva, Paulo Emilio e mais um monte de gente de talento que veio a se firmar nos festivais universitários. Meus amigos não eram exatamente do estilo dos amigos de Flávio. Deste meu grupo, alguns ao longo da vida tomaram-se inimigos do apresentador por discordarem de sua postura. Apesar disso, me tomei amiga de Flávio, ou melhor, ele foi meu melhor amigo, essencial em minha vida durante quinze anos. Proporcionou-me momentos inesquecíveis, foi generoso, sincero, doce e dedicado, ensinando-me que, mais importante do que ser de esquerda ou de direita, era ter opinião própria e respeitar a alheia. Meu objetivo em escrever este livro foi apontar fatos e contar histórias que envolveram o apresentador e a televisão no período de 70 a 74. Mais do que o resgate do seu nome, quero revelar um Flávio Cavalcanti punido e perseguido pela Censura, ao contrário da imagem fortemente divulgada pelo patrulhamento ideológico. Colocaram-lhe uma culpa que jamais teve, foi chamado de dedoduro sem jamais terem conseguido provar nada, apesar de ter ajudado a esconder amigos procurados pelo Exército. Foi conivente com a revolução de 64, mas acabou discordando dos rumos que esta tomou a partir do Ato Institucional n2 5, em dezembro de 1968, e pagou por isso. Através de pareceres da Censura Federal sobre o programa, somados a depoimentos de amigos, companheiros de trabalho e até mesmo de opositores, este livro mostra um Flávio Cavalcanti que quase ninguém conheceu.

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"Meu melhor programa de televisão é aquele que ainda não fiz."

Em 1970 a TV Tupi, Canal 6, do Rio de Janeiro, utilizava três câmeras da marca RCA Victor para realizar seus programas ao vivo. Cada câmera pesava mais de quarenta quilos e era fixada em um tripé com rodinhas. O peso da câmera impossibilitava o operador de movimentá-la sozinho. Surgiu assim o cabo-mau, aprendiz de cameraman, responsável por puxar o cabo da câmera para que deslizasse pelo palco. Estas câmeras operavam com três lentes, trocadas manualmente de acordo com a solicitação do diretor de imagens. A cada troca de lente o cameraman tinha que acionar uma alavanca barulhenta, localizada embaixo do visor. Se havia silêncio no palco, podia-se ouvir o clap-clap da troca de lentes.

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As

18 horas do dia 5 de julho de 1970, o Programa Flávio Cavalcanti estreou na TV Tupi. Seu desafio era ficar no ar, ao vivo, até as 22 horas, em transmissão direta via Embratel para todo o Brasil (exceto Manaus), em época de censura total. Até então os programas só chegavam aos outros estados através do videoteipe. As fitas eram enviadas de avião para as cidades que compunham a rede, e os programas exibidos uma semana depois. Mas as coisas haviam mudado. Em junho de 1970, a Embratel inaugurara o sistema de transmissão via satélite com a Copa do Mundo no México, onde o Brasil conquistou o tricampeonato mundial de futebol e, pela primeira vez, a torcida brasileira vibrava com as imagens ao vivo. O Programa Flávio Cavalcanti utilizava o satélite da Embratel, na primeira experiência de um programa transmitido ao vivo para todo o Brasil. Este avanço nas telecomunicações também produziu uma grande mudança na área dos comerciais de TV, que até então se restringiam à praça onde o programa estava sendo exibido. Caso quisesse ter o seu comercial em todas as cidades onde o programa era exibido, o patrocinador tinha que negociar praça por praça e enviar os teipes. Com a transmissão por satélite, o Programa Flávio Cavalcanti se tornou o pioneiro em comerciais nacionais. Antes de o apresentador pedir o tradicional "nossos comerciais, por favor", anunciava o comercial nacional. Surgia na tela um pequeno mapa do Brasil, o comercial era gerado junto com o programa e visto em todo o país. Em termos de publicidade, era um pulo no tempo e no espaço. 17

Mas, em meio a todas essas maravilhas da telecomunicação, havia um outro desafio a superar: a engrenagem viciada, velha e pouco produtiva da emissora. Controlada por um condomínio onde predominavam os interesses pessoais, a TV Tupi era um saco de gatos. A TV Globo entrara no mercado há cinco anos trazendo o que havia de mais sofisticado em técnicas de televisão. A Tupi estava defasada. O auditório era pequeno, desconfortável; os técnicos, mal-remunerados; e fazer um programa ao vivo naquelas condições era pra leão. Flávio sabia disso e buscou armas eficazes para esta luta. Misturou os dois programas que fazia com sucesso na Tupi desde 66: Um Instante, Maestro!, às terças-feiras, e A Grande Chance, às quintas, acrescentando criatividade em novos quadros. Como era seu estilo, manteve o traje a rigor, exigindo o mesmo dos jurados e convidados; colocou uma orquestra no palco e contratou os melhores profissionais do mercado. Como diretor, Eduardo Sidney; na redação, Giuseppe Ghiaroni e Roberto Silveira; produção musical, Detto Costa e coordenação de José Mandarino, entre mais de vinte pessoas que passavam a semana inteira pensando apenas no programa. A TV Estúdio Produções, empresa do apresentador, tinha um contrato com a TV Tupi no valor de 360 mil cruzeiros mensais, que corresponderia a 150 mil dólares. Esta quantia cobria os custos do programa (uma parte da contratação de equipe - muitos eram funcionários da Tupi -, artistas, jurados etc.) e, obviamente, pagava o salário do apresentador. Além disso, o contrato permitia a Flávio ter patrocinadores exclusivos para os comerciais nacionais, o que representava um faturamento extra. Os concorrentes eram Sílvio Santos, das 18 às 20 horas, e Chacrinha, das 20 às 22, ambos na TV Globo. O carro-chefe da Globo eram as novelas, principalmente as de Janete Clair, com Regina Duarte e Cláudio Mano no elenco. Os altos índices de audiência eram mantidos durante toda a semana, e Flávio chegava para balançar as noites de domingo, ou melhor, desestruturá-las. Na estréia do programa, o IBOPE registrou no Rio, entre 18 e 21 horas, uma média, considerável para um programa iniciante, de 45% de audiência, e das 21 às 22 horas, 56%. Números excelentes! O júri era formado por Oswaldo Sargenteili, Paulo Fortes, Mansa 18

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Urban, Erlon Chaves, Íris Lettieri, Terezinha Morango Pitigliani, Sérgio Bittencourt e Leda Lucia Galdeano. As principais atrações foram uma entrevista com o jogador Tostão, idolatrado por ter sido peça importante na seleção brasileira para a conquista do tricampeonato mundial no México; uma conversa ao telefone com Elis Regina, que da maternidade falava da alegria de ser mãe pela primeira vez; e os concursos para escolher o melhor dançarino de iê-iê-iê, coordenado pelo discotecário Monsieur Limá, e uma bela moça para ser capa da revista O Cruzeiro. Ainda tinha um júri especial para o Um Instante, Maestro!, inserido no novo programa, formado por Mister Eco, José Messias, Francisco Carlos, Carminha Mascarenhas, Detto Costa, Carlos Renato e o maestro Cipó. Logo que o programa estreou, as contratações dos artistas nacionais e internacionais eram feitas diretamente pela produção. Mas dois meses depois Flávio conheceu o empresário Marcos Lázaro, que tinha sob contrato os melhores artistas nacionais, como Elis Regina, Roberto Carlos e Wilson Simonal, entre outros. Devido a uma antiga briga com Chacrinha, que, segundo o empresário, queria ter os artistas em seu programa sem pagar cachê, todos os grandes nomes da MPB passaram a ser exclusivos do Programa Flávio Cavalcanti. Marcos Lázaro dominava o mercado do show business no Brasil nos anos 70 e era responsável pela vinda dos maiores artistas internacionais, como Josephine Baker, Stevie Wonder (surgindo com o primeiro sucesso e ganhando um cachê de 5 mil dólares), Elia Fitzgerald, Earl Grant, Silvie Vartan, Chubby Cheker, The Platters, entre outros. Alguns passavam com exclusividade pelo palco da Tupi e depois seguiam em turnê. Dom Marcos, como era chamado, tinha uma boa infra-estrutura, e provou a Flávio que o melhor negócio era a sua empresa Socram contratar os artistas e pagar os cachês, repassando os custos à empresa de Flávio, que ficaria livre de preocupações contratuais. Com todos esses elementos, o programa se tornou o maior sucesso da televisão brasileira. Se perdia na falta de recursos técnicos da Tupi, ganhava na criatividade. Era dinâmico, contestador, provocante, e apresentava as melhores atrações. A cada semana uma grande surpresa. Os concorrentes faziam programas popularescos, tentando conquistar mais audiência. Todas as segundas-feiras colhíamos com o IBOPE o resultado da pesquisa da noite anterior. O 19

IBOPE naquela época já era fundamental na aferição dos índices de audiência, e seus dados eram respeitados pelos patrocinadores. Quanto maior nosso índice de audiência, maior nosso estímulo para enfrentar a turma da Globo. Como tudo era censurado, a programação da emissora concorrente muitas vezes resvalava para o mau gosto, apresentando o mundo cão, tapando com uma peneira a realidade do país onde centenas de pessoas eram perseguidas, presas e torturadas e, contraditoriamente, ao mesmo tempo, crescia o chamado "milagre brasileiro".

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"O importante é a gente ter ação e paixão para superar as dificuldades."

A diretoria da TV Tupi mudava no mesmo ritmo que as atrações do programa. Quando A Grande Chance e Um Instante, Maestro! foram fundidos em um só programa, surgindo assim o Programa Flávio Cavalcanti aos domingos, o diretor da Tupi do Rio era Antônio Lucena. Logo após a estréia, Lucena foi substituído por José Arrabal, que, meses depois, cedeu seu lugar a Rubens Furtado. A cada mudança na diretoria Flávio ficava otimista, acreditava que a situação na emissora iria melhorar e ele conseguiria as facilidades técnicas necessárias para fazer um programa ao vivo com quatro horas de duração. Doce ilusão! No período de 70 a 74 ainda passaram pela Tupi os seguintes diretores: Rubens Furtado, Edson Leite - levando Chacrinha -, Orlando Negrão, como interventor temporário, Daniel Lo Forte e Paulo Cabral. Era muito difícil trabalhar assim.

2 N0 dia 31 de julho de 70, um domingo, o Programa Flávio Cavalcanti foi interrompido para o anúncio, em edição extraordinária, de que o cônsul do Brasil em Montevidéu, Aloísio Gomide, fora seqüestrado em sua casa por dez guerrilheiros tupamaros, de extrema esquerda, disfarçados de técnicos da companhia telefônica. A notícia comoveu a opinião pública brasileira e uruguaia. E repercutiu ainda mais sete dias depois, quando um funcionário norte-americano, Dan Mitrione, seqüestrado no mesmo dia, foi sumariamente executado pelos tupamaros. Além do cônsul brasileiro, também estava em poder dos seqüestradores o agrônomo norte-americano Claude Fly. Mas o governo uruguaio mantinha-se irredutível, e não negociava com os terroristas. Começou então uma longa jornada para Maria Aparecida Gomide, mulher do cônsul, tanto para conquistar a simpatia do povo uruguaio para que participasse de sua luta a fim de resgatar o marido quanto junto às autoridades brasileiras para que facilitassem as negociações. A família do cônsul acompanhava o seu seqüestro, mas só em dezembro os tupamaros anunciaram o preço que deveria ser pago pelo resgate: um milhão de dólares. Maria Aparecida, que até então passava a maior parte do tempo em Montevidéu, resolveu voltar ao Rio para tentar conseguir o dinheiro necessário à libertação do marido. Através de Neném Mascarenhas, irmã caçula de Flávio, casada com um diplomata, Armando Mascarenhas, o apresentador chegou 23

até Maria Aparecida e ofereceu ajuda. Era o dia 13 de dezembro. Dois dias antes ela se encontrara em Brasília com o ministro das Relações Exteriores, Mário Gibson Barboza, e falara do desejo de fazer uma campanha. Em sua página semanal em O Jornal, no dia 20 de dezembro de 1970, Flávio registrou assim seu encontro com Maria Aparecida: "É domingo. Estou na Gávea. Rua João Borges. A casa é de uma das melhores pessoas do mundo. Nunca esbarrei com ninguém igual Fernandina, Maria Fernandina, Neném, Nem. Vim almoçar. Enquanto alguém prepara um uísque, percebo que estou nervoso, inquieto e triste. A qualquer momento deverá chegar Maria Aparecida Gomide, perdão, já chegou. Ei-la aí. Sentada à minha frente, de óculos escuros, contando toda a tragédia em pormenores tão impressionantes que é melhor deixar pra lá. Bonita figura de mulher. Perfeito retrato de corpo inteiro da dor, da angústia, da aflição. Mas lúcida, afirmativa, sabendo o que quer, conhecendo os caminhos escuros, cheios de armadilhas, mas topando a caminhada. A empregada vem avisar que cinco homens dentro de um carro pedem que eu dê um pulinho lá na calçada. Depois de uma pequena conversa com os policiais, volto à sala. Combino com Maria Aparecida a hora de chegar ao programa logo mais. Há todo um show de alegria, de beleza, de Maysa, de moças bonitas a ser apresentado antes. Até lá, tenho que deixar escondidos os impulsos, o desespero, a lágrima. O relógio corre e eis que adentra o palco Maria Aparecida. E começa a entrevista. E todo o Brasil, na mais espantosa comoção, chora com Aparecida e comigo, decide com Aparecida e comigo, resolve a caminhada com Aparecida e comigo. Cinco bilhões de cruzeiros. Um milhão de dólares. Mas nós todos decidimos conseguir o dinheiro. Nenhum de nós terá Natal feliz, O Natal Gomide é o Natal de nós todos, O diabo banca o jogo, Deus vai pagar pra ver." Com esta entrevista nasceu a campanha "Maria Aparecida— Só o Amor Constrói". O ministro da Fazenda, Delfim Netto, 24

declarava que "só por um passe de mágica" a mulher do cônsul conseguiria transferir o dinheiro arrecadado para o Uruguai. O Banco Central não podia participar da campanha nem exercer qualquer pressão junto aos bancos para abrirem contas com este propósito. Comprar dólares, então, nem pensar. A lei era rígida e clara, só permitindo a compra de mil dólares para quem viajasse para o exterior, sendo 100 em cédulas e 900 em traveller's cheques. Acima desse valor, só com permissão especial. Através do presidente do Sindicato dos Bancos, Teófilo Azeredo Santos, Flávio conseguiu adesão do Banco Nacional, que deu o pontapé inicial da campanha abrindo contas em todas as suas agências. A campanha tomou vulto desde o seu lançamento, com as primeiras doações vindas do Grupo Metropolitano, TAP e Danuza Leão. O Jóquei Clube de Santos oferecia a renda de uma corrida, funcionários da Cervejaria Ouro Branco, em Belo Horizonte, doaram um dia de trabalho, o circo-teatro Catacumba, na Lagoa, a renda de um fim de semana, e assim a campanha foi crescendo em todo o país. O Programa Flávio Cavalcanti tinha essa força, movimentava o país de norte a sul. No meio da campanha, Mana Aparecida caiu em profunda depressão, mas a luta continuava todos os domingos com chamadas durante o programa. No princípio de fevereiro, Maria Aparecida voltou para o Uruguai. O pesadelo estava chegando ao fim. Como oficialmente os dólares não poderiam sair do Brasil, eles foram transportados de ônibus por uma senhora de 63 anos, Ivani Almeida, e um advogado, Marcos Ribeiro de Azevedo, numa sacola de plástico. Os dois foram até Chuí, fronteira do Brasil com o Uruguai, numa viagem longa e tensa, pois o ônibus foi parado em vários postos policiais, e todos os passageiros revistados. Mas ninguém poderia imaginar que milhares de dólares estavam embaixo de guardanapos e pertences pessoais que aquela senhora carregava numa sacola. No dia 3 de fevereiro, ao meio-dia, na calçada da rua que marca a divisa dos dois países, o resgate foi entregue a um tupamaro, com a seguinte senha: "Que Nossa Senhora Aparecida nos proteja." Na sacola de plástico havia 300 mil dólares, quantia arrecadada na campanha. Os seqüestradores reduziram o valor do resgate com a condição de que fosse divulgado que o valor pago fora o exigido, um milhão de dólares. 25

O cônsul Gomide foi solto no domingo de carnaval, dia 22 de fevereiro de 1971, e no domingo seguinte participava do programa num quadro chamado "Flávio Confidencial", relatando com detalhes a odisséia de ficar 205 dias no cativeiro. A campanha, além de fundamental para a libertação do cônsul, trouxe grande prestígio ao programa e mostrou, para quem ainda não sabia, que Flávio, antes de tudo, era um repórter. Sentia o faro da boa entrevista, quando um assunto poderia render. Este sentimento era imprescindível. Ninguém, nem mesmo a pressão política da época, seria capaz de convencê-lo a fazer algo que não quisesse. Por outro lado, tinha forças para enfrentar os maiores desafios por uma causa em que acreditasse. Agiu sempre assim, desde o início da carreira, como no discutido caso Tenório Cavalcanti.

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"Tenho nojo de qualquer tipo de covardia, física ou moral. Tenho medo deter medo.

Em 1953 foi inaugurada a TV Record em São Paulo, propriedade de Paulo Machado de Carvalho e João Batista do Amaral, o "Pipa", que já tinham em sociedade as rádios Record, Cruzeiro do Sul, São Paulo e Bandeirantes. Amaral pensava em formar uma rede de TV, com canais em diversas cidades. Em 1954, Pipa conseguiu a concessão de um canal no então estado da Guanabara, surgindo a TV Rio, Canal 13. O programa Noite de Gala estreou em 1957, transformandose em ponta de lança de uma boa programação da emissora. Na esteira desse sucesso vieram O Grande Teatro Philco, TV RioRingue, o seriado americano Lassie, o humorísticoA( Vem Dona Isaura e dois programas do Velho Guerreiro, Rancho do Mr. Chacrinha e Discoteca do Chacrinha.

Em 1960,0 maior sucesso na televisão carioca era o programa Noite de Gala, na TV Rio, Canal 13. Fláviojá mostrava na televisão um lado polêmico através do seu primeiro programa, Um Instante, Maestro!, que estreara três anos antes na TV Tupi. A convite de Abraão Medina, foi para o Noite de Gala, explorando o seu lado de repórter. A cada semana se superava com um assunto mais ousado, instigante, que deixava sempre um clima de suspense para a semana seguinte. Dentro desse clima, ele foi entrevistar o tenente Bandeira, o grande assunto policial da época. Bandeira estava preso e era acusado de ter matado o bancário Afrânio, no famoso crime da Ladeira do Sacopã. Nessa época não existiam câmeras portáteis. Para realizar a entrevista no presídio, além de levar enormes câmeras do estúdio, Flávio precisou da autorização do juiz que condenou Bandeira, do chefe da polícia do Rio, do diretor do presídio, dos advogados que pleiteavam novo julgamento e da Ordem dos Advogados. A reportagem foi muito comentada e gerou uma outra, mais polêmica ainda, realizada em Duque de Caxias, na época um subúrbio na Baixada Fluminense, hoje município. Esta região tinha como líder político o alagoano Tenório Cavalcanti, que lá chegou em 1928, como tantos outros imigrantes nordestinos fugidos da seca. Encontrou uma região paupérrima, plantada sobre um pântano. Espírito polêmico e desbravador, em poucos anos se tornou o 29

salvador daquela gente que chegava em paus-de-arara. Arrumava emprego, casa, ajudava a conseguir os documentos, e em troca tinha um voto garantido. Reuniu um grande eleitorado, e foi eleito deputado estadual e depois deputado federal. Vestido sempre de terno e com uma capa preta, carregava sob ela uma metralhadora a que, carinhosamente, chamava Lurdinha. Tenório Cavalcanti era alto, magro, tinha barba e usava óculos. Parecia uma figura de folhetim. Como advogado de defesa de Bandeira, procurou Flávio depois da entrevista dizendo ter provas fundamentais para justificar a inocência de seu cliente. Garantia que o verdadeiro assassino estava em sua casa. Mais um grande furo de reportagem para Flávio, que, depois de muitas negociações, marcou a entrevista na casa do deputado, uma verdadeira fortaleza em Caxias. Transportar o equipamento do estúdio de Copacabana para Caxias era uma mudança. Uma kombi virava estúdio e levava todo o material necessário: câmeras, microfones e até a mesa de corte. A reportagem entrava no ar ao vivo. Não podia falhar. A entrevista começou nervosa. Do outro lado da cidade, no estúdio em Copacabana, o patrocinador do programa, Abraão Medina, não tinha a menor idéia do que se passava. É que, depois de tudo combinado, Tenório resolveu não mostrar o suposto assassino, e quis apenas defender Bandeira. O repórter ficou frustrado. Tanto trabalho para nada! Não querendo perder a viagem, até porque a emissora vinha anunciando uma entrevista sensacional, Flávio criou uma outra sem contar para ninguém. Contratou um barbeiro, chamou um padre e, sem dizer a ninguém, começou o seguinte diálogo com Tenório: - Deputado, o senhor se considera um homem bom? Claro, aqui em Caxias todos podem comprovar isso. - O senhor seria capaz de raspar a barba para uma obra de caridade? - Como? Não estou entendendo. - Nós pagaríamos ao senhor dez mil cruzeiros e daríamos para as obras assistenciais deste padre. - Eu dou quinze para não raspar - retrucou Tenóno. - Pois damos vinte. E assim começou um leilão inédito. O patrocinador ficou tão 30

animado que mandava recados para Flávio aumentar o lance. Tudo isso acontecendo ao vivo, diante dos olhares incrédulos de milhares de telespectadores que sabiam o quanto aquela barba representava para Tenório. Os lances foram aumentando, até o deputado se render, fazendo uma exigência: rasparia a barba e em troca o apresentador mergulharia na piscina como estava vestido, ou seja, de óculos, smoking, relógio, sapatos etc. Como tudo isso acontecia ao vivo, as outras emissoras de TV, Continental e Tupi, acabaram acompanhando o burburinho em Caxias e enviaram seus caminhões de externa para fazerem a reportagem da reportagem. O clima era de guerra. Tenório sempre foi muito querido em Caxias, e seus eleitores, revoltados com o leilão, ameaçavam virar o caminhão de externa da TV Rio. Finalmente o deputado raspou a barba e o apresentador mergulhou na piscina. Uma correção que precisa ser feita: no filme O Homem da Capa Preta, a cena da piscina ridiculariza o apresentador, como se ele não soubesse nadar. Não é verdade. Flávio era um grande nadador, tanto que, quando jovem, tinha o apelido de "peixe-espada", por ser muito magro e ágil. No filme dirigido por Sérgio Rezende, com roteiro do diretor em parceria com José Louzeiro e Tyrone Feitosa, José Wilker interpretou Tenório Cavalcanti, ganhando o Prêmio de Melhor Ator no Festival de Gramado em 1988, e Guilherme Karan fez o papel de Flávio.

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"Sou jornalista-repórter e não sei fazer outra coisa."

Entre as atrações do programa Noite de Gala estavam Norma Bengeil, Elizabeth Gásper e llka Soares. Oscar Omstein fazia entrevistas à beira da piscina do Copacabana Palace. Sérgio Porto/Stanislaw Ponte Preta apresentava as "Certinhas do Lalau", as mulheres mais bonitas da cidade que também desfilavam em sua coluna no jornal. Bené Nunes tinha um quadro musical onde apresentava com assiduidade Tom Jobim e João Gilberto.

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A agilidade dos meios de comunicação e a tecnologia se desenvolveram de forma fantástica nos últimos trinta anos. A TV brasileira se impôs no mercado mundial dignamente, com prêmios e glórias. Hoje em dia, é só apertar o botãozinho do controle remoto e, confortavelmente instalado na sala, acompanhar o que está acontecendo no mundo. As imagens são tão reais que podem dar a sensação de que um míssil está vindo em nossa direção, como vimos no bombardeio americano a Bagdá, na guerra no Golfo Pérsico, a primeira transmitida ao vivo. As distâncias diminuíram e passamos a conviver com autoridades, personalidades e artistas do mundo todo sem a menor cerimônia. Eles estão ali, falando, discutindo, enquanto jantamos e sabemos de suas vidas com tanta intimidade que até parece que fazem parte de nossa família. Mas nos anos 60, além de a comunicação ser mais lenta - não havia transmissão via satélite—, a situação era diferente. A televisão brasileira engatinhava, tinha apenas dez anos. Apesar disso, no entanto, já colocava suas manguinhas de fora. Abraão Medina foi um dos responsáveis por essa ousadia. Pai de Rubem (deputado), Roberto (publicitário) e Rui (professor de ginástica), o patriarca dos Medina era comerciante, dono de O Rei da Voz, uma rede de lojas de eletrodomésticos. Quando a televisão apareceu no Rio, em 1954, não foi apenas mais um aparelho à venda em sua loja. Raciocínio rápido, bom em negócios e promoções, Medina logo percebeu que, para vender mais apare35

lhos de TV, era preciso estimular o interesse do público e, por conseguinte, oferecer uma boa programação. Com o propósito de vender mais aparelhos e investir no novo meio de comunicação, ele procurou os dois maiores fabricantes, a Philco e a Philips, e propôs comprar mil aparelhos de TV de cada um com um desconto de 10 por cento. Como dinheiro economizado, patrocinaria um programa de TV de altíssimo nível. A proposta foi aceita, e surgiu assim, em 57, Noite de Gala, um programa chiquérrimo, movimentando a maior verba da TV brasileira. Apresentava uma atração intemacio nal a cada semana e era produzido pela Midas Propaganda, agência de Medina, que tinha uma equipe de primeira: Carlos Alberto Lofler, Geraldo Casé, Carlos Thiré e Flávio Cavalcanti. Além de produtor, Flávio era também repórter, sendo responsável por grandes furos de reportagem, como uma entrevista com o presidente Kennedy. Em 1961, Flávio foi aos Estados Unidos com Medina pai, o filho Rubem e Murilo Nery, o intérprete do grupo. Foram assistir a alguns espetáculos que poderiam ser apresentados no Noite de Gala. Mas na cabeça do repórter havia uma idéia fixa: uma entrevista exclusiva com o presidente Kennedy na Casa Branca. Curioso, investigativo e teimoso, o repórter não podia admitir sua volta ao Brasil sem a entrevista. Só ficariam cinco dias em Nova York e por isso, mal aterrissaram, Flávio começou a tentar a entrevista. Esse tipo de reportagem às vezes leva semanas de negociações, mas ele decidiu tentar até o fim. Lembrou-se de procurar uma velha amiga, Dora Vasconcelos, que, coincidentemente, na época era cônsul do Brasil em Nova York. Dora o recebeu de braços abertos, mas, quando soube o que ele pretendia, concluiu o mesmo que Medina e Nery: impossível. Flávio sabia ser teimoso quando queria alguma coisa. Diante de sua insistência, Dora prometeu ajuda, fazendo um primeiro contato com a Casa Branca. Foi informada que quem cuidaria da liberação da entrevista era o FBI. E lá foram os brasileiros a Washington tentar a investida mais de perto. Antes, porém, fizeram uma aposta. Se Flávio conseguisse gravar uma entrevista exclusiva com o presidente, Nery, Rubem e Dora teriam que lhe servir uma feijoada, na rua, em plena Broadway, centro de Nova York, com direito a mesa posta e tudo mais. Caso perdesse, Flávio teria que 36

patinar na pista de gelo do Rockefeller Center, também em Nova York. Uma cena ridícula, pois o repórter jamais conseguiu se equilibrar sobre patins, quanto mais no gelo. Em nenhum momento passou pela cabeça do repórter o fato de que não falar inglês pudesse atrapalhar a entrevista. Afinal, Nery estava junto como intérprete. O primeiro encontro com o pessoal do FBI foi frustrante: a resposta foi não. Mas Flávio não se deu por vencido, continuou a insistir e Nery a traduzir todas as razões pelas quais o presidente americano deveria dar a entrevista. Chegou uma hora em que o pessoal do FBI começou a ficar intrigado com a ousadia do repórter e prometeu levar o assunto até o presidente, que daria a palavra final sobre a entrevista. Flávio não estava preocupado com o que iria perguntar ao presidente Kennedy, acreditando que o assunto apareceria na hora. Para ele, o mais importante era voltar ao Brasil com aquele furo de reportagem para Noite de Gala. Durante dois dias, Flávio tentou convencer o FBI da importância da entrevista, mesmo tempo gasto pelo governo americano para averiguar junto à sua embaixada no Rio quem era o repórter e qual era o nível do programa. Foram dois longos dias de espera no hotel. Até que, num final de tarde, o telefone tocou e Nery atendeu. Congratulations! You are the winners! (Parabéns, vocês venceram!) Era o FBI dando sinal verde para a entrevista, que seria realizada no dia seguinte. A alegria foi imensa. Só então Flávio começou a pensar no que iria perguntar ao presidente americano. Passou-lhe uma idéia louca pela cabeça, chamou Nery, e foram ao Museu Lincoln. Tinha agora uma outra missão. Queria um documento com a assinatura do presidente Lincoin, para pedir que Kennedy também colocasse a sua assinatura. Na volta ao Brasil entregaria este documento ao presidente Jânio Quadros, grande admirador de Lincoln. Parece até história de cinema, mas Flávio e Nery conseguiram convencer o diretor do museu a entregar uma página manuscrita e assinada por Lincoin para servir de subsídio ao repórter durante a entrevista. No dia seguinte, às 9:30 da manhã, o pessoal do FBI já estava na porta do hotel esperando os brasileiros. Como não levaram equipamento para a gravação, utilizariam câmeras do governo 37

americano. A reportagem começou na entrada da Casa Branca, com uma panorâmica dos jardins, Flávio anunciando a entrevista. Já dentro da Casa Branca, no percurso até a sala onde seria realizada a entrevista, um dos rapazes do FBI fez o seguinte comentário: "Felizmente nosso presidente não usa barba." A polícia federal americana investigara tanto a carreira do repórter que sabia até da matéria com Tenório Cavalcanti. Uma entrevista como aquela seria inesquecível para qualquer repórter. Flávio gostava de contar como o presidente Kennedy era "esguio, jovial, sorridente e brincalhão", que chegou para a entrevista carregando o paletó nas costas e bateu no seu ombro com a maior simplicidade. Quando soube que Flávio não falava inglês, comentou em tom de brincadeira: "Imagino o que ele faria se falasse inglês." A entrevista foi gravada, e Kennedy assinou o documento que continha a assinatura de Lincoln. A equipe voltou para o hotel exultante. Já em Nova York começaram os preparativos para o pagamento da aposta, a feijoada na Broadway. Mais uma vez o apoio da cônsul Dora Vasconcelos foi fundamental: ela ajudou o grupo a conseguir autorização da prefeitura para realizar um almoço na rua. Era muito difícil para os americanos entenderem a aposta, quanto mais o cardápio. Estiveram no almoço os agentes do FBI, a essa altura velhos amigos da equipe, a cônsul e outros brasileiros que lá residiam, além da ex-Miss Brasil Adalgisa Colombo. De volta ao Brasil, cumprindoo prometido, a carta com as duas assinaturas foi entregue ao presidente Jânio Quadros. Dois anos depois, quando Kennedy foi assassinado, aquele pedaço de papel passava a ter um valor ainda maior: era o único documento em que constavam a assinatura de dois grandes estadistas americanos tragicamente assassinados. Alguns anos depois, o governo americano entrou em contato com Flávio, pedindo uma cópia daquele documento para constar do Museu Lincoln. Flávio tentou obtê-lo com Jânio Quadros, chegou a colocar um anúncio no jornal, mas infelizmente havia desaparecido.

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"Eu quero estar acima. Sou do centro. Mas o diabo é que a esquerda é inteligente e a direita, burra. E, por isso, muitas vezes elas quase nos convencem do errado."

No dia P de abril de 1964 o prédio da UNE (União Nacional dos Estudantes) na Praia do Flamengo foi incendiado. Nesse mesmo ano Brigitte Bardot veio ao Brasil e transformou Búzios, uma pequena praia do litoral fluminense, em point. Depois de terem conquistado os Estados Unidos e a Europa, os primeiros discos dos Beaties chegavam até as vitrolas hi-fi tupiniquins. O cineasta francês Jean-Luc Godard era guru da geração que freqüentava as sessões do cinema Paissandu, junto com o nacional Gláuber Rocha, que lançava o filme Deus e o Diabo na Terra do Sol. Na televisão, a novela O Direito de Nascer, escrita por Glória Magadan e produzida pela TV Tupi de São Paulo, fazia o país inteiro chorar com o drama de Albertinho Limonta, interpretado por Hamilton Fernandes, ao descobrir que sua mãe era Sóror Helena, personagem vivido pela atriz Nathalia Timberg.

Utilizando uma nova forma de comunicação nas suas reportagens quase sempre polêmicas, Flávio Cavalcanti ganhava cada vez mais espaço. Passional, radical, às vezes enfurecido diante de suas verdades, conquistou um público fiel que vibrava com seu jeito de fazer TV. Admirador de Carlos Lacerda, com quem tinha, além dos mesmos ideais políticos, uma certa semelhança física, Flávio colaborou em sua campanha em 1960 para governador do recémconstituído estado da Guanabara. Chegou a privar da intimidade do governador, mas não utilizou esse prestígio para favores pessoais. Ao contrário, o governador é quem o procurava, pedindo apoio na divulgação de algumas obras públicas, e Flávio abria-lhe as portas do Noite de Gala.

O ano era de 1964, e a política fervilhava. Mas, voltando um pouco no tempo, em 31 de janeiro de 1961 Jânio Quadros foi empossado na presidência com ajuda total de Lacerda, que era do mesmo partido, a UDN, recebendo o cargo de Juscelino Kubitschek na nova capital, Brasília. Quanto à eleição de Jango, não havia na Constituição um dispositivo que obrigasse o povo a votar num mesmo partido para presidente e vice-presidente. Com isso, o país passou a ter como presidente e vice políticos de facções contrárias. A passagem de Jânio no poder foi meteórica, apenas sete meses, tempo suficiente para causar algumas confusões, como as proibições das corridas de cavalo, do uso do biquíni e das brigas de galo. 41

Até na televisão Jânio interferiu, ao exigir que os intervalos comerciais não tivessem mais do que três minutos de duração. Fazia uma exceção aos comerciais ao vivo, que poderiam chegar a cinco minutos, dando um total de oito minutos de intervalo. Para a televisão, era uma grande encrenca. Em 25 de agosto de 1961, Jânio renunciou quando seu vice, João Goulart, encontrava-se na China. Até que Goulart voltasse para ser empossado, o presidente da Câmara dos Deputados, Paschoal Ranieri Mazzili, assumiu a presidência por treze dias. Só como curiosidade: Mazzili ocupou esta mesma posição e pelo mesmo período em 1964, quando Goulart foi deposto. Carlos Lacerda, janista e opositor de Goulart, governava o estado da Guanabara. Sua força dentro da TV Rio era grande; já utilizara a emissora quando soltou farpas em cima de Juscelino, em 1955, tentando coibir sua posse como presidente da República. Com isso, era muito fácil perceber de que lado o apresentador estava quando a revolução começou a pipocar. Desde 63, o país vivia num clima pesado. Muitas greves, algumas com duração de mais de seis meses, e cada dia uma instituição ou um sindicato fechava suas portas. Greve de luz, greve dos distribuidores deleite, e assim por diante. Dentre estes grevistas estavam também os radialistas, categoria que englobava os profissionais de TV, e as notícias da revolução só chegavam através da Rádio Nacional, empresa do governo. No dia 31 de março, a revolução estourou. O rádio anunciava que os fuzileiros navais, sob o comando do vice-almirante Aragão, o "almirante do povo", amigo de Brizola e Jango, iriam tomar o Palácio Guanabara para prender o governador Lacerda. Abraão Mediria e Flávio estavam na TV Rio tentando colocar a emissora no ar. A TV Rio ficava no Posto 6, em Copacabana, em frente ao Forte, onde estava instalado o quartel-general de Artilharia da Costa, que, diante da revolução, estava em polvorosa. Flávio viu quando o coronel Montanha ocupou o Forte, e foi então até lá tentar convencê-lo a apreender a torre de transmissão da emissora, no Sumaré, para que a TV, que estava em greve, pudesse entrar no ar e mostrar a revolução. Assim foi feito, e a TV Rio passou a transmitir da rua tudo o que estava acontecendo. Como repórter, Flávio deitou e rolou. Fez do microfone a sua arma, correndo de 42

um lado para outro entrevistando os que entravam e safam do quartel. Deu um banho de jornalismo. Assim como Lacerda, ele acreditava na revolução. No entanto, grande parte da imprensa era contrária à deposição de Jango, e, como resultado, Flávio ganhou desafetos e o repúdio da esquerda. Na noite do dia 31 de março, Flávio voltou para casa, em Copacabana, muito tarde. Estava exausto. O telefone não parava de tocar, e ele resolveu abafar o som, para que ninguém mais atendesse. Mas o telefone tocava, tocava, e em determinado momento seu filho Flavinho, com treze anos, não resistiu e atendeu. Do outro lado da linha uma voz masculina perguntou quem estava falando; o garoto se identificou e ouviu em seguida a frase que o marcou durante anos: "Que pena, você vai ficar órfão. Seu pai vai morrer nas próximas 48 horas." O garoto desligou o telefone, contou para o pai, que não se incomodou com o fato. Esta foi a primeira das muitas ameaças que Flávio veio a sofrer por acreditar em seus ideais. Com Goulart deposto em 31 de março de 1964 e o fim da revolução, a vida continuava sorrindo para os que acreditavam nos novos caminhos que o Brasil trilharia. Para mostrar que não guardava mágoas, nem mesmo dos fuzileiros navais que ameaçaram Lacerda, convidou-os a participar do Noite de Gala, junto com o novo comandante Heitor Lopes de Souza, provando que os fuzileiros tinham sido usados pelo almirante Aragão numa manobra puramente política. Após a revolução, Flávio foi convidado a dirigir a Rádio Nacional, mas ao perceber que a intenção do novo governo era fazer uma caça às bruxas, não aceitou. Insistiram para que fizesse um programa diário na rádio e ele criou o Falando a Verdade, onde entrevistava políticos e personalidades. Alguns meses depois, começou a sentir uma certa pressão. Eram pedidos da alta cúpula do governo para que entrevistasse fulano e beltrano. Definitivamente não era este o perfil do repórter. Ele seria incapaz de fazer uma entrevista só para agradar A ou B, e com isso deixou o programa. Ao mesmo tempo, passou a sentir que os objetivos da revolução não eram mais os mesmos pelos quais lutara. Para Flávio e muitos outros, o movimento de 64 buscava instaurar a paz no país para, em 1965, em nova eleição presidencial, Juscelino e Lacerda 43

se confrontarem. A ditadura militar determinou outro rumo, culminando com a prorrogação do mandato de Castelio Branco, e Flávio se afastou totalmente da política governista. Era tarde demais. A esquerda jamais o perdoaria por essa participação.

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"Eu achava que amúsica não prestava e pronto."

Maria Bethânia saiu da Bahia em 1965 rumo ao Rio, substituindo Nara Leão no espetáculo Opinião, que também contava com as participações de Zé Ketty e João do Vaile. Muito magra, vestindo calça comprida e camisa de corte masculino, cabelos longos presos à nuca em pequeno coque, seu estilo de vestir fazia contraponto ao das moças da época, que usavam minissaias, cabelos longos e eriçados com muito Iaquê, no melhor gênero "bolo de noiva". Bethânia conquistou o Rio e o país com sua voz forte e interpretação impecável da música Carcará, do maranhense João do Vaile. A bossa nova resistia, apesar de as músicas de protesto, pouco a pouco, tomarem conta da preferência dos jovens.

Pós-revolução, final de 64, Flávio foi convidado por Carlos Manga a integrar a equipe da TV Excelsior. Era uma emissora paulista promissora, que causara o maior impacto com o sucesso da novela A Moça que Veio de Longe, com Rosamaria Murtinho no papel principal. Chegando ao Rio, começou a contratar os melhores profissionais da área, tendo como base de sua programação a linha de shows. O primeiro trabalho do apresentador foi criar, coordenar e apresentar um concurso de músicas de carnaval. Era uma forma de a Excelsior, paulista, se integrar mais aos cariocas, promovendo a renovação das marchinhas carnavalescas. O programa era semanal, e a seleção das músicas era feita através de um júri que Flávio formou convidando jornalistas, críticos musicais, produtores de discos e radialistas. Estes profissionais, já conceituados em suas áreas, ganharam mais popularidade com o programa. No final do festival, que premiou a música Máscara Negra, de Zé Ketty, estava provado que o sistema de júri poderia ser integrado a um programa, obtendo excelentes resultados. Baseado nisso, Flávio recriou Um Instante, Maestro!, seu primeiro programa de TV, apresentado por pouco tempo na TV Tupi, em 57. A estréia de Flávio na TV foi por acidente, em 1957, substituindo o mais importante colunista social da época, Jacinto de Thormes, num programa de entrevistas na Tupi. Na verdade este era o pseudônimo usado pelo jornalista Manuel Bemardez Müller, conhecido também como Maneco, compadre e amigo de Flávio. 47

Os dois juntos tinham feito o programa Nós os Gatos, na Rádio Mayrink Veiga, dois anos antes e, ao entrar de férias, Maneco pediu a Flávio que o substituísse. Quando Maneco voltou à Agência Casé, que fazia a produção do programa, percebendo a facilidade de comunicação de Flávio e o conhecimento de música que ele mostrava no seu programa Discos Impossíveis, na Rádio Tupi, convidou-o a escrever e apresentar um programa de TV. Flávio queria fazer algo diferente, inovador. Pretendia criar uma nova forma de linguagem em televisão. Foi para casa pensando nisso e teve uma idéia quando sua filha mais velha, Marzinha, pouco mais de Oito anos, lhe perguntou o que era "mãe solteira". O apresentador insistiu em saber onde ouvira aquilo, e a menina cantou uma música que dizia: "Parecia uma tocha humana rolando a ribanceira, a pobre infeliz tinha vergonha de ser mãe solteira." Espantado com a letra, pouco adequada a unia menina daquela idade, perguntou à filha onde aprendera aquela música. "Ouvi no rádio", foi a resposta. A partir daí passou a ouvir rádio com mais atenção e a investigar a qualidade das músicas apresentadas em programas populares. Criou assim Um Instante, Maestro!, um programa crítico num momento em que ninguém tinha coragem de criticar a música popular brasileira. Isso parecia ao apresentador bastante honesto. Eram críticas que considerava justas, denunciando letras medíocres. No fundo, o programa procurava fazer com que o público reagisse de alguma maneira e demonstrasse interesse pelas músicas, mesmo que o preço fosse criar, em torno do apresentador, o mito do homem mau, do dono da verdade. O importante mesmo é que conseguiu provar que o bom verso existia na MPB. Durante anos a sua caricatura ficou ligada ao gesto de Um Instante, Maestro!, onde aparecia com a mão direita estendida mandando a orquestra parar. Esse gesto, que tanto marcou a carreira do apresentador, como o de tirar e botar os óculos, foi idéia de Carlos Thiré, o primeiro diretor de seu programa. Num dos ensaios, Flávio fez o gesto para interromper o maestro, e o diretor disse que essa poderia ser a marca do programa. Acabou pegando. Quanto aos óculos, o gesto nasceu espontaneamente, era uma necessidade ótica. Ele precisava de óculos para enxergar de perto, e, quando tinha que olhar para o auditório, tirava os óculos. Anos depois, 48

passou a usar óculos com lentes multifocais, não havendo mais essa necessidade; a marca porém ficou. A primeira fase na Tupi foi curta, pouco mais de um ano, e sem júri. Dramático, incisivo, contundente, certa vez perguntou a Ary Barroso o que era "mulato inzoneiro" de Aquarela do Brasil. Foi um deus-nos-acuda. O que é isso, Flávio?, todo mundo questionou. Mas ninguém também sabia o que era inzoneiro. O compositor foi obrigado a explicar-se e acabou brigando com o apresentador. Só fizeram as pazes muitos anos depois. Estas críticas nunca tiveram como tônica o moralismo. Como crítico feroz, ele dava valor ao respeito entre os homens e, quando a música feria esse respeito, cuspia fogo, quebrando os discos de que não gostava em frente às câmeras. Era patético. Os discos de 78 rotações fabricados com cera de carnaúba eram facilmente quebráveis e propiciavam uma encenação polêmica. O programa acabou no mesmo ano em que foram lançados os LPs inquebráveis. Não tinha mais graça. Mas na Excelsior, em 1965, com a boa performance do júri, Flávio resolveu reeditá-lo. Em lugar de quebrar discos, rasgava as letras e os jurados opinavam. Surgiu assim o primeiro júri de televisão, formado por Nelson Motta, José Fernandes, Mister Eco, Hugo Dupin, Carlos Renato, Humberto Reis e Sérgio Bittencourt. Nelson Motta era um jovem e promissor compositor; José Fernandes, radialista, rigoroso no julgamento, só dava nota zero; Mister Eco e Hugo Dupin, críticos de música; Carlos Renato, jornalista, fazia charme com as mulheres; Humberto Reis, voz de locutor, buscava no dicionário palavras difíceis para mostrar erudição; e Sérgio Bittencourt mostrava o conhecimento de MPB adquirido em casa, pois era filho de Jacob do Bandolim. Teixeirinha e Waidick Soriano eram vítimas constantes. Mesmo sujeitos a críticas, muitos artistas torciam para que seus discos entrassem em julgamento, para ganharem assim mais popularidade. Flávio aliava uma formação musical apurada e bom gosto à emoção. Descobriu o quanto era fácil comover os outros, apelando para os seus próprios sentimentos e utilizando os pontos de vista opostos de seus jurados. Amigo de compositores, colecionador de discos desde sua estréia no rádio, em Um Instante, Maestro!, analisava rimas poéticas e reverenciava aqueles que apreciava, como Dolores Duran, uma inesquecível amiga. 49

"Quero a alegria de um barco voltandoj quero ternura de mãos se encontrando,1 para enfeitar a noite do meu bem..." Dolores Duran

Quando a TV Tupi do Rio foi inaugurada, Assis Chateaubriand contratou o engenheiro Palharini para fazer a instalação técnica. O equipamento era importado dos Estados Unidos, um trabalho complexo, com muitos fios e cabos coloridos, que deveriam seguir um código internacional. Conta uma lenda que Palharini, ao fazer a instalação da emissora carioca, criou um código novo. Trocou as cores dos fios e cabos, sendo o único capaz de resolver qualquer problema técnico. Falavam ainda que diversos técnicos nacionais e internacionais foram chamados para entender a engrenagem montada pelo engenheiro, mas não conseguiram chegar a um resultado satisfatório. Com isso, a televisão funcionava graças ao milagre de Palharini, cujo segredo jamais foi revelado.

7 Sobre Dolores, um fato interessante. Em 52, muito antes de Um Instante, Maestro!, ainda no tempo em que fazia seu primeiro programa na Rádio Mayrink Veiga, Discos Impossíveis, Flávio conheceu e ficou amigo de Dolores Duran. De madrugada, ao sair das boates onde cantava, ela costumava tocar a campainha da casa do amigo para comer um bife e conversar. Seu primeiro disco, Outono, foi lançado na mesma época em que Vinicius de Moraes e Antonio Carlos Jobim chegavam ao grande público com a canção Se Todos Fossem Iguais a Você. Tímida, a "Bochechinha", como era chamada por Flávio, foi aos poucos se impondo como uma das maiores letristas do cancioneiro popular. Suas obras de grande lirismo romperam com o pieguismo da música tradicional. Dolores chegou a gravar Manias, composição de Flávio em parceria com o irmão Celso. Passava o ano de 1959, Dolores Duran e o marido Macedo Neto, Ismael Neto, do grupo Os Cariocas, e a mulher Heleninha Costa, junto com Flávio e Belinha, formavam um sexteto inseparável. As reuniões duravam até o dia amanhecer. Flávio tinha mania de gravar tudo, principalmente esses encontros, que depois transformava em programas de rádio. Dolores era perfeccionista; falava fluentemente inglês e francês e, para cantar em alemão, tomava aulas particulares com Belinha. Nesse clima de descontração, gravou para o Discos Impossíveis cantando fados, boleros, blues e suas próprias composições. Era uma compositora tímida. Guardava os poemas a sete 53

chaves e demorava muito para mostrar suas letras. Um de seus primeiros poemas a ganhar música foi Por Causa de Você, em parceria com Tom Jobim. Aos poucos foram surgindo outras composições, como Fim de Caso, Estrada do Sol, Ternura Antiga, Noite de Paz, Castigo e Solidão. Numa dessas reuniões, Dolores chegou à casa de Flávio com trechos de uma nova música. Escrevia, riscava, reescrevia, lia alguns trechos para os amigos, pedindo opinião. Até que finalmente, ao ficar pronta, cantou a música em primeira mão. Era A Noite do Meu Bem, que acabou se tomando seu maior sucesso e o hino dos notívagos solitários. Fascinada com a letra, Belinha pegou uma folha de papel e uma caneta e pediu para Dolores escrever a nova composição. Esta folha ficou guardada com a assinatura e a data: 4 de junho de 1959. Com a morte prematura de Dolores Duran, aos 29 anos, alguns meses depois de ter escrito A Noite do Meu Bem, a poesia foi emoldurada num quadrinho que acompanhou Flávio por toda a vida.

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"Eu não tenho medo de ser careta."

Os prefixos de A Grande Chance, Um Instante, Maestro! e ProgramaFlávio Cavalcanti foram compostos pelo maestro Cipó, que acumulava as funções de diretor musical e regente da orquestra da TV Tupi. Os integrantes da orquestra a cada semana testavam seus conhecimentos acompanhando cantores nacionais e internacionais, que interpretavam os mais diversos gêneros musicais. A emissora tinha sob contrato quarenta músicos, vindos de diversos pontos do país, que formavam uma orquestra com doze violinos, duas violas, dois celos, duas trompas, flauta, flautim, quatro saxes, quatro trombones, quatro trumpetes, seis ritmos e um piano. Como apoio, a orquestra da Tupi ainda contava como Coral do Joab, formado por quatro vozes femininas e quatro masculinas.

Nos anos 70 o júri continuava sendo uma fórmula perfeita para o sucesso do Programa Flávio Cavalcanti. O apresentador sabia que, quando um jurado caía no gosto do público, isso equivalia a mais um ponto no IBOPE. Entretanto, esta não foi a única razão que o levou a convidar Leila Diniz para fazer parte do Jun. Ela era esplendorosamente feminina, musa do Pasquim e de Ipanema, a grande estrela do final dos anos 60. Seu sucesso independia dos personagens que interpretava no teatro, cinema e televisão. Tinha luz própria. Extravasava uma alegria enorme, sacudia preconceitos e quebrava tabus através dos palavrões que dizia de forma espontânea. Chocava. Era idolatrada pela intelectualidade, e com a mesma naturalidade sentava num botequim para tomar cerveja com qualquer um. Naquele tempo em que Ipanema ditava as regras de comportamento e de moda, Leila pontificava. Sua moda virou moda, com longos vestidos de tecido indiano e sandálias. Logo em seguida, chocava os moralistas ao desfilar de biquíni pela praia exibindo uma barriga de oito meses de gravidez. Foi peça importante no processo de evolução da mulher brasileira, fez a cabeça de uma geração. Era uma pessoa muito especial. Nascida numa família de esquerdistas, ela era integrante do Partido Comunista, então na clandestinidade, e participava de movimentos políticos. Leila estreou no teatro com a peça O Preço de um Homem. Fez os filmes Todas as Mulheres do Mundo, de 57

Domingos de Oliveira, na época seu marido, e Amor, Carnaval e Sonho, de Paulo César Sarraceni. Com as comédias Tem Banana na Banda e Vem de Ré que Estou de Primeira, reabilitou no Rio o teatro de revista, espetáculo muito popular nos anos 40. Em Vem de Ré que Estou de Primeira, a cada noite interrompia o espetáculo duas vezes para, no camarim, amamentar Janaína, sua filha do casamento com o cineasta Ruy Guerra. Na 1'V Globo, fez as novelas O Sheik de Agadir, da cubana Gloria Magadan, onde interpretava Madelon, personagem muito popular, e Anastácia, a Mulher Sem Destino, que inicialmente era escrita por Emiliano Queirós mas no meio, diante da impossibilidade de manter a trama com tantos personagens, passou à responsabilidade de Janete Clair. Aquela era a estréia de Janete na televisão, e, para salvar a trama, ela inventou um naufrágio, "matando" os velhos personagens e criando novos. A personagem de Leila sobreviveu ao naufrágio e continuou no ar. No final de 69, Leila deu uma entrevista para o Pasquim onde esclarecia seus pontos de vista em meio a muitos palavrões que acabaram substituídos por asteriscos e sinais gráficos. O artifício usado pelos editores do jornal para que a matéria pudesse ser publicada não impedia o leitor de entender o sentido das frases e dos palavrões. Essa edição, que trazia Leila na capa, tornou-se histórica não apenas pela reportagem que desvendava o pensamento daquela mulher revolucionária como também por ter provocado uma severa lei de censura prévia, o Decreto n 2 1077, logo apelidado de "Decreto Leila Diniz". Mas censura nunca foi uma exclusividade brasileira, nem mesmo era novidade. Basta dar uma olhada na História. Na antiga Grécia, a censura controlava a conduta para reprimir insultos aos deuses e à perturbação da ordem pública. Em Roma, ditava a moral. A censura sobre obras escritas se expandiu no século XV, após a Ínvénção da imprensa. Em 1559, a Igreja Católica criou o primeiro ^. dex, uma relação de livros proibidos que só foi revogada em 1966 por decisão do Papa Paulo VI. Durante os séculos XVIII e XIX, a liberdade de imprensa foi assegurada na América e na Europa, com exceção da Espanha, Portugal e Irlanda. Nos Estados Unidos, é garantida pela primeira emenda da Constituição. No Brasil, é regulamentada pela Lei de Imprensa e Segurança Nacional. 58

As posições tão contestatórias de Leila frente aos rígidos princípios da revolução fizeram com que o mercado de trabalho se fechasse para ela, apesar do seu prestígio. A TV Globo não renovou seu contrato, e ela acabou famosa mas sem dinheiro. Foi nessa época, discriminada e sem oportunidades de trabalho, que Flávio convidou-a para integrar o seu júri, mesmo sabendo que iria bater de frente com o governo. Leila estreou como jurada do Programa Flávio Cavalcanti em 4 de outubro de 1970. Na semana seguinte, Flávio publicou em O Jornal, onde escrevia todos os domingos: "Descontraída como ela só, gargalhando como ela só, foi tomando o seu lugar na banca. Estávamos novamente com dez personalidades compondo o júri. Mas para seu primeiro dia de trabalho era preciso que nos dissesse algo mais. Era preciso que fosse a responsável por um dos quadros apresentados. - Vocês querem um número? Eu arranjo um da pesada. - Mas vê lá, Leila. Hippies, cabeludos e sujos rolando no chão não vale. - Que hippies, que nada, deixem comigo, juro que não vou trazer ninguém pra fazer strip-lease ou contar anedota de papagaio. Deixamos com ela. Na hora do programa, subiu Leila ao palco, tentou explicar o que tinha trazido. Eu estava meio cabreiro, interrompia, indagava mais e mais. - Flávio, tá maluco? Me deixa falar, homem! Apresentou sua atração: uma freira ventrfloqua e seu boneco Chiquinho. E foi aí que começamos a conhecer a menina Leila, feliz da vida, rindo e batendo palmas para a freirinha sua amiga. Exuberante, pra frente, descontraída, Leila Diniz, nossa menina. Boas-vindas!" Além de brilhar no programa, Leila ganhou um outro espaço: um boxe na página de Flávio em O Jornal, com o título "Como Diz Leila Diniz". Este título foi tirado de Coqueiro Verde, música que Erasmo Carlos fez para Narinha, então sua namorada. Em certo 59

trecho, a letra falava: "Como diz Leila Diniz,/homem tem que ser durão,/se ela não chegar agora/não precisa chegar..." Leila escrevia o que queria. Contava historinhas, registrava a conquista de sua carteira de motorista avisando que havia mais uma barbeira na praça, brincava com o pessoal do júri, enfim, aproveitava esta liberdade não-esperada. Ainda como jurada do programa, foi desafiada a desfilar de biquíni num carro aberto pela Avenida Rio Branco. Se a tarefa fosse cumprida, receberia um bom cachê e o mesmo valor seria doado a uma obra de caridade. É claro que Leila topou. Resultado: o centro do Rio parou para ver a musa de Ipanema desfilar. Ela era só alegria! Numa tarde de domingo, pouco antes do início do programa, em janeiro de 1971, Flávio ligou para Marcelo Cerqueira, cunhado e advogado de Leila, avisando que a Polícia Federal estava na emissora com a missão de levá-la presa sem nenhum motivo comprovado. Marcelo entrou em contato com um militar, cujo nome prefere não revelar, e montou uma estratégia de fuga. No final do programa, no camarim da Tupi, Leila rapidamente trocou de roupa com a sua secretária, Neném, disfarçando-se assim para a polícia. Acompanhada de Flávio e do militar, Leila seguiu para a casa do apresentador, em Petrópolis. Enquanto isso, Marcelo saía de carro em disparada com a secretária, confundindo a polícia, que passou a persegui-los. Quando os policiais conseguiram alcançá-los e apresentaram a ordem de prisão de Leila Diniz, ficaram espantados porque não era a atriz que estava no carro. Durante algumas semanas, Leila foi hóspede da família Cavalcanti. Chegou com a roupa do corpo, usava as roupas de Marzinha e Fernanda, filhas de Flávio. Conquistou a todos. O pessoal do Exército e do SNI ligava para lá perguntando por ela, e o apresentador confirmava sua presença, ao mesmo tempo em que deixava claro o objetivo de mantê-la sob seus cuidados até que a perseguição parasse. A casa de Flávio era muito segura. Ficava no alto do bairro de Caxambu, numa rua que tinha o nome do apresentador, e era guardada na entrada por seguranças fortemente armados. A casa tinha uma piscina linda, um enorme viveiro com passarinhos de todas as espécies e uma capelinha em homenagem a Cristo Rei. A reclusão de Leila acabou chegando ao conhecimento da

imprensa, até mesmo porque a atriz deixou de participar do programa sem qualquer explicação. Apesar de os jornais estarem impedidos de divulgar o fato devido à Censura, não ficava bem para o regime militar que a imprensa soubesse da perseguição à atriz que era um mito e muito querida pelo público. Por isso, um dia, Flávio foi surpreendido por um telefonema com uma ordem muito estranha. Do outro lado da linha, uma autoridade importante determinava: Leila deveria circular por Petrópolis, acompanhando a esposa e as filhas do apresentador, para que fossem dissipadas as dúvidas e provasse publicamente que não estava sendo procurada. Com isso, ter-se-ia a impressão de que a atriz, muito popular, estava de férias na serra. A ordem foi cumprida, para alegria de todos, inclusive de Leila, que finalmente pôde andar pela pequena Petrópolis. Enquanto isso, Marcelo Cerqueira, incansável na busca de uma saída para o caso, pediu uma audiência com o ministro da Justiça, Alfredo Buzaid. No encontro ficou acertado que Leila seria "convidada" a depor na Polícia Federal e não "intimada", e assinaria um depoimento escrito por seu próprio advogado. Esses dois fatores favoreciam-na juridicamente. Antes de deixar Petrópolis, Leila foi a um antiquário e comprou uma caixinha de prata para Belinha. Junto à caixinha, um cartão: "Belinha, isto foi o que eu encontrei mais parecido com você. Com amor, Leila." A Polícia Federal funcionava no local onde hoje está instalado o Museu da Imagem e do Som, na Praça XV, centro do Rio. E um prédio antigo e com uma vista deslumbrante. Leila chegou na boca do lobo mas não perdeu a sensibilidade. Diante da paisagem na janela, não se conteve e comentou: "Olha que linda vista vocês têm aqui!" Poucos minutos depois, assinava um depoimento que lhe dava liberdade e, em troca, se comprometia a não dizer mais palavrão. Era simplesmente ridículo, mas necessário para a sua sobrevivência. Leila Diniz voltava à vida com paixão, e logo em seguida conheceu o cineasta Ruy Guerra, com quem se casou, realizando o sonho de ser mãe. Em 15 de junho de 1972, Leila voltava do Festival de Cinema Internacional, na Austrália, quando o avião da Japan Airlines em que viajava explodiu ao se preparar para aterrissar no Aeroporto de Calcutá, na índia. Leila Diniz viveu apenas 27 anos. 61

"O carinho do público, evidentemente, me envaidece. Não vou bancar o charmoso e dizer que estou cansado de popularidade."

Na equipe de Flávio Cavalcanti havia uma pessoa muito especial, o Chico, um misto de zelador e boy. Nordestino, baixo e atarracado, morava num quartinho no fundo do escritório e fazia um pouco de tudo: servia café, comprava cigarros e entregava correspondência na emissora. Fã de Flávio, orgulhava-se em abrir a porta do Landau azul que conduzia o patrão. Uma tarde chuvosa, ao ouvir a buzina anunciando a chegada de Flávio, saiu em disparada e, ao chegar à calçada, percebeu que esquecera o guarda-chuva. Neste exato momento uma senhora atravessava a rua protegida da chuva. Chico não pensou duas vezes: num gesto rápido, sem explicações, arrancou o guarda-chuva da mão da senhora para proteger Flávio.

N0 final dos anos 60, uma onda de festivais tomara conta do país de norte a sul. Esta onda começara em São Paulo, com os festivais da TV Excelsior e depois da TV Record, que mostraram Sérgio Ricardo atirando um violão na platéia que o vaiava; lançaram Elis Regina, que cantava Arrastão; revelaram Nelson Moua e Dori Caymmi como compositores; Nara Leão, com A Banda, do então novato Chico Buarque; Jair Rodrigues, com Disparada, de Geraldo Vandré; Edu Lobo, com Ponteio, e mais uma infinidade de gente. A Record dominava na área musical e, além dos festivais, tinha uma grande linha de shows. A Globo entrou nos festivais de forma diferente: promovia um segmento nacional e, na semana seguinte, um outro internacional, aproveitando o charme dos artistas estrangeiros. Flávio estava como jurado no primeiro FIC em 1965, que consagrou Nana Caymmi, com Saveiro, de Dori Caymmi e Nelson Motta, e revelou Milton Nascimento, com Travessia. Os festivais continuaram trazendo muita gente boa, mas também apareciam alguns estrangeiros totalmente desconhecidos, e ninguém sabia se eram famosos em seus países. Muitas vezes era preciso consultar um mapa para descobrir onde ficava a republiqueta de onde vinham. Em 1970, entre centenas de músicas nacionais inscritas para o FIC, 41 foram apresentadas numa primeira seleção, e, destas, 19 acabaram classificadas. A final foi no Maracanãzinho, num domingo, 18 de outubro, com direito a uma grande festa, torcidas orga 65

nizadas, vaias, aplausos e muita contestação. Afinal, para um público formado em sua maioria por estudantes, tudo era motivo de festa. Em época de repressão, extravasar sentimentos num festival era um prato cheio. Não se podia gritar nas ruas, cantava-se nos estádios. Mas só o permitido pela Censura. E sempre havia confusão. Dois anos antes, a canção Pra Não Dizer que Não Falei de Flores, de Geraldo Vandré, deixara os quartéis em polvorosa por causa do refrão: "Vem, vamos embora que esperar não é saber,/quem sabe faz a hora não espera acontecer." A Censura entendia que a letra instigava o povo à luta armada e foi um deus-nos-acuda. Durante anos a música teve sua execução proibida. Em 1970, Flávio recebeu uma carta de Augusto Marzagão, organizador do FIC, convidando-o, mais uma vez, para participar do júri. Por ter seu programa no mesmo dia e horário do festival, ele tentou conversar com Marzagão, e, como não conseguia, publicou esta carta em sua página de O Jornal, de 18 de outubro: "Carta fechadíssima ao Marzagão: Pois é, Marzagão, velho de guerra. Sua carta salpicada de elogios me convidava para o festival. E nela você dizia ser eu o primeiro chamado para o júri deste ano. Confesso que fiquei contente. Puxa, você se lembra, éramos três na sala. Já lá se vão cinco anos. O excelente (e tão passado pra trás) ministro Rio Branco, você e eu. Já naquela época eu tinha milhões de linhas de frente e não havia tempo. Recusei o convite para estruturar e dirigir o FIC e apontei outro cara excepcional em matéria de caráter, Paulo Tapajós, o pai. Bom, mas isso não interessa. O FIC está aí gordinho, rechonchudinho, uma linda realidade, vivinha da silva. Sua carta está aqui ao meu lado, também vivinha da silva. Mas quietinha e meio decepcionada. É outra realidade. Telefonei, Dom Marzaga, pro seu escritório. Corre-corre louco. Ninguém sabia dizer nada. Era um tal de 'espera um pouco, seu Flávio...', 'daqui a pouco a gente liga, seu Flávio'. Aí pedi calma e disse à moçada que o convite estava em minhas mãos em forma de carta, por sinal muito bem escrita pelo chefio. - Alô, seu Marzagão está? 66

Quem quer falar com ele? - E Flávio Cavalcanti. E a confusão se fez outra vez. Frases soltas, fofas, desajeitadas, desalinhavadas. Até que saiu publicada nos jornais a lista, muito boa por sinal, dos jurados. E meu nome neres de tupiniquins. No fundo até que foi bom. Ando muito sobre o afobado. O chato é que quando a gente escreve e assina uma carta a gente não deve dar pra trás dessa maneira, não é, bicho? O bacana, o leal, o certo, o educado é ao menos, já no fim da linha da impossibilidade de se realizar o prometido, escrever uma outra carta dizendo que não se é rei nem nada, e que portanto a palavra volta atrás, sim. Não estou zangado não, Marzagão. Até que aquela afobação toda no seu escritório me divertia. Imagina só a cena (que ibope, seu!), eu entrando pelo Maracanâzinho. Lá em cima o meu querido Chacrinha, com a buzina na mão, na minha mão sua carta, e eu procurando meu lugar na mesa do júri. Mas não há de ser nada. Quá ... quá ... quá ... quá. Com um abraço, anote esta: a única maneira elegante de aceitar um insulto é não tomar conhecimento dele; se não for possível, devemos retrucar com um insulto pior; se não pudermos fazer isso, devemos rir dele; se não pudermos rir, provavelmente o merecemos. Desculpe, Marzagão, mas quá ... quá ... quá..." O festival prometia esquentar para todos os lados. O cantor Paul Simon, que viera para presidir o júri, criou o maior problema na chegada. Sua mulher, Peggy, desembarcou no aeroporto do Rio vestindo uma camiseta com o retrato de Mao Tsé-tung, líder da China Comunista, e na mesma hora foi advertida pela Polícia Federal para que não circulasse pela cidade com aqueles trajes. Simon ficou aborrecido com a história, recusou-se a falar com os jornalistas na coletiva e mudou de hotel. Flávio estava magoado com a história malcontada do Marzagão, mas ao mesmo tempo não podia ficar alheio ao festival. E que, além de disputar sua audiência, um amigo e jurado de seu programa, o maestro Erlon Chaves, estava envolvido no FIC. Negro, muito elegante, namorado da também jurada Vera Fischer, na época apenas uma ex-Miss Brasil, Erlon estava vincu67

lado ao festival desde a primeira edição, ao integrar a equipe de criação e compor o prefixo musical. Paulista, músico nato, estreou no rádio aos dois anos e meio de idade como cantor. Aos sete começou a estudar piano, e aos dezessete se formou pelo Conservatório Musical Carlos Gomes. Tocando na noite, familiarizou-se como repertório popular e desenvolveu um suingue muito especial para seus arranjos, tendo como guru o compositor e maestro americano Quincy Jones. Depois de ter composto uma sinfonia que servia de vinheta para a TV Excelsior, transformou-se no primeiro músico brasileiro a compor trilhas para novelas: O Direito de Nascer (TV Excelsior), O Sheik de Agadir e O Preço de uma Vida (TV Globo). Foi diretor musical da TV Rio em 65 e depois músico e arranjador de Elis Regina, tendo se apresentado com a cantora no Olympia de Paris e em Lisboa. Pois bem, Erlon estava classificado para a final com Eu Também Quero Mocotó, música de Jorge Ben que ele apresentava com a Banda Veneno, formada por músicos da melhor qualidade, alguns arregimentados em bandas do Corpo de Bombeiros e da Polícia Militar. Eu Também Quero Mocotó era uma grande brincadeira de Jorge Ben. Tinham insistido para que ele inscrevesse uma música e, sem maiores pretensões, ele enviou o Mocotó. A letra era fraca, repetitiva, mas a música, com o arranjo e a pe rformance da banda, melhorou consideravelmente e conquistou o público na fase de classificação. Em tempos bicudos, qualquer coisa é sinônimo de protesto, e por isso o Mocotó entrou no páreo com grandes possibilidades. Festival é antes de mais nada show, que é ampliado se for transmitido pela televisão. Assim, foi um não parar mais de colocar tempero naquele mocotó. A TV Globo inventou o que pôde para mostrar o melhor do seu festival. O maestro e os componentes da banda se apresentaram vestidos com uma túnica longa, que era moda, e, para finalizar, um balé com uma supercoreografia. No ensaio, durante a tarde, o maestro até achou que estava exagerado, que iria dar problema. Mas Boni, diretor da emissora, achava ótimo, garantindo que tudo estava sob controle. Rolava o festival, e entre outros concorrentes estavam O Amor É o Meu País, com Ivan Lins; Encouraçado, com Fábio (cantor que se consagrara anos antes com Srela); Meu Lararará, com 68

Martinho da Vila; Universo no Teu Corpo, com Taiguara; e BR-3, com Tony Tornado e Trio Ternura. A apresentação de Mocotó, como era de se esperar, foi um sucesso. Em determinado momento, as bailarinas, todas brancas, sensuais e insinuantes, aproximavam-se do maestro negro e o acariciavam e beijavam. Para os moralistas, aquilo era um escândalo. Para os racistas, um absurdo. E o público vibrou. Todo mundo queria Mocotó, inclusive Luiz Carlos Maciel, um dos jurados. E, como o maestro previra, deu encrenca. Do outro lado da telinha, num confortável apartamento na Zona Sul do Rio de Janeiro, a mulher de um coronel ficou chocada com a cena. Indignada, pediu ao marido providências. Afinal, como era possível um negro beijar uma branca na sala de visitas de sua casa? E, a televisão estava ali, mostrando o que ela considerava pouca-vergonha e um atentado à moral e aos bons costumes. Enquanto isso, uma outra confusão acontecia no Maracanãzinho. O fotógrafo Erno Schneider, do jornal O Globo, fora agredido por policiais enquanto fazia seu trabalho. Revidou a agressão e foi levado para a MI Delegacia. A imprensa deu apoio ao colega. Retirou-se do ginásio, avisando que só voltaria quando o fotógrafo fosse solto. O júri, solidário, resolveu só anunciar o vencedor do FIC quando a imprensa voltasse ao trabalho, o que ocorreria com a liberação do fotógrafo. A divulgação do resultado atrasou uma hora e, apenas quando o fotógrafo foi liberado, a música vencedora foi anunciada: BR-3. Diante da repressão em que se vivia, a música, de Antônio Adolfo e Tibério Gaspar, podia até ser vista como canção de protesto. O cantor, Tony Tomado, um estreante, era um figuraço. Alto, negro, cabelos no estilo black power, dançava num gênero que se pode chamar de pré-funk, no clima de James Brown. Algum tempo depois surgiu a suspeita de que a letra tinha ligação com drogas, supondo-se até que a BR-3 era a veia do braço. Haja imaginação! Voltando ao Mocotó, Erlon Chaves saiu do Maracanãzinho como o rei da cocada preta, ou melhor, da branca. Seu prestígio com as mulheres estava em alta, e naquela semana não se falou em outra coisa a não ser em Mocotó. Até os restaurantes mais sofisticados passaram a incluí-lo em seu cardápio. No domingo seguinte, além de estar no júri, Erlon iria "servir" no Programa Flávio

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Cavalcanti o tão famoso Mocotó com a Banda Veneno, repetindo a apresentação do Maracanãzinho. O programa era ao vivo, e na tarde de domingo havia um ensaio. Erlon já tinha ensaiado quando saiu do estúdio e, atravessando a rua, foi até o outro lado da emissora para tirar uma cópia das partituras que faltavam. Quando voltava para o estúdio, foi agarrado por dois homens, que o encapuzaram e o colocaram no chão de uma caminhonete Veraneio. Para disfarçar o que estavam carregando, os homens pisaram no rosto do maestro, que foi levado para o quartel da Polícia do Exército, na Rua Barão de Mesquita, Tijuca. Algumas pessoas que assistiram à cena não entenderam nada. Muito menos o maestro, que não sabia por que estava sendo preso nem para onde estava sendo levado. Ao chegar ao quartel, foi colocado numa cela junto com outro preso, o advogado Heleno Fragoso. Erlon não era de esquerda nem de direita; seu crime era ser negro e ter beijado uma loura num festival de música. A prisão de Erlon provocou um corre-corre na televisão. Flávio telefonou para o general Sizeno Sarmento, comandante do 12 Exército, que prometeu investigar os fatos. Algumas horas depois um coronel, a mando do general Sarmento, telefonou dizendo que o maestro não estava em poder do Exército. A busca continuava por delegacias, quartéis, cada um fazendo o que podia. Após dois dias de buscas, Flávio conseguiu contato com o coronel Otávio Costa, chefe da AERP, o órgão de relações públicas da Presidência da República, que ficou de colaborar na localização do maestro. Algumas horas depois veio a informação de que Erlon seria solto em poucos dias, mas continuava-se sem saber onde estava. Erlon foi solto quatro dias depois, de madrugada, em Vila Isabel. Telefonou para Flávio, dando a notícia, e o amigo Leopoldo Teixeira Leite, marido de Edna Savaget, foi buscá-lo. Sentindo-se perseguido, ficou duas semanas escondido na casa de seu amigo Simonal. Contou que não foi interrogado nem torturado, mas processado por atentado ao pudor, o que lhe valeu uma suspensão de trinta dias em sua atividade profissional. O Mocotó ainda rendeu em outras áreas. Algumas semanas após o festival, Jaguar, um dos donos do jornal Pasquim, publicou a foto de um quadro do pintor Pedro Américo sobre a Independên70

cia do Brasil. No momento em que Dom Pedro devia dizer "Independência ou Morte!", Jaguar colocou um balão com os dizeres: "Eu quero mocotó!" Por coincidência ou não, logo após a publicação a equipe do jornal, formada por Jaguar, Luiz Carlos Maciel, Ziraldo, Paulo Francis, Fortuna, Tarso de Castro, Flávio Rangel e José Grossi, foi presa. Que mocotozinho indigesto! Depois da síndrome do mocotó, o maestro Erlon Chaves nunca mais foi convidado a se apresentar na Globo. Era contratado da gravadora Polygrain, onde gravou diversos discos com a Banda Veneno, participava do Programa Flávio Cavalcanti como jurado e eventualmente se apresentava com a sua banda. Erlon Chaves morreu aos quarenta anos, em 14 de novembro de 1974, vítima de um enfarte, numa loja de discos no bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro.

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"O importante é ter o direito sagrado de pensar o que quiser. A minha briga é no campo das idéias."

Antonio Belio era assistente de produção do Programa Flávio Cavalcanti e responsável em selecionar os candidatos para o quadro "Fora de Série". As inscrições eram feitas às segundas-feiras, e desde cedo uma longa fila formava-se na porta do escritório. Inventores com suas máquinas maravilhosas, amestradores de animais, engolidores de faca, cuspidores de fogo, todos queriam participar do programa e ganhar o prêmio em dinheiro. Muitos vinham de longe trazendo presentes para Flávio, cartas de recomendação de políticos do interior, e ficavam aborrecidos quando não eram escolhidos. A grande dificuldade para Belio era distinguir o fora de série do artista circense e do inventor maluco.

lo Em algumas cidades do interior, os cinemas não funcionavam aos domingos por falta de público. Aparelhos de televisão eram colocados nas praças para que todos pudessem assistir ao Programa Flávio Cavalcanti, na Tupi, que possuía a maior rede de 1'V do país. A Globo tentava ocupar o mesmo espaço, inaugurando novas repetidoras e afiliadas. Fazíamos o Programa Flávio Cavalcanti em ritmo de censura total em pleno regime do general Emilio Garrastazu Médici (de outubro de 69 a março de 74). O Brasil tinha outra cara. Muitos que tinham acreditado na revolução de 64, como Lacerda e Flávio Cavalcanti, discordavam dos rumos que a "Redentora" tinha tomado. Tortura, desaparecimentos, uma constante. Havíamos passado pelos governos militares dos marechais Humberto de Alencar Castelio Branco (1514164 a 1513167) e Arthur da Costa e Silva (1513167 a 30110169), e desde 13 de dezembro de 1968, ao ser promulgado o Ato Institucional n2 5, a barra estava pesadíssima. O país passava por uma crise de euforia e crescimento. A seleção brasileira de futebol tinha conquistado o tricampeonato no México e trazido pra casa a Taça Jules Rimet; Emerson Fittipaldi era campeão de Fórmula 1. A indústria vivia o milagre brasileiro. Noventa milhões em ação, pra frente Brasil... Eu te amo, meu Brasil, eu te amo, meu coração é verde, amarelo, branco, azulanil... Há alguns anos Joãozinho Trinta, com muita propriedade, 75

disse que "intelectual gosta de pobreza, e pobre gosta de luxo". Flávio já sabia disso, pois esta era a tônica do seu programa. Não era só luxo, mas bom gosto, sensibilidade e uma criatividade insuperável. Quatro horas ao vivo, sem quadros pré-gravados, eram pra leão. Aos domingos, a agitação começava de manhã, com a montagem do cenário e os ensaios dos números musicais com a orquestra do maestro Cipó. As seis da tarde, tudo tinha que estar pronto. Era uma tensão enorme, nenhuma atração podia faltar. Flávio era perfeccionista, muito exigente, e nada podia dar errado. O programa tinha que sair igualzinho ao que fora planejado, senão vinha bronca. Além da parte jornalística em "Flávio Confidencial", onde o apresentador realizava incríveis entrevistas, a cada semana o programa trazia também uma parte musical e uma série de concursos como "O Homem Mais Bonito do Brasil" (o primeiro foi Pedrinho Aguinaga, que se eternizou com o título, e o segundo foi Maurício Alberto, um ano depois lançado como cantor internacional com o pseudônimo de Morris Albert), "Miss Suéter" (Rose di Primo), "A Mais Bela Moça de Óculos", "Minha Patroa, Minha Amiga" (com empregadas domésticas), "A Gordinha Mais Simpática", "Arrimo de Família" e dezenas de outros. Estes concursos duravam semanas, davam audiência e quebravam tabus. Os homens deixavam de ter vergonha de dizer que eram bonitos, as gordinhas passavam a se sentir mais charmosas, as domésticas mais importantes, miopia não era problema, e assim por diante. Mas, entre todos esses concursos, havia um, logo copiado pelos concorrentes, chamado "Fora de Série". O objetivo era apresentar pequenos inventores, pessoas que faziam alguma coisa inusitada, diferente, visando a estimular a criatividade. O júri escolhia o melhor, e o vencedor levava um prêmio em dinheiro. O sucesso foi tanto que uma equipe da televisão japonesa veio ao Brasil especialmente para gravar este quadro do programa e levou alguns foras de série para apresentações no Oriente. Entre eles, lembro de uma professora, Helena Lacour, ambidestra, que escrevia com uma mão e desenhava com a outra, simultaneamente. Lembro também de um homem que escalava paredes com uma superagilidade, parecia o Homem Aranha, e acabou se exibindo no Japão. Havia também inventores malucos; um deles apareceu com 76

uma geringonça engraçadíssima para matar formigas. O quadro tinha um pouco de espetáculo circense e muito de criatividade, e se tomou tão popular que a expressão "fora de série" passou a ser usada como sinônimo de inusitado. Durante longo tempo, a última meia hora do programa era ocupada pela gincana "Minha Turma E da Pesada". Começou com uma competição entre bairros, passando depois ao nível interestadual, em que competidores do Rio e de São Paulo disputavam um grande prêmio. A cada semana as tarefas ficavam mais dificeis. Alvaro e Celso Pereira eram líderes das equipes e quase se tomaram gincaneiros profissionais. Cumpriam as tarefas mais loucas, como, no centésimo programa, apresentar uma pessoa com cem anos, a centésima música de Roberto Carlos, um bolo com cem velas, um casal com cem minutos de casados, um com cem dias e outro com cem meses. Num domingo, uma das tarefas era levar até o programa alguém "fora de série", e o convidado foi Lennie Dale, na época cumprindo pena por uso de drogas. Ninguém mais do que Flávio condenava o uso de tóxicos. Ele promoveu, inclusive, diversas campanhas contra as drogas. Depois de um show incrível do artista, ele se rendeu ao talento do bailarino. Sensibilizado, conseguiu através de um sobrinho, Dr. Francisco Luiz Horta, na época juiz da Vara de Execuções Criminais, regalias para que Lennie continuasse se exercitando e não perdesse a forma. Numa das finais, em que o prêmio era um carro, a sofisticação da gincana chegou a tal ponto que a última tarefa era dar uma volta ao mundo em sete dias, trazendo alguma coisa "fora de série" de cada país. Claro que tudo pago pela produção. Eles não tiveram tempo de respirar durante aquela semana. Alvaro viajou em direção ao Oriente e Celso, em direção ao Ocidente, e em alguns países só ficaram no aeroporto. Resultado da gincana: empate. Fora do vídeo, uma das facetas mais gostosas de Flávio era a sua forma espontânea de falar com as pessoas e fazer amigos. Quem conviveu com ele longe das câmeras sabia dos seus impulsos arrebatados, as brincadeiras com amigos, das farras na piscina, onde ninguém estava livre de se divertir como criança, ou do jeito com que se aproximava de alguém a quem admirava mas jamais fora apresentado e puxava assunto. Assim aconteceu uma tarde no D'Angelo, tradicional casa de chá do centro de Petrópolis, por onde 77

passava numa de suas caminhadas. Sentada sozinha a uma mesa, a escritora Adalgisa Nery tomava chá num final de tarde. Flávio parou para cumprimentá-la. Não tinham sido apresentados antes, e, apesar de terem posições políticas opostas, ele a admirava. AdalgisaNeiy, poeta, romancista, deputada, embaixairiz,jornalista combativa, durante muito tempo foi ligada agnipos de esquerda Viúva do pintor Ismael Neiy e depois casada com Lounval Fontes, diretor do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda do governo de Getúlio Vargas), nos anos 50 fazia a coluna diária "Retrato Sem Retoque", no jornal Ultima flora, que lhe valeu, inclusive, em 1960, uma vaga como deputada do recém-criado estado da Guanabara. Reelegeu-se em 1962, sempre sob a legenda do Partido Socialista. Defensora ferrenha de Getúlio, o que Flávio admirava naquela mulher era a sensibilidade, demonstrada nos livros Poemas (1937), OG (1940), A MulherAusente (1940), Ar do Deserto (1945), As Fronteiras da Quarta Dimensão (1951), A Imaginária (1959) e Mundos Oscilantes (1962). Flávio convidou-se para sentar e o papo preencheu a tarde. Já escurecia quando resolveram ir embora. Flávio viu que Adalgisa se dirigia para o ponto de ônibus e ofereceu-lhe carona. Ela morava perto do Quitandinha, e, lá chegando, convidou-o a entrar para mais um café. Era uma casa muito simples, e Adalgisa contou da solidão, dos filhos que pouco a procuravam. Logo nasceu a amizade. Ele passou a convidá-la para ir à sua casa, do outro lado da cidade. As conversas rolavam até tarde da noite entre Flávio, Belinha e Adalgisa, e quando olhavam o relógio já era tão tarde que ela acabava dormindo por lá. Foi ficando tantas vezes até que um dia ficou definitivamente, fazendo parte da família. Para melhor acomodar Adalgisa, Flávio construiu, especialmente para ela, uma casa de hóspedes com um quarto muito confortável. Lembro de Adalgisa, mulher altiva, personalidade forte, andando pela casa de Flávio como se fosse sua. Muitas vezes nos reuníamos em almoços aos domingos, e ela, sempre falante, pontificava em todas as discussões. Palpitava sobre o programa, aprovava alguns quadros, criticava outros e exercia seu direito de livre-pensadora. Apesar de todas as controvérsias, era uma grande amiga de Flávio. Era interessante ver como pólos diferentes se encontravam e, sobretudo, se respeitavam debaixo do mesmo teto. Um exemplo de civilidade e democracia. Ela getulista, comunista, 78

contra a revolução de 64. Flávio lacerdista, democrata, lutou a favor. Adalgisa não dependia de Flávio financeiramente, gostava da amizade, do carinho e do aconchego que encontrou naquela família. Foi na casa do apresentador em Petrópolis que Adalgisa voltou a escrever, depois de dez anos, e fez seu último livro, Erosão, lançado em 1973. Quando Flávio mudou-se para São Paulo, Adalgisa preferiu ir morar num asilo de idosos em Jacarepaguá, onde morreu aos 74 anos, em 8 de junho de 1980.

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"Sou como sou, nunca represento."

Os ensaios aos domingos começavam à uma hora da tarde e acabavam antes das seis, hora em que o programa entrava no ar ao vivo, sem atraso. Roberto Carlos, quando participava do programa, tinha prioridade nos ensaios e, por ser perfeccionista, fazia a banda repetir diversas vezes a mesma canção, atrasando os ensaios. Num desses domingos, Cláudia também ia se apresentar, e chegou cedo para os ensaios. Mas, com os atrasos de Roberto, às seis em ponto, quando o programa entrou no ar, a cantora ainda estava no palco, com os cabelos enrolados, rosto sem maquiagem, passando o final da canção. O programa não podia atrasar, e Flávio entrou no ar assim mesmo. Transformou o erro em notícia, fazendo um pequeno editorial sobre o profissionalismo da cantora e mostrando os bastidores da televisão.

11 Flávio sempre gostou muito de escrever, e começou sua carreira junto com um amigo, Sérgio Porto, mais tarde conhecido como Stanislaw Ponte Preta, que tão bem definiu a televisão como "a máquina de fazer doidos". Pois bem, Flávio e Sérgio fizeram concurso para o Banco do Brasil. Jamais haviam trabalhado, e naquela época trabalhar em banco era um grande negócio. Mas a vida de bancário não satisfez nem a Flávio nem a Sérgio, que logo procuraram outra saída. Em 1945, através de um outro amigo, Fernando Hupsel de Oliveira, Flávio chegou até o jornal A Manhã e foi admitido como colunista social, no setor onde pontificava Jacinto de Thormes. Mas, como não levava jeito para colunista, passou para a reportagem geral como foca, ou seja, repórter iniciante. Era o ano em que Getúlio Vargas fora deposto, e deram a Flávio a tarefa de entrevistar o ex-presidente, que se recolhera à vida particular em um apartamento no Morro da Viúva. Ninguém da imprensa conseguia chegar até o homem. O prédio estava cercado por policiais do governo e pela guarda pessoal de Vargas. Flávio era muito magrinho, muito alto e muito envolvente. Vestiu-se como garçom e, fingindo prestar serviços a uma família que morava no mesmo andar que o ex-presidente, conseguiu burlar a vigilância e entrou no prédio. Chegando no andar, apertou a campainha do vizinho, sob os olhares atentos dos que vigiavam o apartamento do ex-presidente. Ao ser atendido, inventou uma 83

explicação para a sua presença e conseguiu entrar. Fechada a porta, perguntou pela dona da casa e, com toda a sinceridade, disse o motivo de sua presença ali. Mas, com toda a insinceridade de repórter que se vale de quaisquer meios para atingir seus objetivos, inventou que se não pudesse apresentar uma boa reportagem seria despedido. Comoveu a dona da casa. E começou então uma operação acrobática para chegar até o apartamento de Vargas, pois teria que pular da área de serviço de um apartamento para o outro. Era mesmo uma invasão de domicílio. Flávio não pensou no perigo, não teve medo da altura e pulou para o apartamento de Vargas, onde foi agarrado pelo tenente Gregório, guarda-costas do ex-presidente. A cena deve ter sido muito engraçada: Flávio, magrinho, disctitindo com o gigante Gregório Fortunato. Em meio às discussões, atraído pelas vozes, surgiu o Dr. Alencastro Guimarães, ex-ministro de Vargas, que resolveu ouvir os apelos do jovem repórter e negociar a entrevista com o ex-presidente. Alguns momentos depois chegou à área de serviço dona Darcy, esposa de Vargas, que, impressionada com a ousadia de Flávio, permitiu que ele entrasse no apartamento e fizesse a tão desejada entrevista. E então ficaram, frente a frente, de um lado o repórter furão, sem a menor tarimba, mas possuidor de uma enorme força de vontade, do outro o político imbatível, homem procurado, assunto a ser explorado. A entrevista durou algumas horas, e Vargas falou por que fechara o Congresso em 1937 e não realizara as eleições como prometera, pois, segundo ele, o povo estava despreparado. Falou que o país precisava de uma paz social e de suas realizações como a criação de Volta Redonda e o Ministério do Trabalho. Com esta entrevista, Flávio foi promovido de foca para repórter e profissionalizou-se ao entrar para o Sindicato dos Jornalistas. Começava ali uma carreira que seria a paixão de sua vida. No entanto, com o aparecimento da TV em 1950, a imprensa escrita passou a ter um misto de mágoa e inveja daquele novo veículo que veio tomar seu espaço. Sem contar que os jornalistas de televisão eram e são muito mais bem remunerados do que os de jornais e revistas. Mas a mídia impressa sempre precisou da mídia televisiva para se promover e, por essa razão, durante muito tempo abriu espaço para apresentadores de TV escreverem em suas páginas. 84

Assim foi algumas vezes com Flávio Cavalcanti. Em O Jornal, um veículo integrado aos Diários Associados, ele manteve uma página semanal entre 70 e 71; depois foi para o Ultima Hora, onde durante um tempo assinou duas páginas diárias que eram coordenadas pelo jornalista Artur da Távola, o hoje deputado federal Paulo Alberto Monteiro de Barros. Flávio conheceu Paulo Alberto no início dos anos 60. Paulo Alberto dirigia a UME - União Metropolitana dos Estudantes e convidou o apresentador a dar uma aula de jornalismo na Faculdade Cândido Mendes. Flávio era autodidata, não fazia o tipo intelectual, e esse convite lhe deu enorme gratificação. Como agradecimento, em 1961, quando Paulo Alberto se candidatou a deputado estadual, Flávio o convidou a participar do programa Noite de Gala. O jovem candidato era bonito, charmoso, e tinha uma incrível facilidade de comunicação. Isso, somado à grande audiência do programa, representou muitos votos, e em muito colaborou para sua eleição a uma cadeira na Assembléia Legislativa. Seu primeiro mandato foi curto. Cassado pela revolução de 64, buscou exílio no Chile. Aproveitando uma pequena abertura que surgiu durante o governo Costa e Silva, voltou ao Brasil em 1968. Nessa mesma época, voltava também de Paris o jornalista Samuel Wainer, dono do Ultima Hora, jornal quase fechado com a revolução. Dez dias após sua chegada, Paulo Alberto foi procurado por Flávio e convidado a integrar o júri de um de seus programas, Um Instante, Maestro! ou A Grande Chance. Por estar cassado, não podendo ser apresentado como deputado, Flávio sugeriu que no júri ele fosse apresentado simplesmente como "o jornalista Paulo Alberto". O convite o sensibilizou, mas ele não o aceitou. Parecia exagerado, pouco oportuno e politicamente incorreto que, como cassado, aparecesse do lado de alguém que apoiara a revolução. Nesse retorno ao Brasil, sem direitos políticos, Paulo Alberto foi trabalhar no Ultima Hora, escrevendo sobre televisão, assunto que passou a conhecer quando foi obrigado a morar no Chile. Em 1970, Samuel Wainer, dono do jornal, estava promovendo uma remodelação, numa tentativa louca de superar a crise que o Ultima Hora atravessava. Criou um suplemento cultural, editado em forma de tablóide, contando com a colaboração de jornalistas como 85

Nelson Motta, Luiz Carlos Maciel, DanielMás e o próprio Artur da Távola. Wainer não era amigo de Flávio, até porque tinham pontos de vista contrários, mas se respeitavam. Consciente da penetração do apresentador e de sua grande audiência, convidou-o a escrever duas páginas diárias no jornal. Era um jogo interessante para ambas as partes: espaço para Flávio escrever o que quisesse e divulgação de graça para o jornal. Mas não era apenas isso. Flávio podia comercializar os espaços das duas páginas e com isso ajudar a pagar o salário de dois funcionários do Última Hora, Artur da Távola e Célia Ladeira. Em meio expediente, os dois trabalhavam em nosso escritório na Urca, como redatores dessas páginas. Através da Anatom e da Erontex, patrocinadoras do Programa Flávio Cavalcanti, o apresentador conseguiu vender seu pequeno espaço publicitário, e assim a equipe era paga. Essa experiência no Ultima Hora durou pouco, apenas três meses. Flávio adorava escrever, mas o excesso de trabalho estava levando-o a uma estafa, e ele teve que optar. Ficou só com a televisão. O Ultima Hora pertenceu a Samuel Wainer apenas por mais um ano: . foi vendido em 21 de abril de 1972.

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"Um velho ditado diz que no sucesso devemos ser cavalheiros e no desastre devemos ser homens."

As inscrições para o Mli' - Mercado Internacional do Talento - eram feitas às quartas-feiras. Carminha Mascarenhas fazia a seleção, auxiliada pelo maestro Anselmo Mazzoni ao piano. A maioria dos candidatos mostrava o potencial vocal interpretando clássicos de Noel Rosa e Chico Buarque. No entanto, uma pequena parcela inscrevia-se querendo interpretar suas próprias composições, como foram os casos de Fátima e Maurício Alberto Kaiserman. Carminha Mascarenhas aconselhou Fátima a escolher uma composição conhecida, e ela alguns anos depois transformou-se em Joanna,. grande intérprete da música romântica. Maurício foi eliminado como cantor, concorreu ao título de Homem Mais Bonito e foi vencedor. Em 1975, Maurício se tornou o internacional Morris Albert.

12 Participar do júri era chique, dava status, e muitas pessoas ganharam notoriedade através do Programa Flávio Cavalcanti. O júri era formado por jornalistas, músicos, radialistas, artistas, colunáveis e personalidades, num total de dez pessoas. Flávio sabia a medida exata de formar um grupo heterogêneo que colaborava para o sucesso do programa. Convidava e fazia o teste da empatia com o público e da comunicação. Quando sentia que o jurado rendia, que os comentários eram inteligentes e, sobretudo, que tinha noção de timing, mantinha-o no programa. Nada era combinado. Flávio sabia que eles eram profissionais, e em suas mãos estava a missão de levantar ou derrubar o programa. Alguns jurados eram fixos, outros temporários. Não havia contrato, apesar de todos receberem cachê. Os problemas entre Flávio e os jurados surgiam quando eles passavam a acreditar que o lugar ocupado na bancada era vitalício. O apresentador adorava mudar a cara do programa, uma forma de não cansar o telespectador, e com isso mudava também o júri. Quando ocorriam essas mudanças, ele enviava uma cartinha amabilíssima agradecendo a participação e dispensando a colaboração. Muitos não aceitavam, e assim Flávio ganhava mais um inimigo. Nós, da equipe, chamávamos essa cartinha de "voador". Eu era encarregada de datilografá-las e enviá-las acompanhadas com flores. O "voador" sempre surgia às segundas-feiras, depois da reunião em que se discutia o programa do dia anterior e se planejava o próximo. 89

Muita gente passou pelas inúmeras bancadas do programa. Alguns marcaram mais, outros menos. Márcia de Windsor foi jurada por longo tempo. Era amiga pessoal de Flávio, e o acompanhava desde A Grande Chance. A cada domingo desfilava um vestido diferente, como se estivesse indo para uma festa black-rie. As donas-de-casa babavam. Márcia tinha fã-clube, era gentilíssima com os calouros e só dava nota dez. Mansa Urban, além de jurada, era amiga de Flávio de muitos anos e figura constante; assim como Danuza Leão, o deputado Alvaro Valie, o compositor Fernando Lobo, Sérgio Bittencourt, Humberto Reis, Carlos Renato, Ronaldo Bôscoli e o maestro Erlon Chaves. Em maio de 1972,0 costureiro Denner fazia parte do júri, com muito sucesso. Afetadíssimo no falar, culto, inteligente, com a desenvoltura mostrada no programa, foi convidado para ter seu próprio programa na TV Itacolomi, em Belo Horizonte. Mas, seguindo instruções dadas à Censura pelos ministros da Justiça e das Comunicações, costureiros como Denner, Clóvis Bornay e Mauro Rosas estavam proibidos de aparecer em qualquer programa de televisão. Para ser mais direta, a Censura avisava que não permitiria, sob qualquer pretexto, a inclusão de artistas que pudessem transmitir estímulos negativos à formação moral do espectador. Os critérios da Censura eram ridículos. Ao mesmo tempo em que Denner, educado e gentil, era vetado no júri Luxo, o escritor Fernando Jorge, grosseiro e deselegante, estava liberado para continuar dizendo todas as barbaridades que bem entendesse. Lembro também no júri de Regina Rozemburgo, Armando Marques, Hildegard Angel, Marcos Szpilman, Vera Fischer, Renée de Vielmond, Maria do Rosário Nascimento e Silva, Germana de Lamare, Alik Kostakis, Armando Pitigliani, Tetê Nahas e Tereza Sodré. Em 1972, Flávio morou uma temporada no anexo do Hotel Copacabana Palace enquanto seu apartamento na Rua Paula Freitas estava em obras. Nessa época, Mansa Raja Gabaglia, que fazia parte do júri, foi até lá contar sobre o lançamento de seu primeiro livro, Milho pra Galinha, Mariquinha - uma coletânea de crônicas que escrevera para o jornal Ultima Hora -, e pedir a Flávio ajuda na divulgação. Flávio abriu espaço no programa, e o livro se tornou bestseller, vendendo 120 mil exemplares. 90

Durante um período, além do júri que ficava em frente às câmeras, Flávio criou um júri crítico, formado porjornalistas como Maria Claudia Bonfim, Giba Um, Eli Halfoun, Marcos Merehi, Moisés Fuks e Raul Giudiceihi, que assistiam ao programa pela televisão confortavelmente instalados em nosso escritório, como se estivessem num coquetel. Bebiam uísque, saboreavam canapés e no final iam ao palco julgar o próprio programa, com liberdade total de opinião. Mas Flávio era especialista em criar polêmicas, principalmente quando o assunto era música. Para isso, durante alguns meses, utilizou dois júris que discutiam as melhores músicas de todos os tempos. As opiniões eram sempre contraditórias, pois um júri era formado apenas por jovens como Eleonora Soledade (filha do compositor Paulo Soledade), Maria Luiza Imperial (filha de Carlos Imperial), Pratinha (filho de Grande Otelo), Marcelo (filho do ator Carlos Alberto), Micheline Christophe (que respondera no programa O Céu É o Limite, de J. Silvestre, sobre o Egito), José Beilo (filho da Nair Behio) e Gisela Pitanguy (filha do cirurgião plástico Ivo Pitanguy); e o outro, mais velho, formado por profissionais da música e da televisão, como Floriano Faissal, Linda Batista e Nair Behio. O rigor do regime político dos anos 70 foi um dos elementos que propiciaram o crescimento dos júris em programas de televisão, assim como a popularidade e o prestígio dos jurados. Como o povo não podia votar, nem emitir opinião, buscava identificação nos jurados, uns poucos "agraciados" em emitir conceitos, mesmo que sob a mira da Censura, prontos a serem executados a qualquer momento.

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"T apavorante saber que estou falando para seiscentos Maracanõs superlotados."

O júri Luxo, localizado no palco, e o júri Popular, na platéia, estavam sempre se confrontando. Denner era o sucesso do júri Luxo. Um domingo o programa apresentou uma encantadora de serpentes. Quando a mulher abriu o balaio e tirou a primeira cobra, o pavor de Denner em ver o réptil foi tamanho que ele saiu do palco, escondendo-se na platéia. Todos riram muito com a confusão, e, após a apresentação da cobra, ao voltar para o júri, Denner ouviu o seguinte comentário de Sérgio Bittencourt: "Foi preciso uma cobra no programa para você ir ao povo." Rápido de raciocínio, Denner respondeu: "Ir ao povo eu sempre vou; você vir para o júri Luxo é mais difícil."

13 Mesmo abrindo mão de suas colunas no Última Hora, Flávio não perdeu o contato com Paulo Alberto, que, naquela época, já estava se associando a um projeto do jornalista Gentil Noronha. Nos anos 60, Noronha começou a arquivar informacões sobre o Brasil, principalmente as que se referiam à economia. Acordava de madrugada, lia os jornais e arquivava os dados em fichas. Um método bem artesanal. Em pouco tempo, tinha um acervo de grande valor histórico, e, para expandir sua empresa, chamou Ciro Curtis, Alfredo Viana, Paulo Alberto e Eurico Amado. Homens muito inteligentes que, assim como ele, já haviam passado por enormes dificuldades por serem de esquerda. Juntos formaram o Indice —Banco de Dados, prestando um serviço muito interessante. Diariamente, por volta das duas horas da manhã, assim que os jornais eram impressos, Gentil e sua equipe faziam uma leitura detalhada, selecionando as principais notícias econômicas. Depois redigiam um boletim, que era mimeografado e distribuído aos clientes. Era um trabalho apaixonado e dedicado. A clientela era formada por empresários que não tinham tempo a perder com a leitura de todos os jornais e iam direto ao que interessava: a economia do país. A amizade de Paulo Alberto a Flávio fez com que toda semana recebêssemos informações do índice sobre o crescimento do país, notas interessantes que o apresentador gostava de divulgar no programa, sempre citando a fonte. Índice - Banco de Dados 95

ganhou notoriedade em todo o país, a clientela ia aumentando e aos poucos a forma artesanal de classificar as informações foi dando lugar aos computadores. No programa, as notas divulgadas também faziam sucesso. Recebíamos cartas de todo o Brasil pedindo mais e mais informações. Não só técnicos em economia nos escreviam mas também pequenos artesãos, donas-de-casa, vendedores, aposentados, soldados, estudantes e bancários querendo mais dados. Era um período próspero na economia do país. Diante do interesse do público e do empenho de Flávio em colaborar com os profissionais do Índice, a equipe resolveu criar um livro mostrando o Brasil que o Brasil não conhecia. Os jornalistas Alberto Rajão e Jesus Soares Pereira trabalharam em tempo integral para a elaboração do livro Brasil em Dados, que em outubro de 71 foi lançado no Programa Flávio Cavalcanti. O prefácio escrito pelo apresentador era o seguinte: "Há cerca de um ano, o Programa Flávio Cavalcanti começou a divulgar pequenas informações sobre a economia brasileira, aproveitando o excelente trabalho de pesquisa que me é fornecido diariamente pelo índice - Banco de Dados. Ao fazer essa divulgação, meu desejo era o de prestar mais um bom serviço aos telespectadores da TV Tupi, Canal 6, transmitindo-lhes dados de grande valor para quem planeja, educa, produz, comercializa, estuda, para todos aqueles, enfim, que precisam da informação econômica em suas atividades profissionais. Supunha que o número dessas pessoas não fosse muito grande, limitado que estaria a uma parte das chamadas elites do país. Embora poucas, mereciam que o Programa Flávio Cavalcanti estendesse a elas o serviço que ainda era privilégio dos clientes do índice. Devo confessar que me enganei, apesar de minha longa experiência na imprensa, no rádio e na televisão. Milhares e milhares de cartas começaram a chegar, de todo o país, das grandes cidades e dos pequenos municípios do Norte, do Leste, do Centro, do Oeste e do Sul. Dezenas de milhares de brasileiros escreviam-me pedindo mais informações. 96

'Seu Flávio. Quantas toneladas de aço produz o Brasil? Qual a quilometragem de nossas estradas? Quantos analfabetos ainda existem? Por que não se industrializa a banana? Quantas vagas existem nas universidades brasileiras? Qual tem sido o aumento de nossa renda per capita?' Eram consultas de professoras, médicos, advogados, industriais. Mas eram também, e em maior número, perguntas de operários, comerciantes, camponeses, donas-de-casa, estudantes, vendedores, aposentados, soldados, empregadas domésticas. Descobri com uma das maiores emoções de minha vida que o povo brasileiro queria saber; que o povo brasileiro quer conhecer o seu país, a sua terra, a sua gente, os seus problemas, as suas possibilidades. Descobri que o povo brasileiro deseja aprender, para melhorar, para construir, para desenvolver-se. Era preciso ajudá-lo. Recorri ao índice. Expus essa necessidade e a minha idéia: estender ao povo a assessoria econômica que vinha sendo prestada apenas aos técnicos, aos dirigentes, aos grandes industriais e homens de empresa que têm acesso às fontes de pesquisa ou que recebem todas as manhãs o Boletim do Banco de Dados. Meu entusiasmo foi imediatamente entendido e incorporado pelos jovens empresários e profissionais daquela organização. Começamos a recolher informações, a classificá-las, a organizá-las didaticamente, a enriquecê-las com fotos, gráficos e quadros, a traduzi-Ias para uma linguagem simples, ao alcance de todos. Posso dizer agora, com muito orgulho, que o resultado desse trabalho foi o que obtive no índice, guardei e passo a

vocês: o Brasil em Dados. De tudo o que fiz nos jornais, nas emissoras de rádio e nos estúdios de televisão, procurando durante anos oferecer ao meu público a melhor música, o humor mais alegre, a notícia mais verdadeira, o espetáculo mais agradável, nada se compara ao que desejo oferecer a todo o povo brasileiro através deste livro: o conhecimento de seu próprio país. 97

Brasil em Dados não contém a minha opinião nem a opinião de ninguém. Não é contra nem a favor de pessoas ou de partidos. Não ataca nem defende quem quer que seja. Brasil em Dados informa. Esta é a minha contribuição ao desenvolvimento, à paz, à integração e à felicidade deste nosso querido Brasil. E modesta, sem dúvida. Mas eu a dou, juntamente com o Índice - Banco de Dados, com o melhor do meu carinho, do meu patriotismo, da minha confiança nesta brava gente brasileira. Tomem este livro nas mãos, transfiram para a memória o que ele contém, fortaleçam no coração o que ele deseja ensinar: o amor ao Brasil, não apenas pelo que ele é, mas pelo que ele deve e pode ser. E será. Flávio Cavalcanti." Brasil em Dados se transformou num grande sucesso editorial. Em 48 horas foram vendidos vinte mil exemplares, em uma semana, cinqüenta mil, e em um ano, duzentos mil. Tinha 144 páginas escritas por uma equipe de técnicos e profissionais do Indice; trazia ainda fotografias, gráficos e quadros, traduzindo a economia para uma linguagem simples, bem ao alcance do público. Nessa época o Brasil tinha 92 milhões de habitantes e era o oitavo país em volume populacional. Na sua frente estavam China, Índia, União Soviética, Estados Unidos, Indonésia, Paquistão e Japão. Em 72, Flávio lançou São Paulo em Dados, também elaborado pela equipe do Índice. Repetindo o sucesso, o livro teve cem mil exemplares vendidos em menos de seis meses só em São Paulo. O Índice ainda prestou serviços à Bolsa de Valores do Rio de Janeiro e a muitas empresas de grande porte. Foi vendido em 74, e de sua equipe original continuam entre nós Paulo Alberto Monteiro de Barros, deputado federal, e Ciro Curtis, advogado.

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"Acho que psicanalista é aquele cara que quer que a gente deite, para ensinar como é que a gente deve proceder quando está em pé."

Os relógios Classic eram um dos patrocinadores do programa. Semanalmente recebíamos muitos relógios, que eram distribuídos entre os participantes dos concursos, jurados, auditório, e Flávio sempre sorteava um entre os músicos da orquestra. Muitas pessoas escreviam pedindo relógios, outras falavam com Flávio na rua. Entretanto, a pedinte mais assídua era uma senhora da Censura que ia todos os domingos ao programa. Seu humor e a boa vontade para a liberação de determinados assuntos variavam de acordo com a quantidade de relógios que ganhava.

FEl A Censura estava sempre presente nas situações mais imprevisíveis. Em maio de 1971, para integrar ojúri do programa, Flávio convidou Bete Mendes, que estava no elenco da novela Meu Pé de Laranja-Lima, na Tupi. Ele sempre fazia isso. Chamar atores da Tupi para participarem do júri era uma forma de divulgar a programação da emissora, que, em se tratando de novelas, perdia para a Globo, principalmente no Rio. Bete era uma das atrizes mais populares da Tupi, tendo participado, inclusive, de BetoRockefeller. Escrita por Bráulio Pedroso, esta novela mudou a concepção da telenovela brasileira, por sua linguagem inovadora. Bete estreou no júri domingo, 23 de maio. Nessa época, um dos pontos altos do programa era o "Arrimo de Família", um quadro onde eram apresentados jovens menores de idade que sustentavam, ou ajudavam a sustentar, a família com seu próprio trabalho. Era comovente. O Brasil chorava com as histórias tristes daqueles jovens, repetidas a cada semana e selecionadas através do júri. O critério para essa escolha era muito pessoal, valiam o esforço de cada um dos arrimos, a simpatia, a luta, a necessidade. O prêmio final era uma casa. O ganhador foi Praxides, pouco mais de quatorze anos, que sustentava a avó e três irmãos. De tanto ir ao programa todos os domingos, terminou por se juntar à equipe, e, trabalhando conosco, ganhava mais uns trocados. Voltando a Bete, Flávio ficou enternecido com a sua emoção no programa de estréia e passou isso para o papel. Publicou um 101

artigo dias depois, numa das duas páginas que assinava diariamente no Ultima Hora. "Uma Rosa para Bete Vejo pouco a Bete Mendes, a mais nova das minhas juradas. Ela grava a semana inteira em São Paulo os capítulos de Meu Pé de Laranja-Lima. Avião pra cá. No júri sentada. Avião pra lá. Mal dá pra conversar com ela. Muito menos entrevistá-la para vocês. Em tempos agressivos, a recuperação da ternura é medida terapêutica. E Bete é assim: ternura sem melado. Outro dia ela chorou no quadro 'Arrimo de Família'. De suas pestanas, ainda molhadas, é a foto desta página. Há choros e choros. Um deles, mais freqüente nos programas de televisão, é o que vem de uma emoção rápida, forte demais. E um estado nervoso. Outro deles, mais fundo, corresponde a sentimentos mais duradouros. Foi o dela. A emoção de um jovem chorando tem sempre um sentido que devemos compreender, já que, até biologicamente, a juventude se protege dos sentimentos pela extrema abertura à alegria e à confiança na vida. Eu compreendi tudo nas lágrimas de Bete. Era a mistura do sentimento do próximo com a certeza da própria impotência para resolver certos problemas humanos. Nesse momento ela talvez tenha compreendido, como milhares de jovens como ela, que muitas vezes somos obrigados a chocar e a agüentar as críticas que vêm em cima para disseminar exemplos, semear a esperança de reconstrução que existe em qualquer ser humano que não parou de contemplar passivo as dificuldades e resolveu sair em frente. A única maneira de levar isso a milhões de brasileiros é essa, chocante talvez, mas efetiva. Sem saber bem, sem conhecê-la mais de perto, apenas por perceber seu clima humano, patético e ternamente expresso nos personagens que já encarnou no vídeo, convidei-a para ojúri. Os jurados de um programa longo e variado como o meu devem expressar elementos de comunicação que projetem imagens fecundas e ricas, e que provoquem no público atitudes de adesão ou de discordância, mas atitudes ativas, 102

participantes. Bete é a presença do sentimento sem sentimentalismo, é a atualidade da beleza e da esperança de uma juventude que põe no ser humano a medida de todas as coisas. Uma rosa para Bete." A publicação deste artigo foi o bastante para que Flávio fosse chamado pelo Exército e tomasse conhecimento de um enorme dossiê sobre a atriz, onde era mostrado seu envolvimento com a esquerda. Bete, militante de uma organização revolucionária, já fora presa, torturada, respondera a processo e fora absolvida. Depois disso tudo estava muito bem, exercendo a sua profissão de atriz. Na conversa que teve no Exército, Flávio perguntou por que a atriz podia aparecer na novela cinco dias por semana, mas não poderia participar do programa. A resposta foi simples: na televisão ela vivia um personagem cujos diálogos eram aprovados previamente pela Censura, enquanto no programa seria ela mesma, colocando suas opiniões ameaçadoras ao regime. O Exército queria que Flávio tirasse Bete do programa, mas ele não deu atenção. No domingo seguinte, numa das tarefas da gincana, Bete foi escalada para dar o chute inicial de uma partida de futebol entre artistas em pleno gramado do Maracanã. A Censura brecou, como se o chute naquela bola pudesse detonar uma bomba e iniciar uma grande revolução de esquerda. Ela não ia fazer discurso político, nem mandar mensagens terroristas, apenas ser madrinha de um jogo de futebol de artistas. Lembro de Flávio chateado, a produção arrasada, sem saber como explicar aquela situação. Bete não pôde mais voltar para o júri por ordem do EMFA (Estado-Maior das Forças Armadas).

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ii "Só vou fazer TV mundo-cão na medida em que o mundo está cão."

Flávio dividia com a equipe alegrias e tristezas. Quando o programa atingiu 72 pontos de audiência, num gesto de agradecimento, Flávio distribuiu viagens internacionais à equipe. Ghiaroni, descendente de italianos, jamais saíra do Brasil e por isso ganhou com sua mulher uma viagem à Itália. Eduardo Sidney foi para Londres; eu, Paulo Martins e Gilda Müller fizemos um tour pela Europa; e o nosso faz-tudo, Chico, foi de avião para Recife visitar a família, levando muitos presentes, entre eles uma televisão.

15 Brigava-se pela audiência e também contra a política do governo. As vezes as armas usadas não eram corretas, mas procurava-se fazer o melhor, criando até estratégias para sair daquele sufoco. As quintas-feiras, quando o script ia para a Censura, de antemão já se sabia que voltaria com cortes. Os censores tinham que procurar algum erro, era a função deles; por isso todo o cuidado era pouco com o bendito script. Ghiaroni, uma figura sensacional, era craque em escrever bobagens para lustrar o ego dos censores. Escrevia palavrões, absurdos, textos que obviamentejamais seriam ditos pelo apresentador nem levados ao ar, mas eram a chance de os censores se deliciarem e exercerem o seu poder de corte. Giuseppe Ghiaroni era outro dos homens de esquerda que trabalharam com Flávio. Criador de programas de sucesso na Rádio Nacional, como o humorístico Tancredo e Trancado, conheceu Flávio antes dos anos 70, nos tempos de Noite de Gala, apresentado pelo velho Medina. Em 64 estava na Rádio Nacional quando César de Alencar fez a famosa lista com mais de duzentos nomes de "comunistas" que trabalhavam na emissora. Seu nome era um deles. Dessa lista muitos foram demitidos, como Mário Lago. Outros foram chamados a deporem 1PM (Inquérito Policial Militar). Integrante da lista, e sabendo que a situação ia piorar, Ghiaroni saiu de circulação durante dois meses. Tempos depois, quando Mário Neiva assumiu a direção da Rádio Nacional, provocando a saída de Alencar, os demitidos foram reintegrados, inclusive o redator. 107

Ghiaroni escrevia como Flávio falava. Conhecia o apresentador a fundo, a maneira como abordava um assunto, suas perplexidades, emoções, e colocava tudo isso no papel. Admirável e coerente em seu pensamento, ágil no raciocínio, era capaz de escrever uma carta para Belinha como se fosse Flávio. Um fato acabou se tomando piada entre a equipe do programa. Certa vez Flávio pediu-lhe que escrevesse uma carta para determinada pessoa. Quando Ghiaroni mostrou a carta pronta, Flávio se assustou e fez o seguinte comentário: "Era para falar mal, e não para elogiar." Dez minutos depois o redator entregava a carta certa. Esta historinha demonstra que Ghiaroni nem sempre tinha o mesmo ponto de vista de Flávio; discordavam de algumas coisas, mas havia um respeito muito grande entre eles. O pensamento dos dois era um só quando se tratava de tortura, delação e violação de direitos. O Programa Fidvio Cavalcanti tinha quadros fantásticos, alguns muito engraçados. Em abril de 71, o radialista e jurado José Messias fez uma aposta com Jece Valadão e raspou a cabeça em pleno programa. Assim mostrava solidariedade às concorrentes ao título de "A Mais Bela Moça Careca" que semanalmente desfilavam no programa. Em maio do mesmo ano, no mesmo palco, foram reunidos os três homens de maior prestígio no país: Pelé (tricampeão de futebol de 70), Roberto Carlos e Chico Anysio. Um encontro muito criativo, onde Pelé cantava Perdão Não Tem, composição sua gravada em dueto com Elis Regina, Roberto Carlos contava piadas e Chico Anysio fazia embaixadas com uma bola de futebol. Este encontro entre os três superastros virou capa da revista Manchete e deu ao programa 72 pontos de audiência, registrados pelo IBOPE. Era uma liderança total. Em junho do mesmo ano, Stevie Wonder, por um cachê de apenas cinco mil dólares, fazia sua primeira apresentação no Brasil. E claro que no palco da TV Tupi. Ainda não era o premiadíssimo compositor e intérprete, cujo cachê hoje é de 150 mil dólares. Em meados de novembro, Maurício Sherman, então diretor do programa, em substituição a Eduardo Sidney, que passara a diretor da TV Tupi, sugeriu a Flávio uma apresentação de Guiomar Novaes. Considerada a maior pianista brasileira da época, ela tocaria as variações do Hino Nacional. Estas variações haviam sido feitas por Gottschalk, compositor e pianista que viera ao Brasil a 108

convite do imperador Dom Pedro II e ficara encantado com o Hino Nacional. O imperador então sugeriu que ele compusesse variações e fantasias baseadas no Hino. A obra ficou tão bonita que Dom Pedro 11 assinou decreto-lei permitindo sua execução em todo o país fora das cerimônias oficiais, e ainda condecorou o pianista. Guiomar Novaes interpretava esta peça de maneira magistral. O início do arranjo dava ênfase à mão esquerda e soava como soldados marchando. Naquela semana, como sempre era feito, o script do programa seguiu para a Censura na quinta-feira, relacionando todas as atrações, inclusive Guiomar Novaes. Na tarde de domingo, pouco antes de o programa começar, veio uma contra-ordem; um coronel telefonara a Maurício Sherman vetando a execução da música. Foi um deus-nos-acuda. O piano de cauda estava no palco, a pianista já tinha ensaiado e sua presença anunciada. Foram horas correndo atrás de um outro coronel, ou quem sabe até um general, alguém que pudesse entender que aquela variação do Hino Nacional, conforme constava na partitura, fora autorizada por Sua Majestade o imperador Dom Pedro II e não iria desmoralizar o Hino. Sem saber de nada, na coxia da TV, a pianista estava nervosa com a possibilidade de o ar-condicionado, muito fraco por sinal, desafinar o piano. Queria que o mudassem de lugar, o que era impossível, devido à iluminação previamente programada. Depois de muito custo, a liberação foi conseguida através de um coronel mais erudito, que compreendia que fantasias e variações sobre o Hino Nacional não significavam falta de respeito, muito menos tinham alguma relação com desfile de escola de samba. Mas nem sempre se conseguia manter o alto nível. Num domingo, no final de 71, o programa conseguiu resvalar para o máximo do mau gosto. A imprensa vinha publicando muitas reportagens sobre um centro espírita no subúrbio carioca de Santíssimo, onde aconteciam curas - verdadeiros milagres - através de uma entidade chamada Seu Sete da Lira, incorporada por uma senhora de nome Cacilda. Políticos, colunáveis, artistas iam até lá buscar proteção, o que acabou transformando o terreiro num point. Carros luxuosos dirigidos por motoristas uniformizados estacionavam na porta como se estivessem na mais badalada boate da Zona Sul. Havia até um pequeno shopping no terreiro, onde era vendido 109

um disco com pontos de macumba, as músicas cantadas durante os trabalhos. Era ver para crer. Dona Cacilda jamais havia aparecido na televisão, quanto mais incorporada como Seu Sete. Mas naquele domingo, depois de um cerco muito grande da equipe de reportagem do programa, ela acabou aceitando o convite e foi parar na Tupi. Com o programa no ar e o assunto anunciado logo na abertura, veio gente de todos os cantos da cidade para assistir ao vivo uma atração tão comentada. Dona Cacilda entrou no palco comme ilfaut, incorporada pela entidade do Seu Sete, vestindo um temo preto e uma capa preta forrada de vermelho, com uma cartola na cabeça. Atabaques, cantoria, e em poucos minutos estávamos num verdadeiro terreiro de macumba, com direito a charuto e cachaça. Jurados e público, de mãos dadas, formaram uma enorme corrente de fé e tomaram cachaça, com exceção de Márcia de Windsor, que se recusou a beber no gargalo da garrafa que passava de boca em boca. Uma cena feiliniana, apelativa, de profundo mau gosto, sem coerência com os princípios religiosos do apresentador. O impacto causado no público e na Censura foi fenomenal. Flávio era um homem religioso, e mandara construir uma capela ao lado de sua casa, em Petrópolis. Aceitava e respeitava todas as religiões, desde que visassem ao bem da humanidade e ao amor ao próximo. Tinha ido a diversos centros espíritas e recebera em casa algumas mães-de-santo como amigas. Mas montar um terreiro no palco passou dos limites, e não sei até que ponto ele percebia o quanto estava se aviltando. Chacrinha fazia o seu programa no mesmo horário na Globo, e, quando soube que Seu Sete da Lira estava na Tupi, mandou um produtor buscá-lo. Queria levar aquele delírio também ao seu programa. O mau gosto chegava ao ápice; os dois programas que disputavam audiência apresentando uma atração tão lamentável No dia seguinte a imprensa fez críticas violentas aos dois apresentadores. E o Ministério das Comunicações, a Censura e todos os outros órgãos que podian interferir fizeram o mesmo. A partir daí, tanto Flávio quanto Chacrinha ficaram sob uma mira da Censura muito mais rigorosa, e até entrevistas sérias eram postas em dúvida.

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"Senti o peso da responsabilidade que estou assumindo quando alguém disse que serei a maiorforça opinativa deste país."

A estilista de alta costura Marina Massari cedia ao programa vestidos que eram usados por cantoras e algumas juradas. Eram vestidos caríssimos, confeccionados com tecidos finos e bordados, e, por serem emprestados, deveriam ser usados com o maior cuidado. Um domingo, Renée de Vielmond, integrante do júri, utilizou um deles. Era um modelo em chjffon amarelo-claro, com punhos e decote bordados com miçangas e pedrarias. Ninguém sabe o que aconteceu, mas, quando o vestido foi devolvido, tinha uma enorme mancha de gordura. Todas as tentativas foram feitas para limpar o vestido e a estilista não o aceitou de volta. Como resultado, a produção teve que pagar o prejuízo e Flávio proibiu o empréstimo de roupas.

Wel

E

já estava me acostumando com a popularidade de Flávio e achava muito divertido estar ao lado de alguém que era alvo de todas as atenções. Por ser jornalista e ter passado a maior parte da minha curta carreira profissional do outro lado da câmera, prestava atenção em tudo, estava sempre com as antenas ligadas. Na nova função, como sua secretária particular, podia perceber com a maior clareza a força do seu nome. Todas as portas se abriam, bastando usar a palavrinha mágica: Flávio Cavalcanti. As autoridades atendiam ao telefone, os pedidos eram aceitos e era fácil localizar qualquer pessoa. Detalhe importante: ele jamais pedia qualquer coisa para seu próprio benefício. Era sempre para uma obra assistencial, trabalho para um desempregado e assim por diante. Certo dia, não sei se a sério ou de brincadeira, Flávio disse-me que queria falar com Sophia Loren, convidá-la a vir ao programa. Queria homenageá-la como mãe do ano. Peguei o telefone, liguei para a telefonista internacional e expliquei que estava tentando localizar a atriz porque o apresentador queria falar com ela. Ao que eu sabia, a Cinecittá, em Roma, empresa cinematográfica do marido da atriz, Cano Ponti, poderia dar alguma informação. Em menos de dez minutos, do outro lado da linha e do mundo, estava Calo Ponti. A princípio Flávio pensou que eu estivesse brincando, mas percebeu que era verdade quando a telefonista se propôs a servir de intérprete, visto que nenhum de nós falava italiano. A telefonista, fã de Flávio, fizera um trabalho de relações públicas perfeito, explicando para a 113

secretária do diretor quem era o brasileiro que iria falar. A bela Sophia não veio ao programa, mas enviou uma carta linda agradecendo o convite. A correspondência que chegava diariamente ao escritório da produção refletia o sucesso do programa e ia se avolumando ao lado de minha mesa. Eu via a caixa cada dia mais cheia, quase transbordando, e não tinha tempo para abrir uma carta sequer. Foi quando, num final de tarde, recebi um telefonema misterioso. Um homem insistia muito em falar com Flávio e não queria se identificar. Esses telefonemas eram comuns, e meu trabalho também consistia em descartar as pessoas que apareciam com alguma solução milagrosa para um problema nacional. Mas o homem do outro lado da linha ganhou minha atenção ao avisar que estava pronto para se suicidar e que queria vender as imagens de sua própria morte para pagar as dívidas que acumulara nos últimos anos porque estava desempregado. Enquanto convencia o suicida anão fazer nenhuma loucura, pela outra linha colocava o apresentador a par da situação. Flávio entrou na conversa e convenceu o homem a ir ao escritório para um encontro. Além disso, para que o suicida não ficasse envergonhado ao ser reconhecido por mim, Flávio combinou que, ao chegar, ele diria que era dos Correios e Telégrafos. Meia hora depois um senhor alto, magro, cabelos grisalhos, fisionomia triste, chegava ao escritório. Flávio conversou com ele por mais de uma hora. Na saída, sua expressão era bem mais tranqüila. A mim sobrava a missão de arranjar alguma coisa para ele fazer no escritório, uma forma de justificar o salário que recebera antecipadamente. Resolvíamos assim dois problemas, o do suicida e o da minha correspondência acumulada. A partir daquele dia, ele tornou-se responsável pelo setor de cartas, fazendo o trabalho com um carinho incrível e uma paciência de Jó. A cada dois dias ia buscar a correspondência, abria carta por carta, selecionava os assuntos e discutia comigo a melhor forma de respondê-las. Como tinha instrução e um texto razoável, ajudava-me nas respostas. Era muito comum recebermos "moções" de aplauso de assembléias e câmaras dos lugares mais longínquos, como também pedidos impossíveis para doação de terrenos, dinheiro para operações, internações, sempre acompanhados de documentos atestando doença e pobreza, além de originais de livros e fitas. Tudo isso era 114

devolvido através do correio, acompanhado de uma cartinha assinada pelo próprio apresentador. Poucas pessoas da equipe sabiam que o meu ajudante tentara vender seu suicídio e acabara conseguindo um trabalho. O trabalho aumentou a partir de julho de 1971. A Tupi paulista ofereceu-lhe um programa às terças-feiras, Flávio Especial, com transmissão apenas para o estado. Além de representar uma renda extra, era uma forma de Flávio, tão carioca, se aproximar um pouco mais dos paulistas. A experiência durou um ano e, apesar de cansativa, foi fantástica. Todas as terças-feiras, religiosamente às sete horas da manhã, Cid, motorista de Flávio, estava na porta de minha casa. Buscávamos o apresentador e seguíamos para o Galeão a tempo de pegarmos o vôo das oito horas. As vezes Flávio vinha falante, contando histórias da primeira noiva, Risoleta. Era uma boa moça, mas Flávio acabou preferindo Belinha, que conhecera quando criança e por quem se apaixonara ao reencontrá-la já formada, voltando dos Estados Unidos onde estudara. Outras vezes cantarolava musicas antigas que compusera em parceria com Celso, seu irmão. Foi nesse período que convivi mais de perto com o "Senhor dos Domingos". Em São Paulo, o motorista de Marcos Lázaro, João, invariavelmente nos esperava no aeroporto e nos levava para o Hotel Excelsior, que acabou se tornando uma segunda casa. Ocupávamos sempre os mesmos apartamentos, um do lado do outro, e nem precisávamos levar malas, pois as roupas ficavam no próprio hotel. Na ponte aérea descobri que estava grávida: enjoava demais no avião, e minha primeira preocupação foi não poder mais acompanhar Flávio nas viagens. Meu marido, Paulo Roberto Martins, também trabalhava na equipe, fazendo filmagens para o programa, e a gravidez foi muito paparicada por todos. Eu gostava daquelas viagens a São Paulo; sempre havia uma novidade e tudo acabava se tornando uma diversão. Antes do programa, no hotel, quando Flávio estava muito cansado, ia dormir. Mas geralmente ficávamos conversando, inventando novos quadros, respondendo às cartas sem a confusão do entra-e-sai do escritório do Rio. Flávio era uma pessoa comum, transparente. Almoçávamos no próprio apartamento. As vezes pegávamos um cineminha à tarde ou passeávamos pela Rua Augusta, fazendo hora 115

1 até irmos para a Tupi, no Sumaré. Era uma relação gostosa, como de um pai com a filha grávida As instalações da TV Tupi em São Paulo eram ótimas, em nada se parecendo com as da Urca. Era muito bom fazer o programa lá, e o esquema era o mesmo do Rio. Havia um júri formado por Tereza Sodré, Arley Pereira, Bernardo Fedorowski, Fernando Jorge, Irene Ravache, Anselmo Duarte e mais alguns convidados, e ainda música, concursos e gincanas. Foi lá, no domingo, 31 de março de 1972, que fizemos o primeiro teste para a transmissão em cores, com a equipe carioca produzindo o programa em conjunto com a paulista. Mesmo grávida resisti até o final às viagens semanais a São Paulo. Em julho de 1972, o contrato com a emissora terminou e Flávio não quis renová-lo. Algumas pessoas da Tupi comentavam comigo que Flávio desistira porque eu não poderia viajar depois que o bebê nascesse. A verdade é que Flávio estava muito cansado e precisava de férias. Quanto a mim, continuei viajando com ele em shows pelo interior do país, pois, como dizia Elis Regina, gravidez não é doença. Trabalhei até uma semana antes de Bernardo nascer, em 3 de novembro, e voltei à TV uma semana depois.

1 ló

"Vai lembrar que um dia existiu/um alguém que só carinho pediu,/e você fez questão de não dar,/fez questão denegar." Maysa

Chico era um personagem à parte na equipe de Flávio Quebrava muitos galhos, mas também arrumava muitas confusões. Comprava fiado no pequeno comércio da Urca e "pendurava" as contas em nome de Flávio. Quando os comerciantes vinham cobrar, Gilda Müller, diretora financeira, dava uma bronca em Chico e ameaçava mandá-lo embora. Mas ele era esperto e ágil para resolver pequenos problemas. Todos os domingos, quando terminava o programa, Flávio ia ao escritório, relaxava, tomava um banho e saíamos para jantar. Uma noite Flávio pediu a Chico que lhe servisse um uísque, e lá veio ele com a garrafa, copos e gelo. Dias depois, um vizinho, muito sem graça, foi até o escritório pedindo o uísque de volta. Contou que Chico entrara em sua casa muito agitado e, justificando que era "para seu Flávio", levou seu único uísque do bar, sem a menor cerimônia.

17 Conheci Maysa quando fui trabalhar com Flávio. Ela era meu ídolo. Descobri Maysa com pouco mais de dez anos, vendo um programa de TV em São Paulo. Era tarde da noite, e não era programação para criança. Não sei bem porquê, mas naquela noite meu pai me deixou acordada até mais tarde e fiquei deslumbrada ao vê-Ia entrar no estúdio. Ela estava um pouco gorda, usava um vestido de chjffon drapeado preso num ombro só, os cabelos meio curtos caindo em desalinho pelo rosto, e cantava Meu Mundo Caiu. Esta cena em preto e branco tinha um impacto ainda maior. Maysa era diferente de tudo o que eu vira e ouvira sobre música. Não tinha a doçura de Cely Campelo com seus lacinhos cor-de-rosa nem a voz grave e o violão de Inezita Barroso como o disco que tínhamos em casa. Era uma mulher com um olhar profundamente triste, que caminhava por um estúdio esfumaçado, taça de champanhe na mão, apoiando-se em colunas de estilo romano, e falava de um amor sofrido. Nos dias de hoje seria dark. Passei a acompanhar o trabalho de Maysa, rompendo com todos os paradigmas de mito para uma garota da minha idade. Maysa foi compositora e cantora de grande carisma. Nasceu numa família rica, casou com um herdeiro dos Matarazzo, de São Paulo, e abandonou tudo pela música. Nos anos 70, continuava uma mulher muito bonita, cabelos castanhos caindo no rosto, olhos verdes profundos e um ar muito chique. Suas canções eram tristes, a chamada "música de fossa", e seus sucessos eram Ouça e Meu 119

Mundo Caiu. Em meados de 60, casou com um espanhol e foi

morar na Europa. Estava lá há alguns anos quando, em 68, Flávio foi a Portugal para fazer o programa A Grande Chance, a convite da '1V portuguesa, transmitido pela Eurovisão. Hospedado no Hotel São Carlos, em Lisboa, Flávio reencontrou Maysa. Um encontro mais do que agradável, sincero, amigo e saudoso. A cantora acabou aceitando o convite do apresentador de voltar ao Brasil. Foi integrar o júri do programa Um Instante, Maestro!, fez um show inesquecível no Canecão, dirigido por Ronaldo Bôscoli, e permaneceu fixa no Programa Flávio Cavalcanti. Sincera, às vezes enfossada, mas grande amiga. Em 73, eu ainda trabalhava com Flávio, mas comecei a fazer reportagens como freelancer para uma revista. Um dia chegou a oportunidade de fazer uma entrevista com Maysa. Eu estava separada de meu marido há pouco tempo, vivia pela primeira vez a experiência de morar sozinha com um filho pequeno, e não foi preciso muito para que Maysa percebesse minhas dificuldades naquele momento. Não perguntou muito sobre a minha vida, mas no meio da entrevista pegou o telefone e fez uma ligação. Começou a falar com alguém e lá pelas tantas pediu o endereço da minha casa. Quando desligou disse que eu deveria estar pronta às nove horas da noite, na porta do prédio, porque seu ex-marido, e amigo, iria me levar para jantar. Recomendara a ele que me desse uma noite inesquecível, pois eu estava precisando me divertir. E tudo aconteceu conforme ela organizou. No dia seguinte, Maysa me telefonou para saber se o ex-marido havia se portado bem. Contou que fizera algumas anotações para ajudar na minha reportagem e que mandaria entregar. No mesmo dia chegou um envelope; quando abri, encontrei quatro folhas de papel-ofício dobradas ao meio, com uma pequena biografia manuscrita. Como toda fã, fui egoísta, guardei só para mim. Em 1977, quando Maysa morreu num acidente de carro na ponte Rio—Niterói, eu estava no Festival de Cinema de Gramado. Era um sábado, 22 de janeiro, e eu me preparava para a festa da entrega de prêmios do festival quando vi a notícia no Jornal Nacional. Chorei muito, e mais uma vez lembrei das quatro folhinhas dobradas, aqui transcritas. 120

"Nasci no Rio, sou de Gêmeos, dia 6 de junho. Nasci em Botafogo, em casa mesmo, na Rua Visconde Silva. Hoje em dia é uma clínica. Tenho imensa saudade daquela casa e sempre sonho com ela. Tenho um irmão, Alcebíades, já casado com Dorinha e que tem uma filha linda chamada Maysa, como eu. Meus pais são maravilhosos, minha mãe é linda e papai tem os olhos mais azuis que já vi. Sempre foram meus amigos e companheiros em tudo e para tudo. Só não gostaram quando eu comecei a cantar. Deram o não. Hoje porém são fãs incondicionais. A música sempre foi importante pra mim, desde menina. Minha tia Lia era pianista excelente, e, quando ela estudava, eu ficava horas e horas sentada ao lado dela ouvindo música clássica. Aos três anos eu já sabia tocar alguma coisa com dois dedinhos. Aos seis ia dar meu primeiro concerto de piano, mas caí doente com sarampo. Aos sete outra vez, mas tive catapora; assim, nunca pude levar a sério uma carreira de pianista, hoje uma de minhas frustrações. Já casada, esperando Jayminho, meu filho, hoje com dezessete anos, numa festinha em casa toquei algumas de minhas músicas, que compunha desde os treze anos. Estava lá Roberto Corte Real, que me convidou para gravar um disco logo que o baby nascesse. Meu pai era muito amigo de Silvio Caldas, Elizeth Cardoso, que sempre estavam lá em casa. Sílvio foi a primeira pessoa que me ajudou a tocar violão. Com Elizeth, aprendi muito para depois partir para cantora. Não foi fácil conseguir ser profissional. Para poder seguir essa profissão, tive que abrir mão de muitas coisas e, por fim, não podendo mais, larguei até o meu casamento, minha casa, enfim, a minha vida de moça de sociedade, para seguir a minha verdadeira estrada. Devo ter mais ou menos uns 23 LPs, muitos feitos no Brasil e dois nos States, Itália, Espanha, Argentina etc. Compus muitas músicas e devo ter gravado umas cinqüenta. Elas sempre refletiam meu estado de alma, minha 121

r

tristeza e solidão. Nunca consegui escrever nada alegre. Fora do Brasil estive sete anos. As razões foram várias, mas a principal foi meu segundo casamento. Meu segundo marido, Miguel Azanza, era espanhol, e todos os seus negócios estavam na Espanha. Segundo foi querer levar Jayme para que ele tomasse contato com a vida num local onde ele fosse somente Jayme, e não Jayme Matarazzo. Para que ele aprendesse a se valorizar pelo que ele é, e não por outras coisas que poderiam ocorrer em face de seu nome. Com a morte de André, meu primeiro marido, levei o Jayminho para a Espanha e hoje não me arrependo. Atualmente minha vida chegou a um ponto onde há um equilíbrio agradável, embora eu esteja dando os meus primeiros passos para que o equilíbrio seja total. Muitas vezes ainda me sinto perdida, só, o que é normal para quem se colocou tanto tempo nessa situação. Carlos Alberto e eu temos muita coisa em comum, inclusive uma vivência adquirida nos tantos erros anteriores. Fomos pessoas machucadas e machucamos. Tudo que sou agora é uma conseqüência lógica do que passou. Só que procuro tirar o que de bom ficou e jogar fora o que não interessa. Há anos venho em busca de um local que me permitisse uma paz quase inacreditável. Antes era na Barra da Tijuca, há dezesseis anos, onde eu tinha uma casa e vivia em perfeita harmonia com meus bichos, o mar e uma turma da pesada. Hoje é uma praia distante onde vivo na mais completa harmonia com Carlos, com os bichos, o mar e mais ninguém a não ser essa nova expressão que está nascendo em mim há algum tempo que é a pintura. Levei um piano onde pretendo compor algumas coisas, levei um cavalete, meus discos e levei a minha paz que, juntamente com a de Carlos, nos faz pensar num pra sempre. Jayminho hoje tem dezessete anos, é bonito, rico, canta, toca violão, pinta, é bacana e um ser humano maravilhoso, que muito me ajudou no encontro dessa paz que hoje em dia é a minha constante. 122

E se às vezes derramo o caldo, ele é quente, mas não mais fervendo. E isso aí, bicho! Rio, novembro de 73"

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"Eu não me lembro de ter guardado rancor de ninguempormais de 24 horas.

No princípio dos anos 70, a televisão brasileira não tinha equipamento portátil de VT. Para fazer as reportagens do programa, Flávio comprou uma Rolair NPR, uma câmera de cinema de I6mm, que trabalhava acoplada a um gravador Nagra. Contratou uma equipe de cinema - Paulo Martins, Antônio César e Samuel Lucas - que fazia reportagens como se fossem curtas-metragens. Os filmes tinham que ser revelados, editados e só então exibidos na TV Tupi através de um equipamento chamado Telecine.

EI Amúsica foi um dos elementos de maior importância nos programas que Flávio Cavalcanti criou e apresentou ao longo da vida. Em 1970, na Tupi, três dos artistas de maior sucesso na época eram seus contratados com exclusividade. Um deles era Wilson Simonal. Hoje é impossível encontrar um artista que tenha tido tanto sucesso e prestígio quanto Simonal no final dos anos 60, início de 70. Ele não era sertanejo, tampouco brega ou MPB. Criara um estilo, um movimento, uma marca que vendia milhares de discos, faturava alto com os shows que fazia no Brasil e exterior. Apresentava programas de televisão, era capa de revistas e chegara a lançar um bonequinho de pano, o Mug, que virou mania nacional. Superafinado, com muito balanço e um repertório popular onde interpretava as canções mais simples de forma sofisticada, Simonal além de tudo era o rei da simpatia. Vestia-se com a maior elegância, era recebido nas festas mais fechadas da sociedade e tinha um Mercedes Benz branco, novinho em folha. As críticas que lhe eram feitas traziam sempre um ponto de inveja e preconceito: ele era um negro bem-sucedido. Voou mais alto do que o melhor sonho que um garoto pobre pode ter ao se tomar cantor. Filho de dona Maria, uma empregada doméstica semi-alfabetizada, começou, como muitos cantores, em um programa de calouros, o de Ary Barroso, aos dezessete anos. Sua apresentação mereceu um raro elogio do exigente compositor. Aos dezoito foi servir ao Exército, no 89 Grupo de Artilharia de Costa Motorizada, 127

no Leblon, e lá surgiu a oportunidade de mostrar seus dotes vocais ao fazer um show de improviso, onde imitava Agostinho dos Santos e Harry Belafonte, cantores negros como ele. Dois anos depois, ao deixar o Exército, entrou para um conjunto de rock liderado por Sérgio Riff. O grupo se reunia na casa de Riff, no Leblon, e uma noite Carlos Imperial foi lá ouvir os novatos. Imperial tinha dois programas de televisão: Os Brotos Comandam, na TV Continental, e Festival de Brotos, na TV Tupi. O suingue do crooner conquistou Imperial, que o levou para a TV e depois para gravar um compacto na Odeon, com o Chá-Chá-Chá Terezinha. O chá-chá-chá era o ritmo do início dos anos 60, e a música foi feita por Imperial para sua namorada Tereza. A letra era assim: "Terezinha,/todo dia,/dança o chá-chá-chá,/dança, menina, dan ça,Ibalança o corpo/que eu quero ver..." Uma bobagem, mas, como o ritmo estava no auge, a música estourou nas paradas. Surgiram então os convites para shows, e outros tantos LPs se seguiram, numa sucessão de hits. Aos 32 anos de idade, Simonal chegava ao auge de sua carreira. Gravara três maravilhosos LPs de bossa nova e, sob orientação de Imperial, lançou a "pilantragem", com a música Nem Vem que Não Tem. Era um samba mais arrastado, cadenciado. Surgia assim um novo estilo musical na MPB. Simonal estava de volta ao Rio, depois de uma temporada em São Paulo onde apresentava um programa de TV. Morava em Ipanema, numa belíssima cobertura, e estava muito bem casado com a Terezinha do chá-chá-chá. Em 69, fez uma apresentação que literalmente balançou o Maracanãzinho. Simonal era presidente do júri do Festival Internacional da Canção, e fora contratado para fazer o show da noite final. Uma de suas características como showman era manter domínio total sobre o público, e naquela noite não foi diferente. Dividiu a platéia em duas vozes, como num gigantesco coral, e "regeu" vinte mil pessoas cantando Meu Limão, Meu Limoeiro e Patropi. Um espetáculo inesquecível e jamais repetido por qualquer outro artista. Era muito sucesso para um homem só. Domingos de Oliveira, o cineasta mais in do momento, dirigiu no final de 69 o filme É Simonal, uma produção de Carlos Thiré, tendo como ator principal o próprio cantor e um elenco formado por Maria Gladys, Oduvaldo 128

Viana Filho, Vanda Stefânia, Irma Álvarez, entre outros artistas consagrados. Em 70, Simonal foi contratado como garoto-propaganda da Shell, para uma grande campanha publicitária. Estava na telinha da 1V o dia todo, os postos de gasolina estampavam o seu sorriso em enormes cartazes e a companhia de petróleo patrocinava seus shows. Simonal tinha trabalhado com os melhores empresários do país mas, julgando-se auto-suficiente, resolveu criar a sua própria agência, para administrar sua carreira e seus bens. Para cuidar de tudo isso convidou Rui Brizola, um misto de empresário e administrador. Tomou-se assim o primeiro artista a se auto-empresariar, montando um sofisticado escritóriô todo branco, muito bem decorado e aparelhado, na Avenida Princesa Isabel 150, em Copacabana. Para cuidar da parte financeira, indicado por Rui Brizola, Simonal contratou o contador Raphael Viviani, paulista que já havia trabalhado em bancos. Viviani veio morar no Rio e durante quatro meses ficou no Hotel Plaza, em frente ao escritório de Simonal, com todas as despesas pagas. Com a indicação de Brizola, o cantor não se preocupou em investigar o passado do contador e, como estava sempre viajando com shows, envolvido com muitas festas, entrevistas, numa vida como nos melhores tempos de Hollywood, acabou relaxando no controle de seus negócios. Um dia o sonho virou pesadelo. O gerente do banco telefonou avisando que havia um problema com a conta corrente da empresa, um rombo muito grande, e tudo levava a crer que o contador estava desviando dinheiro. Estávamos em 1971, num clima político explosivo, vivendo em cima de um barril de pólvora. Qualquer coisinha era motivo para especulações, distorções, divagações e patrulhamento ideológico. A popularidade de Simonal incomodava tanto a esquerda quanto a direita. Ele achava difícil ser um negro bem-sucedido, resumindo o racismo brasileiro com a seguinte frase: "Em lugar onde preto pobre não entra, branco pobre também não entra." Simonal acreditava ter amigos em todas as áreas. Ao saber do desvio de seu dinheiro, em vez de ir à polícia fazer uma queixa contra o contador, pediu a uns amigos policiais, entre eles o inspetor Mário Borges, que nas horas vagas fazia sua segurança 129

pessoal, que fizessem a averiguação. No dia 24 de agosto de 1971 os policiais saíram em busca do contador no próprio carro do artista, dirigido por seu motorista, Luiz llogti. Já passava das dez da noite quando chegaram no prédio em que Viviani morava, na Rua Barata Ribeiro, em Copacabana. Chamaram Viviani pelo interfone e o levaram para o DOPS - Departamento de Ordem Política e Social—, a fim de prestar depoimento sobre o desfalque dado na empresa de Simonal. O motorista Luiz llogti deixou-os no DOPS, na Rua da Relação, no Centro do Rio, e foi para casa, esperando o aviso para buscá-los. Algumas horas depois recebeu um telefonema avisando que o depoimento iria se prolongar e que ele não deveria voltar. O depoimento durou a noite toda. A mulher de Viviani viu quando o marido foi levado e identificou o motorista do cantor. O dia amanheceu sem Viviani chegar em casa, e sua mulher foi à 13! Delegacia de Polícia dar queixa de que Simonal seqüestrara seu marido. Ilogti não pôde afirmar se Viviani foi torturado, pois não assistiu ao depoimento, mas o contador declarou ter sofrido os mesmos métodos de tortura utilizados pelo regime militar, até confessar o roubo. Em pouco tempo o assunto chegou ao conhecimento da imprensa. O que seria um caso policial se transformou num escândalo político. A partir daí foi aberto um inquérito contra o inspetor Mário Borges, acusado de seqüestrar o contador e, sob coação física, tê-lo feito assinar uma confissão de desfalque contra a firma do cantor. Segundo Simonal, Mário Borges, para livrar-se do processo e justificar o fato de trabalhar como segurança pessoal do cantor, acusou-o de ser informante do DOPS. Com isso o cantor foi arrolado no processo, acusado de seqüestrar e torturar o contador com a ajuda de informantes do DOPS. O caso tomou proporções enormes, atingindo drasticamente a carreira do artista. O mundo desabou para Simonal. Sua gravadora, a Philips, hoje Polygram, rescindiu o contrato alegando estar sofrendo pressões dos outros artistas. Passou a ser responsabilizado por todos os artistas, jornalistas e políticos perseguidos e torturados. Problema policial à parte, Simonal estava sendo vítima de uma sórdida campanha de difamação e boicote a uma carreira bem-sucedida. As portas foram se fechando. As casas noturnas lhe davam espaço, mas a imprensa evitava divulgar seus shows. Flávio Caval130

canil, ao contrário, continuava tratando o cantor como superastro, convidando-o todos os meses para o programa. Isso lhe garantia a presença na mídia eletrônica no momento em que seus discos eram retirados da programação de diversas rádios. Ojornalista João Luiz Albuquerque lembra que nessa época estava fazendo uma entrevista com Simonal e, para continuar o papo, foram jantar no Mario's, um restaurante muito badalado na época no Leblon. Na mesa em frente havia alguns jornalistas e intelectuais, que começaram a provocar o cantor com piadinhas. Simonal resistiu o quanto pôde, mas em determinado momento virou-se para o grupo e falou: "A diferença entre nós é que eu sou negro, rico, e não tenho compromisso com a esquerda nem com a direita." No final de 1973, a barra estava ainda mais pesada. Flávio, sempre amigo de Simonal, passou a ser também seu compadre. Numa cerimônia muito simples, na igreja São Paulo Apóstolo, em Copacabana, Frei Memória batizou Max,o filho caçula do cantor, junto com meu filho, Bernardo. Algumas semanas depois a família Simonal deixava o Rio para morar em São Paulo. Após a mudança, uma "mágica" qualquer do destino impediu que chegasse até ao cantor e seu advogado a comunicação sobre o julgamento em que Mário Borges o acusava de "delação". A partir daí o processo começou a correr à revelia. Num julgamento posterior, o assistente de acusação, Dr. Jorge Alberto Romeiro Jr., perguntou ao inspetor Vasconcelos, superior de Borges, se o cantor tinha algum envolvi mento com o órgão. A resposta foi negativa. Este fato não foi divulgado na época, e o cantor continuava a ser tratado como o maior torturador do século. Em novembro de 1974, Wilson Simonal foi julgado à revelia, sob a acusação de extorsão mediante seqüestro. Foi obrigado a cumprir cinco anos e quatro meses de prisão, sendo um ano em colônia agrícola. No dia 12 de novembro ele foi preso em São Paulo e levado ao presídio de Agua Santa, num subúrbio do Rio, onde permaneceu por doze dias, enquanto seu advogado conseguia liberdade provisória até um novo julgamento. Em seu segundo dia de prisão uma notícia trouxe uma dor ainda maior. A morte do amigo, meio-irmão, Erlon Chaves. Em novo julgamento, o juiz Mena Barreto desqualificou o seqüestro e o condenou a seis meses de detenção, que poderiam ser 131

cumpridos em liberdade por ser ele réu primário. Sua vida, no entanto, estava totalmente destruída. Simonal perdeu tudo o que havia conquistado, o sucesso, o prestígio, os bens materiais. Entrou em decadência, foi despejado da mansão onde morava em São Paulo, e sua mulher Tereza, profundamente estressada, passou longos períodos internada para tratamento médico. Em maio de 1992 reencontrei Simonal. Acabara de mudar para um apartamento perto do Ibirapuera, em São Paulo, e estava terminando de arrumar a casa. Convalescia de uma hepatite, tossia muito, a respiração era ofegante, e dizia estar muito cansado. Não fazia shows há dois meses, e contou que começou a sentir esses sintomas numa temporada no México. Nessa turnê, fazia dois shows por noite, sentia muito calor, transpirava demais, não tinha apetite e entre uma apresentação e outra ia para o hotel descansar. Contou também que estava bebendo mais do que o normal, o que afetara o fígado e a vesícula. Como estava se alimentando muito mal, acabou anêmico, e tudo isso gerou uma hepatite. Esse encontro com Simonal foi para mim como uma viagem ao tempo. Em sua casa, ao lado do sofá forrado de couro verde, havia uma mesa repleta de porta-retratos com fotos amarelecidas relembrando sua época de sucesso. Apesar do rosto envelhecido e do cabelo grisalho, Simonal mantinha o charme do tempo em que era o primeiro da música brasileira. Falava com as mesmas gírias, repetia o sorriso de canto nos lábios e sonhava com um grande espetáculo onde pudesse reviver uma cena do Circo - show apresentado no Canecão em 1973 -, onde surgia no palco com o rosto pintado de palhaço. Simonal não se incomodava em falar do passado. Acreditava que nos meios de comunicação algumas pessoas o julgavam um mau-caráter, mas estava certo de que a grande maioria embarcara nessa onda para ficar de bem com a classe. Lembrava de que antes do caso Viviani, quando viajava ao exterior, trazia cartas de exilados para suas famílias e também assinou muitas listas dando dinheiro para auxiliar presos políticos, apesar de não ter uma posição política formada. Só muitos anos depois soube, através de amigos, que o dinheiro desviado por Viviani era repassado a Dulce Maia, irmã do publicitário Carlito Maia, conhecida militante de esquerda, com o objetivo de financiar guerrilhas. Acreditava ter 132

sido vítima do macarthismo da esquerda festiva, do racismo e da inveja. Sentiu-se atirado vivo aos leões quando o jornal Pasquim publicou na capa um dedo enorme, a imagem do dedo-duro, onde estava escrito seu nome. Não gostava de falar sobre o mal que tudo isso provocara à sua carreira e à sua família, e às vezes chegava a imaginar como estaria se nada disso tivesse acontecido. Apesar de ter feito carreira no mercado internacional, como México, França, Argentina e Chile, onde continuou sendo aplaudido e respeitado, jamais se recuperou financeiramente. Mora com Tereza e os dois filhos menores, Patrícia e Maximiano, num apartamento alugado. O filho mais velho, Simoninha, trabalha com João Marcelo, filho de Elis Regina, num estúdio de som e mora sozinho. Sem trabalhar há meses, Simonal conta com a ajuda de muitos amigos, entre eles seu antigo empresário Marcos Lázaro. Mas os fantasmas ainda o perseguem. Fez questão de conseguir um habeas data, um documento oficial da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, datado de 28 de agosto de 1991, que nega a sua colaboração para qualquer órgão de repressão, seja DOPS ou SNI. Esta simples folha de papel, entretanto, não foi suficiente para apagar as mágoas dos 22 anos em que foi perseguido e boicotado. Simonal ainda sonha em ser o mesmo artista popular, como na década de 60.

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"É uma coisa incrível! O público põe em minhas mãos uma enorme responsabilidade. É como se eufosse opai de toda essa gente."

Flávio tinha horror a pessoas chatas, aquelas que falam cutucando, explicam demais, cospem no interlocutor etc. Conseguia distinguir os chatos e, um dia, resolveu se divertir, convidando todos para um almoço em sua casa. Riu demais com a facilidade com que chatos, desconhecidos entre si, confraternizavam, trocavam tapinhas nas costas, contavam velhas piadas e relatavam com os mínimos detalhes as histórias mais sem graça. O almoço foi um sucesso, e até hoje esse grupo não sabe que naquele dia estava sendo fundado o Clube dos Chatos.

19 Em 1972, Flávio ganhava cada vez mais audiência para a Tupi, e por isso a Globo tentava segurar seu público com os programa de Silvio Santos e Chacrinha. A Censura, no entanto, começava a apertar todos os veículos de comunicação, atingindo até a Globo. No livro Campeão de Audiência, Walter Clark conta que nessa época foi procurado por três coronéis que, em nome de um general, pediam que o programa do Chacrinha fosse tirado do ar. Achavam uma indignidade Chacrinha jogando bacalhau para o povo em horário nobre enquanto Amaral Netto, que mostrava assuntos considerados culturais, como a pororoca do rio Amazonas e reportagens sobre o Brasil grande, só fosse visto depois das dez da noite. A Globo não topou a troca de horário. Nem Chacrinha, nem Amaral Netto. Em vez disso foi criado um novo programa, Só o Amor Constrói, uma espécie de Esta É a Sua Vida. Dirigido e produzido por Augusto César Vanucci, com entrevistas de Mansa Raja Gabaglia (ex-jurada de Flávio), era um turbilhão de lágrimas e emoções. A cada domingo alguém contava a sua vida, geralmente pessoas famosas, como atores das novelas da Globo que estavam em evidência. Com muitos recursos técnicos, usando e abusando das gravações de externa, o programa fez muito sucesso e começou a ameaçar a nossa audiência. * O Velho Guerreiro, a essa altura, se transferira para a Tupi. As quartas-feiras apresentava a Discoteca do Chacrinha e, aos sábados, os calouros, na Buzina do Chacrinha. Não mais concorrente, agora aliado. 137

Os convites para Flávio e Eduardo Sidney, diretor do programa, comparecerem ao Exército ficavam cada vez mais assíduos. Os dois eram geralmente recebidos por coronéis que, em nome da moral e da família, davam uma bronca. Mas na saída vinha o comentário: "Minha mulher adora o seu programa" ou "Que bom o musical do último domingo." As visitas se tomaram tão freqüentes que o apresentador fez um acordo com o diretor do programa e avisou os militares: era o único responsável pelo "Fora de Script": por isso ninguém mais poderia ser chamado a dar explicações. Estava ficando cada vez mais difícil fazer o "Fora de Script". Toda semana havia advertências da Censura, do Exército, e do próprio condomínio associado que comandava a Tupi. Flávio sempre dava um jeito de contornar os problemas, encontrar uma solução, mas o seu jeito impulsivo fazia com que perdesse as estribeiras com o programa no ar e chamasse a atenção do então ministro Delfim Netto. Confesso que não lembro bem qual era o motivo, apenas que, lá pelas tantas, o apresentador se excedeu e encerrou o discurso com um desafio: "Isso não vai ficar assim!" E não ficou mesmo. Enquanto a classe média vibrava e a esquerda repudiava, Flávio ia incomodando o sistema. Nesse ano de 1972 fomos a Fortaleza fazer um show para a obra assistencial de Frei Memória, no bairro do Pirambu. Era um bairro muito pobre, onde havia uma grande área de prostituição. As meninas eram iniciadas aos doze anos e aos dezoito já estavam sem trabalho por serem consideradas velhas. Flávio conheceu Frei Memória, uma figura muita doce, através de amigos comuns. Ao tomar conhecimento da obra que vinha desenvolvendo, da miséria e da pobreza do Pirambu, convidou-o a participar dojúri, como uma forma de iniciar uma campanha para ajudar a obra. O show que fomos fazer em Fortaleza tinha como objetivo levantar fundos para a construção de uma escola profissionalizante, com máquinas de costura e uma pequena cozinha industrial para que as prostitutas tivessem uma outra profissão quando "envelhecessem". Essa distorção me tocou ainda mais. Viajamos com os jurados e, por medida de segurança, para driblar os fãs, fomos aconselhados a chegar de madrugada. Esperávamos encontrar a cidade dormindo e nos deparamos, às três da 138

manhã, com o aeroporto lotado. Mais de cinco mil pessoas esperavam o "Senhor dos Domingos", enquanto o Corpo de Bombeiros e a polícia tentavam controlar a multidão. Uma confusão enorme. Em meio àquela zorra, uma cena me tocou profundamente. Eu estava grávida, e vi uma mulher furando o cerco de segurança e correndo até Flávio com um bebê no colo. Queria que o apresentador segurasse a criança e a abençoasse. Esse era o retrato do Brasil oprimido, onde o povo transformava em deus um apresentador de televisão. Jamais conversei com Flávio sobre esse assunto, mas sei que ele tinha total consciência de sua força. Fora longe demais. Sei que não queria ser um herói, apenas ter o direito de falar livremente. No entanto, a forma enfática de se comunicar, as atitudes ao defender amigos que eram perseguidos foram pouco a pouco minando sua imagem junto ao governo, que tentava impedir o surgimento de qualquer liderança. Não importava se era de esquerda ou de direita, ninguém tinha o direito de mobilizar o povo daquela forma. A Censura estava cada vez mais atuante, bisbilhotando a vida de Flávio. Durante seis meses, um suposto fiscal do Ministério da Fazenda fez plantão em nosso escritório. Com um pedido para verificar documentos do Imposto de Renda da TV Estúdio Produções, empresa que produzia o programa, o "fiscal" chegava às nove da manhã e saía às sete da noite. Gilda Müller, jornalista, comadre de Flávio e gerente da empresa, e Vilma Ribeiro, contadora, foram incansáveis em fornecer dados e mais dados que nunca satisfaziam o tal "fiscal". Esgotadas, o único jeito de se livrar dele foi transferir os livros de contabilidade para o escritório do advogado de Flávio, Dr. João Marcos Ávila da Costa. Em menos de um mês o fiscal desapareceu. Nessa época o escritório se mudara para uma casa maior, com três andares, na mesma rua, a Cândido Gaffrée, na Urca. A produção ocupava o térreo, Flávio, o segundo andar e a contabilidade, o terceiro. Nosso sistema de telefones era muito simples: duas ou três linhas conectadas a uma pequena mesa, mais uma linha exclusiva para o apresentador. Instalar um sistema de escuta era muito fácil, e durante muito tempo desconfiamos de que as nossas linhas estavam grampeadas. Bem-humorada, Gilda MülIer, todos os dias, cumprimentava a escuta quando chegava ao escritório. Nada se 139

provava, mas tudo se percebia. Não vivíamos de forma paranóica essa situação, talvez até porque a força popular de Flávio era muito grande e acreditávamos que nada poderia nos abalar. Doce ingenuidade! Nossos dias estavam contados.

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"Desejo que o público continue presente no meu auditório, já que nunca prejudicou nenhum programa."

A casa onde Flávio morava em Petrópolis acabou se transformando em ponto turístico. Paravam ônibus trazendo curiosos em conhecer o famoso viveiro, a entrada era permitida, mas o apresentador se refugiava em casa para não ser visto. Um dia, olhando os visitantes através de uma janela, encantou-se com uma velhinha que estava em seu jardim e foi lhe servir de cicerone. Depois de ter mostrado a adega, a capela e o viveiro, convidou-a para entrar na casa. A velhinha, ao ver o quadro de uma paisagem bucólica na parede, começou a chorar, pois, por incrível coincidência, ela era Edith Blanc, a autora da obra

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início da década de 70, a imprensa e as chamadas "patrulhas" políticas e ideológicas cobravam da televisão uma postura cultural. Mas não foi por esse motivo que Flávio criou o "Repórter da História". Este quadro do Programa Flávio Cavalcanti surgiu de uma conversa com Amara! Netto, que como hobby colecionava notícias do tempo do Império, além de jornais que documentavam a história do Brasil. Amaral contava para Flávio passagens muito interessantes da história mundial que não constavam dos livros escolares, e, com a assessoria técnica do historiador Jaime Coelho e do estudioso Gustavo Barroso, foi estruturado o quadro que mais tarde acabou se transformando em dois discos. Ele consistia em "entrevistas" com figuras históricas, e trouxe para a televisão um visual inédito. Com base em pesquisas, eram redigidas as entrevistas, onde, além das perguntas tradicionais (data e local de nascimento, filiação), eram perguntados fatos pouco divulgados de cada personalidade da história. Por exemplo: quando o Brasil foi descoberto era uma quarta-feira, Cabral tinha 31 anos e era solteiro. A produção tratava de convidar artistas que tivessem alguma semelhança física com o personagem focalizado, e o figurinista e o maquiador se incumbiam do resto. Assim, Perry SalIes foi Jesus Cristo, Pedro 1 e São Jorge; Jaime Barceilos viveu Assis Chateaubriand; Suely Franco foi Carmen Miranda; Rubens de Falco foi Pedro Alvares Cabra! e Tiradentes; Isabel Ribeiro foi Cleópatra; Cláudio Corrêa e Castro reviveu D. João VI; e Aurimar Rocha fez uma entrevista polêmica como Hitler; entre outros. 143

Esse quadro, assim como a presença de Jacques Klein, Isaac Karabtchevsky e outros músicos eruditos no programa, não afastava a Censura. Mesmo com a exigência do Departamento de Censura de Diversões Públicas em analisar o scrip: 72 horas antes de o Programa Flávio Cavalcanti ir ao ar e só então liberá-lo, tínhamos todos os domingos, sentado na primeira fila do auditório, um censor de plantão. Anotava item por item do programa e no dia seguinte fazia o julgamento, enviando um relatório ao Ministério da Justiça. Sempre tive a impressão de que esses pareceres da Censura eram escritos de forma muito pessoal. Em junho de 1992, tive acesso a alguns deles, hoje no Arquivo Nacional, em Brasília, e pude constatar que o raciocínio dos censores era limitado, suas posições eram fantasiosas, chegando, muitas vezes, às raias do ridículo. Como exemplo, no programa do dia 15 de outubro de 1972, entre as atrações musicais estava a grande dama dojazz americano, a cantora Sarah Vaughan, além de Peri Ribeiro, Tony Tornado, Cláudia e Agnaldo Timóteo. Eram também convidados o escritor Leon Eliachar e o médico Benedito Mário Mourão, e o ator José Lewgoy vivia Santos Dumont no quadro "Repórter da História". Sobre este programa o censor se deteve na atuação de Maria Luiza Imperial, filha do compositor Carlos Imperial, integrante do júri jovem, e enviou o seguinte parecer: "Apesar da advertência feita à direção do programa em relação às atitudes da menor Maria Luiza Imperial nas suas críticas, o que tem causado grande mal-estar entre os telespectadores do referido programa, me parece que tudo voltou à estaca zero, pois a jovem Imperial, no último programa, domingo próximo passado, novamente com suas críticas mordazes criou situações com o júri da velha guarda, chegando ao ponto de cantora Linda Batista, fora de si, nervosa e descontrolada, quase, quase mesmo, falar coisas em desacordo com as normas aceitáveis para o horário. Parece-me que a douta Chefia deveria,junto à direção geral da Tupi, solicitar ao Sr. Flávio Cavalcanti a retirada da menor Maria Luiza Imperial, que tem sido, até o momento, uma imagem negativa para os jovens que assistem ao programa em questão." 144

O programa, apesar de ser ao vivo, era gravado em vídeo por solicitação da Censura. Ainda em 1972, no dia 12 de dezembro, o relatório enviado ao Ministério da Justiça tinha a seguinte observação: "O Sr. Flávio Cavalcanti em dado momento do programa, em tom veemente e notadamente nervoso, renotadamente nervoso, recriminou uma reportagem do Jornal do Brasil que o envolvia num suposto Livro de Ouro para a construção de um hospital para viciados, juntamente com o conhecido detetive Nélson Duarte. Depois de chamar de covardes os autores da reportagem e visivelmente irritado, declarou ser amigo sim de Nélson Duarte, perguntando ainda por que os que o atacaram no jornal 'não metiam opau no governo', não sabendo com que intenção, digo, não sabendo este censor com que intenção foi feita a alusão acima grifada. Esta parte deverá ser cortada para a liberação do programa, devendo porém ser guardada até posterior deliberação da Censura. Fatos como estes não podem ser evitados pelos censores, pois o programa é ao vivo, não constam do roteiro, e são ditos com inteira responsabilidade dos donos dos programas, que se dizem jornalistas também, como o caso em tela." Esses comentários fora de script feitos por Flávio Cavalcanti causavam um grande problema com a Censura, principalmente quando fazia alguma referência ao governo. Os teipes do programa eram guardados como provas, e pior do que isso era o clima cada vez mais tenso que ficava entre o apresentador e a Censura, acirrando uma luta sem tréguas.

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"Não gosto de ver ninguém passivo na minhafrente."

Flávio tinha um carinho todo especial pela APAE, e em 1972, quando fazia o programa Flávio Especial em São Paulo, foi convidado a organizar a barraca do Rio de Janeiro na Feira da Bondade, que anualmente acontecia no Ibirapuera. Todos os jurados e amigos colaboraram, e no dia da inauguração o apresentador levou Roberto Carlos para prestigiar sua barraca. O sucesso foi tanto que, depois de ter vendido todos os produtos, e até mesmo autógrafos, eles foram ajudar a vender o que restava nas outras barracas.

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Canções Medalha de. Ouro" foi um quadro lançado no programa em 1972. Flávio passava dias ouvindo discos e selecionando as melhores músicas do ano para apresentar a cada domingo no programa. Os jurados iam fazendo uma seleção e no final as dez mais votadas eram gravadas num LP pela Polygram. Os arranjos eram do maestro francês Paul Mauriat e do brasileiro Erlon Chaves, e a produção, de Armando Pitigliani. As semanas que antecediam a final eram deliciosas, um festival de boa música e bons intérpretes no palco. Ao selecionar as músicas, Flávio não levava em conta se o compositor gostava dele ou não. Era o caso de Chico Buarque. Em 1965, em Um Instante, Maestro!, Flávio apresentou Chico pela primeira vez na televisão. Ele nunca tinha gravado e foi anunciado como o filho do historiador Sérgio Buarque de Holanda. Tímido, acompanhando-se ao violão, Chico cantou Pedro Pedreiro. Os anos se passaram, a Censura ficou de olho em Pedro Pedreiro e outras composições que julgava de protesto, e o compositor deixou de gostar do apresentador. Mas a recíproca não foi verdadeira. As músicas de Chico Buarque continuaram a ser prestigiadas e aplaudidas no programa. Para Flávio, o motivo era muito simples: o rapaz era um grande poeta e compositor, e isso estava acima de qualquer divergência. Houve uma época em que Tom Jobim também andou magoado com Flávio. O apresentador conseguiu levá-lo ao programa para 149

desfazer o mal-entendido. Esta era a sua maneira de conduzir a vida profissional, sem deixar que as rivalidades o influenciassem a ponto de não saber mais distinguir quem realmente tinha valor. O primeiro LP Canções Medalha de Ouro vendeu cem mil cópias. Hoje isso equivaleria a um milhão de discos vendidos, levando-se em conta o mercado consumidor da época. De um lado do disco Paul Mauriat assinava arranjos e regência das músicas Casa no Campo, de Zé Rodrix e Tavito; Presepada, de Antônio Carlos e Jocafi; Naquela Mesa, de Sérgio Bittencourt; Viagem, de Paulo César Pinheiro e João de Aquino, e Amada Amante, de Roberto e Erasmo Carlos. Do outro lado, Erlon Chaves apresentava Dona Chica, de Dorival Caymmi; Construção, de Chico Buarque; Testamento, de Vinicius e Toquinho; Como Dois e Dois, de Caetano Veloso, e Águas de Março, de Tom Jobim. Foi um lançamento memorável. Uma semana antes de o maestro francês chegar ao Brasil, as dez canções selecionadas foram apresentadas no programa com seus intérpretes originais, entre eles Elis Regina, Mansa Gata Mansa, Dorival Caymmi, Roberto Carlos e Elizeth Cardoso. A programação incluía também a presença de Vinicius de Moraes, que morava em Salvador. Tudo acertado, na manhã de domingo ficamos sabendo que Vinicius não viria. Brigara com Jesse, sua mulher, e não queria sair de Itapuã. Flávio ficou irritado, não se conformou. Mandou Flavinho, seu filho, alugar um jatinho e ir a Salvador buscar o poetinha. Assim foi feito. Na hora do programa, Vinicius entrou no palco, copo de uísque na mão, curtindo sua dor-de-cotovelo, mas o anunciado foi cumprido. Mas não apenas os artistas consagrados tinham vez. Dando continuidade ao programa A Grande Chance, foi criado em 72 o MIT - Mercado Internacional do Talento, que tinha como objetivo escolher um grande cantor que, além de ganhar mil dólares e gravar um disco, seria empresariado por Marcos Lázaro, o maior empresário de artistas daquela época, que o levaria para apresentações no exterior. As inscrições para o MIT eram feitas às segundas-feiras, na garagem do escritório. Carminha Mascarenhas e Antônio Belio faziam a seleção, enquanto o maestro Anselmo Mazzoni ficava no piano dando o tom e acompanhando os candidatos. A fila dos calouros era enorme, e começava cedo. Uma tarde eu estava trabalhando quando uma voz afinadíssima, com um

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supersuingue, chega até minha saia, que ficava nos fundos. Abri a janela e pedi para Carminha me mostrar o cantor. Era Emílio Santiago, na época um cantor da noite. Emilio chegou até a final, foi o segundo colocado, perdendo por um ponto para Afiton Tobias de Andrade. O terceiro lugar ficou com Luiz Antônio, que hoje faz carreira na França. Segundo os comentários da época, esta final do MIl', realizada no Teatro Municipal do Rio em 18 de junho de 72, teve dois méritos. O primeiro, por abrir um espaço restrito à música erudita a um público que jamais entrara naquele teatro; e o segundo, por ter conquistado uma superaudiência. Além dos concorrentes, houve shows de Juca Chaves e de Elis Regina. Este último, por sinal, antológico. Elis acabara de se separar de Ronaldo Bôscoli, que fazia parte do júri e entrou com a corda toda. Ela cantava uma música cujo refrão dizia "quá quará quá quá quem riu, quá quará quá quá fui eu" e olhava para o ex-marido, que afogava sua dor-de-cotovelo num copo de uísque.

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"Não deixo que rivalidades escureçam minha vista a ponto de não saber mais distinguir quem tem realmente valor."

Ainda nos tempos da TV Rio, Flávio foi fazer uma reportagem sobre as carrocinhas que pegavam cachorros na rua, e, sensibilizado com a forma como os animais eram tratados, salvou uma cadelinha vira-lata, levando-a para casa. TV era o nome da cadelinha, que acabou morrendo muito anos depois de ter dado várias crias. Quando Flávio fez 50 anos, a equipe de produção do programa se cotizou e lhe deu de presente um casal de pastores-alemães, batizados de Jacqueime e Onassis, em homenagem à ex-primeira-dama americana e ao armador grego. Para manter o clima de love story e fazer companhia a Jackie e Onassis, Flávio comprou mais um casal, que receberam os nomes de Sara e Juscelino.

22 A0 lado de Simonal e Roberto Carlos, Elis Regina era atração fixa do Programa Flávio Cavalcanti. Uma vez por mês, lá estava a baixinha no palco da Tupi com toda aquela emoção visceral, voz afinadíssima, forma única de divisão rítmica e um perfeito equilíbrio entre a técnica e a sensibilidade. Elis já era a mais importante cantora brasileira. Apresentava-se nos melhores palcos do mundo e, na televisão, com exclusividade para o nosso programa. Fazia turnês pelo exterior, e em 1969, junto com Roberto Menescal, percorreu alguns países da Europa, com muito sucesso. Mas, em entrevista a um jornal holandês, baixou malhação no regime político do Brasil, chamando, inclusive, os militares de "gorilas". Quando voltou o circo já estava armado. Através de Armando Nogueira, diretor de jornalismo da TV Globo, soube que o pessoal do Exército estava querendo ter uma conversinha com ela. Os militares foram informados sobre suas declarações no exterior e não gostaram nem um pouquinho. Elis não tinha contrato com a Globo, apenas uma relação profissional, mas era comum naquela época todos se ajudarem em casos como esse. Por isso ela foi depor no CIE - Centro de Informações do Exército acompanhada do jornalista Aníbal Ribeiro, assessor de Walter Clark, então diretor geral da TV Globo. O jornalista não teve acesso ao local do depoimento e contou apenas que o encontro foi rápido. A cantora saiu comentando que havia sido bem-tratada, mas não entrou em detalhes. Para Ronaldo 155

Bôscoli, seu marido na época, no entanto, contou que levara um aperto, que lhe tinham sugerido uma temporada fora do país e que diante disso resolveu não mais criticar o regime. Aperto ou não, Elis passou a restringir seus comentários sobre política para as quatro paredes de casa, e dois anos depois, em 1972, cantava o Hino Nacional num show nas Olimpíadas do Exército, dentro das comemorações pelo Sesquicentenário da Independência. Elis teria participado desse show porque o cacho pedido por Marcos Lázaro, seu empresário, era muito bom, e foi aceito pelo coronel responsável pela contratação dos artistas. Antes de fechar o contrato, Marcos lembra que consultou Elis e ela lhe disse que não tinha a menor objeção em fazer essa apresentação. Pressionada ou não? Essa pergunta vai continuar sem resposta. O fato é que a história nunca foi digerida pela esquerda. A cantora passou a ser considerada simpatizante do regime e acabou sendo pichada. Nessa época, ocartunista Henfil publicava semanalmente no Pasquim o "cemitério dos mortos vivos". Eram pequenas lápides com os nomes das pessoas que considerava de direita, onde ele fazia os "enterros". Elis foi enterrada ao lado de Marília Pêra, Roberto Carlos, Pelé e outros "traidores". Até 1973, com a esquerda massacrando, Elis permaneceu como contratada do Programa Flávio Cavalcanti. Nesse mesmo ano, transferiu-se para a Globo para participar do programa Som Livre Exportação, e, aos poucos, as facções políticas foram se rendendo ao seu indubitável talento. Foi louvada, endeusada, aplaudida. Até o próprio Henfil, tempos depois, tornou-se seu amigo. Muitos anos depois, no final de outubro de 1981, Elis veio ao Rio para assinar contrato com a gravadora Som Livre e estrear o show Trem Azul. Depois de um badalado coquetel no Hotel Caesar Park, numa suíte no vigésimo andar, ela me deu uma entrevista exclusiva para o jornal O Globo. Já nos conhecíamos há muito tempo. Antes de trabalhar com Flávio, eu fizera algumas reportagens com ela, inclusive a do nascimento de João Marcelo, seu primeiro filho. Elis estava com 36 anos, três filhos, dois casamentos, e era o maior nome da música brasileira. A sua frente eu sentia um misto de culpa e constrangimento. Apesar de ter entrevistado dezenas de pessoas tão famosas quanto ela, o que me deixava assim 156

era o fato de estar envolvida emocionalmente com seu ex-marido, o pianista César Camargo Mariano, o que ela não desconhecia. César passava as noites contando detalhes do casamento com Elis, as brigas, as voltas, os filhos, os erros, e, pacientemente, eu ouvia. Aquele romance, na versão dele, eu conhecia do avesso. E Elis também sabia disso, mas em nenhum momento naquela entrevista deixou de ser sincera, inteira, corajosa; expunha seus sentimentos sem reservas. Muito agitada, falando sem parar, às vezes interrompia o discurso, ia até o quarto e voltava ainda mais acesa, com um copo de vodca na mão. Conversamos até de madrugada, e, quando fui embora, ela me levou até a porta do elevador, me deu um longo abraço e disse baixinho em meu ouvido: "Eu não sou tão ruim como dizem." Não sabíamos que aquele seria nosso último encontro e aquela sua última entrevista. No dia 19 de janeiro de 1982, quando eu morava em Nova York, soube de sua morte brusca e tumultuada. Ela não merecia ir assim. Eis alguns trechos da entrevista. "Casamento e separação: 'Não estou preocupada em fazer uma avaliação de perdas e danos, nem rescaldos de incêndio. Isso não faz o meu modelito. Viver é melhor do que sonhar, por isso eu quero é mais.' Produção de shows: 'No Brasil a aspiração é americana, mas a organização é macunaímica. Quem está no palco envolvido com o processo de criação não vê, só sabe o que está acontecendo através de informações carregadas de visões pessoais, que acabam virando um patchwork, verdadeira colcha de retalhos de tendências. O fato de ser artista e empresário faz com que o artista, muitas vezes, acabe tomando aversão pelo que está fazendo, pois sabe que no final do mês tem que pagar INPS, FGTS e outras coisas.' Cantar: 'Cantar para mim é uma coisa séria, um sacerdócio. O resto é o resto. O meu futuro é cantar, pois quando ficar velha, como a Edith Piaf, vão me colocar no palco, e esta é a única coisa que vai me restar. Até meu filho, que tem onze anos, já 157

passa noites fora de casa. Dediquei minha vida a cantar, e não tem homem, nem pai, nem mãe que me tire disso. Quem atravessar no meio para dividir ou diminuir vai ser atropelado como um trator passando por cima de uma margarida. Nada me segura quando o maestro conta quatro. Aí, danou-se! A catarse acontece, tem até vomitórios. Sábado passado chorei durante o show por causa de uma conversa que tive com minha mãe. Eu tenho o prazer de me danar e me recompor sozinha. Não preciso de muletas.' Psicanálise: 'É muita individualidade para a minha cabeça, que trabalha em mutirão, pagar três milhas por hora para falar dos meus problemas. Resolvi que nada mais me chateia, a não ser febre de menino. As pessoas ditas corretas estão frustradas por não terem um tipo de vida como a minha. A perfeição é uma meta defendida pelo goleiro, já disse Gilberto Gil, e, como não sou Waldir Peres e nem quero jogar na seleção, não estou preocupada com isso. Só quero levar adiante a minha vida sem machucar ninguém. É claro que continuo amarrando bodes e pagando caro o preço da liberdade. Tenho pânico de solidão, mas estou aprendendo a fazer mil coisas, até ajogar paciência comigo mesma. A minha lucidez me leva às raias da loucura.' Amor-próprio: 'Eu sou apenas o meu tipo inesquecível, apesar de às vezes me achar uma porcaria.' Filhos: 'O encargo de estrela é pesado, mas pior ainda é ode mãe. Eles que se virem como eu me virei. Meu pai era chefe de expedição numa companhia de vidros, minha mãe de prendas domésticas, e eu cantora. Ninguém me valeu de nada, meus filhos vão ter que se virar. Ferre-se o avião que eu não sou o piloto.' Emoção e técnica: 'Não há artista que não tenha técnica e parâmetro para obedecer até chegar a um determinado ponto num show. Ficar uma hora e meia em cima dum palco com um sapato de salto alto e o estômago dançando, se não tiver um mínimo de controle, a cabeça estoura. Quem não tiver sutileza para 158

entender que quem está ali é um ser tímido pode pensar mil coisas. Eu sou tímida, até as palhaçadas são um reflexo.' Final: 'Resultado final só quando eu acabar, e assim mesmo vou deixar testamento, mas não sei se vão me respeitar. Na verdade eu não afirmo nada em relação a ninguém: só dou o tiro, quem mata é Deus."

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"Não sou um censor, sou um censurável."

Flávio sempre gostou de sanduíches, de todos os tipos e formatos. Muitas vezes, quando estávamos viajando e chegávamos cansados no hotel, trocava o jantar por um bom sanduíche de filé. Aos 60 anos, Flávio descobriu e se apaixonou pelos sanduíches do McDonald's. Tinha mais prazer em devorá-los que uma criança, principalmente a altas horas da noite, assistindo televisão. Fazia olhar de criança, pedia com jeito, e sempre Fernanda, a caçula, saía em busca de um Big Mac para a ceia.

23 O

ano de 1973 prometia ferver em todos sentidos. Flávio começara o ano com um grande problema junto à direção da Tupi: atraso nos pagamentos. Sabíamos que os patrocinadores pagavam em dia, mas o dinheiro sumia, não chegava até a TV Estúdio Produções. Os integrantes do condomínio dos Associados recebiam seu quinhão direitinho, mas para Flávio receber a sua parte era uma choradeira desagradável. Nem na base da ameaça funcionava. O advogado do apresentador anunciou que levaria a protesto as promissórias atrasadas. O departamento financeiro da emissora ria, respondendo que assim seria melhor, pois ganhariam mais tempo para efetuar o pagamento. E o programa continuava sendo o de maior audiência da emissora, o que abria as portas para o resto da programação. Mas, como dizem os americanos, "the show must go on". Não podíamos parar. E assim continuamos fazendo o programa com a maior competência. Desde março do ano anterior estávamos na era da TV em cores, e o nosso programa tinha sido o pioneiro na Tupi. A concorrência estava acirrada, e não dava para deixar a peteca cair. Maurício Sherman, o diretor do programa, trocara a Tupi pela Globo para preparara estréia do Fantástico - O Show da Vida, e a direção do Programa Flávio Cavalcanti passara para as mãos de Wilton Franco. A relação com a Censura era cada vez mais complicada. Como 163

exemplo, no primeiro programa de 1973, que foi ao ar no dia 7 de janeiro, Flávio fez uma entrevista incrível com o radioamador Alfredo Delgado, sobrevivente de um desastre aéreo nos Andes, uma tragédia que havia comovido o país. Apresentou ainda o Quarteto em Cy cantando músicas de Sérgio Porto, entre outras atrações. Nessa época havia um quadro novo no programa, "Vai Levar ou Vai Quebrar", uma variante do Um Instante, Maestro!, cujo objetivo era analisar letras de músicas. Em relatório enviado ao Ministério da Justiça, o censor de plantão julgou dois "incidentes" surgidos no decorrer do programa: "- Ojurado Milanês, ao dar sua opinião sobre o número do cantor Serguei, disse que o mesmo ficaria muito bem se apresentado na parada de Sete de Setembro, por fazer muito barulho; - no quadro 'Vai Levar ou Vai Quebrar', o apresentador insinua que o vocábulo curitinibó não poderia ser explicado no ar, 'é onde se recebe ou dá pontapés', e o cantor Benedito Nunes, ao apresentar a canção que leva este título, usou de marcação muito acentuada, não-condizente com uma apresentação em TV." No domingo seguinte, nova queixa seguia para o Ministério da Justiça: "Cumpre informar que durante o quadro 'Vai Levar ou Vai Quebrar' o produtor e apresentador do programa disse que havia sugerido à Censura que proibisse a música Feira da Fruta, cuja letra não deveria ser divulgada por dar margem a interpretação duvidosa. Os jurados Wilton Franco e Alfredo Borba corroboraram a opinião do Sr. Flávio Cavalcanti, sendo que Alfredo Borba ainda disse ter o censor 'comido bola', examinando só a letra, como normalmente é feito, sem atentar contra o efeito fonográfico, que é dos piores. Corte na cena mencionada." O teatro, o cinema, a literatura e a música viviam num interminável conflito com a Censura. No dia 4 de fevereiro, o programa 164

anunciara o fim da guerra do Vietnã e apresentara dois cantores: o americano Chubby Cheker, lançador do twLçt, unia dança que fez muito sucesso em meados dos anos 60, e Luís Gonzaga Júnior, o Gonzaguinha, que a Censura vinha castigando desde o início da carreira. Sobre esta apresentação foi feito o seguinte parecer da Censura: "Cumpre informar que durante a apresentação de Luís Gonzaga Júnior, em Comportamento Geral, o júri levantou uma problemática sobre a música em questão, dando seu autor uma resposta não muito correta, dizendo que 'apreciava o governo Médici e suas realizações, embora não esteja de acordo com muitas delas'. Como se tratasse de um problema decorrente do imediatismo de um programa ao vivo, não dando margens a que se pudesse evitá-lo, fica a sugestão, com a devida vênia, de que o cantor em questão seja advertido para que evite pronunciamentos dessa natureza, caso surjam, em futuras apresentações, comentários sobre sua composição.,, Foi realmente a partir dessa época que a Censura passou a exercer uma pressão mais constante. No domingo, 11 de fevereiro, Flávio estava buscando uma nova forma de utilizar o satélite da Embratel que transmitia o programa, e entrevistou Émerson Fittipaldi diretamente do estúdio da TV Tupi de São Paulo. Hoje isso pode parecer simples. Mas naqueles anos, quando se aprendia a fazer transmissões por satélite, tudo era muito complicado. No mesmo programa, no quadro "Repórter da História", foi simulado o julgamento de Pôncio Pilatos, com o objetivo de desenvolver ao máximo a criatividade da equipe e conquistar mais audiência. Enquanto isso a Censura se sofisticava. Era cada vez mais raro encontrar um relatório sobre o programa isento de comentários críticos e análises incompreensíveis, mais parecendo um código entre o censor e o Ministério da Justiça. Naquele domingo a Censura cortou o quadro "De Colega para Colega", onde Flávio mostrava ao vivo um pouco dos outros programas da Tupi. O quadro apresentaria Wilza Cana e Pedro de Lana, integrantes do elenco do humorístico Balança Mas Não Cai. Assim o censor justificou a proibição: 165

1' "CORTE: quadro Pedro de Lara, a família e bons costumes, Wilza Cana, mulheres fantasiadas [biquíni] assunto narrado. Para o relator são opiniões nas quais o elemento emocional dissimulado, muitas vezes até para o interessado, determina uma seleção de fatos para tornar os que forem favoráveis ou hostis a determinado grupo ou indivíduo, representam julgamentos fossilizados." Creio ser impossível alguém explicar o que é um julgamento fossilizado. Não entro na discussão da qualidade do Programa Flávio Cavalcanti, mas nos critérios desses censores, que tinham nas mãos o poder de derrubar um sucesso conquistado com muito esforço. Penso que os censores ou eram muito inteligentes e suas análises iam além da nossa cultura mediana, ou eram profundamente ignorantes. E engraçado nos anos 90 lembrar que em 1973 a Censura chegou ao extremo de proibir o uso de biquíni no carnaval, como também a apresentação de um balé moderno de Vilma Vernont, porque ela usava um maiô cavado. Como relatava o censor, a família e os bons costumes poderiam estar ameaçados com estes atos. Era profundamente triste!

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"Não vão conseguir me calar."

Com um programa acontecendo ao vivo, o palco se transformava num caos nos poucos minutos de intervalo entre os comerciais. Muitas vezes era preciso trocar parte do cenário, preparar a orquestra, mudar a estante do apresentador de lugar, brigando contra o tempo. Como as instalações da Tupi eram precárias, foi improvisado um camarim ao lado do palco para que Flávio pudesse trocar a camisa, sempre ensopada de suor nas quatro horas de programa. No havia água corrente, e Flávio passava uma toalha umedecida no corpo e em seguida polvilhava-se com talco. Parecia uma gincana, onde tinha que tomar banho e mudar de roupa em no mais de três minutos.

24 Com todos esses problemas da Censura, continuávamos procurando dar especial atenção ao jornalismo do programa, porque, antes de qualquer coisa, Flávio se considerava um repórter. Nossa equipe tinha repórteres contratados, mas, além deles, também contávamos com a colaboração das equipes de jornalismo da Tupi e dos jornais pertencentes aor, Diários Associados, que tinham sucursais em todo o país. Durante algumas semanas, uma matéria de Minas rondou a produção. Primeiro, foi levantada por um repórter da equipe do Rio, Claudemir Brochado, mas Flávio recusou. Algumas semanas depois voltou com novo tempero, trazida por um repórter de São Paulo, Odilon Coutinho. Dessa vez, com a garantia de que o assunto seria acompanhado por um delegado autorizado pelo secretário de Segurança do estado de Minas Gerais. Diante de tantas garantias, mesmo não gostando muito do assunto, o apresentador topou. No dia 14 de março de 1973,0 Programa Flávio Cavalcanti era transmitido para dezoito estados, com cerca de dez milhões de telespectadores, e atingiu 32% de audiência quando o apresentador iniciou a entrevista que iria mudar o rumo de sua carreira. O assunto que constava do script, enviado à Censura, como de praxe, 48 horas antes do programa, resumia-se no seguinte: "O lavrador José Gonçalves Filho, semi-analfabeto, doente, e bebendo mais do que devia, resolveu emprestar sua mulher, Rita, ao pedreiro João de Almeida Coutinho, casado 169

e pai de quatro filhos. João e Rita se entenderam tão bem que José não conseguiu a mulher de volta. Rita, por sua vez, estava disposta a cuidar dos dois, e João não concordou." Este incidente familiar ocorreu em Belo Horizonte, na favela de Minérios, no bairro de Abadia, onde José, Rita e João moravam, e foi registrado pelo delegado José Eduardo de Assis, que acompanhou os três até o programa. A viagem do delegado e do trio foi autorizada pelo secretário de Segurança de Minas, coronel Odelmo Teixeira da Costa, e pelo chefe do Departamento de Investigações, delegado Prata Neto. O assunto não era muito fascinante, mas, como a reportagem já estava ali, pronta e com a liberação da Censura, Flávio resolveu colocar no ar. Antes de o programa começar, Flávio foi alertado por Mansa Urban e Maysa, integrantes do júri, de que a Censura poderia interferir, e o assunto, apesar de tolo, podia resvalar para o mundo cão. O certo é que ninguém seria capaz de prever que ali havia uma grande arapuca, a gota d'água capaz de fazer transbordar todo o ressentimento que o governo guardava do apresentador. A entrevista correu normalmente, e, quando o programa terminou, fomos jantar, como fazíamos sempre, sem termos a mais pálida idéia do que nos aguardava. No dia seguinte, 15 de março, quando o presidente Emílio Garrastazu Médici chegava ao aeroporto de Brasília para viajar ao Rio, diversas autoridades discutiam o programa da noite anterior. As nuvens negras de Brasília chegaram rapidamente ao Rio, tanto que Ibrahim Sued encerrou naquela noite o seu programa na TV Globo comentando uma possível suspensão de Flávio Cavalcanti. Na terça-feira fui cedo para o apartamento de Flávio, na Rua Paula Freitas em Copacabana. Quando estava no Rio, ele morava sozinho, e, para que se sentisse menos solitário, preparei-lhe o café da manhã. Enquanto isso, em Brasília, da tribuna do Congresso, o vice-líder da Arena, deputado Clóvis Stenzel, denunciava a entrevista considerada grotesca. Na quinta-feira às dez horas da manhã os ministros da Justiça, Alfredo Buzaid, e das Comunicações, Hygino Corsetti, acompanhados pelo diretor do Departamento de Polícia Federal, general Nilo Canepa, sentavam-se diante de um 170

aparelho retransmissor de videoteipes, numa sala da TV Nacional de Brasflia, para julgarem o apresentador. Mesmo sendo um programa ao vivo, ele tinha que ser gravado, por ordem da Censura. E, assim, lá ficaram os senhores discutindo o nosso futuro. Foi um julgamento rápido, pouco mais de uma hora. O diretor da Divisão de Censura do Departamento de Polícia• Federal, Rogério Nunes, interrompeu suas férias em Foz do Iguaçu, e às 21 horas do mesmo dia deu a sentença: sessenta dias de suspensão para o programa, para o apresentador e para o diretor Wilton Franco. Ambos ficavam proibidos de exercer qualquer atividade artística em todo o território nacional pelo mesmo período. As suspensões eram baseadas num decreto-lei de 24 de janeiro de 1946, anterior à chegada da televisão ao Brasil. Além disso, violava o artigo segundo de outro decreto, de agosto de 1961, que dizia: "Não será permitido no rádio ou na televisão programa que contenha cenas imorais, expressões indecentes, frases maliciosas, gestos irreverentes capazes de ofender os princípios da sã moral." Ora, Flávio não apresentara nenhuma cena imoral, nem disse palavrões, nem fizera gestos obscenos. Foi punido porque queriam que fosse punido, e assim funcionava a lei do autoritarismo. Esse decreto-lei, de janeiro de 46, praticamente mantinha as proibições para espetáculos determinadas durante o Estado Novo pelo DIP Departamento de Imprensa e Propaganda, em 1939, no período da ditadura de Getúlio Vargas. Aquela entrevista aprovada pela Censura, seguindo as normas de um protocolo assinado em setembro de 1970 entre as emissoras de televisão e a Polícia Federal, não tinha muito o que render. Afinal, por serem semi-analfabetos e terem pouquíssimos conhecimentos, João, José e Rita jamais poderiam fazer um discurso acalorado. Suas respostas foram monossilábicas, óbvias e ingênuas. Depois da suspensão, a Tupi decidiu não recorrer à Justiça. Em vez de ficar do lado de quem lhe garantia o melhor faturamento publicitário e o maior índice de audiência, o diretor geral da emissora, José Arrabal, fazia a seguinte declaração à revista Veja de 21 de março de 1973: "O quadro infringiu a ética, a moral e os nossos costumes. As autoridades agiram como deviam. Só estou 171

atordoado com o rigor da punição. Flávio nunca deveria ter colocado o quadro no ar." Na verdade, há muito Flávio vinha incomodando, e quem acompanhava podia perceber que os fatos dos bastidores dessa história eram bem diferentes do que o caminho que a reportagem tomou. Naquele mesmo domingo, pouco antes da fatídica entrevista, Flávio mais uma vez desobedecera à Censura tirando da sua estante de acrílico um "Fora de Script "de fazer tremer nas bases. Ele batia muito na tecla da educação, e naquele início de mês o assunto estava em pauta. Depois da Lei n2 5.692, de agosto de 1971, conhecida como Lei Passarinho, o ensino do primeiro e segundo graus sofreu modificações: o primário e o ginásio foram unificados, e o primeiro grau passou a ter oito anos; e os cursos clássico e científico viraram um só. Esta Lei, que teve efeitos a partir de 1972, não veio sozinha. Em 1973, uma portaria da Fename Fundação Nacional do Material Escolar, criou o Banco do Livro, para que os livros escolares deixassem de ser descartáveis, durassem pelo menos três anos e pudessem ser passados de irmão para irmão, permitindo com isso uma boa economia doméstica para famílias numerosas. A única exceção era para as cartilhas. Esta portaria vinha contra a Lei n2 4.024, de 1961, que dava liberdade total aos professores para adotar os livros que bem entendessem. Bem, toda essa explicação foi para chegarmos até um fato amplamente discutido pela imprensa na semana anterior à suspensão do programa: um número muito grande de professores não sabia que lei seguir, o que criou enorme confusão quanto aos livros a serem adotados. As secretarias de Educação não se manifestavam sobre o assunto, enquanto diretores e professores se queixavam da falta de orientação. Flávio foi um dos defensores da Lei Passarinho, mas acreditava que a portaria da Fename fora precipitada demais, e que só deveria vigorar a partir do ano seguinte. Para melhor retratar a situação, durante a semana fora feita uma reportagem de rua, em Copacabana, em frente a uma das maiores lojas de material escolar. Foram entrevistadas donas-de-casa que não entendiam o que era o Banco do Livro nem tampouco a portaria da Fename. Esta foi a primeira vez que trabalhei como repórter de TV e, por isso, o fato me marcou. Depois de mostrar a reportagem, Flávio não resistiu e, ao 172

encerrar o "Fora de Script", mandou um recado malcriado para o então ministro da Educação, Jarbas Passarinho, pedindo que explicasse melhor as mudanças no ensino. O discurso inflamado foi suficiente para causar um rebuliço em todo o país, principalmente porque no dia seguinte começava o ano letivo. Todos nós sabíamos que Flávio vivia um dos momentos de maior prestígio em sua carreira. Seu programa tinha um poder incrível de mobilização popular, uma audiência estrondosa, e seria capaz de provocar um movimento nacional. Comprovávamos este fato a cada semana, e o governo também sabia dessa força, e procurava abafar a sua voz. Dentro daquele regime político, qualquer tipo de liderança era tolhido antes que tomasse mais vulto. A estratégia oficial foi simples: a polêmica foi desviada para a história de José, Rita e João, e Flávio levou a pior, sendo punido por todos os "Fora de Scripi" de sua vida. Nove semanas sem Flávio, uma grande chance para a TV Globo recuperar a sua audiência aos domingos. O "Senhor dos Domingos" acabava de ser conduzido ao altar dos sacrifícios em nome da moral e dos bons costumes. Ou em nome do silêncio dos seus "Fora de Script', ao menos por um tempo.

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"Sou estourado, faço muitas coisas das quais depois me arrependo."

Entre 70 e 73, Flávio faturava tanto na televisão que perdeu a noção do dinheiro. Este caso retrata bem a situação. Certo dia, ele me pediu que comprasse duas gravatas-borboletas, pois transpirava muito durante o programa e elas logo ficavam feias. Quando entreguei as gravatas e a nota, Flávio olhou muito sério, me deu o talão de cheques e comentou: "Como as gravatas estão caras!" Achei estranho o pedido para fazer um cheque de 120 cruzeiros, pois eu acabara de colocar 3 mil em sua mala. No entanto, ao devolver o cheque para que ele assinasse, minha surpresa foi maior, com Flávio exclamando: "Por que a senhora não me disse que era 120? Pensei que fosse 1.200!"

25 Com a suspensão do Programa Flávio Cavalcanti por sessenta dias, a agência que produzia o programa, a TV Estúdio Produções, foi atingida de forma crucial. Com 31 funcionários, despesas fixas com a equipe, o prejuízo por dois meses de inatividade chegaria a alguns milhões de cruzeiros. Ninguém sabia o que ia acontecer. Flávio só lamentava ter antecipado em uma hora a entrevista, liberada pela Censura para as 22 horas, o que provocou aquela enorme confusão. O apresentador ficou extremamente surpreso com a decisão da Censura, por acreditar que competia àquele órgão autorizar ou vetar quadros. E era óbvio que os censores sabiam do teor da entrevista. Ele não era estreante, tinha dezoito anos de televisão, e não admitia que a punição também atingisse o diretor do programa, Wilton Franco. Estava ciente de que não fugira do script nem desrespeitara ou desobedecera qualquer deliberação. A única restrição que os censores haviam feito ao polêmico programa fora quanto à bailarina Vilma Vernont, que não poderia se apresentar vestindo um maiô cavado. A reivindicação fora prontamente atendida, e a bailarina se apresentou de forma não-atentatória à moral, de acordo com a Censura. Flávio estava arrasado, e se recolheu à sua casa em Petrópolis. Pensou em viajar, ir à Itália tentar mais uma vez entrevistar Sophia Loren, mas acabou ficando em casa, pensando e repensando a punição que jamais admitiu, ou melhor, engoliu. Sabia, de fonte 177

segura, que a puxada de tapete representava um cartão amarelo. Seria melhor ficar preparado, pois o esquema previa um arrocho ainda maior quando retomasse à TV. Uma parte da equipe, que não tinha ligações contratuais com a Tupi, como era meu caso, entrou em férias. O restante teve que produzir um programa-tampão que, por ordem da Censura, não podia se assemelhar ao de Flávio Cavalcanti. Foi criado então DomingoÉDiadeShow, produzido e dirigido por Eduardo Sidney. Era um show de variedades apresentado por duplas, a maioria contratada da Tupi, como Peny Sailes e Vera Fischer, Agnaldo Rayol e Íris Lettieri, Lúcio Mauro e Íris Bruzzi, Corrêa de Araújo e Sandra Barsotti, Roberto Figueiredo e Maria da Glória, Nilson Condé e Renée de Vielmond, entre outros. A princípio o público gostou dos números musicais, da apresentação de uma vaca que usava dentadura e de um quadro de humor muito famoso na época, com o casal Ofélia e Femandinho, interpretados por Sônia Mamede e Lúcio Mauro. Mas Eduardo Sidney sabia que, se o governo mantivesse a punição de Flávio Cavalcanti por sessenta dias, esta estrutura não agüentaria, por melhor que fosse o desempenho dos apresentadores e produtores. Faltava a peça-chave, o carisma do apresentador, o que foi se confirmando aos poucos com os pontinhos do IBOPE caindo, caindo... O Programa Flávio Cavalcanti voltou ao ar no dia 20 de maio, com restrições bem claras impostas pela Censura. A platéia não poderia aplaudir de forma entusiástica a entrada do apresentador, nem tampouco poderia haver qualquer referência ao período de supensão. Tinha que entrar em cena como se aqueles sessenta dias não tivessem existido. O mais difícil de tudo era decifrar o que a Censura entendia por "aplaudir de forma entusiástica". Critérios pouco claros e, como sempre, muito pessoais. Era quase impossível controlar o aplauso do público, o assédio da imprensa e o misto de emoção e revolta do apresentador. Mas o programa foi ao ar, com júri, grandes atrações e um quadro que era um tapa com luva de pelica: "É Proibido Falar." Nada mais que 25 minutos só de boa música. A Tupi se aproveitava dessa situação constrangedora entre o apresentador e a Censura atrasando os pagamentos. Alegava que a ausência de Flávio por sessenta dias se refletira no faturamento da 178

casa e em toda a programação. A bem da verdade, a audiência sofrera uma queda vertiginosa, mas os atrasos nos pagamentos datavam de muito antes. Flávio teria que levantar a Tupi de novo para voltar a receber seu salário, e ainda conviver com a Censura muito mais enérgica. No dia 3 de junho, duas semanas depois de o programa ter voltado ao ar, o censor de plantão enviou um longo parecer ao Ministério da Justiça, onde relatava: "O programa do Sr. Flávio Cavalcanti, domingo, dia 3 do corrente, foi iniciado após a apresentação nominal dos Vips [jurados] com a apelação injustificável, proferida em tom declamatório pelo Sr. Lúcio Mauro, rememorando: 1. A punição recebida pelo Sr. Cavalcanti, 'chefe de família e profissional bem-intencionado'; 2. E as centenas de telegramas, naquela época, enviados. As imagens semânticas empregadas pelo Sr. Lúcio Mauro, assim como o enfoque 'do caso', levantaram uma idéia de crítica à justiça da punição. Logo em seguida ao jogo das equipes 'Eles e Elas', na parte segunda 'Isto Está Certo, Isto Está Errado', foram lidos pela Sra. Márcia de Windsor, como fazendo parte do jogo acima, alguns artigos dos trinta da Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) - Assembléia-Geral da Nações Unidas. 1. Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos, são dotados de razão e consciência e devem agir uns em relação aos outros com espírito de fraternidade; 2. Todo homem tem direito à liberdade de opinião, expressão etc. etc. Para finalizar as mensagens emitidas, a delegada de Polícia do Ceará, Srta. Margarida Maia Borges de Carvalho, possuidora de mais de dezenove cursos, declarou apreciar muito os programas do Sr. Flávio Cavalcanti, principalmente o de Natal. Foi, assim, via Embratel, a imagem do apresentador com enunciados de protestos e recomendações ao seu programa por uma autoridade policial. 179

Devemos salientar que a apresentação do Sr. Lúcio Mauro não estava no script. Tendo em vista o exposto, e como o programa tem como norma estabelecida (oficiosamente) a alteração do script quando de suas apresentações, tornando o trabalho da Censura estéril, sugerimos: a. Que seja comunicado a quem de direito que o script enviado à Censura deve ser completo, apresentando todos os elementos para que o mesmo possa se pronunciar; b. Que, após o script haver sido liberado, não poderá sofrer qualquer alteração; c. Caso a produção não respeite esta orientação, o programa passará a ser gravado em VT, com obrigação de ser apresentado à Censura com 24 (vinte e quatro) horas de antecedência para ser aprovado e liberado." Mas a Censura foi ainda mais longe no dia 17 de junho. Flávio gostava muito de ler e tinha mania de anotar as frases que achava interessantes. Algumas eram de pessoas famosas, outras de anônimos, mas todas tinham o mesmo valor para o apresentador. As vezes, entre um quadro e outro do programa, Flávio mexia nos papéis que ficavam na estante, buscava algum pensamento e dizia: "Li não sei onde, guardei e dou de graça", passando a frase para o público. Não havia conotação política; apenas uma forma de se expressar. Naquela noite Flávio repetiu o "Li não sei onde" seguido do ensinamento: "Cada um varrendo a frente de sua casa, o mundo será muito mais limpo." O censor, querendo encontrar algo que justificasse a sua presença no trabalho durante aquela noite de domingo, resolveu fazer uma análise mais profunda, enviando para o Ministério da Justiça o seguinte parecer: "Decodificação: técnica de conceituação que procura distinguir a fofoca em todos os sentidos, político, mexerico, xingamento, desabafo etc. Alta rentabilidade emocional, transferência e encaixe dos seus [Flávio] problemas na esfera dos espectadores." 180

Mas a esfera de atuação dos censores era ampla e acima de tudo ridícula. No dia 24 de junho, o programa saiu do ar quatro vezes por falta de energia elétrica na Urca. Alguns quadros foram apresentados, mas, para evitar maiores complicações, resolveram substituir o programa ao vivo por um vídeo da entrega dos prêmios das Canções Medalha de Ouro. Como o censor nada tinha o que escrever em seu relatório para o Departamento de Censura Federal, sugeriu "que toda e qualquer canção que venha a ser apresentada em idioma outro que não o português dê entrada neste serviço de sua tradução. No quadro 'Esse ou Essa Está Realmente Botando pra Quebrar', foi apresentado um cantor brasileiro fazendo sucesso no México, cuja letra cantada não tivemos a tradução." Era muito clara a postura da Censura, forçando a barra para que os programas fossem gravados em videoteipe. Flávio era totalmente contra, pois acreditava que perderia o calor do auditório e a força da atualidade. Mas os relatórios que os censores enviavam para a Censura de Diversões Públicas, posteriormente encaminhados ao Ministério da Justiça, vinham acompanhados dessa sugestão. Para o governo seria ótimo: continuaria a manipular as informações, como já vinha fazendo há algum tempo com a censura na imprensa. Se conseguissem exigir a gravação em videoteipe dos programas de variedades, o controle seria ainda maior, e só seriam liberados os assuntos de interesse da ditadura. No dia 12 de julho, a Censura fez cortes no scriptdo programa, proibindo o ator Valdir Maia, que interpretaria Abraham Lincoln em "Repórter da História", de mencionar o fato de Flávio ter um filho adotivo negro, Washington. Proibia também que o apresentador usasse os termos "um herói da liberdade, um grande democrata" e "gigante da liberdade", com referência a Lincoln. Mas a Censura não se restringia apenas a fatos como esses. No relatório referente ao programa do dia 22 de julho, o censor dizia não lhe caber julgar "quanto ao quociente intelectual da equipe e do próprio apresentador", mas que "a tendência nossa é fazer o desaparecimento do quadro 'Flávio Confidencial', já que não podemos proibir por amparo legal". Fechando o relatório, fazia comentários sobre a comunicação do apresentador, descrita como "fraca. Desde a suspensão sofrida, nota-se uma certa inibição pessoal". E não era para menos. Sobreviver à tensão semanal era 181

muito duro. Toda a equipe sofria, e a adrenalina aumentava em conjunto. Hoje chego a pensar que dificilmente alguém teria saúde suficiente para enfrentar tantas pressões. Flávio não era mais um garoto, estava com cinqüenta anos, e às vezes se queixava de um certo cansaço. Não lhe faltava pique para trabalhar, mas para superar essas perseguições declaradas.

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"Naquela mesa está faltando ele/e a saudade dele/está doendo em mim." Sérgio Bittencourt

Quando Flávio perdeu a casa de Petrópolis, e com isso deixou de ter a sua capela, um pequeno oratório passou a acompanhá-lo. Na entrada dos apartamentos em que morou, tanto no Rio quanto em São Paulo, em cima de uma antiga mesa de jacarandá, ficavam as imagens de Nossa Senhora, Nossa Senhora da Conceição e Jesus Crucificado. Esta última, a favorita de Flávio, era uma peça valiosa, datada do final do século, esculpida em madeira com detalhes em marfim. Ao lado das imagens, uma vela de sete dias ficava acesa ininterruptamente.

26 O jurado mais constante dos programas de Flávio Cavalcanti era Sérgio Bittencourt. Jornalista e compositor, filho do instrumentista e também compositor Jacob do Bandolim, nasceu cercado de música. Aos dezoito anos, cansou de viver à custa do pai, deixou a casa da família em Jacarepaguá, no Rio, e foi tentar a vida. Em 1968, já escrevia no Correio da Manhã e criticava duramente Flávio Cavalcanti. Vendo o jeito desaforado do jovem colunista, que agredia a tudo e a todos, inclusive os seus programas, Flávio procurou conhecê-lo. Logo descobriram muitos pontos em comum, principalmente no tocante à defesa da música popular brasileira, e da inimizade nasceu uma longa amizade. Flávio já pensava em fazer um programa com jurados, e Sérgio foi convidado a participar do primeiro júri de TV em Um Instante, Maestro! A partir daí, nunca mais deixou abancada, passando paraA Grande Chance e depois para o Programa Flávio Cava/canil. Como jornalista, escreveu a coluna "Rio à Noite", em O Globo, colaborando depois para o jornal O Fluminense, revista Amiga e rádios Capital (Rio) e Mulher (SP). Como compositor, venceu em 1968 o festival O Brasil Canta no Rio com Modinha, interpretada por Taiguara; foi classificado em quarto lugar no Festival da Record, com Canção de Não Cantar, interpretada pelo MPB-4, e seu maior sucesso foi Naquela Mesa, em que homenageava o pai. Tinha um jeito agressivo de se expressar, mas a alma era doce. Desde criança lutava contra a hemofilia, e, sempre 185

apoiado por Flávio, foi um dos primeiros a fazer campanhas para levantar fundos para a construção de uma casa que atendesse aos portadores da doença. Se a sua crítica era dura, seu coração era temo e apaixonado. No dia 9 de julho de 79, pouco depois das três e meia da manhã, acabou de escrever uma crônica sobre a morte da jornalista Márcia Mendes, acontecida três dias antes, e foi dormir pedindo para Eliane, sua companheira de tantos anos, que levasse o artigo ao jornal O Fluminense bem cedo. Quando Eliane voltou, Sérgio estava dormindo, dessa vez para sempre. Sofrera um enfarte fulminante. Sérgio e Márcia tinham em comum uma vontade louca de viver. Márcia Mendes foi pianista, manequim, editora de moda e a primeira mulher no Brasil a fazer telejornalismo em horário nobre na Rede Globo, apresentando notícias mais sérias do que a previsão do tempo ou o novo caso amoroso de Elizabeth Taylor. Era surpreendentemente linda. Tinha os olhos de um azul inconfundível, um sorriso perfeito e uma voz rouca, sua marca registrada. Durante sete anos, Márcia lutou pela vida. Primeiro surgiu uma inflamação no menisco, depois um problema na garganta, uma endocardite e um sem-número de doenças. Foi emagrecendo, e seu corpo de 1,70m de altura chegou a pesar 36 quilos. Superou os problemas e voltou ao vídeo. Conheci Márcia Mendes em 1970, quando ela era produtora de moda da Bloch Editores na sucursal de São Paulo. Passamos alguns fins de semana juntas em Teresópolis, na casa de um amigo comum, Francisco Augusto Nascimento, e conversávamos até o dia nascer. Em 1978, quando teve uma pequena melhora, como um sopro de vida, Márcia me deu um longo e comovente depoimento para o jornal O Globo, onde falava sobre a doença: "Temia que a morte me pegasse de surpresa. Vi que a morte era realidade maior que a vida. Eu tinha consciência da morte como qualquer outra pessoa, mas ela não era palpável. Agora, para mim, vida e morte são palpáveis, pois conheço as duas. Sei que a morte pode acontecer a qualquer segundo, por isso não quero perder mais um minuto de vida. Tenho uma sede quase adolescente de viver, e sei também 186

que uma certa fase andei me boicotando, me deixando encostar pela doença." Em outro trecho dizia: "Nas duas vezes em que tive a sensação da morte, pude constatar depois que aqueles dias foram os mais críticos e os médicos perderam a esperança. Tive uma leve sensação de cegueira e surdez. Parecia que estava saindo mesmo alguma coisa de dentro do meu corpo e que ficava no ar. Acredito que, a não ser que a pessoa morra num choque forte, sem sentir nada, tem essa sensação." Nove meses depois dessa entrevista, numa luta constante pela vida, Márcia foi tomada pelo câncer e ficou em coma durante treze dias. No dia 6 de julho de 1979, seu coração não resistiu e um enfarte levou-a para sempre. Sérgio sofreu com essa perda. Não eram amigos, mas ele sabia o quanto era difícil driblar uma doença, pois a hemofilia a cada dia lhe deixava mais seqüelas, e de longe acompanhava a luta de Márcia contra o câncer. Sérgio não estava bem quando Márcia morreu. Seus dias eram difíceis, às vezes melhores, outras vezes piores, e, como todo poeta, cultivava uma enorme solidão. Os dias lhe corriam pelos dedos, como se fossem teclas que escapavam de sua maquina de escrever naquela última crônica para Márcia. Sérgio Bittencourt morreu aos 38 anos, de enfarte e aneurisma cerebral. A crônica-poema que escreveu para Márcia é a seguinte: "Morrer para Márcia sempre foi um exercício, uma sina, ou talvez quem sabe um ofício. Morrer para Márcia sempre foi viver sorrindo, fingindo, mentindo, fugindo, e Márcia morreu! Mas antes viveu. Cantou tudo o que a vida lhe deu. Sua arma entre outras era o sorriso preciso, o rosto iluminado, mesmo longe, sempre perto porque tudo estava certo, correto escrito. Então, o jeito era viver no frio e calculado desafio à vida que de minuto a minuto vinha chegando. E Márcia lutou, lutou até perder. E a cada orgasmo de horror Márcia respon187

dia à morte com toda a força de amor. Morrer Márcia morreu! Mas até o último segundo viver Márcia viveu. Com todos os recursos que a vida sabe nos dar, para pelo menos nossa morte adiar. E Márcia adiou o quanto pôde, o quanto soube. A Morte furava para o dia seguinte. Até porque dezenove não é vinte. Márcia menina Mendes, meio menina, meio menino, e bem sabia que um dia por quem dobraria os sinos. Atenção! Luz! Câmeras! Ação! da qualidade o padrão, da notícia a emoção. Agora não! Agora é sorrir. E o telespectador não merece a solidão. Scripr na mão, na voz, segurança e mansidão, mansidão. Por mais que lhe doam o corpo, a alma e o coração. E o remédio era fatal, não curava a dor do mal. É viva a vida enquanto ela existe. Para Márcia era proibido ser triste. Dores maiores que a dela, de microfone em punho, ela descia a desgraça, ela subia a janela. Tão livre, tão simples, nas suas noites de horrores ela amou tantos amores, olhando a morte de frente. Sorrindo, calada, ou rezando, ela sabia que a Deus não se mente. Sexta-feira dia 6 de julho ainda é o mês. Márcia menina Mendes foi ao chão. Morreu do que vinha vivendo. Do remédio que lhe adiava a última hora. O último instante de ação é hoje e agora, Márcia menina repórter, lá nas alturas dos céus, virou de repente notícia, notícia em primeira mão."

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"A tarefa do comunicador é combater. Por isso, sempre me envolvo em guerras santas. A coisa cômoda me incomoda."

Morro teso mas não perco a pose. Esta era uma das frases que Flávio mais repetia. Ele não tinha noção do custo de vida e certo dia, com Belinha adoentada, resolveu fazer-lhe uma surpresa: foi ao açougue comprar uma galinha para ser preparada ao molho pardo. Belinha sempre reclamava da alta dos preços, e, quando Flávio perguntou ao açougueiro o preço da galinha, achou muito barato. Pediu que embrulhasse oito, e só na hora de pagar constatou que o preço era por quilo, e não unitário, como pensava. Ficou teso, mas não perdeu a pose.

27 Existem pessoas que não gostam de anos pares, outras de anos ímpares, mas, predileções à parte, 1973 já trouxera sofrimentos demais. Ninguém supera uma punição como a de Flávio com um sorriso nos lábios. Era preciso muita força de vontade para continuar na luta. Hoje, vinte anos depois, quando meus pensamentos voam longe e relembro tudo o que Flávio passou, sinto um orgulho enorme de tê-lo conhecido. Muitos de seus colegas fizeram o jogo do governo, calaram-se, disseram sim quando preferiam dizer não e tiveram um caminho mais tranqüilo, apesar da consciência mais pesada. No sábado 28 de julho de 1973 acompanhei Flávio a Belo Horizonte. Ele daria uma entrevista no programa de Sérgio Bittencourt, na TV Itacolomi, que fazia parte das Emissoras Associadas. Fomos de carona num jatinho de Eron Alves de Oliveira, amigo e um dos patrocinadores de Flávio. O programa de sábado à noite na TV Itacolomi tinha grande audiência em Minas, e há muito Flávio vinha prometendo uma entrevista. Sua chegada foi triunfal. Era a etapa final de uma gincana e o programa acontecia num ginásio superlotado por um público simpático e efusivo. Flávio estava radiante. Sem a Censura por perto, Sérgio começou uma longa entrevista, como nos moldes do "Flávio Confidencial". A Loteria Esportiva tinha sido lançada há pouco tempo, e todos queriam ficar milionários fazendo os treze pontos. Entre as perguntas, Sérgio quis saber o que Flávio faria se 191

acertasse os treze pontos. A resposta foi curta e objetiva: "Pagaria os atrasados da Tupi." Flávio não conseguia segurar os impulsos, falava o que queria. Praticamente no mesmo momento a direcão da Tupi, no Rio, ficou sabendo da crítica. A roupa suja estava sendo lavada em casa mesmo. As mazelas, até então encobertas, estavam sendo reveladas ao público. Desde a volta à TV, depois da sua suspensão, o clima entre Flávio e a direção da Tupi não era dos mais amenos, e antes mesmo de retornarmos ao Rio sabíamos que a situação estava preta. Uma nova bomba iria estourar no domingo pela manhã, após a nossa chegada: a Tupi resolvera punir o apresentador. Flávio estava suspenso mais uma vez. O próprio patrão, que não pagava em dia, não admitia ser censurado em público. Estava selado o afastamento definitivo de Flávio da Rede Associada. Ainda chegamos a ir à TV Tupi para Flávio tentar uma composição. Afinal, aquele domingo era muito especial. Havíamos divulgado amplamente o lançamento do segundo LP Canções Medalha de Ouro, com a presença do maestro francês Paul Mauriat, que apresentaria as seguintes canções: Eu Só Quero um Xodó, de Dominguinhos e Anastácia; O Show Já Terminou e Proposta, de Roberto e Erasmo Carlos; Teimosa, de Antônio Carlos e Jocafi; Folhas Secas, de Nelson Cavaquinho; Retalhos de Cetim, de Benito di Paula; Joana Francesa, de Chico Buarque; Oração de Mãe Menininha, de Dorival Caymmi, e Carinhoso, de Pixinguinha. Esta última não fazia parte dos lançamentos do ano, mas homenageava o compositor, falecido há pouco. Com a suspensão de Flávio, os jurados atuaram como apresentadores. Armando Pitigliani, que produzira o LP, apresentou o maestro. Foram dois meses vivendo um clima insuportável, e, assim que estes fatos chegaram aos ouvidos do grupo Record de São Paulo, Flávio foi procurado com a proposta de levar o seu programa para a TV Rio. A idéia era revitalizar a Rede Record. Nesse intervalo entre a saída da Tupi e a estréia na Record/Rio, com Flávio profundamente fragilizado e sem ter a quem recorrer para revigorar o seu programa, a Globo lançou seu maior petardo sobre as nossas cabeças. Preocupada com os altos índices de audiência do Programa Flávio Cavalcanti, resolveu mudar a sua linha de programação. Retirou do ar Só o Amor Constrói e em seu 192

lugar criou um programa de alto nível, utilizando toda a tecnologia disponível, com um jornalismo ágil e correspondentes no exterior. Surgia assim o Fantástico, no dia 5 de agosto de 1973. Estreamos na RecordlRio dia 23 de agosto. O programa era dirigido por Nilton Travesso, um superprofissional que acrescentou muito à nossa equipe. Para alegria da Censura, o programa não era ao vivo, mas gravado às sextas-feiras e exibido aos domingos, no mesmo horário. O palco êra outro. A TV Rio estava precariamente instalada num edifício originalmente construído para ser um hotel na Rua Nascimento e Silva, em Ipanema. Era um prédio inacabado, meio fantasmagórico, e dava uma sensação horrível trabalhar lá. Flávio continuava com prestígio, mantendo os contratos de exclusividade com os mais importantes artistas nacionais, mas estava diffcil aumentar a audiência. Não tínhamos mais auditório, e o programa perdia muito com a falta do calor humano e a vibração do público, que sempre gerava uma grande energia. Apesar de tudo, continuávamos fazendo um bom programa. Buscávamos o máximo de criatividade com o mínimo de recursos e técnica, e aproveitávamos as boas relações de Flávio com muitos artistas. Uma semana após a estréia, vieram os primeiros cortes da Censura. Teixeirinha e Fagner se apresentaram no quadro "Tribunal do Disco", e a Censura exigiu que fosse cortado do VT a palavra "estrangeira", referência feita por Fagner à gravadora Philips, hoje Polygram, com quem estava brigando. Para os cen sores, o tom era de "revolta contra o sistema". Ainda nesse programa, o caso que considero mais ridículo. O diretor Nilton Travesso resolveu reunir num musical Jair Rodrigues e Geraldo Vandré. Jair entrava cantando Disparada e, sem saber, no meio da música, Vandré surgia no palco. A Censura aprovou o encontro, com a condição de que Vandré não falasse nada, só cantasse. Assim foi gravado, mas Jair Rodrigues não conseguiu conter a emoção ao encontrar o autor da música que lhe deu tantas alegrias e chorou. O programa foi para a Censura e na volta veio a bronca. Por incrível que pareça, o problema não se restringia à emoção do cantor, mas também ao fato de o apresentador estar usando uma camisa vermelha, o que foi considerado uma provocação. Acharam que Flávio estava apoiando os movimentos de esquerda, e por isso o encontro de Jair e Vandré jamais foi ao ar. Com isso, os encontros 193

musicais passaram a ser mais simples, como o que reuniu Sílvio Caldas e Roberto Carlos. Os censores adoravam-nos; eles não ameaçavam o sistema, principalmente quando um cantava a música do outro. No dia 2 de dezembro de 1973, três meses depois da estréia, foi exibido nosso último programa na RecordfRio. As cotas de patrocínio não tinham sido vendidas, e as condições técnicas da emissora estavam abaixo da crítica. Ao mesmo tempo, aTupi vinha se ressentindo da ausência do "Senhor dos Domingos" e lhe acenava com o lenço branco da paz.

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"Fui muito bem-sucedido em outras emissoras em que trabalhei, mas a Tupifoi a minha casa."

Numa viagem pelas ilhas gregas, acompanhado de Belinha e dos inseparáveis amigos Letícia e Djalina Sampaio, Flávio resolveu mostrar seus dotes de exímio nadador. Quando o barco fundeou próximo à ilha de Egina, para que os passageiros fizessem o transbordo para visitar o Templo de Netuno, Flávio mergulhou da proa do barco e foi nadando até a ilha. A distância era maior do que calculara e, cada vez que tentava colocar os pés no chão, só encontrava pedras. Não desistiu. Uma hora depois voltou, exausto, os pés sangrando pelos ferimentos. Aprendeu a lição e nunca mais nadou em águas desconhecidas.

N0 dia 5 de janeiro de 1974, o Programa Flávio Cavalcanti

voltava à Tupi. Deixava o tradicional horário dos domingos, agora ocupado por Chacrinha, e passava para os sábados. O apresentador tinha total consciência da queda de audiência sofrida com a mudança para a 1V Rio e da forte concorrência da Globo. No entanto, sabia também que dava muito trabalho ao Fantástico, e que o concorrente era uma bomba atirada com alvo certo; vinha para matar, estralhaçar, acabar com a sua popularidade. A situação na Tupi era caótica, um desastre total. Com muitas dívidas e um sem-número de ações judiciais, começaram os pedidos de penhora dos equipamentos técnicos, como câmeras e microfones. E, para culminar, a Censura no nosso pé. Para o novo programa na Tupi foi criado um quadro que entrava em substituição ao "Flávio Confidencial". Seguindo o mesmo esquema de entrevistas, "Estúdio Fechado" era gravado em videoteipe, um dia antes de ser exibido, adoçando um pouco a boca da Censura, que não se conformava pelo fato de o programa ter voltado a ser ao vivo. Naquela época, o mais discutido assunto policial era o desaparecimento de Carlinhos, um menino com pouco mais de dez anos, uma história familiar muito controvertida, onde o pai era apontado como seqüestrador do filho. A imprensa dava muito destaque ao fato, talvez até pela falta de um assunto melhor liberado pela Censura. Artur Farias, então diretor do programa, gravou um "Estúdio Fechado" onde Flávio faria um apelo para o 197

aparecimento do menino. Este apelo seria intercalado com flashes jornalísticos onde constariam depoimentos do delegado que cuidava do caso, Dr. Belot; do suposto matador, Adilson; e do próprio pai do menino. No relatório enviado dia 21 de janeiro de 1974 para a Censura de Diversões Públicas referente ao programa do dia 19, o censor vetou o quadro integralmente. A partir daí, entrevistas e jornalismo, assuntos de que Flávio tanto gostava, ficavam cada vez mais difíceis de serem liberados. Não bastando isso, a Censura resolveu atacar também os comerciais. No dia 4 de fevereiro chegou ao absurdo de o censor cortar um texto do comercial das bicicletas Monark onde Flávio fazia uma comparação entre Rui Barbosa, a Águia de Haia, e a bicicleta Monark Águia Imperial. E por aí seguiam as barbaridades, como a pérola do relatório do censor referente ao programa do dia 16 de fevereiro: "A presença da índia Poti, todavia, foi um imprevisto a lamentar. Ostentava um biquíni escuro, aparentemente sobre a pele sem malha, vestia um casaco-blusão branco em tiras, aberto na frente, de comprimento à altura da articulação coxofemoral. Poderíamos solicitar uma advertência, mas sendo a norma do biquíni demasiadamente esclarecida às televisões, o corte é uma penalidade profilática obrigatória às futuras reincidências." Penalidade profilática! Não sei qual era a formação acadêmica dos censores, mas sempre me passava a sensação de que eram simples policiais, sem preparo intelectual, mas que tinham um bom pistolão e sabiam datilografia. O pistolão para terem acesso aos estúdios de TV, visto por eles como um antro feérico de pecados e tentações, onde todas as mulheres eram prostitutas; e a datilografia para escreverem seus relatórios. Até mesmo o juiz de menores, Dr. Alírio Cavalieri, foi picotado pela tesoura da Censura, no programa do dia 2 de fevereiro. Por exigência da Censura, durante uma entrevista, teve que substituir as frases "os adultos e as crianças estão agredindo" por "estão dificultando"; e "onde estão a lei e ajustiça" por "o que é certo e o que é errado". Em abril deixei de trabalhar com Flávio. Nada pessoal, apenas 198

um cansaço incurável. Ser secretária dele significava respirar sua vida 24 horas por dia, inclusive sábados e domingos. Eu queria muito voltar ao jornalismo. Tinha medo de me tomar a eterna "Dona Léa Penteado, minha secretária", e chegar a um ponto em que não conseguiria mais desligar o meu nome do dele. Esse carma não resolvi até hoje. Por essa época Chacrinha brigara com a Tupi, e Flávio voltava para os domingos, mas desta vez o programa era feito em São Paulo. Após um acordo com o diretor da Rede Associada, Orlando Negrão, Flávio conseguiu levar uma parte de sua equipe carioca: Eduardo Sidney novamente na direção, Ghiaroni na redação, Wilson Rocha e Antônio BeIJo na produção. Os paulistas já tinham demonstrado a sua aprovação ao apresentador quando fizemos o Flávio Especial, em 71 e 72. Flávio voltaria a viver na ponte aérea. Mas qualquer esforço valia para manter o programa no ar. Nesse período, no entanto, a televisão mudara muito, já que a transmissão via satélite fora implantada de forma definitiva nos meios de comunicação. Flávio comentava que a simples imagem do homem subindo à Lua não daria mais tanto ibope e que a orelha decepada do jovem Paul Getty III, seqüestrado pela Máfia italiana, só tivera audiência na primeira vez em que fora mostrada. Na segunda já não causava impacto. Aos 51 anos de idade, Flávio ainda buscava novas fórmulas. Lia muito, procurava se renovar e continuava a fazer televisão com os ingredientes que conhecia, valorizando a emoção. Acreditava no impacto da notícia, da música e do show. Não admitia ser um apresentador de laboratório, fazer programa sem auditório, um simples locutor de notícias preso a um estúdio de TV. Necessitava da vibração, da empolgação do público. A experiência em São Paulo foi ótima em audiência, mas péssima financeiramente. A dívida da emissora para com o apresentador ia aumentando. A princípio os atrasos eram de um mês, no máximo dois. Mas os intervalos foram crescendo, até chegar o momento em que ele não recebia mais nada. O programa só continuava por causa do prestígio do apresentador, e os artistas, que outrora recebiam cachês altíssimos, agora iam pela amizade, pelo respeito a Flávio.

A Tupi assinou algumas promissórias como parte do pagamen199

to, mas, por falta de dinheiro em caixa, cancelou. O dinheiro de Flávio foi acabando, e ele iniciou então uma corrida aos bancos. Quando Flávio pedia empréstimos e apresentava como garantia o seu contrato com a Tupi, as negociações eram canceladas Os bancos não aceitavam as promissórias avalizadas pelos homens fortes da emissora, João Calmon e Martinho Luna de Alencar. O descrédito era total. Mas tudo ficava mais fácil quando Flávio pedia empréstimos em seu nome, oferecendo como garantia seu patrimônio pessoal, que incluía uma casa construída num terreno de dois alqueires em Petrópolis. E assim foi assinando promissórias e mais promissórias, se endividando. Uma das últimas propostas da Tupi foi para pagar os atrasados a partir de 1976. Ainda estávamos em 74! Flávio não conseguia viver daquela forma. Para cumprir os compromissos, deu sua grande cartada: a hipoteca da casa de Petrópolis. A casa, no alto do bairro de Caxambu, ficava na rua que levava seu nome, um carinho dos petropolitanos, e fora herança de sua sogra. No princípio era usada apenas nos fins de semana, mas em 67, depois de uma grande obra, a família deixou Copacabana e se estabeleceu na cidade serrana. Dezenas de reportagens mostraram a casa que, todos sabiam, era a paixão do apresentador. Tinha um viveiro construído com assessoria técnica do Ministério da Agricultura, para permitir que os passarinhos se sentissem em liberdade. Nó viveiro, habitado por calafates, sabiás, pássaros-pretos, tuins, rolinhas, cardeais, bicos-de-lacre, galos-da-campina, uma variedade enorme de pássaros, havia córrego, árvores, repuxo, balanços e várias casinhas. E a casa ainda tinha uma piscina enorme, uma adega, uma capela com um vitral em que a imagem de Cristo subindo ao céu se refletia sobre as paredes, e dezenas de árvores plantadas pelos amigos. Ali era o seu mundo, e ele colocou-o em jogo para manter a sua palavra. Com o dinheiro recebido pela hipoteca, pagou a equipe e os credores, e em outubro de 74 mais uma vez saiu da Tupi. Sabia que iria ficar fora do ar, sem perspectiva de contratação por outra emissora, pois o mercado estava muito restrito, mas era bem mais digno.

"Eu não dependo mais da TV"

Enquanto Belinha era poliglota, Flávio só falava português. Quando viajava, sempre encontrava um brasileiro ou alguém que falasse português. Assim foi no hotel em que ficou hospedado em Jerusalém: a recepcionista era simpática, agradável, falava português fluentemente e ajudou-o bastante durante a estada. Já no táxi para deixar o hotel, lembrou-se que não se despedira da moça. Voltou à recepção e através de gestos tentou se fazer entender, querendo localizar a moça. Seus gestos não foram bem compreendidos, e o gerente, pensando tratar-se de um conquistador, botou-o para correr. Durante anos Flávio contou essa história tentando descobrir que gesto obsceno fizera para causar tal ira.

29 Flávio estava profundamente decepcionado com tudo. Em anos anteriores, diante de sua popularidade, fora convidado por quase todos os partidos a ingressar na política. Ele recusava, dizendo que não tinha vocação e não se metia naquilo que não entendia. A decepção com a saída da Tupi levava-o a considerações políticas. O síndico do Condomínio das Associadas, senador João Calmon, integrava a panelinha do governo, e Flávio acreditava que a política da época era um rascunho que seguia por caminhos de perseguição pessoal e do interesse imediatista. Com a casa hipotecada, precisava buscar alguma forma de ganhar dinheiro, já sabendo que o caminho não era a televisão. Afinal, foi ali que tinha perdido tudo. Resolveu então virar essa página da vida e iniciar uma nova carreira. Entendia de shows, espetáculos, tinha prestígio, amigos, e por isso decidiu se associar a um grupo para abrir uma casa noturna. Resolveu tentar, pagou para ver, apesar de não freqüentar a noite, não ser chegado à boemia e tampouco entender como funciona a cozinha de um restaurante. Cercado pela família e muitos amigos, como Maysa, inaugurou no dia 13 de maio de 1975 o Preto 22, uma mistura de boate e restaurante, na Rua Visconde Pirajá, 22, em Ipanema. Com a experiência de repórter, recriou na boate o quadro "Flávio Confidencial", e em dois banquinhos no palco entrevistava, entre outros artistas, Chico Anysio, Agildo Ribeiro, Dercy Gonçalves e Mièle. Eram amigos que iam mais para prestigiá-lo, sem esperar por 203

qualquer resultado financeiro ou projeção profissional. Além disso, com direção de Dori Caymmi, promoveu shows com Vanusa, Fafá de Belém, Maria Creuza, Alcione e Emilio Santiago, os dois últimos artistas lançados em seu prograinaA Grande Chance (M1T - Mercado Internacional do Talento). A festa era ótima, mas o trabalho, complicado. Como nada entendia .de administração de uma casa noturna, foi roubado, passado para trás descaradamente. Lembro de uma vez em que Flávio contou como o pessoal da cozinha roubava. Peças inteiras de filé-mignofl eram embrulhadas em sacos plásticos e colocadas no fundo falso de uma lata de lixo. Depois que acabavam os serviços, de madrugada, a lata era deixada na porta do restaurante, à espera do caminhão do lixo. Quando o restaurante era fechado e todos saíam, o pessoal da cozinha voltava e retirava a carne, limpinha. Este foi um dos roubos descobertos. Por isso, e cansado da vida noturna, no final do mesmo ano de 75 Flávio desfez a sociedade e voltou para Petrópolis. Mais uma decepcão. Seu futuro também não estava ali. Por uma ironia do destino, no início de 1976 Flávio recebia um convite. Era de Sílvio Santos, o homem que ameaçara a sua audiência nos anos 70 e com quem só havia se encontrado uma vez, numa incrível coincidência, num restaurante em Atenas, em julho de 72. Flávio e Belinha, mais o casal Letícia e Djalma Sampaio, estavam em férias e, seguindo indicação de Iara e Juca Chaves, com quem encontraram em outra cidade, foram àquele restaurante. Era domingo de noite, e lá chegando encontraram Sílvio Santos jantando com uma moça loura. Flávio ficou constrangido, pois sabia que Cidinha, a mulher de Sílvio, era morena, e fingiu não ver o concorrente. Na saída Sílvio, surpreendentemente, se aproximou da mesa de Flávio; a loura era ninguém menos do que a própria Cidinha de peruca. Voltando a 1976, Sílvio conseguira a sua primeira concessão de TV, o Canal 11 no Rio, e precisava de programação para a nova emissora. Convidava Flávio a fazer um programa semanal, mas não aos domingos, pois estes eram seus, como até hoje. Flávio e Sílvio tinham muitos pontos em comum, como a facilidade de comunicação com o auditório e um grande carisma. Assim como Flávio, ele era (e é) amado ou odiado, sem meito-ter204

mo, e, apesar de fazer um programa popular, procurava manter uma certa dignidade. Entretanto, havia uma diferença fundamental: Sílvio passara de camelô a grande empresário, conseguindo até seu próprio canal de TV, enquanto Flávio, como jornalista, era totalmente incapaz de administrar suas finanças, desligar-se das emoções e controlar os impulsos de falar o que queria, o que o levou a sair da Tupi e ficar desempregado. Como o Canal 11 no Rio estava começando, ainda sem muitas condições técnicas, concluiu-se que seria impossível fazer um programa do porte do Flávio Cavalcanti. A opção foi recriar Um Instante, Maestro!, o primeiro programa de Flávio na TV, que poderia ir ao ar com menos recursos e investimento em produção. Dirigido por Roberto Jorge, o programa estreou em 31 de março de 1976 e não resistiu um mês. As condições técnicas eram péssimas, a antena de transmissão estava com defeito, e por isso a imagem que chegava até as casas era muito ruim. O próprio Sílvio decidiu tirar o programa do ar e aproveitar o apresentador em outra ocasião. Afinal, mesmo com todos os percalços, ter Flávio sob contrato era um grande trunfo, e uma ameaça a menos. O salário do apresentador foi pago, religiosamente, durante um ano. Mas de que isso adiantava se ele estava fora do seu mundo? O mundo de Flávio Cavalcanti dividia-se entre a televisão e a família. Se no trabalho as coisas iam mal, com o mercado fechado, dentro de casa tudo funcionava muito bem. O casamento era sólido, estável, um love story como os que acompanhamos nas novelas. Tudo começou por volta de 1920, em Uberaba, Minas Gerais, onde morava o médico, químico e farmacêutico Dr. Manoel Bezerra Cavalcanti com sua mulher, Maria Eugênia Barbosa Cavalcanti. Apesar de terem nascido e se casado no Rio, o casal foi morar em Minas, e lá nasceram os quatro primeiros filhos, Marilda, José Luiz e as gêmeas Maria Placidina e Maria Ceciliana. Maria Eugênia estava na quinta gravidez quando conheceu um jovem casal cuja amizade iria perdurar durante muitos anos. Ascânio de Miranda Quintão estava recém-casado com Amair Horta Pereira Quintão e foi para Uberaba assumir o posto de gerente da agência do Banco do Brasil. Estavam procurando uma casa para alugar quando souberam que o Dr. Bezerra Cavalcanti tinha um pequeno sítio disponível. Alugaram o imóvel e tornaram-se amigos. Logo depois nascia 205

mais um fil!io na família Cavalcanti, Celso; e alguns meses depois o primeiro da família Quintão, João Paulo, cujo parto foi feito pelo Dr. Bezerra. Alguns anos depois, coincidentemente, as duas famílias voltaram para o Rio. Quintão foi para um novo posto no banco, e o Dr. Bezerra Cavalcanti foi ser professor da Faculdade de Medicina. Nessa época, além de amigos tomaram-se compadres, quando a família Cavalcanti batizou Maria José, a segunda filha de Ascânio e Amair. No Rio, em 15 de janeiro de 1923, nascia o sexto filho de Maria Eugênia e do Dr. Bezerra Cavalcanti, Flávio Antônio Barbosa Nogueira Cavalcanti; e em 9 de abril de 1924, a terceira filha na família Quintão, Maria Isabel Horta Pereira Quintão. Flávio e Belinha cresceram juntos, freqüentavam as mesmas festas, mas não eram muito amigos. Belinha era uma menina-prodígio feia, gorda e desajeitada. Aos seis anos, deu o primeiro concerto de piano no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Aos oito entrou para o ginásio com licença especial do ministro da Educação, Dr. Washington Pires. Aos nove anos fez concurso para a Escola Nacional de Música, conquistando o primeiro lugar. Flávio era alto, magro, galã das meninas de Copacabana, e D. Maria Eugênia, nas festinhas familiares, dava-lhe uns trocados para que dançasse com Belinha. Era tão malandro que foi convidado gentilmente a se retirar dos colégios Mailet Soares, Aldridge, São Bento, Santo Inácio e São José. Foi nessa época que a família Quintão voltou para Minas Gerais, indo morar em uma fazenda em Barbacena, e Belinha ficou estudando como interna no Colégio Sacré-Coeur de Marie em Copacabana. Enquanto isso, o Dr. Bezerra Cavalcanti decidira que o único jeito de Flávio estudar era colocá-lo num internato rigoroso, e o rapazola foi para a Academia de Comércio, em Juiz de Fora. Durante vários anos, Belinha e Flávio não se encontraram, exceto uma vez, rapidamente, na estação Matias Barbosa, perto de Juiz de Fora. Ela ia do Rio para a fazenda em Barbacena, e ele voltava em férias para o Rio. A Academia de Comércio colocou Flávio nos eixos. Em pouco tempo se tornou líder da turma, e foi lá que escreveu, dirigiu e encenou no palco do colégio duas peças de teatro, Rapsódia Brasileira, tendo como tema a música popular, e Homens de Fibra, 206

baseada nas aventuras dos bandeirantes à procura de esmeraldas. Belinha saiu do Sacré-Coeur de Marie, entrou para o curso de línguas anglo-germânicas na PUC e foi fazer doutorado no Marymount Coilege, em Nova York. Em 1945, Fláviojá tinha terminado os estudos em Juizde Fora, voltara para o Rio, prestara concurso para o Banco do Brasil e dividia-se entre o trabalho no banco e no jornal A Noite como repórter. Belinha voltava diplomada dos Estados Unidos e foi trabalhar como tradutora e secretária no Itamaraty. Reencontraram-se numa visita que Belinha foi fazer à família Cavalcanti. Flávio entrou apressado pela cozinha, ia trocar de roupa para se encontrar com Risoleta, de quem estava noivo, e ao passar pela sala viu uma moça loura que o cumprimentou efusivamente. Não podia imaginar que a menina feia, gorda e desajeitada tinha emagrecido 25 quilos e se transformara em uma mulher muito atraente. Flávio esqueceu o compromisso com a noiva e ficou conversando com Belinha. Foi levá-la em casa e a partir daí passaram a se encontrar às escondidas, tanto das famílias quanto da noiva de Flávio. Em 1947, Flávio foi com Belinha passar o feriado de Finados em Petrópolis, na casa de D. Amair, e na volta perceberam que não dava mais para esconder o romance. Resolveram comunicar às famílias, e no dia dia 13 de dezembro do mesmo ano ficaram noivos. No dia 31 de dezembro Belinha deixou o Itamaraty; estava disposta a casar e ter filhos. Flávio pediu demissão do Banco do Brasil, pois fora nomeado tesoureiro da Alfândega. O casamento aconteceu dia 13 de maio de 1948, e foram morar na Ladeira dos Tabaj aras, em Copacabana. O pequeno apartamento servia de ponto de encontro dos amigos, surgindo assim um grupo que se reunia mensalmente para conversar sobre poesia, literatura, música e vida. Este grupo era formado por Dinah Silveira de Queirós e seu marido Narcélio de Queirós; Manuel Bernardez MüIler (Jacinto de Thormes) e Gilda Müller; Neném, irmã caçula de Flávio, e seu marido Armando Mascarenhas; e convidados especiais como Guilherme Figueiredo e Alvaro Moreyra. As reuniões eram ótimas, havia leitura de textos, comentavam sobre os novos lançamentos literários, e o apartamento acabou ficando pequeno demais com o nascimento, em 9 de março de 1949, da primeira filha do casal, batizada de Amair em homenagem 207

todos agredia usando a criança como escudo. Flávio desceu do carro e atirou-se contra a mulher, conseguindo pegar a criança, que embrulhou em seu paletó e levou para o consultório do Dr. Rinaldo Delamare, então um dos mais importantes pediatras da cidade. O menino, segundo o Dr. Delamare, tinha aproximadamente nove meses. Seu estado de saúde era lastimável; além de o piche estar colado ao corpo, estava desnutrido. Quando o menino ficou curado, Flávio levou-o para casa. Foi registrado como Washington, pois Flávio achava que era mais ou menos esse o nome que a mãe gritava enquanto tentava afogá-lo e recebeu o sobrenome Souza Lima, em homenagem à rua em Copacabana onde a família Cavalcanti morava. Em 1966, Flávio iniciou uma grande obra na casa de Petrópolis, herança de D. Amair, que só era utilizada nas férias. O clima frio amenizava os problemas circulatórios de Belinha, e em janeiro de 1967 foram todos morar lá. Os distúrbios circulatórios voltavam a acontecer com maior freqüência e seriedade. Belinha não se deixava vencer pela doença, aprendia a conviver com ela. Numa crise surgiu um novo problema: uma arterite temporal, que resultou em uma operação para a retirada de uma artéria necrosada que impedia a circulação do sangue. Ao longo dos seus 63 anos de vida, com muitos altos e baixos, Bela, como carinhosamente Flávio a chamava, jamais esmoreceu ou se queixou das sequelas que a doença lhe deixou. Perdeu a audição e aprendeu leitura labial; ficou paralisada e voltou a andar. Tocava piano, mesmo sem ouvir o som que emitia, era muito vaidosa, engraçada, e dizia que desejava a todos uma boa surdez quando os filhos ficassem adolescentes para não ouvir o barulho que eles faziam. Em Petrópolis, Belinha e Flávio ganharam mais um "filho", Francisco José, o Zé. Louro de olhos azuis, o menino ficara órfão aos dois anos e era sobrinho de Maria do Carmo, uma antiga empregada da família, um verdadeiro anjo da guarda. Não foi assinado nenhum documento de adoção, apenas um acordo de que cuidariam do menino. Mas Zezinho viveu pouco: morreu em 1975 alguns dias antes de completar nove anos, asfixiado no gás do banheiro. Nos anos 70 surgiu um boato que deixou muita gente intrigada, inclusive amigos próximos da família. O boato dizia que Flávio 209

à avó, mas logo apelidada de Marzinha. Com um novo membro na família, Flávio e Belinha deixaram Copacabana e foram morar numa bucólica casa em Jacarepaguá, na Rua Caniú 90, perto do Largo da Pechincha. No início dos anos 50, Jacarepaguá era o fim do mundo. As ruas não tinham calçamento, e para chegar até lá Flávio comprou um jipe Land Rover. A luz era de lampião, o fogão era a lenha, mas tinha tudo o que eles queriam: árvores e muito espaço para criar os filhos que viriam. Aos poucos a casa se transformou num sítio muito charmoso e Flávio voltou a reunir amigos para memoráveis almoços nos fins de semana, onde começou a gravar os Discos Impossíveis, que vieram a se transformar em programa de rádio. Ainda nesta casa nasceram os outros dois filhos do casal, Flávio Cavalcanti Júnior, no dia 3 de setembro de 1950, e Fernanda, dia 31 de agosto de 1951. Em 1953, com Marzinha em idade de ir para a escola, Flávio e Belinha deixaram Jacarepaguá e foram morar na Rua Carlos de Campos, em Laranjeiras, onde Dolores Duran ia visitá-los nas madrugadas pós-boates. Belinha era uma mulher muito culta, inteligente, e servia de retaguarda para todas as investidas profissionais de Flávio. Deliberadamente, por amor ao marido e aos filhos, abriu mão de toda formação que havia recebido para cuidar da casa. Falava fluentemente inglês, francês, alemão, italiano e espanhol, era a companheira perfeita, às vezes dona-de-casa, outras secretária, atuando de acordo com as necessidades da família. Em 1956, aos 32 anos de idade, Belinha teve um espasmo cerebral provocado por um distúrbio circulatório, o que resultou em perda parcial da visão esquerda e deixou-a quase surda. Apesar disso, não perdeu o bom humor. Continuava se esforçando para ser a melhor companheira e mãe, e o ano de 1964 provou isso ao receber em casa mais um filho. Flávio já era sucesso como repórter de Noite de Gala, e uma tarde, passando de carro pela Lagoa Rodrigo de Freitas, próximo de onde havia a favela da Catacumba, presenciou uma cena chocante. Uma mulher totalmente embriagada jogava uma criança no piche que estava sendo usado no asfaltamento da rua e, simultaneamente, tentava afogá-la num tonel de água. Uma pequena multidão assistia à cena sem conseguir segurar a mulher, que a 208

estava brincando com um neto quando, ao jogá-lo para o alto, não conseguiu segurá-lo, deixando o menino cair no chão. Com a queda houve fratura de crânio e morte instantânea. Contava-se essa trágica história com detalhes incríveis. Alguns chegavam a aflnnar que Flávio se afastara da televisão por esse motivo. O boato foi desmentido muitas vezes, mas até hoje me perguntam se tal fato aconteceu, e, como todo boato, ninguém sabe de onde surgiu nem qual a razão. A verdade é que Flávio era apaixonado pelos quatro netos: Jarbas, Flávia, Rafael e Isabel. Brincava com eles como se tivesse a mesma idade, tinha na estante de seu escritório vários brinquedos, como carrinhos, aviões, pequenos jogos que "emprestava" para os netos quando iam visitá-los. Como marido, era dedicado e romântico. No dia 13 de cada mês enviava rosas vermelhas para Belinha. Certa vez, estavam viajando de navio e, na falta de uma floricultura, comprou um quadro onde estava pintada a óleo uma cesta de rosas. Flávio gostava de quadros, gostava do efeito que produziam na parede, sem se preocupar com o valor que eles poderiam ter em caso de serem vendidos. Houve um tempo, antes da revolução de 64, em que Millôr Fernandes era amigo de Flávio e foi passar um fim de semana na casa de Petrópolis. No sótão havia muitos quadros deixados por D. Amair, e entre a poeira e teias de aranha Millôr reconheceu um estudo de Picasso valiosíssimo. Com isso o quadro foi incorporado à pinacoteca da família, acrescida depois de dois quadros de Teruz —'um deles presente de Adolpho Bloch -, alguns de Monsueto e outros de pintores pouco conhecidos.

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"Eu não fico parado, não. Às vezes é que me param e isso acontece por vários motivos."

Flávio era fascinado por relógios. Tinha uma coleção invejável, onde incluíam-se um Vacheron Constantin e um Patek Philip. Gostava de relógios com pulseira de couro, e cada dia usava um modelo diferente, buscando combinar com a roupa. Algumas relojoarias, sabendo de sua coleção, enviavam-lhe os novos lançamentos, e Flávio acabava comprando todos. Quando morreu, os filhos separaram três relógios para dar aos amigos que estiveram mais próximos em seus últimos momentos. O apresentador Sílvio Santos, o empresário José Camargo e o médico que o atendeu, Dr. Duprat, ficaram com essas lembranças. Os outros foram divididos entre a família.

30 Dona Belinha gostava de lembrar a passagem bíblica de José do Egito que falava dos sete anos de vacas gordas e sete anos de vacas magras. O mesmo fato se repetia com eles. As vacas estavam magérrimas. Os juros pagos pela hipoteca da casa aumentavam. Calculados em dólares, diante da desvalorização diária do cruzeiro, iam crescendo assustadoramente. Desde a saída da Tupi, em 74, eram quase três anos com prejuízo atrás de prejuízo. Flávio mantinha-se de cabeça erguida, pagara todas as dívidas, só faltava a hipoteca da casa. O empresário Marcos Lázaro contou-me que no período do programa na Tupi em São Paulo os atrasos nos pagamentos eram constantes, e ele adiantava os pagamentos da produção. Contou-me que o apresentador, durante um longo período, ficou lhe devendo uma vultosa quantia e pagou até o último tostão. Mas de qualquer maneira aquela situação era muito dificil para o homem que fizera o Brasil parar, consagrado como o "Senhor dos Domingos", um campeão de popularidade. Flávio não tinha medo do trabalho e saía em busca de alternativas. Junto com Oswaldo Miranda, ex-produtor do programa e velho amigo, tentou inovar no rádio. Quem sabe se, voltando ao ponto de partida, o rádio, conseguiria melhores resultados? Assim, criou um programa de rádio para ser vendido para todo o país. Ainda acreditava na força de seu nome, em honra a um passado tão recente. Gravou o programa-piloto, distribuiu para as principais rádios, mas a resposta ficou aqiiiém do esperado. 213

Às vezes pingava um pagamento atrasado da Tupi, mas não era suficiente. A luzinha no final do túnel veio de São Paulo. A Rádio Mulher, onde Hebe Camargo fazia um programa, oferecia um contrato. Voltaria ao rádio num programa diário, de segunda a sábado. Topou a proposta. Mais do que um contrato, era uma forma de começar de novo aos 54 anos de idade. Sentia-se jovem para enfrentar o novo desafio de acordar cedo e usar só a voz. A imagem ficava congelada. Junto com Belinha, deixou para trás a casa de Petrópolis e começou vida nova num pequeno apartamento. No dia l 9 de outubro de 1977, ele estreava na Rádio Mulher. Os paulistanos foram generosos. Reverenciaram sua volta retribuindo o programa com boa audiência. Finalmente ele voltava a ser notícia. Novos amigos surgiram e velhos voltaram a procurá-lo. Entre eles, a TV Tupi, um caso de amor e ódio malresolvido, que agora lhe acenava com nova proposta de trabalho para remontar o Programa Flávio Cavalcanti em São Paulo. Gato escaldado tem medo de água fria, e por isso Flávio procurou se cercar dos melhores advogados para garantir um bom contrato. Não tinha mais idade para errar. Pensou muito, consultou amigos e família, e resolveu encarar novamente a telinha da TV. No rádio não se sentia completo. Pelo novo contrato, poderia faturar um extra com os comerciais, e isso lhe dava mais estímulo. Mas a mudança geográfica não mudara aTupi. A empresa mais parecia um saco de gatos. A tradicional logomarca das Associadas, um jovem índio, não representava a realidade da tribo, repleta de caciques. Todo mundo apitava, dava ordens, e ninguém fazia nada. Depois de acertado que o programa seria feito em São Paulo, a Tupi resolveu que o melhor seria gravá-lo no Rio. E dá-lhe ponte áerea. A Tupi, querendo reparar todas as mancadas dos últimos quatro anos, preparou uma grande campanha para a volta do apresentador, publicando o seguinte anúncio nos principais jornais: "O Caso Especial da Tupi Ele criou um caso quando começou a quebrar discos na TV. Criou um caso quando participou do resgate do cônsul Aloísio Gomide das mãos dos tupamaros. Criou um caso quando inventou o júri de televisão. Criou um caso quando entrevistou os 214

sobreviventes do desastre aéreo nos Andes. Criou um caso quando entrevistou o Papa Paulo VI. Criou um caso quando ajudou a eleger o homem mais bonito do Brasil e descobriu a Rose mais salgada do país. Casos que agradaram e desagradaram a muita gente, mas que chamaram a atenção, foram discutidos, não passaram em branco, e foi criando caso que ele criou os maiores índices de audiência da televisão brasileira. Agora a Rede Tupi resolveu trazer de volta Flávio Cavalcanti e colocá-lo no ar outra vez. Pelos mesmos motivos que ele saiu do ar: por falar às claras, por dizer o que pensa, por defender a chance de muita gente, inclusive sua própria chance. Aguarde os próximos casos de Flávio Cavalcanti. Talvez o maior deles seja a sua volta. Neste domingo, 8 da noite, Flávio Cavalcanti, o criador de casos, ao vivo." Flávio deixou a Rádio Mulher no final de 78, ao sentir-se estabilizado na Tupi, apesar de todas as dificuldades que encontrava na emissora, principalmente quanto à falta de apoio técnico para o programa. Em agosto de 79, voltou a morar no Rio, desta vez num apartamento alugado na Avenida Atlântica, em Copacabana. A casa de Petrópolis não era mais sua. Perdera-a na hipoteca feita com um banco. A diretoria do banco se comoveu com a história e tentou de todas as maneiras ajudar o apresentador a manter seu patrimônio, mas não adiantou. Vão-se os anéis e ficam os dedos. Ao menos as vacas estavam pastando menos magras em seu jardim, o otimismo e a fé em dias melhores jamais o abandonaram. Ele acreditava e gostava do que fazia. Melhor ainda, voltava para os seus domingos. Com a volta ao Rio, a convite de Edvaldo Alves da Silva, Flávio assumia também uma outra função: diretor da Rede Capital. Além de dirigir a rede de rádio no Rio, apresentava um programa diário, de segunda a sábado. Na Tupi, entretanto, os problemas não demoraram a começar. Em janeiro de 80, os pagamentos novamente voltaram a atrasar, e, pior ainda, não havia condições para produzir o programa. Se Flávio conseguia bons jurados e boas atrações musicais era apenas pelo seu prestígio pessoal. Pagava do próprio bolso as passagens de avião e as despesas de hotel de seus convida215

dos. A Tupi também passara a atrasar os salários menores, dos técnicos e da produção, o que provocou uma greve geral no Rio, em junho. Eram os estertores da televisão pioneira no país. Sofria uma morte lenta, gradual, triste, sem a menor elegância. Antes da greve, Flávio tirou o programa do ar e se aliou aos companheiros do Sindicato dos Artistas e dos que participavam da luta. O movimento carioca era liderado por Paulo Celestino e João Roberto Kelly. Com a greve, a Tupi do Rio ficou fora do ar, e as imagens que chegavam eram transmitidas de São Paulo. O grupo carioca tentava de todas as formas denunciar às autoridades a crise da empresa. Uma equipe se reuniu e foi a Brasilia pedir a destituição do síndico geral do Condomínio das Associadas, João Calmon. Flávio foi junto, mas nada foi conseguido. Finalmente a Tupi de São Paulo aderiu à greve, ejá não havia imagens a serem geradas. Em 17 de julho de 1980, o governo cancelou a concessão dos canais de televisão da Rede Associada. Num último suspiro, saudosos, os profissionais da emissora ficaram em vigília durante 24 horas, até a imagem do pequeno índio sair do ar e entrar para a história. A amizade e a união na família sempre foram motivo de orgulho para Flávio Cavalcanti. No dia 10 de janeiro de 1969, com o casamento de sua primeira filha, Marzinha, com Jarbas Luiz Braga, na Catedral de Petrópolis, Belinha e Flávio ficaram realizados. Não apenas pela cerimônia, oficiada por Dom Valdir Calheiros, bispo de Volta Redonda, como também pela certeza de que tinham ganhado mais um filho. Era fundamental que a família estivesse unida e a chegada de um novo membro representava uma soma de amor, carinho e fraternidade. Esse conceito, forjado em bases cristãs, era muito forte entre os Cavalcanti. Eram como um clã e, por isso, da mesma' maneira que usufruíram das regalias do apogeu do Senhor dos Domingos, agora, em 1975, dividiam as tristezas. A frustração com a boate e restaurante Preto 22, uma tentativa de não depender mais da televisão, e a malfadada experiência com a primeira emissora de Silvio Santos foram terríveis. No entanto, uma dor ainda mais profunda surgiu quando um elo na família se rompeu. Flávio pai e Flávio filho se afastaram. Centenas de casos são analisados por psicólogos mostrando 216

como é diffcii ser filho de pai famoso. Principalmente quando se tem o mesmo nome do pai. Quando conheci Flavinho - como era chamado -, ele tinha pouco mais de vinte anos. Era um garoto alto e magro, fisicamente muito parecido com o pai. Durante o dia trabalhava na produção do programa, à noite estudava na Faculdade de Direito. Apesar de ser o filho do patrão, não tinha muitas regalias. Flávio era muito exigente com a equipe, e isso também se repetia com o filho. Os profissionais que produziam o Programa Flávio Cavalcanti eram experientes e ainda tinham a opção de ir trabalhar em outra emissora caso discordassem do patrão. Mas Flavinho não tinha essas alternativas. Muitos acreditavam que ele seria a continuidade do pai nos programas de televisão, e em 1971 os primeiros testes foram feitos. Naquela época o Programa Flávio Cavalcanti tinha seis horas de duração: começava às 5 da tarde, com o quadro "Enquanto Seu Flávio Não Vem", uma prévia do programa, apresentado por Flavinho. Em outras ocasiões ele já havia substituído o pai, mas não era preciso ter muitos conhecimentos de psicologia para perceber que aquela não era a sua essência. Em 1975, Flávio Jr. já estava casado com Suzana, era pai de Bebei, e a relação de dependência do paio incomodava. Apesar de ter começado a trabalhar aos dezesseis anos na Prefeitura de Petrópolis, desde os dezenove seus rendimentos dependiam diretamente dos negócios de seu pai, ou seja, do sucesso na televisão. Com o fim do Preto 22, onde atuava como gerente, sentiu que era o momento de buscar seu próprio caminho. Tinha consciência de que seu nome, acompanhado de um Júnior no final, abriria muitas portas, mas também fecharia outras tantas. Flávio Cavalcanti estava fora da televisão, sem perspectivas de um novo contrato, e desconfiava da capacidade do filho de caminhar com suas próprias pernas. Um problema difícil de ser contornado, pois, ao admitir que o filho iria procurar outra forma de sobrevivência, indiretamente teria que admitir o seu crescimento. Flávio Jr. manteve posição firme e foi procurar emprego através de anúncios nos jornais. Daí o rompimento nas relações. Flávio Jr. conseguiu trabalho em uma empresa que organizava congressos. O salário não era fixo, mas resultado dos negócios conquistados. Trabalhou seis meses. Devido à pouca experiência, 217

foi ludibriado pelo patrão e, ao deixar o emprego, recebeu um cheque pré-datado para dois meses depois. As dívidas se acumulavam e as despesas do apartamento onde morava com Suzana e Bebei eram pagas com auxílio do sogro. Foi nessa situação que um dia, caminhando pelo calçadão de Copacabana, encontrou Adolpho Bloch. A família Bloch sempre foi amiga dos Cavalcanti, e o diálogo entre Adolpho e Flávio Jr. foi curto e objetivo: - Meu filho, você não está trabalhando porque é vagabundo ou porque não tem emprego? - Não tenho emprego, seu Adoipho. - Então passa amanhã na Manchete. No dia seguinte Flávio Jr. começava a trabalhar como contato de publicidade da revista Fatos & Fotos. Ganhava salário-mínimo, mais 10% sobre as comissões dos anúncios vendidos. Em poucos meses fechou um grande negócio com a edição especial dejeans: 68 páginas vendidas. Um faturamento tão elevado que lhe valeu a promoção para gerente da sucursal da Manchete em Salvador. Menos de dois anos depois, assumia a direção da Manchete em Brasília, um cargo onde a diplomacia e os bons relacionamentos eram fundamentais. Em 1980, ao completar trinta anos, Flávio Cavalcanti Jr. era um vitorioso. A Manchete ofereceu em sua homenagem um jantar, com a presença de todos os ministros do governo Figueiredo. Flávio pai ainda passava por dificuldades, sonhava em voltar à televisão, e foi ver o sucesso do filho. Ficou emocionado ao perceber onde o filho chegara através de seu próprio esforço. Este reencontro revitalizou a relação estremecida entre os dois e fez com que o filho passasse a ser o ídolo do pai. Foi por estar nessa posição de prestígio que em 1981 Flávio Jr. conheceu Sílvio Santos. O grupo Manchete e o grupo Sílvio Santos haviam conseguido a concessão de canais de televisão, o Canal 6 do Rio e o Canal 4 de São Paulo, respectivamente, que tinham pertencido à TV Tupi. Em meio a essa negociação, o governo tentava que os novos concessionários herdassem também o altíssimo passivo trabalhista da Tupi, e a proposta estava sendo rejeitada. Para que as duas novas emissoras chegassem a um resultado comum com o governo, como o Grupo Silvio Santos não tinha representantes em Brasília, Flávio Jr. conduziu as negociações por ambas as 218

partes. Como resultado, acabou recebendo uma proposta do SBT, onde se encontra até hoje, como diretor da rede em Brasília. Quanto ao pai, este na verdade foi seu grande ídolo. Foi quem o ensinou a ter paixão pelo Fluminense, a fumar charutos, a rir batendo as mãos, a cultivar amigos, a manter a família unida e a buscar a verdade onde ela estivesse, não importando o caminho a enfrentar.

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"Sou um homem de princípios que põe em prática seus valores."

Flávio pediu a José Messias que criasse uma promoção para ajudar a APAE, e o produtor do programa organizou um jogo de futebol com artistas, convidando Armando Marques para ser o árbitro e escalando o apresentador como goleiro. Flávio foi ao jogo acreditando que ia dar pontapé inicial, mas, ao saber que estava escalado, tentou de todo jeito escapar. Como não conseguiu, entrou em campo vestindo a camisa do seu time, o Fluminense, e no primeiro minuto, antes mesmo que a bola chegasse ao gol, armou uma confusão para ser expulso e ficar no banco de reservas.

31 Acabava a Tupi e, com ela, parte da vida de Flávio. Sua imagem estava muito ligada à da emissora, pelas idas e vindas, brigas e pazes, como numa relação afetiva malresolvida. Desta vez, a dor era mais profunda; não havia retomo. Da Tupi restava um monte de processos e discussões judiciais. Sempre tive a impressão de que a emissora era como um ser humano portador de uma grave doença; a morte espreitando-a a cada dia, e ela, já sem forças, não lutava mais para sobreviver. Apesar de todos os pesares, deixou na história a garra de seu criador, Assis Chateaubriand, foi pioneira e forjou grandes profissionais. Flávio foi um deles. Mais uma vez fora do vídeo, Flávio continuou no ar através do rádio, na Rede Capital. Não era mais o "Senhor dos Domingos", nem de qualquer outro dia da semana. Passou a ter dificuldades financeiras, mas jamais perdeu a esperança de que a vida pudesse melhorar. É dessa época uma historinha muito interessante. Em janeiro de 1980, quando Frank Sinatra veio ao Brasil trazido por Roberto Medina, o velho Abraão, pai de Roberto, não esqueceu de seu antigo contratado de Noite de Gala e convidou-o, junto com Belinha, para a estréia do cantor no Rio Palace Hotel. Flávio era simplesmente fanático por Sinatra, queria muito ver o show, mas, como o dinheiro andava curto, comprara ingressos para o espetáculo popular no Maracanã. Com os convites do Rio Palace na mão, tirou seu smoking do guarda-roupa e rumou com Belinha para a 223

grande noite. Não tinha mais carro, e por isso pediu à Rede Capital que enviasse um para levá-los. Na hora combinada, o motorista apareceu com o carro de reportagem, um fusquinha. E lá foi o casal vestido a rigor, apertado no fusquinha. Na porta do hotel, uma enorme multidão aguardava a entrada da seleta platéia, a famosa turma do sereno. Sem se sentir intimidado, como se estivesse num Mercedes Benz, o apresentador saiu do carro. Os aplausos foram tantos que ele se comoveu. Não importava se estivesse rico ou pobre, seu publico continuava fiel. Até outubro de 1981,0 ano correu arrastado, o dinheiro curto, sem muitas perspectivas. Em dezembro desse ano fui morar em Nova York, e Flávio se tornou um assíduo correspondente. Receber suas cartas era um prazer enorme. Além de receber notícias do Brasil sob sua ótica, as cartas vinham acompanhadas de recortes de jornais, revistas, fotos, papéis coloridos, dando-me a sensação que era colocado no envelope tudo que estava em sua mesa. Era como se eu entrasse um pouquinho em sua casa, e assim ficávamos mais próximos. A primeira que recebi veio datada de 4 de fevereiro de 1982, e assim ele falava de sua vida e esperanças: "Lia, meu amor. Sua carta, uma graça, uma alegria. Adorei. Como gosto de você! Que o céu conserve você corajosa, com esta força, esta determinação de ir em frente. Um beijo. Bela, como sempre, maravilhosa. Fernanda um anjo de ternura. Está morando conosco e tomando conta da casa, da mãe e me ajudando muito. Washington com dezessete anos, um Sidney Poitier. Trabalha aos sábados no Oba Oba e durante o dia (de segunda a sexta) numa confecção de modas da Baby, mulher do Nanai. Pulando para Petrópolis: Marzinha e Binha vão muito bem com a academia de ginástica. Mais de trezentos alunos. É o Training Center. Binha, Flavinha e Rafael, uns amores. Adoram o vô Flávio. Eu babo. Em Brasilia Flavinho e Suzana, com a maravilhosa Isabel, vão ótimos. O Júnior é o diretor do Grupo Silvio Santos na Capital Federal. No Rio, mamãe, com seus 96 anos, espalhando sua bênção. Neném e Armando residindo novamente na João Borges, poiso cunhado se aposentou no Itamaraty. Está trabalhan224

do (um talento) numa grande empresa. A aposentadoria tira toda a graça do sábado... Euzinho fazendo o festival de música carnavalesca (sete programas) pro SBT e pro M. Sílvio me fez uma proposta através do Weltman, mas o Travesso e a Marilu estiveram aqui em casajantando, e ele mefez convite para a Globo. Mas nada até agora decidido. Gostaria de estar aí com você. A seu lado, minha Ija. Ouvindo você. Conversando com você. Sabendo de você. Vou procurar o 'nosso' Bernardo. Deixa comigo. Sou 'cônsul', como dizia o meu saudoso Jorge Veiga. Mas e você? Onde eu posso 'entrar'? Você é maravilhosa, e todo mundo adora vocezinha. Tome lá meu coração e faça dele o que bem quiser. Mais um beijinho do seu amigo-pai, Flávio." O otimismo de Flávio era incrível. A conversa com Travesso (Nilton) à qual ele se refere na carta acabou não dando em nada, como também a sondagem de Weltman (Moisés), para um programa no SBT. Apesar de tudo, estava atento a tudo que acontecia, era humilde em reconhecer seu desconhecimento em algumas áreas e era o amigo fantástico que, mesmo passando por grandes dificuldades financeiras, agradava meu filho com pequenos presentes. "SP, 16 de fevereiro de 1982 11 horas da manhã No céu canta um sol lindo Léa, Pra começar: tinha um complexo de inferioridade tão grande que quando se olhava no espelho não via ninguém. Oi olha eu aqui de novo. Acabo de falar com D. Iaiá, que me disse ter Bernardo acordado o vô às seis da manhã de ontem, para que ele o levasse a Copacabana, no Excelsior, onde eu havia deixado um presentinho na portaria. Bobagem. Mas enche os olhos de uma criança. Pela conversa que tive com sua mãe, tudo bem. E vocezinha? Tudo legal? Ontem à noite ouvi uma entrevista com José 225

Guilherme Merquior. Um talento. Nunca ouvira falar no cara. Burrice minha. O homenzinho é crítico literário, ensaísta e autor de vários livros. Deu um banho de inteligência, cultura e Comunicação. Rodou a baiana pra cima do Eduardo Masca renhas. Ninguém agrediu ninguém. Alto nível, O papo foi psicanálise. Concordei muito com o José Guilherme. Desconfio de certos recursos e, principalmente, de certos senhores que se sentam ao lado de um divã. Já não sei quem me havia dito que a psicanálise é a doença mental que se considera terapia. Não há probleminha mais insignificante que um bom psicanalista não possa complicar. Enfim, este assunto, em geral éposto em discussão muito mais pela emoção do que pela razão. Mas babo de ver dois talentos se digladiando com idéias, ironias, sarcasmos, humor e muita erudiçao. Gostaria, amor, que você procurasse minha sobrinha aí. Filha da minha irmã, Neném, e Armando Mascarenhas. Maria Elvira (Virinha). Casada com Fernando Carvalho, os dois têm um filho, Fernandinho, que é uma graça. Você gostará deles, e eles de você. E, de certa forma, poderão ser úteis, nesta Nova York gelada. Belinha muito bem. Fernanda ótima. Washington idem. FlavÍnho e Marzinha estiveram em visita trazendo a netalhada. Tudo azul com pintinhas cor-de-rosa. Recebeu minha carta? Ea revista? Será que eu estou escrevendo para o endereço certo? Antes de começara batucaresta, confirmei com sua mãe o endereço. Espero que você esteja me lendo... Mamãezinha, com seus 96 anos, é que me preocupa. Aquela graça de velhinha parece que está apagando. Neném, Seu Francisco, a enfermeira Márcia, Dr. Pontes, o neto Francisco Lui, todos nós cercando-a de carinho. Praticamente inconsciente. Espero que o céu lhe dê a passagem tranqüila e bendita que ela merece. Foi uma mãe realmente extraordinária. Um charme em meiguice, uma bondade. Que tudo em você e ao seu redor esteja bem. E continue acreditando na amizade do velho patrão que tanto bem lhe quer. Flávio. Mais duas: se no tempo de Cristo o cruzeiro fosse moeda corrente, Judas não teria frito aquele negócio... 226

Finalmente: Um menino para o outro: 'Por mim, eu já teria fugido de casa. Mas papai precisa muito de mim para deduzir no Imposto de Renda.

Uma carta animadora chegou em março de 82, e no final ele me contava: "Ontem a TV Bandeirantes pediu um papo comigo. (Walter Clark caiu, você soube?) Já mandaram aspassagens e quarta-feira vou conversar com a turma de 1d. Hebe telefonou convidando para um jantar black-tie dia 5, lá no Morumbj. Belinha e eu devemos ir. A médica acha que Fernanda não. No mais, Lia, disponha deste seu amigo que a tem em alta conta. Beijo-a. Flávio. São Paulo, 2 de março de 1982— 11h da manhtt"

A conversa com os Saad assim foi descrita: My sweet friend, my unforgetable secretary. Chegou a sua do dia 17. Confesso que já estava preocupado se o LP aterrissou em suas mãos. Escrevo de São Paulo, aqui desta simpatia do Itaim Bibi. Acabo de chegar de mais um papo com o Saad, ou, mais precisamente, os dois, o filho, Johnny, e o paL Recusei uma proposta: programa diário das 21 às 22 horas. Estou louco mas nem tanto. Me agüentarem uma vez por semana já é duro. Diariamente, em horário nobre, com uma infra-estrutura se não pobre, também não pródiga, é um suicídio. A esta altura, os Saadfazem entrarna sala o Fernando Barbosa Lima, alçado ontem a diretor de programação. Dentro do melhor bom senso, evitei inteiramente o desastre sugerindo afixação do Programa Flávio Cavalcanti às terças-feiras, das 21 às 23, ao vivo, diretamente do Teatro Bandeirantes. Parece-me que houve concordância do plenário... Na próxima terça tudo se decidirá. Eaívolto a escrever-lhe sobre o assunto. Com você, tudo bem? Por telefone sei que Bernardo está bem, como vão bem D. Iaiá e seu papai Alceu. Sua carta (estás escrevendo bem, hein, moça?) tem dois trechos que gostaria de comentar: uma graça seu comentário sobre a chegada da primavera. A 227

volta das plantas e das flores me lembra afigura tão simpática do jardineiro. Gosto de mexer com plantas, terra, vasos e flores. O jardineiro é aquele otimista que acredita que tudo que vai para baixo deve ir para cima. Receba em pensamento uma dúzia e meia de rosas. O outro trecho of your letter é quanto a seus planos de escrever um livro. Juro que dará certo. Bestseller na praça. Vai fundo nessa, vai Joga no que escrever sua vida, o bom e o ruim, o escuro e o iluminado, a alegria e a dor, os espantos e as constatações. Sem literatice. Conversa informal. Gol certo. Por falar em livro, me lembrei de uma que me contaram: aquele cara comentava numa roda: 'Sempre ouvi dizer que um homem totalmente realizado é aquele que tem um filho, planta uma árvore e escreve um livro. Ele tinha um filho, um dia plantou uma árvore. O filho trepou na árvore, caiu e morreu. Não lhe restava alternativa: escrever o livro sobre o ocorrido.' Gostei daquela sua frasezinha: 'Deus está jogando no meu time. 'Agarre-se n'Ele então. Não há melhor Telê por aí afora. Fernanda está bem. Minha Bela também. Marzinha, Flavinho, Washington e todos os netos. Ali nice. E a piadinha que corre por aqui: 'As duas coisas mais desconcertantes do mundo: marido que surpreende e marido que não se surpreende.' Um beijo estalado que mando por muito bem querer... Flávio SP, 2913182" As cartas tão ternas que eu recebia mostravam um Flávio sem smoking ou gravata-borboleta. Ele era assim mesmo. Não tinha medo de mudar de opinião e se rendia ao convite da TV Bandeirantes. "Léa, meu amor. Um arco-íris pra você também. Legal seu retratinho. Você está lindinha. Torço pelo seu livro. Não fique a adiar. Começe. Hoje, 22 de abril, são 9:30 da manhã, um dia lindo. Em São Paulo um céu azulzinho assim é dtfícil. Mando um pedaço deste céu para Carol, David e Willie e para o José Luiz também. Acabo de falar com sua mamãe. 'Nosso'filho comendo bem, dormindo bem, mas um tanto quanto aflito, sentindo a falta da mamãe. Já soube que 228

ti você não vem mais (chato), que arranjou um emprego no jornal (ótimo) e que Bernardo vai em maio de qualquerjeito (excelente). Não sei se você sabe que as aeromoças de vôos internacionais são treinad(ssimas em cuidar de menores que viajam sós. A criança vira um príncipe abordo, com mil mordomias, toma atépose e dono de tudo lá em cima. Em que posso ajudar? Quer que eu o leve a bordo? Quer que eu tente uma palavrinha com o Abreu, ou coisa parecida? Enfim, gostaria de ajudar. Me dê uma chance, vá! Já pensou Bernardo estudando aí? E daqui a um ou dois anosfalando inglês? E fico a imaginar o sofrimento de vocês dois em matéria de saudade. Vamos sorrir um pouco? Do talento do Millôr: 1. 'Me deu um sorriso tão artificial quanto uma perna de pau.' 2. 'Um cara assim parecido mais ou menos com todo mundo.' 3. 'Deus - agora, com os astronautas, se mudou para mais longe.' 4. 'Homem - que macaquinho mais FDP!' Acabou o recreio. Aqui em casa tudo bem. Meus netos de babar. No trabalho, vamos indo, com o mesmo entusiasmo, com a mesma garra, enfrentar esta 'loucura' que fechei com a Bandeirantes de fazer um programa de segunda a sexta de 20 às 21h. Começaremos dia 13 próximo. Treze é o canal, é o dia em que completo 25 anos de TV, éo dia em que Belinha e eu nos amarramos (34 anos), e é o dia também que a Bandeirantes soprará quinze velinhas de existência. Deus me dando uma mãozinha, meu anjo da guarda voltando da licença-prêmio, tudo há de sairbem. Recuso nos meus 59 anos perder o entusiasmo. A perda de entusiamo é uma forma de morte prematura, é como aceitar a derrota antes de ser derrotado; portanto, vamos em frente que atrás vem gente, como diria ofilósofo Sued... Uma historinha bonitinha que me contaram ontem: Na primei ra noite da segunda lua-de-mel, os dois pombinhos, ambos com oitenta anos, se deitaram na cama. O marido estendeu o braço para pegar na mão da noiva e ela procurou a dele. De mãos dadas, adormeceram serenamente. Na segunda noite, também entrelaçaram as mãos com ternura. Na terceira, ele estendeu o braço para pegar na mão dela, mas ouviu esta brusca resposta: 'Hoje não, querido. Estou morrendo de dor de cabeça.' A política partidária por aquiferve. Nesta questão eu Continuo 229

confiando em todo mundo, mas cortando o baralho. Grêmio dando trabalho ao Flamengo. Marzinha ampliando sua academia de ginástica em Petrópolis. Sucesso, o comício lançando Lula à governança do estado-locomotiva. Maluf distribuindo mil medalhas. Minha mãezinha lá no Rio, com seus 96 anos, às vezes me reconhecendo e dando aquele sorriso que nunca vou ver outro igual. No mais beijo você com a maior ternura. Flávio. No dia 3 de maio de 82 estreou Boa Noite, Brasil, marcando sua volta definitiva para a televisão. Finalmente os tempos de vacas magras tinham acabado, e assim ele me relatou esta experiência: "Oi, belezinha do meu coração, tirintintim-tirintintão... Tudo bem? Estou no ar. Por enquanto está dando certo. Dia 13 foi noite de grande emoção. Trinta e quatro anos ao lado da mulher que amo. Vinte e cinco anos de TV Quarenta e três anos de jornalismo. E a Rede Bandeirantes fazendo quinze anos. Tudo isso traduzindo em velinhas daria uma fogueira e tanto, pois não? Mas juro pelo Senhor que uma das maiores emoções que tive foi aquele seu telefonema. Perdi até afala. Chorei que me acabei. Sem exagerar, não pude contar a ninguém, nem falar a respeito com ninguém aqui em casa pois a voz não saía. Implosão completa. Beijo na testa e mais amigo me torno seu. No Teatro Bandeirantes, na estréia, 1.300 lugares lotados. Amigos que vieram de longe. Parentes, convidados especiais, torcida do Fluminense, torcida do Corin-thians... todas as agências de publicidade se fazendo representar. Eu entrando pela platéia adentro. Subindo no palco. E me dirigindo à estante num cenário de Ciro dei Nero, simplesmente espetacular (atrás de mim 48 aparelhos de TV funcionando). Tudo muito claro, muito limpo. Olha, amor, veio a taquicardia. Mas o velho aqui agüentou firme. Meu presidente, João Saad, homem frio e distante (dizem), achou a melhor coisa que ele já viu na TV Bandeirantes. Meus companheiros ajudaram muito. Roberto Jorge esmerou-se, e toda a equipe técnica parece que se incendiou de entusiasmo. A turma toda coesa e... claro, Deus deu uma mãozinha e consegui um excelente timing nas apresentações de Márcia de Windsor, Mansa 230

Urban, Armando Marques, S(lvio Caldos, Peri Ribeiro, Alcione, Juca Chaves, presidente Jânio Quadros e os etc. e tal. O programa de uma hora e dez foi se lastrando, entrou pelo horário do programa seguinte porque dizia a direção geral que eu não parasse, que fosse em frente. E o Boa Noite, Brasil ficou em sua noite de parto duas horas e meia. Na sexta-feira (o segundo) consegui, a mim me parece, um bom chute ao gol. Novamente apareceu um público enorme e, surpreendentemente, vários funcionários da emissora viram afigura fria e distante do Sr. João Saad adentrando, feliz da vida, os bastidores. Epensar que éde segunda a sexta, ao vivo, das 21 às 22 horas... Pretendo não darfolga um dia sequera meu anjo da guarda. Quem mandou Ele vir comigo? Cartas, telegramas, minha casa uma verdadeira floricultura... mais de dezoito corbeiles... mas, neste ambiente todo, sobressai um papelucho que vez por outra eu pisco para ele amorosamente... o telegrama de seu Alceu e D. Iaiá... conhece? Ah, Leazinha! Que vontade de poder ajudá-la em seu escritório. Acredito tanto em você que acho que mais cedo ou mais tarde vai aparecer pelas suas bandas o sol do 'deu certo'. Me dê tempo para que eu me entrose mais com a alta direção do 13 que vou sugerir alguma coisa com você. Me mande maiores detalhes de como esta união Flávio-Léa-Bandeirantes se poderia realizar. O único sujeito do mundo que pode dizer af rase que se segue é o consertador de TV: 'Estou em wn daqueles dias horr(veis em que nada pifa.' No mais, sinta-se, considere-se abraçada carinhosamente por Bela, Fernanda, Flavinho, Maninha, Maria do Carmo, Sr. Francisco, Neném e a minha querida figurinha maior da mamãe Maria Eugênia... Ah! o Bonifácio também. Tome lá outro beijinho. Flávio P.S. - Bonifácio é o meu papagaio moleque e lindo que só ele." Em maio de 83 Flávio estava entusiasmado com o programa, apesar do cansaço, e assim me contava as novidades. 231

"Lia, meu amor. Só agora recebo sua carta de 1411. Saudade. Obrigado pelo telefonema do dia 15. Contente por saber que o 'nosso 'fi lho está um rapagão, amigo, compreensivo e bem ao lado da mãe. Outro dia, no avião, o pai dele veio conversar comigo. Muito simpático, mas muito magro, e disse da sua pretensão de dar um pulo aí em junho oujulho, não me lembro bem. Como vai esta brancura Rinso? Gosto tanto de você que não há cartinha sua que eu não me emocione até às raias de uma lagrimazinha. Belinha muito bem. Fernanda idem. Meus netos, uma graça. Marzinha em pleno vapor com o sucesso de sua academia de balé e ginástica Training Center. Mais de quatrocentos alunos. Brinca-se em Petrópolis que é in fazer parte da academia. Está com uma carinha e um corpinho de dezoito anos. Na verdade completou 33... Júnior diretor do Grupo Silvio Santos em Brasília. Ganha bem e Sílvio gosta muito dele. Chama-o de quebra-galho, o melhor que a empresa já teve, junto às autoridades governamentais. Do meulado, as coisas vão ótimas. Apesar das reiteradas promessas lá do Morumbi, na verdade na verdade estou segurando a barra de uma segunda a sexta de 9 às 11, com mais de nove brakes de 'nossos comerciais, por favor'. Para falar a verdade, gosto da família Saad, sempre muito carinhosa comigo. Boa Noite, Brasil já virou pichação contínua do Pasquim, caricatura do Jornal do Brasil. Um cidadão que não sei quem é imprimiu caricaturas minhas e vende pelas ruas de São Paulo (anexo). E mais, vireifrevo do carnaval de Recife, e ainda lá pelos lados do Nordeste virei literatura de cordel. Até agora, fora o Troféu Imprensa do SBT (ganhei por 7a 3), o Boa Noite ganhou mais nove troféus. Inclusive da revista Amiga. Fechei contrato ontem com a CBS para produzir dois Ws. Um As 12 Canções Nota 10/Internacionais. Já fiz a seleção. E o segundo LP As 10 Canções Nota 10/Brasileiras. Estou elaborando. No mais, aguardo você em julho com uma ternura deste tamanho. Acredite sempre neste seu amigo. Flávio 5/2/83 Sábado —Ijhda manhã. " 232

Em julho de 83, porém, depois de uma série de atritos com a produção, Flávio pediu rescisão de contrato. Nesta época já havia conquistado São Paulo, e aos poucos voltava a ter projeção em todo o Brasil. Eu estava passando férias no Brasil e fui visitar Flávio por alguns dias quando tudo isso aconteceu. A Globo sondou o apresentador, houve negociações, mas nenhum resultado satisfatório. A proposta feita por Walter Lacet e Edvaldo Pacote, dois diretores globais, era para um programa semanal, a estrear em março de 1984. Flávio Jr., quando soube da proposta que o pai recebera, telefonou para Pacote. Uma conversa gentil e franca, mas percebeu que o interesse da TV Globo era tirar Fávio da TV Bandeirantes, pois o sucesso voltava a incomodar. Flávio pai, por sua vez, tinha medo de ficar longe do vídeo por tanto tempo e recusou, apesar de honrado com a proposta e fascinado em poder trabalhar com a tecnologia global. Nunca ninguém quisera tanto fazer um programa na Globo como Flávio Cavalcanti, mas o convite vinha tarde demais. Ele estava escolado, e não tinha muito tempo a perder. Simultaneamente a esse telefonema para a TV Globo, Flávio Jr. telefonou para Sílvio Santos, pois sabia do interesse do SBT em ter seu pai como contratado. Mas Flávio se recusava a conversar com Sílvio. Lembrava o desastre com seu contrato em 1976 e temia que a história se repetisse. Sílvio concordou com o valor do contrato, hoje o equivalente a 100 milhões de cruzeiros, com a condição de que o programa fosse gravado. Flávio insistia no programa ao vivo, e não chegavam a um acordo. Por fim Luciano Calegari prometeu que o programa seria ao vivo, sem consultar Silvio, e o contrato foi assinado. Curiosamente, as duas assinaturas que constaram do contrato foram de Flávio Cavalcanti Jr. Ele assinava pela contratante, SBT, e como procurador do pai. Assim Flávio resumiu essa odisséia em uma carta para mim datada de 27 de agosto de 1983. "Lia, meu anjo. Toma lá um beijo. Obrigado pelo telefonema, pelas cartas. Do Carmo ficou feliz. É sábado. São 10 e meia de uma manhã pouco paulista: linda e quente. Vai dar piscina. Mas senti vontade de batucar um pouco pra você nesta Olivetti. Por aqui a ópera se 233

resume assim: depois de muita conversa com a senhora Dona Globo (por sinal conversas longas e agradáveis) dentro de um clima surpresa pra mim, pois pude aquilatar o quanto estou valendo (?)na praça. Pacote e Lacet foram de uma distin ção fora de série. Ficamos amigos e na troca de telegramas (meu-pra-eles-eles-pramim) está patente que a porta ficou aberta. Antes asim.. Mas as vantagens do SBTforam bem melhores e atendiam mais aos meus interesses do momento. Estréio dia 18, domingo, setembro, às 20 horas até as 23. Ao vivo. Ser ao vivo faz parte do contrato. Será em grande gala (na roupa, no cenário e espero em Deus na produção...). Estou feliz Penso que o SBT também. São tantas as homenagens, os convites para reuniões que posso antever dois anos de trabalho em harmonia, de que ambas as partes precisam para que o show seja um produtofinal válido para oprezadopablico... Anexo alguns recortes. Nada é totalmente como a gente quer. As viagens ficam pra outra vez.. O calor p. na Europa (Roma) seria péssimo pra Belinha. Sem ela fico manco. Ir até a( (NY) acabou dando em nada, pois a preparação do programa exige muito de minha orientação pessoal. Mas tudo bem, num legal, num olç, você venceu... Conhece estas? O garotinha pra mãe: 'Mãe, se eu morrer você me faz de novo?' O mesmo garotinho: 'Vovó, a senhora é linda. É a velha mais nova que eu conheço'... Pra terminar, mando esta: A sorte mistura as cartas e nós jogamos depois... Seu amigo mesmo Flávio." O Programa Flávio Cavalcanti não estreou dia 18 de setembro como Fávio previa, mas sim 29 de outubro. Começava então a última etapa de sua vida.

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"Se eufosse no palco a atriz que eu sou na vida, seria uma artista consumada e consagrada." Márcia de Windsor

Encontro com Ivone Kassu na ante-sala de Flávio, e nossas barrigas se tocam. Ela grávida de sete meses, esperando André Luiz, e eu de cinco, esperando Bernardo. Kassujá trabalhava com Roberto Carlos há alguns anos e trazia um recado do cantor para o apresentador. Estavam produzindo um quadro no programa em que Caymxni se reencontraria com a filha Nana e Roberto Carlos se prontificava a participar cantando Acalanto. O recado foi dado, o programa foi ao ar, e quem viu com certeza deve se lembrar da emoção. É uma pena que esses vídeos se perderam no espólio da TV Tupi.

32 Márcia de Windsor foi uma das presenças mais marcantes nos programas apresentados por Flávio Cavalcanti. Eles se conheceram no programa Noite de Gala, na TV Rio, ela cantora e ele repórter, surgindo daí uma longa e sincera amizade. Márcia Couto Barreto, este era seu nome verdadeiro. Nascida de uma tradicional famflia mineira, aos dezoito anos se apaixonou por um homem casado, deixou a casa dos pais e foi viver um belo caso de amor numa fazenda em Ilhéus, interior da Bahia. Oito anos depois o amor acabou e Márcia voltou para Belo Horizonte com os dois filhos, Arlindo e Gilberto Márcio, frutos dessa união. Nos anos 50, não só em Minas mas como em qualquer parte do Brasil, ser mãe solteira significava a discriminação pela sociedade e carregar um peso tão grande quanto o de ter praticado um crime. Márcia deixou os filhos com a mãe em Belo Horizonte e veio para o Rio, indo trabalhar como maquiadora no salão do cabeleireiro Renault, no Copacabana Palace. Na intenção de ser manequim para aumentar o salário, matriculou-se num curso da Socila. Por coincidência, nessa mesma época, Oscar Ornstein, empresário e produtor de grandes espetáculos, procurou Maria Augusta, diretora da Socila, pois estava tentando descobrir uma cara nova para completar o elenco do show de revista Turbillion, que reabriria o Golden Room do Copacabana Palace. Nos anos 50 os shows de revista tinham no elenco, além de cantoras e atrizes, coristas, mulheres bonitas que faziam fundo ao espetáculo. Márcia foi 237

contratada, ensaiou duránte dois meses para andar sensualmente, carregar uma estola de peles sobre os ombros e estreou ao lado de Tônia Carrero, Elizeth Cardoso e Carmem Verônica. O espetáculo foi um turbilhão de fracassos, e só ficou uma noite em cartaz. Mas mesmo assim foi vista por Carlos Machado, o "Rei da Noite", e convidada a ser corista de um outro espetáculo, The Million Doliar Baby, ao lado de Norma Bengeil. Nascia assim a estrela, batizada por Stanislaw Ponte Preta como Márcia de Windsor. Windsor em homenagem à duquesa, a plebéia por quem o rei Eduardo V, da Inglaterra, se apaixonou e renunciou à coroa. Com esse contrato, Márcia conseguiu alugar um pequeno apartamento na Rua Figueiredo Magalhães, em Copacabana, e trouxe os filhos e a irmã mais nova para morarem com ela. De corista dos shows de Carlos Machado foi para a TV Rio participar do programa Noite de Gala, e a sua carreira foi se solidificando. No final dos anos 60, estreou em novela como a espiã Frida, em O SheikdeAgadir, ao lado de Leila Diniz, Maneta Severo e Henrique Martins, com direção de Régis Cardoso. Em teatro, participou de diversas montagens, entre outras Família Pouco Família e O Bem-Amado. Quando Flávio Cavalcanti criou o programa A Grande Chance na TV Tupi, chamou Márcia de Windsor para fazer parte do júri. Márcia acreditava que um ser humano não poderia julgar outro, mas, diante da insistência de Flávio, concordou em participar do programa, estabelecendo que só daria nota 10. Ela partia do princípio de que quem estava ali dava o melhor de si, e por isso recebeu o título de Rainha Nota Dez. Sua elegância em se vestir, sempre formal e chique, era sua marca registrada. Usava vestidos bordados, luvas e estava sempre impecavelmente penteada e maquiada. Tinha um público cativo que todos os domingos aguardava a sua entrada triunfal no Programa Flávio Cavalcanti. Doce, meiga e generosa, Márcia encantava a todos, era apaixonante, mas não conseguiu ser feliz no casamento. Tentou três vezes, a primeira com o pai de seus filhos, depois com o ator Jardel Filho e por último com o empresário Afif Viagni. Em entrevista para Hildegard Angel, publicada no jornal Última Hora, disse: "Não preciso de um homem para me dar nada. Casa, comida, roupa, nada. Isso, sei que sou capaz de conquistar sozinha. Acho 238

que o amor é as pessoas aceitarem as outras como elas são. Conhecerem, de cor e salteado, os defeitos do outro, e aceitarem. Qualquer amor acaba quando você precisa se violentar, se modificar, amoldar-se a uma coisa que a outra pessoa quer que você seja e você não é." Em 1982, Márcia estava morando num hotel em São Paulo. Fazia a novela Ninho de Serpentes, escrita por Ivani Ribeiro, na TV Bandeirantes, e na mesma emissora, às terças-feiras, participava do programa de Flávio Cavalcanti, Boa Noite, Brasil, onde apresentava o quadro "Meu Neto É uma Graça". Estreou este quadro mostrando seu neto, Diego, filho de Arlindo e Zélia. A admiração de Flávio por Márcia era tanta que ele fez para ela uma singela poesia, musicada por Hélio Matheus e gravada por Moacir Franco, em 1970, no LP Nosso Primeiro Amor, lançado pela Copacabana Discos e editada por Irmãos Vitale S/A. É a seguinte a letra de Minha Amiga Márcia:

Márcia amiga O tempo vem dizer Que eu vi você crescer Como irmão. Tão df(cii Agora eu lhe falar Só posso então lhe dar Esta canção. No dia 4 de agosto, depois do programa, Márcia jantou com amigos, foi para o hotel e dormiu para sempre. Sozinha, foi fulminada por um enfarte do miocárdio. Seu corpo nu foi encontrado pela camareira às 8:30 do dia seguinte. Os amigos mais próximos, Hebe Camargo, Kito Junqueira, Carluccio e Giovani correram para o hotel. Foi vestida como uma rainha, em um vestido azul bordado em dourado, e seu corpo foi velado no Teatro Bandeirantes, em São Paulo, sendo no dia seguinte transportado para o Rio, onde repousa no Cemitério São João Batista. 239

Em 1986, ao completar quatro anos de sua morte, Artur da Távola escreveu, em sua coluna no jornal O Globo: "Ontem fez quatro anos da morte de Márcia de Windsor, figura pregnante da comunicação popular via tevê no Brasil, espécie de madrinha geral, fada bondosa. Operou dentro do arquétipo da mãe generosa, razão pela qual era estimada, obtendo níveis altos de empatia pela afetividade exacerbada que possuía e transmitia. Como atriz de telenovelas, Márcia de Windsor se destacou, além, é óbvio, de locutora e apresentadora, mercê da belíssima voz grave e o belo porte." Maga, fada, mãe, amiga, irmã, tia, Márcia era uma mulher especialíssima, uma luz, uma estrela. A jurada Nota Dez foi a décima integrante do júri de Flávio Cavalcanti a morrer. Primeiro foi Leila Diniz (1972); depois o maestro Erlon Chaves (1974); a pantera Angela Diniz, assassinada em Búzios (1976); a cantora e compositora Maysa (1977); o costureiro Denner (1978); o jornalista José Fernandes (1979); o compositor e jornalista Sérgio Bittencourt (1979); o radialista Jorge da Silva, conhecido como "Majestade" (1979), e o cronista Fernando Leite Mendes (1980). Até na morte ela foi dez.

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"Maior que tudo isso éDeus lá em cima."

O fato de Sílvio Santos ter grande visão de negócios não o transformou em um homem frio e calculista, O SBT deixou de faturar a audiência dos programas e os intervalos comerciais tirando do ar toda a sua imagem no dia 27 de maio de 1986 e colocando apenas uma tarja preta, em luto pela morte de Flávio Cavalcanti.

HI 33 Como Programa Flávio Cavalcanti no SBT,o apresentador voltou a ter prestígio, sucesso e popularidade. A estratégia de Silvio Santos tinha como alvo combater Chico Anysio, o grande concorrente na 1V Globo. O programa estreou numa quarta-feira, mas alguns meses depois, a Globo, sentindo que a audiência de Flávio ameaçava o seu humorístico, transferiu Chico Anysio para as quintas-feiras e em seu lugar colocou o Globo Repórter. Com isso Flávio também passou para as quintas, e nesse jogo disputava-se os pontinhos do IBOPE. O Programa Flávio Cavalcanti tinha sua fórmula certa e imutável. Era ao vivo, mesclava música, reportagens, concursos, competições, jurados e auditório. Diversos quadros foram criados, como "Brincando com as Estrelas", uma competição entre artistas, onde Xuxa concorria com Sônia Lima; outros foram revividos, como as tradicionais entrevistas de "Flávio Confidencial" e o julgamento de músicas, uma continuidade de Um Instante, Maestro! No corpo de jurados se destacaram, entre outros, o playboy paulista Chiquinho Scarpa, a ex-chacrete Sandra Matera, o repórter Wagner Montes, a comediante Nair Beilo, o cabeleireiro Dorian e as jornalistas Alik Kostakis e Sônia Abrahão. Em São Paulo, Flávio Cavalcanti reencontrou muitos amigos como Hebe Camargo e Lélio Ravagnani, Rosinha e Samuel Goldfarb, Labibi e Edevaldo Alves da Silva, e sempre elogiava a generosidade dos paulistas. Era muito grato por ter conseguido 243

começar de novo aos 60 anos e se recuperado financeiramente. Além de ter um contrato milionário com o SBT, tinha liberdade para explorar espaços de merchandising dentro do programa. Estava novamente abonado, e seus rendimentos eram aplicados com segurança. Entretanto, como nos velhos tempos, ele repetia a mesma generosidade ao presentear os amigos. Um dos exemplos mais engraçados dessa fase foi quando comprou todos os móveis para o apartamento dos noivos Cíntia, sua secretária, e Luiz, um jovem advogado. Flávio sabia das dificuldades do jovem casal e, num ímpeto, entrou numa loja, comprando o mobiliário completo, da sala ao quarto. A vontade de ajudar era tanta que não se preocupou em saber se o estilo escolhido agradaria aos noivos. Cíntia e Luiz receberam o presente constrangidos, chegaram a pensar em trocar por algo mais de acordo com seus planos, mas preferiram respeitar o gosto do amigo. Flávio era assim. Gostava de ter amigos por perto e recebia com distinção. Em 1985 saiu do apartamento alugado e comprou uma linda casa no bairro do Morumbi. Um ano depois abria algumas garrafas de champanhe comemorando o pagamento da última parcela. Um fato digno de comemoração, pois jamais comprara uma; todas as que teve vieram através de herança. O apartamento em Copacabana, presente de seus pais; a casa em Petrópolis, a base foi construída por sua sogra. Finalmente cumpria a promessa à sua família: uma casa comprada com seu próprio dinheiro. Mas Flávio ainda queria um pouco mais. Dizia que a qualquer dia ia parar, largaria tudo para construir um pequeno hotel numa praia. Só queria o suficiente para viver. O projeto tomava conta de sua cabeça. Queria ter passarinhos à sua volta e curtir a paz e a natureza. Mas não houve tempo. Na quinta-feira, 22 de maio de 1986, começou a se sentir mal no ensaio do programa. Queixava-se de frio, apesar de o ar-condicionado estar desligado, e continuou firme, para apresentar seus convidados daquela noite, entre eles o então ministro Rafael de Almeida Magalhães. Há algumas semanas eu tinha pedido a Flávio para apresentar no programa Elymar Santos, um cantor que alugara o Canecão, e o assunto tinha sido amplamente explorado pela imprensa. Naquela noite Flávio atendeu ao meu pedido. Elymar cantou duas músicas, deu uma pequena entrevista e, no final, antes de Flávio pedir o tradicional "nossos 244

comerciais, por favor", deixou no ar sua última frase: "Um beijo para Léa Penteado." O programa saiu do ar, entraram os comerciais e Flávio começou a sentir falta de ar e uma forte palpitação. Foi chamada uma ambulância, que chegou em doze minutos e o transportou para o Unicor. No palco o show continuava, e o apresentador foi substituído por Wagner Montes, um dos jurados. No dia seguinte telefonei para o hospital. Fernanda me disse que ele estava bem. No sábado liguei de novo e consegui falar com ele: - Eu vou até aí. - Não precisa, já estou melhor. É frescura do médico, querendo que eu fique mais uns dias. Quando eu for pra casa te ligo, você vem passar um fim de semana comigo. Esse fim de semana não aconteceu. Na segunda-feira, dia 26 de maio de 1986, às 17:50, Flávio Cavalcanti faleceu. Causa mortis: choque cardiogênico, enfarte agudo doíniocárdio. Seu corpo foi velado na Assembléia Legislativa de São Paulo, e durante toda a noite centenas de amigos, novos e antigos, anônimos e famosos, foram levar um último adeus. No dia 27 de maio, pela manhã, o seu corpo foi transportado para o Rio num jatinho cedido pelo empresário José Camargo. Fui buscá-lo no Aeroporto Santos Dumont para levá-lo até o Cemitério Municipal de Petrópolis, onde seu corpo repousa. Um ano depois, no dia 19 de junho, Belinha foi ficar ao seu lado. Flávio e Belinha viveram exatos 63 anos. Sua última mensagem ainda está no ar, gravada em vídeo. "Um beijo para Léa Penteado." Com carinho retribuo o teu beijo.

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15 de janeiro de 1923-

Nascia no Rio de Janeiro Flávio Antônio Barbosa Nogueira Cavalcanti, filho de Maria Eugênia Barbosa Cavalcanti e do médico Manoel Bezerra Cavalcanti. 1945Começa a trabalhar no Banco do Brasil e, quase simultaneamente, estréia como repórter no jornal A Manhã. 13 de dezembro de 1947- Fica noivo de Maria Isabel Horta Pereira QuintAo, Belinha. 31 de dezembro de 1947- Flávio se desliga do Banco do Brasil e é nomeado tesoureiroauxiliar da Alfândega do Rio de Janeiro. 13 de maio de 1948Casa com Belinha. 9de março de 1949Nasce a primeira filha, Amair Quintão Barbosa Cavalcanti. 3de setembro de 1950— Nasce Flávio Barbosa Cavalcanti Júnior, o segundo filho. 247

195031 de agosto de 1951 -

1951-

1952-

1955-

19561957-

4de junho de 1959—

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Início das gravações do que viria a ser o programa de rádio Discos Impossíveis. Nasce Fernanda Quintão Barbosa Cavalcanti, a terceira filha. Sua primeira composição, Mancha de Batom, feita em parceria com o irmão Celso, é gravada pelo conjunto Os Cariocas. Início do programa Discos Impossíveis aos domingos, na Rádio Mayrink Veiga, Rio de Janeiro. Estréia Nós os Gatos, com Jacinto de Thormes, na Rádio Mayrink Veiga. A convite de Vítor Costa, leva para a Rádio Nacional o programa Discos Impossíveis. Vai para a Rádio Tupi levando Discos Impossíveis. Substitui por três semanas o apresentador Jacinto de Thormes no programa Acontece Jacinto de Thormes, na 1V Rio. O programa Um Instante, Maestro! estréia na TV Tupi. Dolores Duran acaba de escrever A Noite do Meu Bem, na casa de Flávio.

1960-

19611964 -

17 de maio de 19641965-

1966-

1967-

1968 -

Estréia na TV Rio como repórter do programa Noite de Gala. Entrevista com Tenório Cavalcanti para Noite de Gala. Entrevista o presidente norteamericano John Kennedy em Washington. Flávio pede demissão da Alfândega para se dedicar apenas ao rádio e à TV. A rua onde mora em Petrópolis passa a se chamar Flávio Cavalcanti. Estréia na TV Excelsior, no Rio, e lança o júri em TV, produzindo e apresentando os programas Um Instante, Maestro!, Os Dez Mandamentos de um Show, O Povo Pergunta na Copa do Mundo, Elza, Miltinho e Samba e O Povo Pergunta aos Políticos. Volta para a TV Tupi com Um Instante, Maestro! e lança os programas A Grande Chance e Sua Majestade É a Lei. Primeira final de A Grande Chance no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Primeiro lugar, Mansa Rossi. Realiza A Grande Chance em Portugal. 249



10 de janeiro de 1969 - Casamento da sua filha Amair (Marzinha) com Jarbas Luiz Braga. de 1969 Nascimento de seu primeiro 25 de outubro neto, Jarbas Braga Neto. 5 de julho de 1970— Estréia do Programa Flávio Cavalcanti na TV Tupi, Rio de Janeiro. junho de 1971 -

Estréia do programa Flavio Especial na TV Tupi de São Paulo.

Fim do programa Flávio Especial, em São Paulo. 18 de março de 1973 - O Programa Flávio Cavalcanti é suspenso, ficando sessenta dias fora do ar. O Programa Flávio Cavalcanti 20 de maio de 1973 - volta ao ar. Flávio deixa a TV Tupi. 29 de julho de 1973 23 de setembro de 1973 - Estréia do Programa Flávio Cavalcanti na TV Rio. 05 de janeiro de 1974 - Flávio volta para a TV Tupi. Deixa a TV Tupi devido ao atraoutubro de 1974 - so dos pagamentos. 30 de novembro de 1974 - Nascimento de Isabel Femandes Cavalcanti, filha de Suzana e Flávio Cavalcanti Júnior. Inauguração da boate e restau 13 de maio de 1975 rante Preto 22. 31 de março de 1976 - Volta à televisão, estreando no Canal 11, TVS, Rio de Janeiro, com o programa Um Instante, Maestro!

junho de 1972 -

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maio de 1976—

Sai da TVS por problemas técnicos. setembro de 1977 Muda-se para São Paulo. 1 de outubro de 1977 - É contratado para um programa diário, de segunda a sábado, de 11 às 13 horas, na Rádio Mulher, em São Paulo. 7 de maio de 1978 - Volta a fazer o Programa Flávio Cavalcanti na TV Tupi, Rio. 31 de dezembro de 1978 - Sai da Rádio Mulher. agosto de 1979 - Volta a morar no Rio. 1979 - Assume a direção da Pt1 P apitaldrádio. 17 de julho de 1980A TV Tupi é fechada. 3de maio de 1982Estréia na TV Bandeirantes, em São Paulo, com o programa Boa Noite, Brasil. 29 de outubro de 1983 - Estréia no SBT, em São Paulo, com o Programa Flávio Cavalcanti. 22 de maio de 1986Passa mal quando apresentava o programa, sendo substituído por Wagner Montes. É transportado para o Unicor. 26 de maio de 1986 Morre às 17:50 no Unicor, em São Paulo. 27 de maio de 1986É enterrado no Cemitério Municipal de Petrópolis. 19 de junho de 1987Morre Belinha Cavalcanti.

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