ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
Trecho da Estrada de Ferro Madeira Mamoré. Foto: Danna Merril, 1910.
ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
Corpo Editorial Editores Alberto Lins Caldas Prof. Dr. Departamento de História - UFAL
Eliaquim Timóteo da Cunha Centro de Documentação e Estudos Avançados sobre Memória e Patrimônio de Rondônia – CDEAMPRO (http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/9070107951585272)
Conselho Editorial Caesar Sobreira – Antropologia – UFPE Inara do Nascimento Tavares - Antropologia – INSIKIRAN/UFRR Jean-Pierre Angenot - Letras - UFRO Jacinta Castelo Branco Correia - Comunicação - UFRO José Carlos Sebe Bom Meihy – História – USP Lilian Maria Moser – História – UFRO Michel Zaidan Filho - História – UFP Miguel Nenevé – Letras – UFRO Nilson Santos – Educação – UFRO Pedro Rapozo – Sociologia - UEA Raiana Ferrugem – Antropologia – UFOPA Xênia de Castro Barbosa – História - IFRO www.revistazonadeimpacto.unir.br https://www.facebook.com/pages/Revista-Zona-de-Impacto/161448780689967?ref=hl
Sumário
Apresentação ...................................................................................................................................... 6 Eliaquim Timóteo da Cunha............................................................................................................. 6 Dossiê ................................................................................................................................................... 8 O Primeiro Século da Cidade de Porto Velho ................................................................................. 8 Apresentação ............................................................................................................................... 9 Xênia de Castro Barbosa (Org.)................................................................................................. 9 Porto Velho: notas para uma geo-história.............................................................................. 11 Xênia de Castro Barbosa .......................................................................................................... 11 Uílian Nogueira Lima............................................................................................................... 11 Reginaldo Martins da Silva de Souza ....................................................................................... 11 Migração e identidade do negro em Rondônia ...................................................................... 18 Simeia de Oliveira Vaz Silva .................................................................................................... 18 A função da educação no campus Porto Velho Calama e o ideal de homem que se está formando ................................................................................................................................... 28 Iranira Geminiano de Melo ...................................................................................................... 28 Liliane Barreira Sanchez .......................................................................................................... 28 História e patrimônio: os desafios da conservação da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré .................................................................................................................................................... 47 Xênia de Castro Barbosa .......................................................................................................... 47 Laura Borges Nogueira ............................................................................................................ 47 Uílian Nogueira Lima............................................................................................................... 47 Movimentos sociais e escravistas na construção do real Forte Príncipe Da Beira – 1776 – 1783 ............................................................................................................................................ 55 Lourismar da Silva Barroso ..................................................................................................... 55 Ciência e Saúde na Amazônia: uma análise das expedições do Instituto Manguinhos ao vale do Madeira e ao vale do Amazonas ................................................................................. 68 Xênia de Castro Barbosa .......................................................................................................... 68 Maria Enísia Soares de Souza .................................................................................................. 68 Lucas Mariano Dias ................................................................................................................. 68
Uma análise do perfil econômico de famílias impactadas pela cheia do Rio Madeira de 2014 residentes nos bairros Baixa União, Triângulo e Balsa ................................................ 77 Carlos Miguel Teixeira Ott....................................................................................................... 77 José Ítalo Oliveira dos Santos .................................................................................................. 77 Josenaldo Santos Porto ............................................................................................................ 77 Xênia de Castro Barbosa .......................................................................................................... 77 Violência no trânsito uma abordagem da problemática na cidade de Porto Velho ........... 82 Tiago Lins de Lima ................................................................................................................... 82 Maria Enísia Soares de Souza .................................................................................................. 82 Xênia de Castro Barbosa .......................................................................................................... 82 Madson Silva de Souza Junior.................................................................................................. 82 Artigos ............................................................................................................................................... 95 História e Realidade ....................................................................................................................... 96 Alberto Lins Caldas ................................................................................................................... 96 Culturas em movimento Antropologia e Literatura entre o Saara e Paris .................................. 105 Ricardo Moreno de Melo ......................................................................................................... 105 O desenvolvimento econômico no contexto da industrialização na paraíba: engenhos, curtumes e tecelagens ..................................................................................................................................... 123 Luciano Bezerra Agra Filho ................................................................................................... 123 Os artefatos: um reflexo do habitus das elites alagoanas do século XIX .................................... 139 Jarisson Lima Dos Santos Albuquerque ................................................................................ 139 Monografias .................................................................................................................................... 157 Como as instituições de microcrédito promovem a autonomia das mulheres em Moçambique. Estudo de caso da Tchuma, cooperativa de crédito e poupança (Parte II) ................................. 158 Catarina Casimiro Trindade ................................................................................................... 158 Amor só de mãe: drama e estigma de mães de adolescentes privados de liberdade (Parte I) .... 175 Simone de Oliveira Mestre ...................................................................................................... 175 Ensaios............................................................................................................................................. 200 A ditadura em que vivemos .......................................................................................................... 201 Rafael Ademir Oliveira de Andrade ........................................................................................ 201 Notas preliminares sobre como escrever nas ciências sociais .................................................... 209
Maryelle Inacia Morais Ferreira ............................................................................................ 209 Tradução ......................................................................................................................................... 214 A autoridade em desejo. Algumas reflexões sobre sujeição e sexualidades ................................ 215 Aina Pérez Fontdevila (Universitat Autònoma de Barcelona) .............................................. 215 Tradução de Brena Barros (Graduanda Arqueologia UNIR) ............................................... 215 Ensaio Fotográfico ......................................................................................................................... 221 Glacial Perito Moreno: um olhar sobre o gélido azul na Patagônia .......................................... 222 Simone Gomes Marques .......................................................................................................... 222 Sobre as autoras e os autores ........................................................................................................ 228
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Apresentação Eliaquim Timóteo da Cunha
Neste décimo sétimo ano a Zona de Impacto apresenta o primeiro volume dividido em seis sessões. A primeira é composta pelo dossiê, “O primeiro século da cidade de Porto Velho”, somando-se sete artigos. Os títulos são: “Porto Velho: notas para uma geo-história”; “A função da educação no campus Porto Velho Calama e o ideal de homem que se está formando”; “História e patrimônio: os desafios da conservação da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré”; “Movimentos sociais e escravistas na construção do real Forte Príncipe da Beira – 1776 – 1783”; “Ciência e Saúde na Amazônia: uma análise das expedições do Instituto Manguinhos ao vale do Madeira e ao vale do Amazonas”; “Uma análise do perfil econômico de famílias impactadas pela cheia do Rio Madeira de 2014 residentes nos bairros Baixa União, Triângulo e Balsa” e “Violência no trânsito uma abordagem da problemática na cidade de Porto Velho”. A reunião desses trabalhos ocorreu no âmbito do colóquio “Cidade e História – Porto Velho, cem anos”; esse espaço de discussão foi organizado pelo Núcleo de Estudos Históricos e Literários do IFRO – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Rondônia – em parceria com o Centro de Hermenêutica do Presente, da Universidade Federal de Rondônia. Partindo de uma perspectiva interdisciplinar temos contato com temas diversificados, no entanto, complementares no que se refere ao exercício de uma leitura crítica sobre a construção de unidades sociais. A segunda sessão é formada por três artigos, eles são: “História e Realidade” Alberto Lins Caldas; “Culturas em movimento: Antropologia e Literatura entre o Saara e Paris”, Ricardo Moreno de Melo e “Os artefatos: um reflexo do habitus das elites alagoanas do século XIX”, Jarisson Lima dos Santos Albuquerque. Dois ensaios compõem a terceira sessão. “A ditadura em que vivemos” assinado por Rafael Ademir Oliveira de Andrade; “Notas preliminares sobre como escrever nas ciências sociais” sob autoria de Maryelle Inacia Morais Ferreira. As duas monografias, desse volume, configuram a quarta sessão, assim damos continuidade ao projeto “publique seu TCC”. A primeira, “Como as instituições de microcrédito promovem a autonomia das mulheres em Moçambique. Estudo de caso da Tchuma, cooperativa de crédito e poupança”, é uma pesquisa realizada por Catarina Casimiro Trindade; nessa oportunidade segue a segunda parte do trabalho publicado no segundo volume do ano de 2014. Na sequência encontramos a primeira parte da pesquisa “Amor só de mãe: drama e estigma de mães de adolescentes privados de liberdade”, realizada por Simone de Oliveira Mestre. Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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Na sessão tradução compõe-se a quinta sessão deste volume. O texto traduzido é: “A autoridade em desejo. Algumas reflexões sobre sujeição e sexualidades”, assinado por: Aina Pérez Fontdevila, a tradução foi realizada por Brena Barros. Encerrando este primeiro volume de 2015 trazemos o ensaio fotográfico: “Glacial Perito Moreno: um olhar sobre o gélido azul na Patagônia”, um olhar apresentado por Simone Gomes Marques. Boa leitura! Janeiro de 2015
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Dossiê O Primeiro Século da Cidade de Porto Velho
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Apresentação Xênia de Castro Barbosa (Org.)
Em dois de outubro de 2014 a cidade de Porto Velho, capital do Estado de Rondônia, completou seu primeiro centenário de instalação. Formada a partir de terras dos territórios do Mato Grosso e do Amazonas, a cidade se desenvolveu a partir do início do século XX, com a retomada de esforços para a edificação de uma estrada de ferro – a Madeira-Mamoré, também conhecida como “ferrovia do diabo”, e cuja construção tinha sido abandonada em decorrência da crise financeira resultante da Guerra Franco-prussiana (1870-1871), que inviabilizou a aplicação de capitais no projeto. A estrada de ferro, que facilitaria o transporte da borracha dos seringais bolivianos e brasileiros da região de Guajará Mirim e Santo Antonio do Madeira, possibilitou a vinda de milhares de trabalhadores de diferentes países, que nas interações com a população nativa, formaria o primeiro núcleo urbano. Típica cidade amazônica, Porto Velho experimentou nesses primeiros 100 anos um desenvolvimento desigual, expresso em suas formas, que alternam bairros e residências de alto padrão a aglomerados subnormais, e expresso também nas condições de acesso de sua população a bens e serviços, como educação e saúde. O desenvolvimento desigual e a modernidade incompleta repercutem não só em sua paisagem, como também na qualidade de vida, nos perfis epidemiológicos e nos desafios educacionais e políticos de sua história presente. Com o intuito de promover o debate sobre os dilemas e desafios de Porto Velho, o Núcleo de Estudos Históricos e Literários do IFRO – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Rondônia, em parceria com o Centro de Hermenêutica do Presente, da Universidade Federal de Rondônia organizou colóquio com a temática “Cidade e História – Porto Velho, cem anos”, no qual docentes e estudantes dos diversos níveis do ensino puderam refletir, a partir de estímulos interdisciplinares, sobre o espaço onde vivem. Os textos que seguem, diversos e plurais, registram algumas das reflexões tecidas durante o colóquio, e entrelaçam história, geografia e literatura na busca de construção de um discurso inteligível e claro acerca da história do tempo presente, uma história que é, sobretudo, política, em seu sentido clássico de enfrentamento dos problemas da vida da polis. Esses textos não se limitam, Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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contudo, a abordar questões relativas à formação história de Porto Velho, mas posicionam-se também quanto à educação e a educação para o convívio étnico racial, o trabalho, os movimentos sociais escravistas e desafios urbanos presentes na cidade, como a violência no trânsito ou os impactos causados pela cheia fluvial do primeiro trimestre de 2014. São textos abertos e convidativos para a leitura e para a reflexão.
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Porto Velho: notas para uma geo-história Xênia de Castro Barbosa Uílian Nogueira Lima Reginaldo Martins da Silva de Souza
Resumo: Esse ensaio é uma proposta de reflexão sobre a formação de Porto Velho na perspectiva da geo-história. Nele convidamos o leitor a pensar sobre a interação entre os elementos naturais e sociais que constituem essa cidade, e as possibilidades de análises abertas pela obra de Fernand Braudel, com vistas a uma ciência nova e mais adequada à investigação da complexidade emergente do mundo vivido. Palavras-chave: geo-história. Porto Velho. Ciência.
Abstract: This essay is a proposal of reflection about the foundation of Porto Velho city in a geohistory perspective. The reader is invited to reflect about the interaction between the social and natural elements that constitute this city as well the possibilities of analysis presented by Fernand Braudel’s work in order to get a new and modern science toward the investigation of the emergent complexity of the world we live in. Keywords: Geo-history. Porto Velho. Science
Em tempos de crise nada mais confortável do que reler os clássicos. E que isso não seja visto, apressadamente, como simples subterfúgio, mas como deleite necessário para os enfrentamentos diversos. Diante da crise da razão, em que operamos a fragmentação do conhecimento e transitamos por disciplinas esfaceladas, a busca por um conhecimento mais abrangente, integrador e plural demanda esforços de conexão entre as sociedades, o tempo e o espaço que as formaram, intercalando produção material e simbólica com vistas a sínteses mais inteligíveis. Em sua “Lição de História”, Braudel (1989, p. 164) dizia que “a verdadeira história, a história biológica, a história profunda, é a história bem antes de Cristo, bem antes do primeiro ou do segundo milênio”, indicando para elementos geográficos de longa duração que atuaram sobre o desenvolvimento de civilizações milenares. O Egito foi considerado por Heródoto, historiador grego do século V a.C, como uma “dádiva do Nilo”, sendo esse rio, com seus ritmos alternados e repetitivos o fornecedor de água, alimentos e húmus para que a civilização egípcia, uma das mais sofisticadas que jamais existiu, pudesse se desenvolver. O Nilo começava sua enchente por volta do mês de junho, elevando o Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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volume de suas águas em cerca de sete a oito metros, inundando as terras ribeirinhas. A partir de outubro, quando iniciava a estiagem, essas terras que haviam sido inundadas estavam repletas de matéria orgânica, prontas para receber o plantio de cereais, frutas e leguminosas que abasteciam as mesas de sacerdotes, escribas, escravos, felás e faraós. Na Europa, o Mediterrâneo possibilitou o florescimento da França, da Itália, da Grécia, da Espanha e da Turquia, dentre outros, integrando culturas, promovendo a circulação das riquezas, constituindo a base material da vida desses povos. Por séculos, a vida seguiu aos ritmos e movimentos desses atores geográficos – e os chamamos de atores porque não só as pessoas desenvolviam suas existências em sua base, mas eles próprios protagonizaram fatos e processos históricos que em grande medida definiram as condições de vida daqueles povos. A geo-história, perspectiva analítica exposta por Fernand Braudel em 1945, é uma síntese entre Geografia e História, “que se alimenta tanto da geografia alemã pós-ratzeliana quanto da geografia francesa, da escola vidaliana, para configurar uma nova resposta à dialética entre base geográfica e processo civilizatório” (AGUIRRE ROJAS, 2013, p.20). Essa nova episteme historicisou os elementos geográficos, apresentando-os não mais como simples “cenário onde se passa a história”, mas como elementos modeladores e atuantes em seus processos. Essa ideia foi exposta, pela primeira vez na em 1947, na tese de doutorado de Fernand Braudel, intitulada “O mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Filipe II”, publicada dois anos depois. Nessa obra o pesquisador submeteu à análise histórica as interações entre homem, meio ambiente e paisagem, redimensionando o valor das formas e estruturas espaciais para a formação do mundo mediterrânico e invertendo a ordem tradicional da narrativa histórica, que costumava colocar em primeiro plano os acontecimentos políticos. Filipe II deixou de ser, portanto, a personagem central da trama, para dar lugar ao mar mediterrâneo e as relações engendradas pelas pessoas em função do mesmo. Fernand Braudel, contudo, não limitou sua inovação à nova abordagem historiográfica do meio físico, contribuindo decisivamente para uma nova concepção de tempo e de fazer historiográfico. Se antes dos Annales e, especialmente, de sua segunda geração, da qual Braudel foi o representante mais ilustre, o tempo histórico privilegiado nessa construção discursiva era o tempo curto, o tempo do evento, da política, centrado nos indivíduos, e ocasionalmente, um tempo de média duração, de análise de influências de acontecimentos mais recuados em fenômenos contemporâneos, Braudel apresentou o tempo da longa duração. Esse tempo, geográfico por excelência, também pode indicar permanências espaciais de “mentalidades”, de interpretações culturais. Em o Mediterrâneo (BRAUDEL, 1953) foram apresentados, portanto, três tempos diferentes: o da longa duração, tempo quase imóvel, o da média duração, que mais tarde seria Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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chamado pelo autor de tempo da “conjuntura” (BRAUDEL, 1992) - o tempo da história, propriamente dita -, e o tempo de curta duração, ou seja, dos eventos e paixões passageiras. Esses múltiplos tempos são atuantes sobre os fenômenos sociais, e a título de exemplo da longa duração, é possível imaginar fenômenos de ampla abrangência temporal, como as práticas agrícolas e comerciais, que por milênios se desenvolveram sem grandes transformações na Europa, ou a cultura milenar dos povos da América andina. O tempo da média duração é o da conjuntura histórica, da formação das estruturas sociais e econômicas e a curta duração pode ser pensada como os acontecimentos contemporâneos que não encontram vínculos com fenômenos e estruturas mais profundas - o tempo das notícias de jornais, da propaganda, da política, da biografia. A geo-história representou, em meados do século XX uma forma privilegiada de produção de conhecimentos acerca da vida política, econômica e cultural dos povos, perdendo espaço na medida em que o desenvolvimento do capitalismo impunha a necessidade de especializações, que, se por um ângulo permitiram conhecimentos aprofundados, por outro promoveram fragmentação no saber e em nossa capacidade cognitiva, nos tornando limitados na elaboração de conexões entre as diversas áreas e perspectivas educacionais. O modelo de ciência do século XX é o da chamada “ciência normal” (KUHN, 2011), aprofundada e detalhista quanto a áreas bastante delimitadas. Para o autor, essa ciência [...] parece ser uma tentativa de forçar a natureza a encaixar-se dentro dos limites preestabelecidos e relativamente inflexíveis fornecidos pelo paradigma. A ciência normal não tem como objetivo trazer à tona novas espécies de fenômeno [...] Em vez disso, a pesquisa científica normal está dirigida para a articulação daqueles fenômenos e teorias já fornecidos pelo paradigma.
Para além do campo ou do laboratório, na vida social comum, essa forma de gestão do conhecimento moldou nossas estratégias de estudo e compreensão do mundo, contribuindo para a formação de uma cultura visual que apenas enxerga o óbvio e lê o que está explícito. Perdidos nas formas, esquecemo-nos da Geografia, da geomorfologia, dos movimentos de longa duração que, junto com as ações humanas, formam o espaço, as paisagens e diferencia as regiões e as vidas dos povos. Embora tenhamos nos distanciado dessa forma de produção do conhecimento, destacamos que alguns dos mais brilhantes exemplares da historiografia brasileira foram produzidos na esteira da geo-história, ou pelo menos, concatenadas com a discussão da importância dos elementos geográficos na formação histórica do Brasil: Monções, de Sérgio Buarque de Holanda (1990 [1945]), Caminhos e Fronteiras (2001 [1957]) e Caminhos Antigos e Povoamento do Brasil, de Capistrano de Abreu (1982 [1930]). Esse ensaio é uma proposta de reflexão sobre a formação de Porto Velho na perspectiva da geo-história. Nele convidamos o leitor a pensar sobre a interação entre os elementos naturais e Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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sociais que constituem essa cidade, uma vez que Porto Velho não seria Porto Velho se não fosse o seu rio – fonte de alimentos, de riquezas e estrada líquida que liga os diversos mundos amazônicos, o seu clima quente e úmido, o seu relevo pouco acidentado, a sua população, que aprendeu a viver nessa terra, a interagir com esses elementos, incrementando-a com beleza e funcionalidades socialmente produzidas. Entende-se, portanto, que Porto Velho é resultado de conjunções complexas entre o meio físico e o meio social, ambos favorecedores da vida nesse espaço, e que para compreendê-la não podemos negligenciar nenhum desses aspectos. Porto Velho localiza-se na parte oeste da Região Norte do Brasil, na área abrangida pela Amazônia Ocidental. Situa-se no vale do rio Madeira, à margem direita deste rio, entre a planície amazônica e o planalto central brasileiro, na coordenada geográfica 8° 54' 46'' de latitude Sul e 63° 40' 00'' de longitude Oeste (AGRA, 2012). O município faz fronteira, ao Norte, com o Estado do Amazonas, ao Sul com os municípios de Buritis e Nova Mamoré, a Leste com o município de Candeias do Jamari e a Oeste com os Estados do Amazonas e Acre. Abriga três Terras Indígenas e quatorze Unidades de Conservação, dispondo de um Plano Diretor, instituído pela Lei Municipal n. 311, de 30 de junho de 2008 que orienta quanto à política urbana, o ordenamento territorial e a mobilidade urbana, dentre outros. O clima de Porto Velho apresenta perfil quente e úmido, sendo sua temperatura média anual, mínima e máxima respectivamente de: 25,2ºC; 20,9ºC e 31,1ºC (BRASIL, 1992), conforme registro do Instituto Nacional de Meteorologia para o período 1961-1990. Sua topografia indica relevos ondulados a fortemente ondulados e acidentados. Com relação à vegetação, “há nas partes mais altas extensas áreas de cerrado e nos vales e encostas, predominam formações florestais tipicamente amazônicas. Ocorrem, ainda, grandes áreas de transição entre o cerrado e a floresta. Domina a Floresta Ombrófila Aberta Submontana (46%), apresentando ainda: Vegetação de Contato Savana/Floresta Ombrófila (18,3%), Savana Arborizada (8,8%), Savana Densa (8,05%), Savana Parque (7,8%), Floresta Ombrófila Densa Submontana (6%), Savan Gramínea-Lenhosa (1,6%), e outras” (AMBIENTE BRASIL, 2014). A bacia hidrográfica do Rio Madeira tem como principais afluentes, em sua margem direita os rios Mutum-Paraná, Jacy-Paraná, Caracol, Jamari e Machado, destacando-se ainda outros importantes rios como: Candeias, Jacundá, Garças, Preto do Jacundá e muitos outros de menor porte. Pela margem esquerda do rio Madeira afluem os rios Abunã, Caripunas e Cuniã, além do rio Marmelo e o São Sebastião. A cidade possui 34.068,50 km² de extensão e é considerada a maior capital brasileira em termos de área territorial, além de uma das cidades que mais cresce atualmente no Brasil, devido a investimentos do Programa de Aceleração do Crescimento Econômico do Governo Federal – PAC. Segundo dados da Federação das Indústrias do Estado de Rondônia (FIERO, 2011), esse Estado Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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concentra hoje a maior taxa de ocupação da população economicamente ativa da região norte (94,6%) e a segunda menor taxa de desemprego do Brasil. Sua população, segundo o último censo é de aproximadamente 428 mil habitantes (IBGE, 2010), distribuída entre 66 bairros em perímetro urbano, três reservas indígenas (Karitiana, Kararaxi e Karipuna) e de 12 distritos na zona rural e ribeirinha. A vida nesse espaço existe a milhares de anos, muito antes da chegada de exploradores europeus, de seringueiros, de engenheiros construtores de ferrovia, de militares construtores de linha telegráfica ou de técnicos empenhados na produção de energia elétrica. Embora todos esses atores sociais tenham contribuído para a formação de Porto Velho, para uma nova modelação de seu espaço e cultura, não podemos nos esquecer de que povos indígenas habitavam a floresta amazônica desde tempos imemoriais. Esses povos, conforme Meggers (1987) constituíam civilizações bem adaptadas ao meio natural, habitando tanto as várzeas quanto as terras firmes. Esses grupos indígenas, cuja história desconhecemos, foram definidos pela autora (op. cit.) como “povos do milho” e “povos da mandioca”, sendo o primeiro identificado pelo seu principal produto alimentício – o milho -, que costumava ser plantado nos planaltos andinos e também na planície amazônica, nas regiões de terra firme; e o segundo, os “povos da mandioca”, tinham esse produto como principal referência de sua dieta e de sua cultura, utilizando-o tanto no cotidiano quanto nos momentos festivos, transformando-o em bebida fermentada. Devido à dizimação sofrida por essas sociedades indígenas no contexto da colonização do Brasil e mesmo no século XX, com a expansão da fronteira agrícola do país (a chamada “corrida para o oeste”), não possuímos fontes suficientes para traçar um perfil desses povos e sua cultura, tendo de nos basear apenas em dados arqueológicos (campo que recebe poucos incentivos na ciência brasileira) e relatos de viajantes estrangeiros (em geral estereotipados e preconceituosos acerca dos modos de vida das populações tradicionais amazônicas). Perdemos em conhecimento, perdemos em possibilidades de outro tipo de vida, quiçá mais consciente da importância da preservação ambiental para a sustentação da vida. Porto Velho se formou no início do século XX, a partir da instalação da empresa MadeiraMamoré Railway Company, que visando superar o trecho encachoeirado do Rio Madeira para a escoação do látex produzido nos seringais da região, retomou trabalhos para a construção de uma ferrovia, popularmente conhecida como “ferrovia do diabo”, devido à grande quantidade de trabalhadores mortos em decorrência das limitações da atenção à saúde, aos acidentes de trabalho e ao contato com povos nativos que resistiam à ocupação de seus territórios. Antes de se tornar cidade, no entanto, a vida nesse espaço já manifestava suas cores. Centenas de indígenas, caboclos, ribeirinhos e viajantes transitavam ou habitavam seu espaço, muito antes de 1914.
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Primeiramente, gostaríamos de lembrar que o que corresponde hoje a Porto Velho nasceu como um porto natural, onde viajantes e aventureiros atracavam seus barcos para descarregar seus produtos, descansar ou contornar, por terra, o trecho encachoeirado do Rio Madeira. Apenas no século XX esse atracadouro natural passou a ser trabalhado pela engenharia de forma a funcionar organizadamente, para atender as demandas crescentes de transporte de produtos entre os diversos municípios amazônicos. Em segundo lugar, destacamos que, em face de poucas estradas os rios são as principais vias de transporte e conexão entre as pessoas e os lugares, permitindo a ocupação espacial, mas na cultura amazônica tradicional esses rios não são apenas “instrumentos de uso”, meios para se chegar de um ponto a outro, mas elemento com o qual se convive em simbiose: O rio, sempre o rio, unido ao homem, em associação quase mística, o que pode comportar a transposição da máxima de Heródoto para os condados amazônicos, onde a vida chega a ser, até certo ponto, uma dádiva do rio, e a água uma espécie de fiador dos destinos humanos. Veias do sangue da planície, caminho natural dos descobridores, farnel do pobre e do rico, determinante das temperaturas e dos fenômenos atmosféricos, amados, odiados, louvados, amaldiçoados, os rios são a fonte perene do progresso, pois sem ele o vale se estiolaria no vazio inexpressivo dos desertos. Esses oásis fabulosos tornaram possível a conquista da terra e asseguraram a presença humana, embelezaram a paisagem, fazem girar a civilização - comandam a vida no anfiteatro amazônico (TOCANTINS, 1998, p.278)
O Madeira, assim como outros rios amazônicos, possibilitou a fixação da vida na floresta e sua gradual transformação em espaços urbanos. A relação tecida pelas sociedades que habitavam suas margens antes dos ciclos recentes de exploração econômica demonstrava certo respeito e harmonia com esse elemento marcante da paisagem, que se estende por cerca de 1.460 km. Sem desconsiderar as dificuldades enfrentadas pelos povos habitantes da planície amazônica – especialmente a partir do século XVII, de quando datam os principais registros do contato entre indígenas e colonizadores ibéricos, e sem querer reproduzir uma visão romântica sobre a vida em espaço selvático, considera-se que a relação das populações tradicionais com o rio e o meio ambiente, de modo geral, seguiam, positivamente, à contramão da história. Isso por que, enquanto na Europa se vivia a cisão entre natureza e cultura, colocando-se o homem como superior a todos os elementos naturais, na Amazônia a cultura se desenvolvia de maneira integrada aos recursos naturais, com usos mais racionais desses recursos e possivelmente, com uma postura de “humildade”, de reconhecimento das limitações humanas frente às forças telúricas. A lógica europeia que dissociava natureza e cultura e conferia ao homem o direito de se sobrepor aos diversos ecossistemas e explorá-los ao seu bel prazer desencadeou uma das maiores crises da razão jamais enfrentadas, vez que, após a Segunda Guerra Mundial, os limites de nossa racionalidade e de nosso modelo de desenvolvimento econômico mostraram-se insustentáveis. Sabemos que os recursos naturais são limitados, que sua renovação, quando possível, obedece a um tempo de longuíssima duração e que nosso modelo de crescimento econômico coloca em risco a continuidade da vida no planeta. Vivemos, portanto, uma era de complexidades crescentes, na qual Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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as leis e princípios da ciência normal já não são suficientes, tendo em vista os contornos qualitativos dessa complexidade. Para Porto (2012, p. 138), A complexidade emergente é essencialmente qualitativa, dialética, histórica e plural, e a existência de leis atemporais ou independentes do contexto que regem os fenômenos fisicalistas e, em parte, os biológicos não se aplica da mesma forma aos fenômenos sociais e humanos. A complexidade do viver humano eleva a dimensão qualitativa ao máximo, pois traz no seu centro questões teleológicas e éticas relacionadas à consciência humana, aos valores e objetivos dos seres humanos em suas culturas e organizações.
Com base no exposto, fica evidente a necessidade de uma nova ciência, ou pelo menos, da renovação de seus métodos e abordagens, e nesse contexto, a geo-história se mostra um campo fértil de possibilidades para a produção de análises que buscam um conhecimento integrado entre as interações do meio social com o meio físico.
Referências ABREU, Capistrano de. Caminhos antigos e povoamento do Brasil. Brasilia: EDUNB, 1982. AGRA, Klondy Lúcia de Oliveira. Porto Velho e as Usinas Hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau: riscos e vulnerabilidades socioambientais. Revista Geonorte, Edição Especial 2, V.2, N.5, p.565 – 572, 2012 AGUIRRE ROJAS, Carlos Antonio. Fernand Braudel e as ciências humanas Malerba-Londrina: Eduel, 2013. AMBIENTE BRASIL. Ambiente Ecoturismo - Porto Velho –RO. 2014. Disponível em: http://ambientes.ambientebrasil.com.br/ecoturismo/destinos/porto_velho_-_ro.html acesso em 16/10/2014.
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Migração e identidade do negro em Rondônia Simeia de Oliveira Vaz Silva
RESUMO: O presente artigo tem a princípio algumas pretensões, sua proposta inicial é compreender como a população atual do estado de Rondônia foi formada com uma grande contribuição de negros, uma vez que Rondônia não faz parte da rota do Atlântico e não tem tradição no comércio de escravizados negros africanos, e assim entender a identidade negra rondoniense dentro desse processo migratório. A segunda pretensão do artigo ao começar a esboçar esse entendimento, é dar início à primeira parte do projeto O ensino da História e da Cultura afro-brasileira em Porto Velho-RO: a aplicação da Lei 10.639/20031. Para compreender esse processo de formação da população local buscou vislumbrar mais detalhadamente importantes momentos históricos constituintes dessa identidade sendo o período de formação do Estado, a vinda dos afro-caribenhos e os momentos de intensa migração para o Estado. Esses períodos distintos podem nos ajudar a compreender a formação dessa população e como a identidade rondoniense foi se caracterizando ao longo desses processos. E assim, abordando a primeira parte do projeto de pesquisa acima citado ao dar contornos ao quadro local ao qual a Lei 10.639/2003 irá se permear; partindo do ponto de sancionamento da lei, aos seus antecedentes como os PCNs e ao lançamento da DCN - Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e a busca por uma identidade.
Palavras-chave: Rondônia – identidade- Lei 10.639/2003. ABSTRACT: The present article has some claims at first, its initial proposal is to understand how the current population of Rondônia State was formed with a large contribution of blacks, once Rondônia is not part of the route of the Atlantic and has no tradition in trade in enslaved black Africans, and so understand the Black identity rondoniense within this migration process. The second claim of the article when you start sketching this understanding, is to begin the first part of the project the teaching of history and of Afro-Brazilian culture in Porto Velho-RO: law enforcement 10,639/2003. To understand this process of forming local population sought to glimpse more important historical moments constituents see this identity being the period of formation of the State, the advent of the Afro-Caribbean and moments of intense migration to the State. These distinct periods can help us understand the formation of this population and how the identity rondoniens.
Keywords: Rondônia-identity-Law 10,639/2003.
INTRODUÇÃO
O presente artigo é resultado da proposta avaliativa do seminário sobre Migrações e Identidade ministrado pela Prof.ª Taís Campelo no curso de Mestrado em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul em parceria com a Faculdade Católica de Rondônia. O projeto de pesquisa O ensino da História e da Cultura afro-brasileira em Porto Velho-RO: a aplicação da Lei 10.639/2003 nasce da vontade de entender como as escolas públicas de Porto Velho-RO se adaptaram ou não para atender à lei, uma vez que nosso Estado tem uma população 1
O projeto visa compreender a como se dá o processo de migração do negro para o Estado de Rondônia, para analisar o impacto da aplicabilidade da Lei 10.639/2003 nas escolas públicas de Porto Velho. O problema a ser analisado é se os conteúdos apresentados nos livros didáticos adotados pelo Estado de Rondônia possibilitam a aplicabilidade da Lei 10.639/2003 ou não. Se a visão da História e Cultura Afro-brasileira apresentada na Lei é oportunizada pelo livro didático, que é a ferramenta imediata da implantação da Lei. Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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negra imensa, e tentar entender isso é ver e analisar muitos pontos ainda não vistos, tentando dessa forma preencher algumas lacunas. É preciso analisar, por exemplo, que a história dos escravizados no Brasil foi marcada pelos maus tratos, trabalho forçado, pela violência e pela discriminação racial. Ao longo dos anos, mesmo após a abolição da escravatura, o negro foi colocado às margens da sociedade, a ponto de nosso expresidente, Luís Inácio da Silva e sancionador da Lei 10.639/2003 e afirmar que o Brasil tem uma dívida histórica com os negros, o que gerou muitos protestos e críticas, segundo algumas opiniões nossa dívida como nação é com os indígenas, os negros deviam cobrar essa dívida dos europeus portugueses. Séculos de subjugação conduziu o negro, que foi escravizado ou seus contemporâneos e descendentes a estar sempre um passo atrás do restante da sociedade, salvo as exceções. O que a referida lei busca, em sua intencionalidade é “resgatar” a contribuição do que a Lei chama de povo negro2 nas áreas social, econômica e política pertinente à História do Brasil e para isso tornou obrigatório no calendário escolar o Dia Nacional da Consciência Negra (20 de novembro) e o ensino sobre a História e Cultura Afro-brasileira, de maneira interdisciplinar e principalmente nas áreas de História, Educação Artística e Educação Física. A Diretriz Curricular Nacional para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira parte da concepção da obrigatoriedade do Estado em contribuir com políticas públicas afirmativas no combate à discriminação do negro. A escola é, portanto, o ponto de partida, é no cotidiano escolar, tendo como base o ensino das áreas de História, Educação Artística e Educação Física como determina a Diretriz, que novos princípios devem ser estabelecidos para nortear os pressupostos pedagógicos na construção dessas ações afirmativas.
MIGRAÇÃO E MOVIMENTO DO NEGRO
É a partir de 1985, no período em que se convencionou chamar de pós-redemocratização que o movimento negro ganhou força na sociedade brasileira e representatividade em força de lei com a aprovação de dois grandes documentos – os PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais), em 1996, que introduziram no ensino, em seus temas transversais os conteúdos de história africana e a DCN (Diretriz Curricular Nacional) para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira que tornou obrigatório o ensino da História e Cultura Afro-
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Entendemos aqui a problemática do conceito. Povo negro é um conceito que indica a uniformidade de uma nação, de um povo que se identifica como negro, que tem uma história, uma identidade. A Lei não leva aqui em consideração as múltiplas etnias e cultura africana, nem suas afinidades. Todavia, usamos o termo aqui, porque fazemos menção a trechos da Lei. Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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brasileira nas disciplinas já acima citadas. Esses documentos, embora resultantes de uma trajetória de movimentos negros apontam para lados opostos. Os PCNs, ao abordar o tema da diversidade cultural, trabalham a ideia de construção de uma identidade nacional através da miscigenação das três raças, o branco, o negro e o índio que juntos formariam a nossa atual sociedade, uma vez que esses grupos se miscigenaram e formaram a nossa população, e portanto, buscam valorizar essa sociedade, valorizar isso é resgatar essa identidade nacional. Os Parâmetros então fazem parte da formação de um discurso sobre a origem da população brasileira, da construção de um discurso oficial sobre a nação3. O papel do negro ganha destaque a partir da gestão política de Getúlio Vargas que, no seu governo pós 1937, deu início a um projeto de formação de nação e foi buscar na cultura negra esse traço considerado genuinamente brasileiro, é assim, por exemplo, que se valoriza o samba. Entretanto, a Diretriz Curricular Nacional aponta para a valorização da história e cultura afro-brasileira, levando a entender então que, se há a necessidade do ensino, então não há valorização dessa cultura. É, portanto, o resultado de uma longa discussão política em torno das questões étnicas, discussões essas que ganharam espaço desde 1930.
Desde o final da década de 1990, as noções de cultura e diversidade cultural, assim como de identidades e relações étnico-raciais, começaram a se fazer presentes nas normatizações estabelecidas pelo MEC com o objetivo de regular o exercício do ensino fundamental e médio, especialmente na área de história (...) (ABREU e MATTOS, 2008, p. 2).
Dessa forma, a Diretriz Curricular Nacional nasce nesse ensejo e dentro dessa perspectiva de discussão sobre etnia, e apresenta em seu seio avanços e retrocessos, que se manifestam em permanências e descontinuidades. Ela vem atender aos objetivos propostos pela Lei de Diretrizes e Bases (Lei 9.394/96) e pela 10.639/00 que programavam no ensino básico o ensino da História e cultura afro-brasileira, cumprindo dessa maneira a legislação federal e muitas outras vozes 4. Vozes essas que se tornam relevantes na construção dessa África e seus significados, e nesse sentido o Movimento Negro ganha destaque na busca por compreender e difundir essa África no Brasil, principalmente a partir de 1970. Por isso, a Lei de Diretrizes e Bases de 1996 é considerada para esses movimentos uma vitória e também o início de uma nova luta, dessa vez para sua implantação de modo efetivo: habilitando professores, produzindo material didático ou paradidático, enfim,
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SANSONE. Da África ao afro: uso e abuso da África entre os intelectuais e na cultura popular brasileira durante o século XX. 4 A DCN atende aos propósitos do CNE/CP6, buscando cumprir a Constituição Federal nos seus Art. 5º, I; Art.210; Art. 206, I, §1º do Art. 242; Art. 215; Art. 216; e os Art. 26, 26A e 79B da Lei 9.394/96. Além disso, responde a Constituição Estadual da Bahia (Art. 275, IV e 288), do Rio de Janeiro (Art. 306) e Alagoas (Art. 306); as Leis Orgânicas de Recife (Art. 138), Belo horizonte (Art.182, IV) e Rio de Janeiro (Art. 321, VIII); as Leis Ordinárias de Belém (Lei Municipal nº 7.685, de 17/01/94), de Aracaju (Lei Municipal nº 2.251, de 30/11/94) e a de São Paulo (Lei Municipal nº 11.973 de 04/01/96). Atende também ao Estatuto da Criança e do adolescente (Lei 8.096, 13/06/90), do Plano nacional de Educação (Lei 10.172 de 09/01/01) e as reivindicações e propostas do Movimento Negro. Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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viabilizando o cumprimento da Lei. E nessa busca de viabilização da Lei é que se encontra o objeto de pesquisa. Definido então o projeto de pesquisa e sua relevância, podemos compreender sua relação com o tema do atual artigo. Se há uma lei federal que nos atinge diretamente, não apenas porque se estabelece em nossas escolas, mas também porque busca resgatar o valor de uma população de número expressiva em nosso Estado, entender como essa parcela da sociedade rondoniense se formou é importante. Todavia, voltamos para a pergunta inicial: como entender a diáspora negra em Rondônia se esse território não fazia parte da rota do Atlântico? Porque pensar isso, é pensar como se constitui essa identidade cultural em suas múltiplas complexidades,
De forma mais geral, esse debate torna-se um problema teórico a partir da modernidade quando a identidade passa a ser encarada como algo sujeito a mudanças e inovações. Esse tema está relacionado (...) como nos constituímos, percebemo-nos, interpretamos e nos apresentamos para nós mesmos e para os outros (...) (ESCOTEGUY, 2001, p. 139).
Entender, portanto, essa identidade negra é algo extremamente complexo é volátil, não é um conjunto de símbolos fechados. Como afirmou Hall,
é contraditório, portanto, sugerir uma relação sincrética, porque os elementos de igualdade são inscritos diferentemente pelas relações de poder, principalmente as de dependência e subordinação do colonialismo (HALL, 2011, p. 34).
Passamos a perceber ai uma relação híbrida cuja migração tornou-a mais forte. A migração é um evento histórico mundial que colocou essas questões como raça, etnia, identidade entre outras à mostra para serem discutidas, analisadas e refletidas; e segundo Hall, tornou-se a própria experiência da diaspóra. Entender essa identidade em Rondônia é uma pretensão que não alçamos voo pleno neste artigo, apenas discutiremos alguns conceitos teóricos, uma vez que para se pensar sobre isso era necessário entender a identidade rondoniense, que não é tarefa fácil, ao contrário é uma tarefa árdua e longínqua que este trabalho não tem como demarcar em absoluto o seu território, mas pode e irá no decorrer demarcar alguns pontos para posteriormente se definir algumas fronteiras e alguns limites. Isso é, vislumbrar pequenos voos. O Estado de Rondônia como tantos outros lugares é resultado de um intenso processo migratório e, portanto, diaspórico que torna quase que impossível identificar uma identidade própria. Somos o exemplo do hibridismo e da ambiguidade. O primeiro desse momento histórico está relacionado com a formação do estado. Rondônia que foi constituído com o desmembramento de terras pertencentes ao Mato Grosso e Amazonas, a partir do século XVII. Nesses lugares do vale do Guaporé, a colonização portuguesa não diferiu do Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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restante do país, baseou-se no trabalho escravo, na exploração de riquezas, nesse caso a mineração de ouro, mas com um diferencial apenas: o fato de que a Amazônia serviria como ocupação militar para garantir as fronteiras portuguesas No início do século XVII, foi dada a ordem para construção de diversas fortificações na região:
São José de Macapá, na foz do rio amazonas; Tabatinga, no rio Solimões; Marabitanas, no rio Negro; São Joaquim, no rio Branco; Real Forte Príncipe da Beira, no rio Guaporé; Forte de Coimbra, no rio Paraguai (...) (PINTO, 2003, p. 66).
É para essa região que vieram os escravos africanos que mesmo após o fracasso dessas empreitadas coloniais se mantiveram aqui. Emanuel Pontes Pinto5, ao escrever sobre a capital da Capitania de Mato Grosso, Vila Bela da Santíssima Trindade de Mato Grosso em seu processo inicial, afirma que havia “(...) no povoado, nessa época, somente 80 homens brancos (...)” (PONTES PINTO, 2003, p. 47). A grande maioria era sem dúvidas de escravizados africanos, cujo trabalho fez andar a máquina colonial portuguesa no vale do Guaporé e cujos descendentes fixaram aqui sua residência após a falência da empresa mineradora quando foram abandonados por seus senhores ou, pelo fato de fugirem e constituírem comunidades quilombolas ao longo do rio Guaporé, algumas delas reconhecidas hoje como remanescentes quilombolas. É claro que, nesse grupo, nos deparamos com as marcas e tradições da colonização portuguesa como o catolicismo por exemplo. Esse grupo se fez um pouco mais recluso, mas veio, portanto, a ser a primeira onda migratória negra para o Estado. Um segundo momento a ser observado é o da chegada dos primeiros afro-caribenhos, mais especificamente os que vieram de Barbados e que aqui foram carinhosamente chamados de barbadianos, (...) Esse contingente de trabalhadores especializados foi deslocado para o vale do Madeira e do Mamoré a fim de atuar na construção da ferrovia e das cidades que surgiram em função da mesma (...) (TEIXEIRA, FONSECA, MORATTO, 2011, p. 1).
Vieram, portanto, para a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (1873-1912) e se tornaram um grupo ímpar na história de Porto Velho, uma vez que foram primordiais para áreas como a educação e a saúde. Ao palestrar sobre a diáspora caribenha para o Reino Unido, e como essas comunidades caribenhas visualizavam sua terra natal, Stuart Hall escreveu que para os caribenhos a identidade é uma questão histórica, a noção de Caribe nasce pela violência gerada pela conquista, expropriação, genocídio, escravidão, tutela colonial, mas que nem por isso os caribenhos deixaram de procurar sua terra prometida, que pode nunca ser encontrada. Talvez isso explique
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Professor mestre em história pela UFRJ, autor de vários livros sobre a História de Rondônia. Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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porque muito barbadianos retornaram a sua terra e outros permaneceram. É o que Benedict Anderson chama de comunidade imaginada. Depois desse momento, tivemos outros momentos de migração caribenha no Estado,
De fato, para além deste período de construção da EFMM, também foi assistida a migração de negros denominados “barbadianos”, “antilhanos” ou “West-indians”, como eram identificados os procedentes da América Central, em diversas regiões da Amazônia, notadamente nas áreas em que o fenômeno da urbanização se fazia sentir, como eram os casos de Belém, Manaus e Porto Velho. Portanto, ao longo da primeira metade do século XX, ainda por conta da ação de empresas estrangeiras que mantinham forte presença em toda a Amazônia, a entrada de afro-caribenhos, denominados “barbadianos” foi um processo relativamente comum na região, estando sujeita às oscilações dos investimentos e da produção da economia urbana em questão (TEIXEIRA, FONSECA, MORATTO, 2011, p. 8).
Os autores acima citados destacam o isolamento social desse grupo que embora, ocupando cargos de destaque e sofrendo discriminação formaram grupos fechados, parcialmente isolados, contudo isso não parece ser característica exclusiva de Rondônia uma vez que em outros países o mesmo aconteceu com comunidades caribenhas, é o caso do Reino Unido. “Lá esse processo migratório se dá em 1948, e em 1998 quando Hall proferiu a palestra esse ainda era um sentimento forte, tão forte que afirmou o pensamento de Lamina, de que a sua geração tornou-se “caribenha”, não no Caribe, mas, em Londres”. O oposto, o contraditório, o diferente a fez se afirmar dentro de uma identidade comum ao ponto de formarem comunidade de no Reino Unido. É o que Hall chama de “identificação associativa”. Onde dá primeira até a terceira geração buscava elos de associação para se identificarem, para formar uma identidade, portanto, a “formação de novas formas de identidade está ligada ao recontar o passado através da memória e à afirmação da diferença.” (HALL, 1996, p. 140). E mesmo quando o local de origem não é mais a única fonte de identificação outros fatores ou pontos serão levantados, buscando o que Hall chama de elo umbilical. Buscar aquela “comunidade imaginada” que Benedict Anderson cita, onde sentimento de pertencimento, de reconhecimento e de identidade podem ser encontrados. E por fim, chegamos à última leva de migração. Esse grupo constitui-se num grupo muito variado e chegou em momentos diferentes, mas todos ligados a grandes ciclos de exploração do Estado, importantes em sua formação,
O terceiro segmento populacional negro de Rondônia é muito mais difuso e variado. Constitui-se de afrodescendentes provenientes de diversas regiões do Brasil que migraram para as terras que hoje formam o Estado de Rondônia em diferentes momentos a partir do Ciclo da Borracha (1870/1945), das minerações de cassiterita, pedras preciosas e ouro (1950/1990) e para as frentes de colonização agropastoril (1960/1990) (TEIXEIRA, FONSECA, MORATTO, 2011, p. 9).
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Logo esse grupo encontrou seu espaço como seringueiros, soldados da borracha, mineradores e agricultores. Este último, em sua maioria nos projetos de colonização do Estado que nos remete aos projetos nacionais de integração desse espaço ao espaço nacional, onde a máquina pública foi utilizada para atrair ao Estado gente no sentido de encaminhar a “vocação agrícola” de Rondônia e ocupar esse território e assim garantir a soberania nacional. Como resultados desses projetos, muitas cidades do interior do estado surgiram. Esse foi um processo muito difícil e que marginalizou essas populações. Quando o ciclo da borracha ou da mineração, por exemplo, faliu, não houve uma organização por parte do Estado para acolher essa população, muitos ficaram aqui por não ter condições de retornarem. Muitos vieram enganados por propagandas inverídicas de uma terra extremamente fértil de um eldorado amazônico, que na prática não correspondia exatamente ao prometido, fazendo nascer em pouco tempo uma população expulsa do campo, de sua pequena propriedade por um pecuarista dotado de muito mais recursos tendo que ir para a cidade. Acredito que por causa dessa migração tão intensa no Estado de Rondônia, a implicação na identidade também foi forte e emblemática. Há uma recíproca relação entre migração e identidade. “A globalização tem implicações com a identidade” (Hall, 2011, p. 34),
Portanto, é importante ver essa perspectiva diaspórica da cultura como uma subversão dos modelos culturais tradicionais orientados para a nação. Como outros processos globalizantes, a globalização cultural é desterritorializante em seus efeitos. Suas compressões espaço-temporais, impulsionadas pelas novas tecnologias afrouxaram os laços entre a cultura e o “lugar”. Disjunturas patentes de tempo e espaço são abruptamente convocadas, sem obliterar seus ritmos e tempos diferenciais. As culturas, é claro, têm seus “locais”. Porém, não é mais tão fácil dizer de onde elas se originam (...)” (HALL, 2001, p. 36).
Se a globalização em seu caráter migratório torna a identidade algo híbrido e ambíguo, essa complexidade torna-se ainda mais explícita quando percorremos a definição de Hall de que essa identidade é afirmada ou reafirmada se contando o passado e afirmando as diferenças. Isso é o que Stuart chama de “Mito Fundador”6. Esse mito fundador levaria a uma noção exclusiva de pátria (aquele sentimento de pertencimento de um lugar) e assim criaria um paradoxo, porque a globalização em seus efeitos é desterritorializante, ela faz uma disjuntura da cultura em seu tempo e espaço, tornando assim, a cultura uma produção daquilo que fazemos com nossas tradições que, como muito bem descreveu Hobsbawn e Ranger, são inventadas e construídas para dar sentido aos símbolos do nacionalismo e a construção da nação.
Para Stuart Hall, o mito fundador é uma concepção fechada de “tribo”, diáspora e pátria. Essa identidade seria imutável e atemporal, isso seria tradição. 6
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Todavia, nesse sentido a memória torna-se o fio condutor dessa história. Como então, ver essa memória construtiva dessa identidade social? Acredito que as reflexões de Michael Pollack sobre Memória e Identidade Social vêm nos fornecer uma lente para essa análise,
A priori, a memória parece ser um fenômeno individual, algo relativamente íntimo, próprio da pessoa. Mas Maurice Halbwaschs, nos anos 20-30, já havia sublinhado que a memória deve ser entendida também ou, sobretudo, como um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações, mudanças constantes (POLLACK, 1992, p. 202).
Então, a memória individual é também uma memória coletiva, e logo faz parte de uma identidade social que pode ser construída e reconstruída e dessa forma a identidade pode ir se transformando em meios a esses fluxos. Sendo assim, como encontrar então algo que possa ser entendido como um marco? Para Pollack isso é perfeitamente possível. Não é porque a memória sofre variações, que não podemos encontrar marcos, pontos invariáveis. Assim sendo essa memória,
(...) individual ou coletiva, pode ser flutuante, e mutável, mas, pode apresentar pontos invariáveis e imutáveis que são percebidos numa entrevista em momentos que mesmo perdendo-se na fala sempre volta a um (s) determinado (s) ponto(s) (POLLAK, 1992, p. 203).
Logo, existem elementos que são constitutivos dessa memória individual ou coletiva, que são os acontecimentos vivenciados pessoalmente e os acontecimentos que foram vivenciados através dos outros. Além disso, as pessoas, os personagens, os lugares físicos bem como os lugares de apoio da memória como as comemorações são elementos que constroem essa memória coletiva que pode ser projetada e transferida. Essa memória tem características como a seletividade, ela é seletiva, porque escolhe os fatos a serem armazenados; é algo herdado e construído quer seja na esfera do individual quer seja do social, mas em função de preocupações pessoais e políticas. Vale perceber que as flutuações da memória não a diminuem, mas nos chama a atenção ao dito e não dito da história, se toda pesquisa historiográfica se articula com lugar de produção socioeconômico, político e cultural, a escolha desse lugar ou a sua não escolha é tão significativo quanto, logo este lugar deixado em branco ou escondido pela análise (...) é uma instituição do saber (CERTEAU, 1982, p. 68). E essa instituição da memória como afirmou Cartroga, será sempre axiológica, fundacional, socializadora, reatualizadora de um passado que tende a fundir no presente, a subjetividade com a objetividade (CARTROGA, 2001, p. 40). E nesse caso o trabalho quase científico do historiador é que vai separar memória e historiografia. Nesse ponto, Paul Ricouer nos traz luz ao identificar que em seus próprios campos a memória e a historiografia se encontram na consciência da dúvida,
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consciência essa que é o princípio de um trabalho científico. Estabelecer esses limites é uma tarefa complexa, que se torna ainda mais tênue quando nos lembramos de que para Paul Veyner de certa forma a história é filha da memória, uma vez que a historiografia é legitimadora da memória, todavia o oposto também é verdade: a história é um produto da memória. A grande diferença é que enquanto a memória julga a historiografia pretende explicar e compreender os fatos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A identidade é algo construído dentro de uma memória coletiva e social que se utiliza de valores como uma unidade física que nos dá o valor de pertencer a um lugar; a ideia de continuidade dentro de um período de tempo seja ele físico, moral ou psicológico e o valor de unidade e identificação entre as pessoas. Isso é trabalho da memória. Uma vez que,
(...) A construção da identidade é um fenômeno que se produz em referência aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade, de admisissibilidade, de credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com os outros (...) (POLLAK, 1992, p. 204).
Foi nesse sentido então de aceitabilidade, de se passar uma imagem de si para ou outros e para nós mesmos que essa identidade social foi sendo forjada no emblemático fluxo migratório rondoniense. Dessa maneira, a aplicabilidade da lei 10.639/2003 e sua efetividade no estado de Rondônia corresponderia à intenção da lei? Iria ao encontro das disparidades de identidade desse Estado? Esses são questionamentos ainda em abertos que nos convida à reflexão.
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A função da educação no campus Porto Velho Calama e o ideal de homem que se está formando
Iranira Geminiano de Melo Liliane Barreira Sanchez Resumo: Este artigo tem por objetivo elucidar a função da educação no Instituto Federal de Rondônia, Campus Porto Velho Calama, na visão dos educadores e dos alunos, explicitando o ideal de homem que esse Instituto acredita estar formando. Para proceder à coleta de dados utilizamos a metodologia do grupo focal. Assim, fizemos o convite aos professores e alunos via email com o propósito de discutir a educação no IFRO, realizando um grupo focal com quatro docentes e outro com 20 discentes. Durante a realização dos grupos utilizamos dois gravadores de voz, um moderador e um anotador. As falas foram transcritas e interpretados com base nos princípios da hermenêutica e da teoria crítica. No olhar dos estudantes predominou o entendimento de que a Instituição tem a função de formar para o mercado de trabalho. A visão dos professores se focou nas diretrizes, apontando, a preocupação em formar o técnico e o cientista como função institucional. As opiniões foram divergentes em relação ao homem que está sendo formado, ficando evidentes preocupações em não estar formando nem o técnico, nem a pessoa com os conhecimentos necessários à continuação dos estudos. Palavras-Chave: Educação, ideal de homem, formação. Abstract: This paper aims is to analyze the role of education in IFRO, Campus Porto Velho Calama, in the view of teachers and students, demonstrating the ideal man that this Institute believes to be forming. For collection of data we use the methodology of the focus group. So did the invitation to teachers and students via email in order to discuss education in IFRO, a focus group with four teachers and another with 20 students being held. During the accomplishment groups we used two voice recorders, a moderator and a recorder. The discussions were transcribed and interpreted based on the principles of hermeneutics and critical theory. In the view students predominated the understanding that the institution has the function form for the labor market. The vision of the teachers focused on the guidelines, pointing to concern form the technical and institutional role as the scientist. Opinions differed on the man being formed and were evident concerns are not forming neither the technical nor the person with the knowledge to continue their studies. Keywords: Education, ideal man, formation.
Introdução
Este artigo é resultado de parte da dissertação desenvolvida pela primeira autora, sob orientação da segunda. O objetivo é elucidar a função da educação no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Rondônia (IFRO), Campus Porto Velho Calama, na visão dos educadores e, dos alunos, demonstrando o ideal de homem que esse Instituto acredita estar formando e estabelecendo uma relação com o que a Instituição se propõe. As inquietações com relação à função da educação no Campus Porto Velho Calama sugiram dos constantes debates presenciados em reunião de professores e conselhos de classe envolvendo a dicotomia formação humana versus formação técnica. É frequente a preocupação dos professores da formação básica com a educação para o exercício da cidadania, o acesso ao ensino superior e a emancipação do aluno. Enquanto aqueles da área técnica argumentam a necessidade de essas disciplinas serem desenvolvidas em consonância com as matérias técnicas para que a formação profissionalizante seja mais efetiva. As propostas pedagógicas dos cursos Técnicos Integrados ao Ensino Médio destacam o ensino como uma atividade de compartilhamento de conteúdo, e a aprendizagem como um processo de construção de conhecimentos. Nesse processo, os estudantes “e os professores serão sujeitos em Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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constante dialética, ativos nos discursos e efetivos para interferir nos processos educativos e no meio social” a partir de conteúdos que “associam o mundo do trabalho, a escola e a sociedade” de modo contextualizado e “trabalhados com recursos tecnológicos e estratégias inovadoras, mediados por relações afetivas, interacionais e transformadoras” (IFRO, 2010, p. 12). Com base nesses princípios, surgem alguns questionamentos: transformar o ensino médio em muleta para uma formação profissional efetiva não atende a amplitude da missão institucional e compromete o desenvolvimento integral do aluno e a possibilidade de acesso ao ensino superior, aumentando as possibilidades de se ter como resultado um mero técnico, sem condições de realizar reflexões críticas e de transformar a realidade social em que está inserido? Se a falta de recursos tecnológicos compromete as estratégias inovadoras, não se estaria incorrendo no risco de comprometermos o compartilhamento de conteúdo, a aprendizagem e a construção do conhecimento e com isso a formação cidadã e técnica do aluno? Esses são dois dos principais questionamentos que motivaram a realização desse estudo, que envolve também aspectos relativos à educação que estamos fazendo e à educação que queremos. Em termos conceituais a palavra educação tem uma diversidade de definições na literatura. Aqui, consideramos necessário apontar que, no modelo atual, ela surge com a Revolução Burguesa, que, dentre seus objetivos, elencava a educação como um direito universal, assumindo, particularmente, a inculcação cultural. Ela “abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais” (BRASIL, 2010, p. 7). Assim, a educação apresenta também uma variedade de atores e elementos atuando no processo, que não deve ser visto apenas como a mera transmissão de conhecimentos ou de cultura de uma geração para outra, bem como um instrumento que assegura a reprodução cultural, política, econômica e social de determinada sociedade. Vista apenas destas formas, podem-se aumentar as possibilidades de evitar que a educação seja um instrumento de fortalecimento do poder da classe dominante. Embora, como destaca Sanchez (2012, p. 123) “pensar a educação como transmissão do patrimônio cultural e de formação de valores implica pensar os projetos pedagógicos dos diferentes contextos sociais e históricos, que são, também, projetos políticos”, portanto, “são instituídos pela sociedade, com objetivos e finalidades específicas”. Em relação aos objetivos e finalidades da educação, Sarti (1979, p. 38) afirma que “a escola (assim como o processo educativo em geral) exerce uma função dupla”: formar mão de obra qualificada e transmitir os valores da classe dominante, sendo que ambos os “aspectos dessa dupla função se unificam na necessidade de expansão (econômica) e manutenção (ideológica) do sistema”. Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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Sobre a formação de mão de obra qualificada, Althusser (1996, p. 105) entende essa qualificação como indispensável para a reprodução do status quo vigente: “para existir, toda formação social, ao mesmo tempo em que produz, para poder produzir, tem que reproduzir as condições de sua produção” - reproduzir as forças produtivas e as relações de produção existentes. Dessa forma, o referido autor destaca que a condição suprema da produção é a reprodução das condições de produção. E para reproduzir as condições de produção é necessária a reprodução das forças produtivas, que para Althusser (1996, p. 107) “é assegurada em se fornecendo à força de trabalho os meios materiais para sua reprodução: através de salários”. Mas, o autor observa que para a força de trabalho se reproduzir, não basta assegurar as condições materiais de sua reprodução, pois a mão de obra disponível deve ser competente – apta a ser posta no mercado de trabalho para trabalhar no complexo processo de produção. Silva (2006, p. 1-2) enfatiza que, na sociedade capitalista, cada vez mais “os valores materiais sobressaem-se aos valores humanos, a individualização, a competição e a concorrência, essenciais ao desenvolvimento do capitalismo, levam o homem a atitudes subumanas que retratam a barbárie instaurada por esse sistema”. Nesse contexto, a educação assume duplo papel: o de denunciadora “da educação burguesa como instrumento da ideologia dominante” e o de “repúdio categórico às propostas reformistas a serem implementadas pelo Estado burguês”, reconhecendo os “atributos da educação em termos de meio de conscientização” e revelando seu potencial transformador (SARTI, 1979, p. 9). Nesse sentido, é importante destacar que a educação escolar (institucional) sempre será uma ferramenta de conformação ideológica, independentemente do sistema político-econômico vigente. Isso é salientado tanto por Sarti (1979), ao analisar Lênin, que, após conquistar o poder na Rússia, teria destacado a necessidade dos membros do partido conquistarem os professores e promoverem uma reeducação nos espaços culturais e de ensino; como por Souza (1987), para quem a educação é uma ferramenta para construir e consolidar outros tipos de estrutura social, seja por meio de uma reforma ou de uma revolução. Nesse caso, ela se transforma em um mecanismo utilizado para se “criar as condições subjetivas que possam personificar relações econômicas e ideológicas nos grupos sociais que constituem a estrutura social” (p. 29). Assim, os resultados da educação que se está promovendo no Campus dependerá das ações sistematizadas pelos professores, as quais estão sintonizadas aos projetos pedagógicos dos cursos. Projetos esses que foram instituídos de forma pouco democrática, ou melhor, importados de outras realidades, cujos contextos sociais e históricos são bastante diferentes. Por isso, estão, na segunda metade do ano de 2014, sendo reformulados. Ainda assim, é perceptível que pouco se alterará de
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fato, pois, ainda estarão orientados pelo projeto político, ou melhor, serão instituídos por uma sociedade capitalista e neoliberal em relação a sua forma, objetivos e finalidades específicas.
Material e Métodos
Esta é uma pesquisa qualitativa, realizada a partir de estudo bibliográfico, coleta e interpretação de dados, obtidos a partir da realização de grupos focais e aplicação de questionários. Desse levantamento resultaram reflexões de cunho sociofilosófico a respeito da educação que se desenvolve no Campus Porto Velho Calama, do IFRO. Para desenvolver este trabalho, optamos por nos limitar a um determinado grupo de professores e outro de alunos e pelo uso de um referencial bibliográfico que constituiu o aporte teórico que dialoga com os dados coletados e ajuda a compreender, numa perspectiva sociofilosófica, a visão de professores e estudantes em relação à função da educação no IFRO, Campus Porto Velho Calama e ao ideal de homem que esse Instituto está formando. Para proceder à coleta de dados foi feito o convite aos professores e alunos via email para participarem de um grupo focal com o propósito de discutir a educação no IFRO. Compareceram ao grupo docente quatro professores, e ao grupo discente vinte alunos, com os quais foi aplicada a metodologia do grupo focal. Durante a realização dos grupos, utilizamos dois gravadores de voz, um moderador (que direcionou as discussões de acordo com as respostas e com um roteiro previamente elaborado) e um anotador de informações relacionadas às expressões corporais que passam despercebidas aos gravadores de voz. Ao término de cada grupo, os colaboradores responderam a um questionário, resumindo suas opiniões sobre os aspectos discutidos. Os dados foram transcritos e analisados textualmente e organizados em ilustrações confeccionadas com o emprego do Software NVivo 10, que facilitaram a visualização dos resultados. Para interpretarmos as falas surgidas no grupo focal e as respostas dadas aos questionários recorremos aos princípios da hermenêutica e da teoria crítica, que fundamentam as nossas reflexões sociofilosóficas. Para assegurar o anonimato, os professores receberam uma letra: Professor A, Professor B, Professor C e Professor D; Estudante A, Estudante B, e assim por diante.
Resultados e Discussão
A nuvem de palavras a seguir representa os vocábulos pronunciados pelos professores ao falarem sobre o que entendiam por educação. Observamos que os termos professor, educação, escola e processo são as palavras mais frequentes. A educação, para existir no modelo que temos,
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requer professores em uma instituição de ensino (escola) e um processo, que é o meio, o caminho que tem de ser trilhado para se chegar à formação do homem.
Figura 1: A educação no IFRO e o ideal de homem, Porto Velho, 2013.
Fonte: Melo e Sanchez, 2013.
O termo educação foi descrito pelo professor A como “um processo informativo que tem como finalidade, que tem ou que deveria ter, como uma das suas finalidades uma formação o mais abrangente possível e o mais humanístico possível, isso o conceito. Agora, o significado pra mim, educação é uma prática transformadora”. Para o Professor B, ao se considerar a educação formal, a escola tem o papel de “produzir mudanças, provocar mudanças no sujeito, no estudante, na pessoa que procura a escola”. Quanto à transformação, ele afirmou que “ela é discutível, por que transformar o quê? Quando? Por quê? Que a educação precisa, tem esse papel, tem esse significado de transformadora. E é aí que entra a questão mais complexa a respeito, possivelmente, do papel da escola e a escola às vezes se perde nisso”. A transformação, para o Professor A, é “uma ação voltada para formar esse sujeito. Esse estudante na maneira como ele vê o mundo e na maneira como ele se posiciona no mundo. Ou pelo menos fornecer para esse estudante os instrumentos básicos pra ele poder se comportar perante os desafios”. O Professor C destacou que a educação “é o processo formativo. Mas em relação à educação escolar, a gente sabe que a escola, ela se enquadra dentro dos mecanismos de controle”. Acrescenta que no caso dos Institutos Federais “o nosso processo formativo, ele se enquadra na questão técnica, Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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o que limitaria “muito essa amplidão que é o processo geral. O ideal seria que o aluno chegasse à compreensão e à vivência do conceito de cidadania”. [...] “Mas, ao mesmo tempo, a gente sabe que essa mesma educação vai controlar algumas coisas na vida dele. E nesse sentido, educação não visa formar para o mercado, não visa... Então, ela tem um significado, também, de abrir os horizontes para a pessoa que passa por esse processo”. E nesse caso, a pessoa teria condições de tomar “decisões autônomas e não a partir de coisas que sejam exteriores a ela”. Nesse caso, a educação como processo formativo estaria criando “novas posturas, novas possibilidades para a pessoa diante do que se apresenta no dia-a-dia, socialmente, ou em outras categorias que venham a se apresentar para a pessoa. Que embora a gente seja envolvido em formar, mas a gente também é formado nisso aí, nesse processo”. Observamos que na fala do Professor C, há um ideal de educação que não está sendo atingido e que no processo educativo do ensino técnico integrado ao médio parece ainda mais distante essa criação de novas posturas e possibilidades. Pensando em educação como processo formativo, o professor nega que ela vise formar para o mercado de trabalho, mas sim desenvolver a autonomia nas tomadas de decisões. Outro aspecto importante na fala anteriormente citada é que para o professor, quando se pensa em educação escolar como processo formativo, não considera-se essa formação apenas para o estudante, mas, assim como Freire e Shor (1986), ele vê o professor também sendo formado por esse processo. O Professor D falou da educação escolar como uma relação complexa, que pode agir na reprodução do sistema, mas também como agente da transformação. Para ele “esses questionamentos que levam a uma educação que é para criar um cidadão pleno, mas ela também reproduz a sociedade em que ela tá inserida: A sociedade do capital”. Estando a escola presa ao sistema surgem as “teorias que debatem: de um lado a hegemonia do capital e do outro lado a contra hegemonia do capital”. Como parte de sua argumentação, esse educador cita a fala de seu colega no grupo: “como o Professor B falou: Como a gente vive nesse fio da navalha, como a escola também pode reproduzir o capital, mas ela tem outro papel, como ela pode também ser o agente da transformação, o agente da mudança”. Na fala anterior do Professor C e agora também na fala do Professor D, parece haver uma preocupação com o caráter reprodutivo da educação e com a sua possibilidade de ser um agente de transformação. E nesse debate surge o ideal de homem que se pretende formar, pois se estamos desenvolvendo uma educação reprodutora, ela deve ser a garantia da reprodução da força produtiva. Na perspectiva dos professores, o ideal de homem que o Instituto pretende formar é: “Um homem trabalhador, eficiente, mas pouco crítico” (professor A); “A pretensão do IFRO é formar um cidadão” (professor B). No entanto, parece aos professores ser complicado o alcance deste ideal de homem, uma vez que os cursos integrados ao ensino médio possuem uma matriz curricular Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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constituída por muitas disciplinas (técnicas, básicas e diversificadas), sendo poucas aulas por semana de cada uma, principalmente de matérias que possibilitem discussões sobre a cidadania, sobre como exercê-la, como sociologia e filosofia. “Busca-se oferecer uma educação que contribua para a autonomia da pessoa, de tal forma que ela exerça a cidadania” (professor C). “O Instituto Federal de Rondônia espera o homem (o cidadão pleno) consciente do mundo em que vive, reflexivo da sociedade capitalista, porém capaz de desenvolver habilidades e competências para o mercado de trabalho” (professor D). Mesmo não destacando a formação para o trabalho como uma preocupação, os professores reconheceram essa tarefa como função institucional. Os estudantes apontaram como função da Instituição formar o homem: “Crítico e ético”; “Técnicos em algum curso”; “Consciente de que o mercado de trabalho precisa dos melhores profissionais”; “Pessoas qualificadas para o mercado de trabalho, convívio com a sociedade”; “Pessoas de ética, moral e caráter, que saberão atuar de forma certa no local onde trabalhará”; “Profissional totalmente qualificado”; “Um homem crítico e questionador”; “Pessoas bem capacitadas e que sigam as regras da sociedade”; “Aquele que esteja preparado para mudanças e que saiba lidar com as situações”; “Com capacidade e pronto para o mercado de trabalho”; “Bons profissionais, sendo eles referência no mercado onde eles darão mais nome à Instituição”; “Pessoas que ajudam não só o meio acadêmico, mas também a comunidade. Tendo em vista seu caráter formado”; “Com caráter, ética e boa índole”; “Um homem com caráter, ético e com respeito à sociedade”; “Um profissional bem qualificado e apto para exercer sua formação”; “Uma pessoa profissionalmente, com uma visão realista do futuro e preparada para um ensino mais capacitado”; “Cidadão é o principal motivo, além de formar pessoas críticas em relação ao seu meio”; “Que aja com ética e moral”; “Cidadão com uma profissão”; “Profissional bem qualificado, com resultados que possam ser indicados, ter objetivos amplos, com tendência de crescimento em geral e com remuneração alta, para ter uma qualidade de vida boa”. As falas dos estudantes sugerem que retornemos aos questionamentos do Professor B: “Transformar o quê? Quando? Por quê?”. São perguntas que, talvez até o final das discussões, o grupo não tenha respondido. É importante ainda mencionar que o pensamento pedagógico é determinado por um pensamento filosófico que o precede e também por uma concepção de “homem” e de “sociedade”. Nesse sentido, o termo usado pelo Professor D de que “a escola fica no fio da navalha” pode indicar que ela pode ser o espaço, algumas vezes propício para novas ideias. Mas, em muitos momentos, a escola pode funcionar, conforme Althusser (1996) afirma, como um aparelho ideológico de Estado. “No fio da navalha” pode estar ainda o reconhecimento de que “não é a educação que modela a sociedade, mas, ao contrário, a sociedade é que modela a educação, segundo os interesses dos que detêm o poder”. E, se assim for, as lutas para a possibilidade de transformação se acentuam Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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profundamente. Seriam ações pautadas na esperança e não na ingenuidade, pois seria ingênuo demais pensar que na estrutura política apresentada se possa “atuar contra ela” (FREIRE & SHOR, 1986, p. 49). Em relação à opinião dos professores sobre o papel social, educacional, pedagógico e político do IFRO, apresentamos a seguinte nuvem de palavras dos professores e estudantes. É possível observar que os termos professor, político, pedagógico e necessidades estão aparentes, o que sugere que as responsabilidades institucionais envolvem o professor para que possam ser cumpridas e implementadas. Figura 2: O papel do IFRO, Porto Velho, 2013.
Fonte: Melo e Sanchez, 2013.
O Professor B acredita que a instituição tem uma dupla ambição: “formar o aluno para o ensino médio, prepará-los para o prosseguimento dos estudos e, também prepará-los para o exercício de uma profissão”. Nesse caso, a formação técnica integrada ao ensino básico “quer formar para esses dois caminhos. Só que na realidade a gente tem alunos que está aqui, se acha aqui, no curso técnico em química, mas que pretende, por exemplo, atuar na área do jornalismo”. Na concepção do professor, o IFRO tem o propósito de, além do ensino médio, oferecer o curso técnico; retirando-se esse último, seria uma escola “como outra qualquer. Tem algum diferencial, mas esse diferencial é mais material do que pedagógico”. Observa-se que a primeira ideia sobre contexto educacional e pedagógico é a de formar alguém, mas esse formar alguém deve envolver todo o processo formativo, em seus múltiplos aspectos, especialmente o político e o social. Assim, cabe questionar: como está se dando esse processo formativo na Instituição? Nesse processo de formação, os aspectos educacional e Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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pedagógico estão intimamente relacionados ao aspecto social e ao político, isto é, a formação acontece com e na interação desses papéis ou funções? Nesse sentido, o Professor D acredita que o papel político e o social dos Institutos Federais ainda está em construção e se questiona “como fazer com que a cultura geral se integre ao curso técnico?”, apontando ser esse o papel pedagógico do IFRO. É notável que mesmo tentando abordar o papel político do IFRO, o Professor D acabou por apontar o papel pedagógico e, ao concluir sua fala, o Professor B desabafou: “E o técnico se integra à formação geral, quer dizer, aí que me parece o nó”. Então, o Professor D prosseguiu afirmando que no papel político está a questão de “como desenvolver tecnologia, inovações para essa região? Porque Rondônia é o novo Mato Grosso. Mas ele (estado de Rondônia) não pode derrubar mais nada. Tem que investir naquilo que foi derrubado para produzir” e ir corrigindo a falta de investimento em tecnologia. Então, o país “tenta fazer dos institutos federais aquilo que funcionou na França e no Japão. Mas só que há setenta anos, atrás”. Quanto ao papel social, ele diz que essa sociedade tem necessidades econômicas e sociais e situa Rondônia como uma “região de fronteira onde faltam engenheiros, arquitetos, pessoal ligado mais ao Cone Sul. Da agricultura, falta engenheiro agrônomo, veterinário, uma mão de obra que não tem nessa região. E aí, o Instituto deve oferecer essa mão de obra, para esses grupos econômicos?” O Professor D lembrou que todo o Estado sofre com isso, acrescentando que na parte econômica há necessidade de muito investimento, citando como exemplo a parte veterinária, já que Rondônia tem um dos maiores rebanhos do Brasil e as formações na área de “engenharias” está voltada para o engenheiro mecânico e o arquiteto e urbanista – provavelmente se referindo à futura oferta de curso na Instituição. Por fim, o professor questiona: “Qual é o que a gente vai ter? Qual é a necessidade dessa região?” Pode-se perceber que não há clareza, em termos políticos, sobre qual seria a política de expansão do IFRO em relação às perspectivas de crescimento do estado de Rondônia. Formar para atender a uma demanda estanque ou para expandir para regiões mais estratégicas do Estado? O professor B aborda esse assunto apontando para a necessidade de um estudo das microrregiões antes de implantar os campi, pois há alguns em municípios muito próximos e sem tanta diversidade econômica que os justifiquem. Não podemos desconsiderar que o IFRO é uma rede de escola com ensino médio, técnico e tecnológico, mas que também oferece curso superior. Então, a expansão do ensino universitário no Estado de Rondônia deveria ser um papel político do IFRO também. Sobre esse papel político, social, pedagógico e a intersecção entre eles, o Professor A enfatiza que esses papéis precisariam ser tratados conjuntamente, no entanto, “a impressão que dá é que quando se pensa em uma coisa não se pensa em outra. E aí alguma coisa não funciona”. Ele ainda destacou não há “uma atenção Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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mais detalhada para as demandas, para as necessidades das microrregiões, dependente de cursos importados de Santa Catarina, de São Paulo, que não necessariamente há necessidade das pessoas que vivem no lugar”. Continuando a argumentação, o Professor A afirmou que se “apenas atender às demandas, a gente acaba não desenvolvendo esse papel político que pode ser muito maior que é o de produção de ciência e tecnologia, de ocupação de outros espaços na sociedade, de formação de cursos de nível mais elevados”. Por outro lado, ele afirma entender que “não pode simplesmente viver para atender às demandas do mercado. Isso seria deixar-se usar muito como aparelho ideológico e não pensar em outras possibilidades”. Parece que o IFRO e, mais especificamente, o Campus Porto Velho Calama, tem se concentrado em atender demandas, sendo necessário ampliar os diálogos com as comunidades para a construção de sua política de oferta de cursos. O que se questiona acerca desse assunto, considerando as políticas, o contexto e a construção do projeto pedagógico educacional é: como ocorre a participação dos professores na elaboração, na construção das propostas dos cursos em que eles atuam? Observa-se que o Professor A menciona a importação de cursos de realidades muito distantes da que se vivencia no estado de Rondônia. O professor A destaca ainda a falta de discussões sobre o projeto político pedagógico:
Quando cheguei, ainda nem tinha curso e a gente jamais participou de nenhuma discussão de projeto político pedagógico. O Campus não tem seu projeto, seus projetos de curso foram feitos a gente não sabe por quem. Inclusive a ementa que eu ministro há dois anos, não foi feita por mim e eu não posso alterá-la. Tem esses defeitos seriíssimos. A gente já cansou de conversar sobre isso nos conselhos de classe, nas reuniões pedagógicas. Mas enfim, me parece que há uma resistência muito grande em permitir que nós professores, que estamos em sala de aula, e sabemos as necessidades dos alunos, e o que tem que ter no segundo ano do ensino médio, do curso de Informática. E, eles resistem muito em permitir que a gente possa receber esses documentos no Word ou pelo menos copiá-los. Não sei por que isso acontece, mas a gente não participou de nenhuma discussão sobre isso. Inclusive o Campus até hoje não tem projeto político pedagógico.
Contribuindo com essa discussão a respeito de projeto político pedagógico de curso, o Professor B afirmou que “não ia dizer que não sabia da existência”, devido o tempo que tem de Instituição, destacou que os conteúdos que trabalha estão previstos na ementa da disciplina que ele leciona. Continuando sua fala, ele mencionou: “E eu também cheguei a comentar sobre a ementa, disse... olha o que não posso fazer, estou fazendo adaptações. É, não poderia, mas estou fazendo, adaptações”. Nesse momento, o Professor A interrompeu e destacou: “Na verdade, a gente tá fazendo um currículo oculto”. E o Professor B confirma, salientando que esse currículo oculto é registrado: “É, mas não, mas a gente tá registrando”. O Professor A concluiu: “Há uma ementa formal, mas a gente dá um currículo oculto”. E sua conclusão foi aprovada pelo Professor B, que concordou: “Exatamente!”. Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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As falas evidenciaram que há um programa que não atende às necessidades pedagógicas, que não foi discutido pelos professores e eles percebem suas lacunas e buscam fazer adequações. O Professor B amplia essa compreensão afirmando que a “impressão que a gente tem é que quem decidiu por essa ementa, essa, do jeito que está no currículo, é que não se preocupou com a questão de pré-requisito, de sequência, porque as disciplinas têm pré-requisito”. Para o professor isso é importante porque “se não você pode dar tudo a qualquer hora, dar nada e pronto. Não, tem que ter uma organização pedagógica que é preciso seguir, é preciso apresentar, é preciso adaptar o tempo todo”. Ele ainda acrescenta que não participou da elaboração do projeto político pedagógico dos cursos em que leciona. Cabe aqui destacar que no dia 30 de agosto de 2013, o Campus fez três anos. No entanto, mesmo com todas as demandas e lutas, com a nomeação de outro reitor (ainda sem eleição, prevista para 2014), apenas em setembro de 2013, a Pró-Reitoria de Ensino (PROEN) iniciou uma discussão sobre reformulação de ementas (em ambiente virtual) somente com docentes do núcleo comum. Ainda que se considere que o uso do ambiente virtual é cada vez mais frequente, há que se observar que a construção do currículo demanda discussões, diálogos, debates e (des)entendimentos que são comprometidos quando não há a possibilidade de encontros presenciais. Ainda sobre o currículo, o Professor C se manifestou, afirmando que na “verdade, parece que houve uma pesquisa de implantação. Antes da implantação, se percebeu alguma necessidade, implantou, mas não se chegou ao ponto de se fazer a construção do projeto político”. Para ele, isso impede as contribuições das pessoas da região, que realmente conhecem a realidade. Outro aspecto evidenciado é que o trabalho interdisciplinar não tem sido desenvolvido, talvez por não haver essa construção coletiva. Nesse momento, o Professor B disse “que para quem chega, também, o certo seria mostrar: esse é o nosso projeto político pedagógico, a senhora ou o senhor se teve isso...” O Professor A esclareceu: “não tem projeto político pedagógico”. E o Professor B continuou: “E aí [...], qualquer coisa, qualquer questionamento, porque pelo menos deveria ser assim”. Concluindo, o Professor C destacou a importância desse documento para os docentes recém-chegados à instituição: “Para a gente que está chegando isso seria bom”. Então, contribuindo com o debate, o Professor A fez uma contextualização a respeito do assunto, afirmando que o Campus
Só tem os projetos pedagógicos dos cursos, não há projeto político pedagógico. Projeto do Curso de Informática Médio, Projeto do Curso de Informática Subsequente. Esses problemas que quem chegou agora constatou-os, e por sinal também são problemas conhecidos já desde o ano passado, ou ano retrasado. Sei que isso é triste, mas ainda não houve ninguém que diga vamos elaborar isso? Vamos reelaborar isso? Agora a gente sabe, eu digo isso porque o ano passado a gente teve um problema com a disciplina [menciona a disciplina que leciona], que o conteúdo previsto para a disciplina a gente terminou no Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
39 começo do terceiro bimestre. Era tão pouco conteúdo previsto que mesmo com a greve, tipo assim, no dia 11 de setembro, nós já teríamos terminado tudo que estava previsto para todas as turmas do curso, e a gente tinha dois bimestres pela frente, mais 30 dias depois de greve. Na verdade, o que a gente fez foi outra ementa oculta, não oficial para poder ter conteúdo para as oitenta horas de aula, requeridas pelo MEC. É uma coisa absurda. Esse ano vai acontecer a mesma coisa, o conteúdo da ementa é menos do que o que eu tenho de horas aula para ministrar. E assim, eu não sei até quando isso vai estar acontecendo.
A partir dessas falas, consideramos que, de qualquer modo, a Instituição não funciona sem um elemento norteador e que, se veio uma diretriz a partir de uma orientação do MEC ou de um modelo ou referência de outro Instituto Federal, de outro estado, ela não precisaria de três anos para se iniciar um processo de redirecionamento. Processo esse necessário e urgente, como pode ser observado nas quatro falas anteriores e na fala seguinte, na qual o Professor D afirmou que “As questões de implantação são muito difíceis, porque fica sempre aquela coisa de impor. E aí, nessa imposição a gente já está há três anos. E já era para ter sido, pelo menos isso, deveria ser feito de uma forma democrática, com a participação de todo mundo”. Sendo assim, parece que a organização dos cursos não está atendendo nem a “gregos nem a troianos”, ou melhor, nem aos docentes nem aos estudantes. Observamos vários apontamentos dos professores sobre esse assunto, mas também na fala do Estudante D, que destacou que deseja fazer um curso superior em “outra instituição, porque aqui tá faltando muito curso superior, por exemplo, a gente tá fazendo o ensino médio integrado ao técnico, mas não tem uma graduação, pelo menos em informática não tem, eletrotécnica, edificações, química, não tem uma continuação do curso”. Se os cursos não estão atendendo à demanda de mercado, também não estão sendo organizados pensando em continuação da escolaridade do estudante em suas áreas de formação técnica. Existem, como o Estudante D apontou, os cursos técnicos em Informática, Química, Eletrotécnica e Edificações, mas o curso superior ofertado é em Física, o que parece não estar de acordo com as expectativas dos estudantes, já que apenas um participante citou querer fazer física e os demais pretendem: Química, Direito, Matemática, Engenharia química, Engenharia de navegação, Engenharia de petróleo, Arquitetura, Engenharia mecatrônica. Por outro lado, parece que as tentativas de fazer uma instituição democrática esbarram no discurso do processo de implantação. Essa situação parece cômoda a quem apresenta essa justificativa, mas mostra-se de outra forma para quem a escuta, conforme a fala do Professor A:
Me incomoda esse discurso do estamos em implantação, estamos em implantação, como se todas as deficiências fossem porque estamos em implantação. Os institutos foram criados em 2008, sabe? Até quando ficaremos em implantação? Dez anos para as coisas serem analisadas? Eu vejo que há falta de um esforço político em ouvir as pessoas, ouvir, principalmente nós professores, que estamos em sala de aula e construir novas diretrizes. E aí, fica-se com o discurso de que: Ah, mas é implantação. Nada pode ser feito.
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A fala do Professor B contribuiu com essa análise da realidade dos Institutos, que talvez se possa chamar de antidemocrática ou, se é democrática, é uma democracia da minoria, já que nem os professores nem os estudantes estão sendo considerados: “eu penso que o primeiro ano era um ano chave, um ano importante para saber, sentar e ver tudo que se precisava adaptar. Já que tinha pessoal suficiente, ou pelo menos, quase suficiente”. Para o Professor isso é complicado, pois “um ano é suficiente para você errar, para você acertar, e para você depois pensar e refazer, e obter resultados”. Sobre a necessidade de um processo de reformulação dos currículos, o Professor B disse ser importante: “Iniciar e rápido, hoje você tem elementos o suficiente para uma reconstrução, mas é...”. Então, o Professor D interrompeu, afirmando que: “Um amplo quadro, professores da equipe pedagógica a gente tem 50%, então eu acho que já deveria ter sido... [pausa]” e o Professor A destacou: “Não há falta de servidor e nem falta de manifestação de nossa parte”. Essas falas podem indicar que, apesar de os professores terem aceitado os projetos pedagógicos de cursos copiados (ou imitados) de outras instituições, sentem a necessidade e percebem as condições para readequá-los à realidade que estão vivenciando. Podem sugerir ainda que, mesmo havendo manifestação dos professores e quantitativo favorável de servidores, não se diz o porquê de ter havido resistência a essa reformulação. Provavelmente nesses apontamentos feitos pelos professores possa se identificar o que Souza (2009, p. 294) chama de “má-fé institucional”, referindo-se “a uma ação institucional que se articula tanto no nível do Estado, através dos planejamentos e das decisões quanto à alocação de recursos, quanto no nível do micropoder”. Visamos agora ampliar essa discussão, buscando compreender qual o ideal de homem (no sentido de cidadão, pessoa) que o Campus investigado pretende formar (ou está formando), na visão que os professores e estudantes têm a respeito dessa, nas palavras de Freinet (2004), “obra de vida”. Em relação ao ideal de homem ou ideal de pessoa que a Instituição pretende formar segue uma nuvem de palavras, na qual se destaca “professor” como o termo mais pronunciado. Na sequência, apresentam-se os posicionamentos dos participantes a respeito desse assunto.
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Figura 31: O ideal de homem que a Instituição pretende formar, Porto Velho, 2013.
Fonte: Melo e Sanchez, 2013.
O ideal de homem envolve tanto as diretrizes políticas e pedagógicas, como as tendências pedagógicas, seguidas da relação teoria e prática e da relação professor-aluno, dentre outros fatores. O Professor B iniciou essa abordagem entendendo como diretrizes os planos de curso. O homem quer se quer formar, disse ele, “é o homem preparado para o trabalho. Para o qual ele está matriculado, para a função que o curso vai lhe possibilitar e, também, o Instituto quer alguém que seja pesquisador, que seja técnico e que pense”. Segundo o professor, isso está “bem claro em todos os planos de curso, a gente percebe isso. Agora para ele [o IFRO] formar isso, daí a isso acontecer é preciso que a prática aconteça. Isso teoricamente está muito bem claro”. Observamos um afastamento entre a perspectiva teórica (as ideias materializadas nas diretrizes) e a realidade que está posta, que se apresenta no cotidiano dos professores. Em colaboração com a fala do Professor B, o Professor D acrescentou que a ideia de formar para o trabalho e para a ciência (alguém que seja pesquisador) está presente: “Até mesmo na lei que cria os Institutos está, no princípio. Depois, vêm os outros princípios da demanda de mercado”. Entretanto, o Professor A tem outros apontamentos em relação a esse ideal de homem e sobre a forma como o Campus está trabalhando, que parecem estar desencontrados. Ele tem a impressão de “que não há nenhum ideal de homem a ser formado”, e, acrescenta ter participado, no dia anterior ao do grupo focal, de uma reunião com uma turma de terceiro ano do curso técnico em edificações e eles teriam falado: “Professor, aqui a gente se forma como técnico de edificações e a gente não tem prática de edificações, a gente não sabe professor, fazer um projeto nem construir uma parede”. E o professor constata: “Quer dizer, não se está formando o técnico, não se está formando trabalhador e também não se está formando um futuro estudante universitário, porque Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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com os componentes curriculares reduzidos, para atender às disciplinas técnicas que não funcionam”. Concluindo esse raciocínio o professor acrescentou que há um comprometimento de ambas as formações porque as matérias do núcleo comum são reduzidas: “Quer dizer, não está formando ninguém, não tá formando nada, está gastando dinheiro público. A julgar pela crise atual, que eu espero que seja momentânea e que passe logo” (Professor A). Sobre a formação para o trabalho, o Professor B disse que a formação dos cursos subsequentes pode ser melhor, mas é sua preocupação também não estar formando nem o técnico, nem a pessoa com a formação geral. Os estudantes também reconheceram que não estão tendo a formação técnica adequada. O Estudante B, ao se manifestar sobre se a educação recebida pelo IFRO contribuiu ou não para que ele possa transformar a sociedade, afirmou que: “Como formação técnica eu não tenho capacidade mental nenhuma, aí tipo, na formação cidadã é que eu consigo entender como eu posso contribuir”. O estudante esclarece que no tocante à formação técnica “70% das pessoas que saírem daqui não vão estar capacitadas suficiente para dar uma qualidade de serviço e nem assistência para empresas. Podemos até ter bons professores, mas muitos alunos gostam, estão aqui pela qualidade do ensino”. e conclui sua fala acreditando que será “pior técnico em informática que tem, mas o ensino aqui é tão bom que eu acho muito melhor ficar aqui quatro anos do que ficar três anos numa escola estadual”. O Professor C destacou a seriedade que é pensar esse ideal de homem que a escola está formando ou se propõe a formar e que, diante da realidade vivenciada, pode-se estar formando pessoas que não conseguirão emprego, nem continuar seus estudos.
Na verdade o ideal de homem... Esse ideal de pessoa... É preciso ter mais claro isso, eu acho que na verdade essa coisa é séria mesmo. Não é brincadeira, não é uma coisa para se levar assim sem cojulgamento, sem planejar melhor as coisas. Porque é muito séria essa questão de projeto de pessoas. Nós podemos, futuramente, ser lembrados como uma geração de educadores que deu como resultado pessoas que não conseguem nem trabalhar nem estudar. [Professor A: A gente tá vivendo isso!] Na verdade, é ao contrário, é o ideal de pessoa, no grego se diz Paideia. O nosso projeto, a nossa Paideia é uma pessoa muito diferente dessa que tem sido gestada nos últimos 20 anos, 30 anos aí. São pessoas que sabem reclamar do que não funciona, que sabem reclamar, que sabem planejar aquilo que ele acha que deve ser feito e que sabe executar. Quer dizer, esse projeto, o que está por trás desse modelo de educação, ele é mais amplo que eu não sei se esses primeiros vão... [risos].
O Professor C afirmou ser muito sério pensar um projeto de pessoa. Sobre esse assunto, Sanchez (2012) destacou que o projeto de formação humana lida sempre com aspectos da individualização (modos únicos de ser) e da socialização (características comuns), contribuindo para as representações que o sujeito faz da sociedade, dele mesmo e do mundo que o cerca. Nesse processo, o estudante é um ser “moldável” segundo os ditames da sociedade, mas ele também é criador de si mesmo e, nesse processo de criação, ele tem o poder de poder ser (autonomia). Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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Esses risos ao fim dos apontamentos do Professor C podem sugerir que se tem um grande desafio e uma situação não muito favorável. Mas quanto ao ideal de homem a ser formado pelo IFRO, parece estar claro nas diretrizes que norteiam o ensino no Campus, como destacou o Professor B. O professor anteriormente citado aproveitou a questão sobre o ideal de homem para falar sobre a burocracia para se desenvolver projetos e a necessidade de desenvolver ações que tenham um retorno para os estudantes, que as pesquisas sejam divulgadas, conhecidas. Observamos que há uma angústia em relação a esse ideal de homem. De alguma forma, estão acontecendo muitas discussões sobre isso entre os professores, mas nada muito sistematizado, como relatou o Professor A e complementou o Professor C:
Não é programado, mas aqui no quadro de professores nós damos grandes discussões sempre. É, nas reuniões há discussões sobre isso. Essa angústia que o professor colocou sobre: vai preparar o aluno com a educação básica? Vai preparar para o mercado de trabalho? Vai fazer o quê? Há essa preocupação. Agora como eu disse, há uma preocupação, mas nada muito planejado [Professor D: Sistematizado], sistematizado. Mas como é que eu posso falar... nos documentos eu não vejo isso não. A gente vive uma crise vocacional [todos riem].
Nessa crise educacional mencionada pelo professor C, o Professor B conseguiu ver algumas saídas: “A gente tem uma chance de não transformar num operário padrão, mas se a gente for formar o operário, um operário que seja crítico, reflexivo do mundo que ele vive, pelo menos nos documentos, nas leis que criaram está claro”. Ao falar do projeto político, o professor pensou o desafio de desenvolvê-lo na prática e acrescentou: “Agora a prática para formar esse novo... esse novo homem... aí o bicho pega”. Talvez o desafio do professor manifestado na expressão “aí o bicho pega” seja devido às contradições da própria política institucional, conforme destacado por Sanchez parece haver uma contradição no próprio
[...] projeto de educação profissionalizante voltado para a adequação dos sujeitos às demandas econômicas atuais e integrado à formação de trabalhadores que sejam cidadãos livres, críticos, conscientes e transformadores, em conformidade com as propostas pedagógicas dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (SANCHEZ, 2012, p. 123).
A contradição apontada pela autora está entre o conceito de adequação, que pelo plano de conteúdo não se ajusta aos termos livres, críticos, conscientes e transformadores. Nesse sentido, parece ser impossível, ou pelo menos não ser fácil, ao mesmo tempo, promover a adequação de sujeitos a determinadas demandas e torná-los críticos, reflexivos e, muito menos, transformadores de sua realidade. Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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Nas falas dos professores não foi possível perceber se eles observaram esse contrassenso, presente na proposta institucional. Ainda que tenham externado inquietações sobre a discrepância entre o que está nos documentos institucionais e o que pensam ser o ideal de educação nos institutos federais, que oferecem cursos técnicos integrados ao ensino médio, não registramos enunciações que pudessem sinalizar o referido desacordo. Sobre a formação de sujeitos críticos, talvez possa ser considerada uma saída o que disse o Professor B ao apontar que isso perpassa as diretrizes políticas e pedagógicas, transferindo-se para ações individuais pautadas no incômodo de estar a serviço da reprodução das desigualdades, principalmente das diferenças intelectuais, no sentido de saber ler a realidade que vivencia. Percebemos que os professores se desdobram buscando alternativas para os problemas que identificam, mas essas ações ficam mais concentradas no plano individual; não havendo ações conjuntas, diálogos para um fortalecimento entre eles, capaz de tornar suas intervenções mais significativas, causando maior impacto na formação dos estudantes. Nesse aspecto, considera-se importante destacar como os estudantes percebem a relação professor-aluno, pois muitos são os apontamentos sobre a diversidade no nível de aprendizagem. Além de ser visível que as formas didático-pedagógicas e ideológicas também se diferenciam entre os professores. Nesse sentido, o Estudante A destaca:
A relação professor-aluno, digamos que é comum. O papel do professor, na formação do técnico, é preparar para o mercado, a partir da disciplina, aplicando também de modo realista, na vida real, para poder, justamente, o aluno identificar realmente o que está acontecendo, o quê que ele aprendeu e o quê está acontecendo na realidade que ele está vendo. Há uma convivência boa, de forma respeitosa, respeitável.
Percebemos nessa fala alguns aspectos amplos, não apenas voltados à avaliação da aprendizagem, mas à expectativa de uma práxis e de uma educação voltada para o trabalho. Concentrando-se mais nas relações interpessoais, o Estudante B disse haver espaço para o diálogo e para negociações sobre como essas relações têm sido tratadas:
Em relação à convivência, pelo menos na minha sala, comparando a rede estadual, aqui a gente tem mais liberdade também de falar com o professor. Quando a maneira que ele está dando aula não está agradando, não está ensinando, a gente se reúne e conversa com o professor, ele conversa com a gente e acaba mudando. A gente faz uma troca, ele pede que alguma coisa melhore entre a gente e nós, de uma maneira especial, mudamos também, e isso acaba melhorando nossas relações em relação à aprendizagem do grupo (Estudante B).
Ainda sobre a relação professor-aluno, o Estudante C destaca haver motivação, diálogo e dinamismo que favorecem a aprendizagem, mas que as relações variam de acordo com o professor e o método que ele utiliza “porque cada um tem o seu método diferente. Mas comparando com os
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professores que eu tive antigamente, aqui no IFRO, eles usam métodos muitas vezes melhores, empolgam os alunos, assim, com as matérias de verdade”. A função da educação é cumprida de acordo com o desenvolvimento das práticas pedagógicas, que variam de um professor para outro, isso pode ser notado tanto na visão docente como discente. Sobre esse assunto, Libâneo (2008) esclarece que a prática escolar tem condicionantes sociopolíticos que formam concepções distintas de homem e de sociedade, por isso, tem-se também diferentes pressupostos sobre o papel da escola, aprendizagem, relações professoraluno e técnicas pedagógicas. Sobre a dinâmica mencionada pelo estudante, o autor anteriormente citado destaca que o professor é um animador que deve “descer” ao nível dos estudantes, adaptando-se às suas características e ao desenvolvimento específico de cada grupo, caminhando junto, fornecendo uma informação mais sistematizada, intervindo somente quando necessário.
Conclusões
Nesse estudo registramos que a educação no Campus Porto Velho Calama se apresentou com dupla função: formar o trabalhador técnico para as demandas do mercado e o trabalhador intelectual ou pesquisador mais direcionado às posições de comando. E nessa dupla função se manifestaram as diferenças do papel social, do político, do pedagógico e do educacional. Uma vez que esses dois tipos de homens (o técnico e o intelectual) são, inicialmente, formados juntos (formação básica integrada à formação técnica). Mas, na sequência do processo formativo, alguns poderão voltar-se a uma formação intelectual e outros interromper esse processo e ir às empresas e indústrias vender sua força de trabalho. Percebemos que no olhar dos estudantes predominou o entendimento de que a Instituição tem a função de formar para o mercado de trabalho. Já a visão dos professores se focou mais nas diretrizes, apontando, simultaneamente, a preocupação em formar o técnico e o cientista como função institucional. Houve uma divergência em relação ao cidadão que está sendo formado. Alguns acreditavam que não se estava formando nem o técnico para o mercado, nem a pessoa com os conhecimentos da cultura geral necessários à continuação dos estudos.
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Referências
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História e patrimônio: os desafios da conservação da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré Xênia de Castro Barbosa Laura Borges Nogueira Uílian Nogueira Lima
Resumo: A pesquisa “História e Patrimônio: os desafios da conservação do patrimônio cultural Estrada de Ferro Madeira-Mamoré frente à enchente do Rio Madeira de 2014”, está em desenvolvimento no Instituto Federal de Rondônia e compõe um dos subprojetos do macroprojeto institucional denominado “Banzeiro: uma análise sistêmica da enchente do Rio Madeira de 2014 e seus efeitos socioeconômicos e ambientais”. A pesquisa visa construir informações sobre os principais desafios enfrentados pelos gestores culturais na restauração e conservação daquele sítio no contexto da cheia que o impactou no primeiro trimestre desse ano, bem como sensibilizar, por meio de oficinas, estudantes do Ensino Médio integrado ao Técnico quanto aos significados e disputas em torno da obra. As análises aqui apresentadas são ainda de caráter parcial, uma vez que a pesquisa encontra-se em desenvolvimento. Palavras-chave: História. Patrimônio. Educação. Abstract: The research “History and Heritage: challenges to the conservation of the cultural heritage Madeira-Mamoré Railway in terms of the flood of the Madeira river in 2014”, is being developed in the Instituto Federal de Rondônia and is one of the subprojects of the major institutional Project called “Banzeiro: a systemic analysis of the flood in the Madeira river in 2014 and its socio-economic and environmental effects”. The research aims to generate information on the major challenges faced by the cultural managers in the restoration and conservation of that site in the flood context that had an impact during the first quarter of this year, as well as, through workshops, make Technical-integrated High School students aware of the meanings and disputes involving the railway. The analysis here presented is still partial, since this research is still being developed. Key words: History. Heritage. Education.
Introdução
Trem fantasma, ferrovia do diabo, caldeirão do inferno... Assim era chamada a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM) e seu trecho encachoeirado na proximidade de Santo Antonio do Madeira. Se o nome sugere literatura de horror, a história da execução desse projeto confirma os piores pesadelos imaginados por imigrantes e indígenas que se viram envolvidos pelo empreendimento. Para os indígenas, que da noite para o dia viram seu território invadido por homens estranhos, transportando no calor da floresta objetos pesados, de um material que desconheciam, só restava resistir aos invasores. Para os trabalhadores das 50 etnias que vieram construir a linha férrea, o desafio de sobreviver a um ambiente hostil e a um projeto capitalista insensível aos direitos dos trabalhadores, que os demitia sem nenhuma assistência assim que manifestavam os primeiros calafrios da malária. A Estrada de Ferro Madeira-Mamoré começou a ser construída em 1872, sob a administração da empresa estadunidense Madeira & Mamore Rail Company Limited. O projeto, colonialista e ambicioso para a época, visava à injeção de capitais ociosos em projetos Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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potencialmente lucrativos nos países subdesenvolvidos e impor sua lógica sobre povos e espaços considerados inferiores e improdutivos. Para o Brasil, a obra significava possibilidade de integração dos territórios amazônicos ao restante do país, e maior agilidade no transporte do látex produzido nos seringais amazônicos, uma vez que a borracha era um dos principais produtos de exportação brasileira do período. Para seringueiros e comerciantes brasileiros e bolivianos do eixo MadeiraMamoré, a construção da linha férrea representava a esperança de reduzir as mortes e os prejuízos causados pelo trecho encachoeirado do Rio. Por ser uma obra de porte vultoso, a ferrovia atraiu grande contingente de pessoas, que se substituíam umas às outras à proporção das doenças e das mortes; e a necessidade de se evitar prejuízos e novas interrupções levou à implantação, por parte da administração da empresa, de uma infraestrutura básica de saneamento e atenção à saúde, expresso no complexo hospitalar da Candelária – que englobava um hospital com enfermaria, uma farmácia e um laboratório. E pela força dessas ações, pelo crescimento da população que mensalmente era trazida à região ou pela força da própria vida, que insiste em prosseguir mesmo diante do absurdo, a população do entorno do pátio dessa ferrovia cresceu, dando origem a uma improvável cidade – Porto Velho. O núcleo urbano de Porto Velho formou-se nas adjacências do pátio da estrada de ferro. Ferroviários, mecânicos, lenhadores, comerciantes, pastores, padres, pescadores, indígenas, lavadeiras, cozinheiras, donas de casa e prostitutas foram os seus primeiros habitantes. Esses trabalhadores e trabalhadoras, em sua maioria estrangeira, indicam a formação de um mercado de mão de obra internacional, passível de migração em massa na busca por inserção social: A forma de recrutamento desses exércitos proletários dependerá sobretudo das oscilações em seu valor. É do exército industrial de reserva, das franjas do sistema capitalista que sairão seus contingentes maciços, excetuados os artífices mecânicos e outros ofícios qualificados. Em geral com baixa qualificação técnica, a relativa escassez ou abundância de sua oferta no mercado internacional determinarão as regiões geográficas de suprimento. O caráter das relações de trabalho irá também variar numa escala que compreende desde o assalariado livre até formas compulsórias de exploração, incluindo modalidades servis e escravistas, todas elas comandadas pelo movimento do capital em sua forma mais moderna (HARDMAN, 2005, p. 149)
O fato acima apresentado sugere ainda a vinculação entre capitalismo e escravismo moderno, uma vez que, em alguns casos, as condições de trabalho vivenciadas por esses trabalhadores nos países de capitalismo periférico reproduzem práticas de exploração compulsória, violências físicas e interdição de espaços. Os conflitos e as contradições sociais atravessaram o século sem medidas efetivas de mitigação. Em 1914 Porto Velho foi elevada à categoria de município (pertencente ao Território Federal do Amazonas), por meio da Lei 757, de 2 de outubro de 1914. A partir daquele ato, novas inscrições de poder foram realizados em seu território, evidenciando os conflitos entre urbanismo e urbanização, entre o planejamento e a vida em seu desenvolvimento (MEDEIROS, 2010).
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Seus limites territoriais, que se alteraram ao longo do tempo foram estabelecidos pela primeira vez pelo Decreto n. 1063, de 17 de março de 1914. De acordo com Matias (2013) este Decreto [...] marca os limites do Termo Judiciário de Porto Velho”, com o seguinte traçado: ao norte o paralello que passar pela bocca do igarapé São Lourenço, a montante da praia do Tamanduá, até encontrar os limites com o município de Lábrea; a leste uma linha partindo do ponto fronteiro a bocca do igarapé São Lourenço, na margem direita do rio Madeira, vá encontrar o ponto em que o paralello de 8º 48’ sul corta o rio Candeias, em sua margem esquerda; ao sul o citado paralello, limite com o estado de Mato-Grosso, entre a margem esquerda do rio Candeias e margem direita do rio Madeira até a foz do Abunã; o rio Abunã até o limite com o território contestado do Acre e esse território; e a oeste, o município de Lábrea”. Portanto, antes de criar o município, o governo amazonense cuidou de delimitar seu espaço físico. Mas fez uma confusão geográfica por ignorar as terras do município de Canutama e invadir uma parte do estado do Mato Grosso, no município de Santo Antonio do Rio Madeira.
Em 1943 Porto Velho foi transformada em Capital do recém-criado Território Federal do Guaporé, que em 17 de fevereiro de 1956 passou a se chamar Território Federal de Rondônia, em homenagem ao sertanista Cândido Mariano Rondon. Em 04 janeiro de 1982 o Território Federal de Rondônia foi elevado à categoria de Estado de Rondônia. Do ponto de vista administrativo, estes eventos da vida política resultaram em uma nova dinâmica na relação da sociedade com o Estado, originado, principalmente um sistema burocrático e dando forma a aparelhos ideológicos e repressores, que remodelaram a paisagem e a cultura de Porto Velho. Porto Velho, capital de Rondônia, cresceu “dando as costas” para a ferrovia e para o Rio Madeira, que lhes permitiram as primeiras levas de povoadores Depois de formada, eventualmente olha para trás, na busca de tentar entender esses elementos com os quais se vincula, mesmo contra sua vontade ou além de seu entendimento. A ferrovia e o rio são, para parte de sua população – a mais progressista-, como parentes indesejados vindos do interior, - representantes de um tempo e um tipo de experiência que se prefere esquecer. Já para outros, cultivadores da nostalgia, o pátio e o rio são elementos quase que sagrados que precisam ser preservados a qualquer custo, para a manutenção de uma identidade, que, como todas as outras, é forjada na dialética dos interesses. Tão problemático quanto o desejo de esquecimento é o culto de sua memória, quando desprovido de reflexão sistemática, pois leva à fetichização e ao esquecimento do significado histórico do símbolo – um símbolo da modernidade na selva, que se impôs violentamente, promovendo a dizimação de populações nativas e de trabalhadores pobres que para cá vieram. No ano de seu centenário, localizados entre esses dois polos, buscamos na história as ferramentas para produzir uma reflexão acerca dos desafios da conservação do patrimônio que o conjunto arquitetônico da EFMM representa. Somos favoráveis à sua conservação como monumento à lembrança dos impactos dos projetos coloniais modernos e como recurso pedagógico Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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para o ensino da história e da cidadania. Somos favoráveis à problematização da tragédia que a obra ocasionou, para que a história não se repita como farsa em novos empreendimentos modernizantes que ferem a vida nesse ecossistema. A História é um campo do saber cujo objeto de estudo é as ações dos homens no tempo e no espaço (BLOCH, 2002). Ao concentrar-se nos vestígios materiais e imateriais que o passado legou, o historiador ou o estudioso da história opera com dois tempos: o passado e o presente, na busca por construir uma narrativa esclarecedora e plausível da sociedade que produziu tais vestígios. Esta operação, sem dúvida carregada de ideias, interesses e crenças do presente não apenas lança luzes sobre um passado envolto em sombras, mas sobre o próprio presente. Cabe aos estudiosos da História, por seus métodos e técnicas trazer à cena pública o conhecimento do que é relevante para a vida em sociedade. Por outro lado, povos de todas as partes do mundo, embora possuidores de noções e regimes de historicidade diferenciados, desde os tempos mais antigos apresentam a preocupação de deixar registrados seus acontecimentos mais importantes, edificando-os por meio de documentos diversos. Nesse sentido, Le Goff (1990), chegou mesmo a discutir a equivalência do termo documento ao sentido da expressão “monumento”. Para ele documentos são monumentos, na perspectiva em que foram produzidos ou conservados com uma intenção: a de permanecer como sinal que conjura contra o esquecimento e a morte. Embora a noção de documento como monumento, como edificação intencional de um Poder já estivesse presente desde a Idade Média, o inverso praticamente não ocorria, ou seja, os historiadores preferiam adotar por fonte apenas documentos escritos, excluindo de suas análises uma infinidade de outros objetos culturais que também são registros expressivos de um tempo e de uma sociedade. Tal preferência pelos documentos escritos ditos oficiais encontra justificava em uma maior segurança quanto aos métodos clássicos da crítica documental: a heurística (crítica de ordem externa, principalmente quanto à autenticidade) e a hermenêutica (crítica interna, do conteúdo). A partir de 1929, com a instituição do movimento intelectual francês denominado Escola do Annales, a História passou por uma renovação profunda de métodos, problemáticas e perspectivas de abordagens. A noção de documento se ampliou e passou-se a considerar como fonte para as pesquisas historiográficas tudo o que produzido pelo homem ou tocado por ele deixou vestígios sobre sua vida; tudo o que, em alguma medida, o expressa. Nesse contexto a ciência histórica abriuse para o trabalho com documentos diferenciados, passou a valorizar as matemáticas sociais e a manifestar uma atenção especial quanto ao uso do patrimônio cultural como fonte histórica, assim como propor atividades para sua valorização e divulgação do conhecimento.
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Somente a partir de 1929 foi possível, portanto, uma História engajada nas discussões sobre Patrimônio Cultural, seja como bem público e histórico a ser conservado, seja como elemento prenhe de significados que viabiliza a escrita da história. É relevante notar que o termo “patrimônio cultural” é substituto do termo “patrimônio histórico e artístico nacional”. A alteração, elaborada pela nova carta magna (BRASIL, 1988) não foi só de nomenclatura, como também de concepção e de representatividade, como podemos perceber ao compararmos o Decreto-Lei n. 25, de 30 de novembro de 1937 e a Constituição Federal de 1988: Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no País e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico (BRASIL, 1937).
O novo conceito, exposto no artigo 216 da Constituição Federal exclui a ideia de “excepcional valor”, que é relativo e arbitrário, e inclui a ideia de referências à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos que formam a sociedade brasileira. No Brasil, portanto, o ordenamento constitucional optou pelo termo sintético “Patrimônio Cultural”, para envolver bens culturais diversos, como os bens culturais históricos, artísticos, arqueológicos, paleontológicos, etnográficos, folclóricos, paisagísticos, dentre outros. Alei opera com uma concepção ampliada de cultura, que abarcaria todas as produções humanas ou fenômenos com os quais tenhamos relação. Ainda do ponto de vista jurídico, o patrimônio cultural brasileiro é, segundo (SILVA, 2001), um modo de preservar os valores das tradições, da experiência histórica e da inventividade. Conforme o Art. 216 da Constituição Federal, Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem (EC n. 42/2003) Ias formas de expressão; IIos modos de criar, fazer e viver; III- as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV- as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; Vos conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
Sem adentrar no mérito das discussões sobre as diversas formas de expressão desse patrimônio reconhece-se seu valor enquanto síntese de processos históricos e identitários variados, de memórias, crenças, lutas e visões de mundo, sendo uma obrigação individual e coletiva sua Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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preservação, e uma obrigação do Estado sua promoção, preservação, valorização e facilitação do acesso à sociedade. Como vivemos em um tempo de rápidas transformações, em que os processos históricos tendem a ser esquecidos e em que as identidades são fluidas e cambiantes, o patrimônio cultural pode constituir-se em importante ferramenta de educação histórica, favorecendo as memórias e identidades coletivas dos grupos e a própria identidade nacional. Não se trata, desse modo, [...] de imobilizar, em um tempo presente, um bem, um legado, uma tradição de nossa cultura, cujo suposto valor seja justamente a sua condição de ser anacrônico com o que se cria e o que se pensa e viva agora, ali onde aquilo está ou existe. Trata-se de buscar, na qualidade de uma sempre presente e diversa releitura daquilo que é tradicional, o feixe de relações que ele estabelece com a vida social e simbólica das pessoas de agora. O feixe de significados que a sua presença significante provoca e desafia (BRANDÃO, 1996, p.51).
Para problematizar esse feixe de significados que o patrimônio cultural provoca é que se faz necessária a Educação Patrimonial, entendida como prática difusa na sociedade e nas instituições de ensino com vistas à compreensão, conservação ou ressignificação dos elementos que favorecem a memória e a identidade coletivas. De acordo com o IPHAN (2014) a Educação Patrimonial deve envolver toda a sociedade, bem como as instituições de ensino e pesquisa, embora se reconheça que os processos educacionais e formativos transcendam às atividades escolares. Para esse instituto, essa educação patrimonial deve ser feita de forma transversal e dialógica, valorizando as diferentes percepções dos diferentes atores territoriais. No Brasil, a educação patrimonial ainda não é uma prática suficientemente disseminada no território nacional, tanto em escolas quanto em entidades e movimentos sociais. Nos espaços escolares que operam com essa discussão e forma de educação, tem-se constatado predominância de atividades voltadas à conscientização quanto à preservação patrimonial, com foco na conscientização quanto aos danos da depredação, do acúmulo de lixo e de outras ações irresponsáveis. Não restam dúvidas de que essas linhas de ações devem ser mantidas, no entanto, não são suficientes, tendo em vista que não incluem a responsabilidade do Estado e a divergência de interesses e disputas pela memória. Em Porto Velho, as discussões sobre a pertinência da educação ambiental e seus desafios tem ganhado destaque pelo fato de que seu patrimônio cultural mais conhecido foi fortemente atingido pela cheia do Rio Madeira, no primeiro trimestre de 2014. Preocupações por parte da sociedade das escolas e de organizações como a Ordem dos Advogados do Brasil têm pressionado o município, o Estado e mesmo o Ministério Público a tomar providências quanto ao conjunto impactado. Os galpões que guardavam peças de maquinário e mobiliário da ferrovia MadeiraZona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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Mamoré foram inundados e após a estiagem, ficaram cobertas de lama. Até o dia oito de novembro de 2014, os objetos no interior dos galpões-museu encontravam-se na mesma situação, embora o terreno externo já tenha recebido obras de limpeza e manutenção. Compreende-se que a restauração e mesmo a limpeza de peças de valor histórico, artístico ou cultural, como as do museu da ferrovia Madeira-Mamoré em Porto Velho não seja tarefa fácil. O trabalho de limpeza e restauro requer previamente estudos arqueológicos e históricos do bem e respeito à integridade estética do conjunto, bem como o registro das possíveis alterações sofridas pelo bem, sejam pelo impacto, seja pela ação de manutenção ou restauração. Importante que a avaliação dos danos e a manutenção ou restauração sejam feitas por profissionais capacitados com base na ABNT NBR 14653-1 e outras instruções técnicas pertinentes. Além dos desafios de ordem técnica presentes no processo há ainda os desafios de ordem política e econômica que remontam ao valor atribuído ao bem pelos gestores e pela sociedade e o quanto se pretende investir na obra. O complexo arquitetônico da EFMM é um patrimônio cultural que abrange um museu ferroviário, uma praça e as edificações de uma antiga estação central da centenária ferrovia. Esse conjunto, localizado à margem direita do Rio Madeira é um dos mais importantes lugares de memória da população de Porto Velho, mas há conflitos em relação a seus usos e significados. Depois de décadas abandonado pelo poder público e utilizado por criminosos, o espaço foi revitalizado e comemorou seu primeiro centenário em 2012. Desde 2005 esse conjunto arquitetônico e seus componentes foram tombados pelo IPHAN- Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, e em 2008 o Ministério da Cultura, por meio da portaria ministerial 108 o sagrou Patrimônio Cultural Brasileiro. O fato de esse patrimônio ter sido afetado diretamente pela cheia do Rio Madeira em fevereiro de 2014, levou com que muitos bens específicos de seu acervo fossem resgatados e, tal como as pessoas, realojados em locais que não são os mais adequados para sua preservação, conservação e visitação pública, embora se reconheça o esforço dos gestores na tentativa de colocálos à salvo da enchente, que ultrapassou quase 20 metros em relação ao nível normal do rio. Permaneceram nos galpões principalmente os objetos mais pesados, difícil de serem manuseados. Nessa situação em particular, em que a ameaça ao patrimônio não veio da sociedade, com as tradicionais práticas de pichação e depredação do bem público, mas de fenômeno ambiental complexo, tem-se como necessário estudar o papel do Estado, enquanto gestor e salvaguarda do mesmo, sem negligenciar, contudo, as possibilidades democráticas da participação da sociedade civil. Uma estratégia sugerida para o enfrentamento do problema é o envolvimento de professores e Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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estudantes da rede pública de educação nas discussões sobre a gestão desse patrimônio e no tratamento pedagógico de seus significados sociais, ao lado do corpus legal que rege a preservação de bens desse tipo. Considera-se a Educação Patrimonial [...] um instrumento de “alfabetização cultural” que possibilita ao indivíduo fazer a leitura do mundo que o rodeia, levando-o à compreensão do universo sociocultural e da trajetória histórico-temporal em que está inserido. Este processo leva ao reforço da auto-estima (sic) dos indivíduos e comunidades e à valorização da cultura brasileira compreendida como múltipla e plural (TEIXEIRA, 2008, p. 200),
A Educação Patrimonial é um recurso indispensável para a compreensão da cultura, que na definição dada por Geertz (1989), constitui uma teia de relações socialmente construída e que perpassa todas as ações humana, transcendendo, portanto, a ideia de objetos específicos e de categorizações impregnadas de juízo de valor, como as que separavam uma cultura dita erudita, de uma cultura dita popular, promovendo a valorização de algumas expressões e bens em detrimento de outros. Destaca-se que essa perspectiva de cultura com a qual trabalhamos está em acordo com o próprio ordenamento jurídico brasileiro (CF, 1988), que além de entendê-la como um direito assegura sua pluralidade e pluralismo de manifestações, nos limites da lei.
Referências ABNT. NBR 14653-1. 2001. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. “Cultura, educação e interação: observações sobre ritos de convivência e experiências que aspiram torná-las educativas” In: BRANDÃO, Carlos Rodrigues et al. O difícil espelho: limites e possibilidades de uma experiência de cultura e educação. Rio de Janeiro: Iphan, 1996. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Editora do Senado, 1988. _______. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2007. _______. Decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937. Rio de Janeiro: Senado Federa, 1937. FERREIRA, MANOEL RODRIGUES. A Ferrovia do Diabo. São Paulo: Melhoramentos, 2005. GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989. HARDMAN, F. F. Trem fantasma: a ferrovia Madeira-Mamoré e a modernidade na selva. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei Nº. 9.394 1996), Brasília: 1996. SILVA, José Afonso. Ordenação constitucional da Cultura. São Paulo: Malheiros Ed, 2001. TEIXEIRA, Cláudia Adriana Rocha. “A Educação patrimonial no ensino de história”. Revista do Instituto de Ciências Humanas e da Informação. Biblos, Rio Grande, 22 (1): 199-211, 2008 Disponível em: http://www.seer.furg.br/biblos/article/view/868/347 Acesso em 18/02/2014.
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Movimentos sociais e escravistas na construção do real Forte Príncipe Da Beira – 1776 – 1783 Lourismar da Silva Barroso Resumo: Os movimentos sociais que surgiram na Europa no século XVIII, a partir dos acontecimentos como: Revolução Industrial (1750); Revolução Francesa (1789) e Revolução Industrial, primeira (1750) e segunda (1860) fase, geraram reflexos e ganharam dimensão significativa quando atingiram solos lusitanos, assim como seu entendimento respinga a sociedade escrava da região do Vale do Guaporé, que vê nesses movimentos políticos e econômicos, a possibilidade de mudança gerada a partir de seu engajamento enquanto sujeito da história, levando em conta seu papel enquanto ser cultural de uma sociedade. No que se refere ao negro trabalhador do Real Forte Príncipe, temos como sujeito importante desse processo de construção e consolidação do espaço junto com o nativo da região, para a proteção da fronteira oeste lusitana. Seu modo de vida e seu processo de construção de uma sociedade que vai permanecer isolada e abandonada na região do Vale do Guaporé, a custa da própria sorte, vai gerar mudança nesse cenário que será desenhado pela força da persistência a partir da união desse grupo. Palavras-chave: Movimentos. Negros. Trabalhador. Príncipe da Beira.
Abstract: The social movements that emerged in Europe in the XVIII century, from the events as: Industrial Revolution (1750); French Revolution (1789) and Industrial Revolution, first (1750) and second (1860) phase, generated reflections and acquired a considerable dimension when it arrived in Lusitanian soil, as well as its understanding spatters the slave society from Valley of Guaporé, that see on these political and economic movements, the possibility of change generated from its engagements while is subject of history, considering its role while a society's being cultural. Concerning to black workers of Real Forte Príncipe, we have as important subject of this building process and consolidation of space with the native of region, for the protection of west Lusitanian's frontier. Its life style and its building process of a society that will belong isolated and abandoned at region of Valley of Guaporé, at the expense of own fortune, will beget change on this scenario that will be designed by persistence's power from the union of this group. Keyword: Movements – Blacks – Worker – Príncipe da Beira
Introdução
É importante para esse objeto de estudo relacionar os movimentos sociais que ganharam forças no século XVII e XVIII na Europa como a Revolução Gloriosa na Inglaterra (1680); a Revolução Industrial (1750) e a Revolução Francesa (1789) com os movimentos sociais brasileiros. De certa forma, “esses movimentos sociais seriam uma invenção do mundo ocidental, o produto último de uma série de mudanças estruturais, que culminaram na centralização do poder político na Inglaterra do século XVIII7” (ALONSO. 2009. p, 56). Dobrando os séculos em questão, obtiveramse forças com o passar dos tempos, avançando na interação das classes sociais e operárias, muito embora, o tipo de trabalho exercido por esses trabalhadores não foi diferente daqueles aplicados aos escravos e índios na construção do Real Forte Príncipe da Beira não condizendo se houve representação de movimentos sociais, haja vista que o movimento cultural sobressaiu desse povo.
7
Simplificadamente, o argumento, baseado no caso inglês, é que campanhas militares levaram à expansão do Estado, com burocratização e crescente intervenção na sociedade (por meio de taxação), o que causou o fortalecimento do parlamento. Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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1. As articulações geradas no canteiro de obra do Forte Príncipe da Beira Para a explicação do conceito de movimento social, Kauchakje (2010) define que:
Movimentos sociais são formas de ação coletiva com algum grau de organização que emergem de contradições fundamentais da sociedade ou de demandas conjunturais decorrentes de carências econômico-culturais. Representam o conflito ou a contradição entre setores da sociedade pela conquista e/ou administração de recursos e bens econômicos, culturais e políticos, e, também, para promover modificações e transformações nas relações instituídas, havendo, também, movimentos sociais que almejam a manutenção das instituições sociais (KAUCHAKJE, 2010, p. 114).
Paralelo a essa política de protestos que crescia a cada ano na Europa moderna, chegava ao Brasil nesse mesmo período, manifestações iguais àquelas enfrentadas nos grandes centros culturais do mundo ocidental. “Esses novos movimentos sociais seriam, então, formas particularistas de resistência, reativas aos rumos do desenvolvimento socioeconômico e em busca da reapropriação de tempo, espaço e relações cotidianas” (ALONSO, 2009.p, 64). A Amazônia do século XVIII, já sofria com o teor das manifestações sociais, nos seringais8, nas construções arquitetônicas que embelezavam e enfeitavam as cidades9 ou através dos seus fortes10 montados para guardarem suas fronteiras, todos vindos da província do Grão Pará e da província do Mato Grosso, esses movimentos sociais e culturais faziam parte do cotidiano daqueles que, de alguma maneira, eram aplicados aos trabalhadores que foram usados na construção do Real Forte Príncipe da Beira em 1776. A chegada dos negros escravos que vindo de várias partes do continente africano, arrancados à força do convívio familiar e exilados no continente americano como força braçal escrava, sem direito à própria vida, ajudaram a construir e a desenvolver a nação brasileira, fazendo parte a própria região do Guaporé. Esses trabalhadores escravos que se instalaram na região guaporeana tiveram a sua maneira contatos ou conhecimentos dos movimentos sociais que estavam acontecendo na Europa ou simplesmente passaram a obter conhecimentos dos mesmos quando ainda estavam no sudeste brasileiro que naquele período seria o grande centro político e econômico da nação, e que ao
A Selva – Ferreira de Castro – conta a história de um refugiado português na Amazônia no final do século XIX e início do Século XX sobre o processo dos barracões da borracha e seus exploradores, os seringalistas. 9 Se referindo aos modelos arquitetônicos adotados nos centros histórico das cidades de Manaus e Belém, com suas fachadas em estilo colonial, clássicos e neoclássicos. 10 No tocante ao Forte de Coimbra e Real Forte Príncipe da Beira especificamente. 8
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chegarem à região do Guaporé, foi uma questão de tempo para que se organizassem e buscassem de alguma forma seus direitos enquanto povo.
Embora as aspirações colonialistas fossem portuguesas e brancas, o trabalho que erigiu os pilares deste projeto foi, sempre, negro. A mão-de-obra africana tornou-se o sustentáculo vital da empreitada colonizadora portuguesa no Guaporé, diferentemente das posturas adotadas na mesma região pelos espanhóis, que preferiram o trabalho indígena, obtido através da iniciativa missionária. (TEIXEIRA, 1998, p.74).
Fazendo uso de uma política gerada através do tratado de Madri (1750), Pombal implanta uma postura de progresso em toda área do Oeste brasileiro, demarcando espaço, conquistando e traçando metas para a ocupação de áreas que ainda estavam para serem anexadas ao território lusitano, fazendo valer sua autoridade, utilizando da força e da mão-de-obra dos nativos, através das bandeiras quando se julgava necessário e dando incentiva a penetração da mão-de-obra escrava advinda de Belém ou de Goiás através de uma rota exclusiva11, tudo para garantir o processo expansionista da Amazônia. A interpretação quanto à identidade coletiva segundo Melucci (1988) nos traz o entendimento de que:
Os atores construiriam a ação coletiva, à medida que se comunicam, produzem e negociam significados, avaliam e reconhecem o que têm em comum, tomam decisões. Assim: A identidade coletiva é uma definição interativa e compartilhada produzida por numerosos indivíduos e relativa às orientações da ação e ao campo de oportunidades e constrangimentos no qual a ação acontece (MELUCCI, 1988, p. 342).
Durante os 27 anos (1750-1777) em que esteve à frente da política expansionista, Marquês de Pombal deu um salto no avanço de conquista e acabou consolidando o território fronteiriço, expulsando os missionários jesuíticos que de certa forma competiam economicamente com a coroa portuguesa, “ao mesmo tempo considerados como uma violação à soberania portuguesa” (TEIXEIRA, 2000, p, 47). Mas foi com o quarto governador da província de Mato Grosso Dom Luiz de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres (1772-1788) que se intensificou o uso da mão-deobra tanto nativa da região do Guaporé quanto de negro oriundos das províncias adjacentes. Para Luiz de Albuquerque, o desenvolvimento do projeto colonial adotado por Pombal requeria o uso abundante da mão-de-obra escrava. Ao contrário da maioria das regiões da Amazônia Portuguesa, em Vila Bela e no Guaporé prevaleceu a escravidão africana e não a indígena. 11
Rota fluvial que saia de São Paulo pelo rio Tietê, passando pelo rio Paranaguá em Mato Grosso e interligando os estados até chegar à embocadura do Rio Guaporé. Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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O interesse metropolitano pela região levou ainda, à fundação de fortalezas e de povoações ao longo dos vales do Madeira, Mamoré e Guaporé, sendo a mais antiga dentre elas, o Forte de Nossa Senhora da Conceição no sítio da antiga Missão de Santa Rosa, por Rolim de Moura12, durante o ano de 1760, bem como sua reforma realizada por Luís Pinto Souza Coutinho (1766-68), e que após uma considerável enchente no rio Guaporé, houve sua destruição parcial e logo depois veio à necessidade da construção do Real Forte Príncipe da Beira (1776-1783) que, por iniciativa de Dom Luís de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres evidenciava a preocupação do Estado com a ocupação regional. Para as respectivas obras, foi utilizada a mão-de-obra dos nativos e de alguns negros que foram caçados e arrancados de seus quilombos na região do Alto Guaporé. Na tabela nº 1 abaixo, podemos conferir os escravos do El Rey e de particulares que trabalharam na construção do Forte Príncipe no ano de 1780 com um quantitativo de 154 escravos, sendo 67 escravos do El Rey, o restante somava um total de 87 escravos de ganho, todos pertencente a particulares, todos esses serviçais eram empregados na construção do forte. Além desse quantitativo de escravos, contávamos também com a eficiência do trabalho de especialistas, sendo pedreiros e artífices. A preocupação de mencionar a origem desses trabalhadores que foram enviados para exercerem suas funções na construção do Real Forte, com qualidades e habilidades, foi importante para essa pesquisa ressaltar através de documentos primários, pesquisados no arquivo do APMT (Arquivo Público de Mato Grosso), esses documentos relatam os motivos que justificam a vinda dessa mão-de-obra. Tabela 01 – Quantitativo de trabalhadores escravos em 1780. Escravos de El Rey
12
1
Paulo Alina
14
Aylario
2
João Alina
15
Estanislao Baboleras
3
João Soares
16
Antonio Mandinga
4
Bernardo
17
Antonio Bojagó
5
Francisco Alina
18
Manoel
6
João Aulupo
19
Paulo Bojagó
7
Clemente Congo
20
Joaquim Balandra
8
Miguel
21
Joseph Bojagó
9
Joseph Pereira
22
Zacarias Papel
10
Poncalo
23
Joseph Mandinga
11
Pedro Mandinga
24
Manoel Dagomes
12
Lazaro
25
Miguel Banguella
Primeiro governado de Mato Grosso de 1751 a 1765. Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
59 13
Francisco Cabo Verde
26
Manoel Banguela Sambucetti
27
Manoel Banguella
48
Pedro Gomes
28
Francisco Rebolho
49
Antonio dos Santos
29
Antonio Alina de Albuquerque
50
Domingos da Cunha
30
Felix
51
Alado Luis Gomes
31
João Cabo Verde
52
João Antonio
32
Clemente Banguella
53
Pedro Mandinga
33
Luis
54
Carlos Bruno
34
Joseph Alina
55
Francisco Papel
35
Fabio Banguella
56
Lourenço da Silva
36
Domingos Congo
57
Joaquim Manoel
37
Pedro Cazado
58
Alexandre Pereira
38
Francisco Moleque
59
Ambrozio da Costa
39
Ventura Rebolho
60
Caetano Papel
40
Antonio Nagô
61
Augustinho Joseph
41
Sebastião da Cunha
62
Manoel Caetano
42
Francisco da Costa
63
Francisco Banguella
43
Joseph Gomes
64
Tomas Ignacio
44
Domingo da Costa
65
Miguel Jacó
45
Joaquim Francisco
66
Alberto Joseph
46
Lourenço Cretano
67
Joseph Sarabá
47
Tomé Pereira Fonte: REF. BR. APMT. RFP. CA 0137CAIXA Nº 002
Na tabela de nº 2 abaixo, temos o quantitativo de escravos existentes na região do Guaporé no ano de 1780, é perceptível o aumento dessa população sob o domínio de particulares que a cada ano crescia de forma considerável, sendo convocados pela coroa todas as vezes que fosse necessário.
Tabela 02 – Quantitativo de trabalhadores escravos em 1780. Escravos de particulares 68
João Angolla
97
Francisco Nagô
69
Antonio Gomes
98
Joseph Banguella
70
Joseph Angolla
99
João Mina
71
Pedro Banguella
100 Antonio Cobê
72
Manoel Banguella
101 Antonio Congo
73
Francisco
102 Clementes
74
Tomas
103 Manoel Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
60
75
Francisco
104 Luis Nagô
76
Antonio Lapa
105 João Gomes
77
Joaquim Mina
106 Miguel
78
João
107 Luis
79
Joseph Mina
108 João
80
Joseph Angolla
109 Manoel
81
Maninio
110 Antonio
82
Feliciano
111 João Coelho
83
Manoel
112 Francisco
84
Lauriamo
113 Gomes
85
Antonio Mina
114 Manoel
86
Joseph Magalhães
115 Joaquim
87
Francisco
116 Joseph
88
Joaquim Cambá
117 Joaquim Mina
89
Domingos Tororó
118 Joseph Mina
90
João
119 Manoel Crioulo
91
João Mandinga
120 Joaquim de Silva
92
Rafael
121 Joaquim Mina
93
Agostinho Mandinga
122 Joseph Mina
94
André
123 Francisco
95
Gaspar Cabo Verde
124 Manoel Mandinga
96
Luis Mina
125 Agostinho
126 João Baptista
141 João Angolla
127 Antonio Angolla
142 Joseph Mandinga
128 João Angolla
143 Matheus Crioulo
129 Joseph Angolla
144 Miguel Cabo Verde
130 João Mina
145 Ignacio
131 João Luis
146 Manoel
132 Antonio Magalhães
147 Silvestre
133 Pedro Banguella
148 João Baguella
134 Manoel Banguella
149 Joaquim Mina
135 Francisco Luis
150 Joseph Mina
136 Antonio Angolla
151 Narcisio
137 Antonio Barboza
152 Vicente Banguella
138 Izidoro
153 Antonio Pereira Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
61
139 Joaquim Angolla
154 Manoel Mandinga
140 Manoel Angolla Total: 154 operários Fonte: REF. BR. APMT. RFP. CA 0137CAIXA Nº 002
Procurando uma compreensão que justifique os movimentos sociais do século XVIII, percebemos que ao analisar esse conceito, os trabalhadores que estiveram envolvidos na construção do Real Forte Príncipe da Beira já praticavam tal movimento, muito embora a sua maneira, acabavam praticando uma mistura de movimentos sociais com movimento cultural. Para Alonso (2009), “a mobilização é o processo pelo qual um grupo cria solidariedade e adquire controle coletivo sobre os recursos necessários para sua ação”. No caso dos negros trabalhadores do Forte Príncipe, que foram trazidos de várias partes do continente africano e que se encontraram num ambiente que estava propício para esse acontecimento, gerou uma união desse povo em recomeçar a busca pela sua identidade. Estavam eles criando condições para buscar o melhor para o grupo ou estavam começando a se despertar para um entendimento mais sólido de sociedade da qual deveriam estar participando? De acordo com Gohn (2008), “a definição de movimento social é uma noção presente em diferentes espaços sociais: de erudito, acadêmico, passando pela arena política das políticas e dos políticos, até o meio popular”. É justamente esse “meio popular” que aborda este artigo que vai ser vivenciado pelos trabalhadores que foram levados para o Vale do Guaporé com a missão de construir o grande sustentáculo da fronteira, o Forte Príncipe da Beira e manter povoada aquela região nos confins do Brasil. A coroa portuguesa queria ter a certeza de que a sua presença na área da fronteira oeste Amazônica estava assegurada e consolidada, tirando de vez as pretensões espanholas sob a região do Guaporé. Esses negros que estiveram presentes na construção do Forte foram abandonados à própria sorte, largados e esquecidos, passando e sofrendo maus tratos, humilhação e castigos. Esse sofrimento sentido pelos negros trabalhadores do Forte só aumentará a cada ano, o que vai gerar um clima de tensão e insegurança na região do Guaporé. Outra observação que devemos ressaltar é procurar entender o porquê de Portugal nesse processo de colonização querer implantar um sistema de escravidão nitidamente africano no Guaporé, muito mais oneroso e de difícil obtenção na região, sendo que a mão de obra nativa por Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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aqui estava em abundância? Sendo nativos ou negros, um sentimento de revolta vai unir-vos, com a força da perseverança, seus anseios de liberdade, suas raças, culturas e tradições vão poder protestar contra o castigo excessivo adotado pelos feitores lusitanos durante o trabalho. Como afirma Gohn (2008) que: As diferentes interpretações sobre o que é um movimento social na atualidade decorrem de três fatores principais: primeiro: mudanças nas ações coletivas da sociedade civil, no que se referem a seu conteúdo, suas práticas, formas de organização e bases sociais; segundo: mudanças nos paradigmas de análises dos pesquisadores; terceiro: mudanças na estrutura econômica e nas políticas estatais (GOHN, 2008, p. 243).
A consequência desses castigos durante o processo de construção do forte será as constantes fugas desses escravos e o seu ajuntamento em quilombos, às fugas ocorriam pelos mais diversos motivos, muitas vezes deixando perplexos os senhores da obra que não encontravam justificativas para o procedimento de seus escravos. Foi o caso dos escravos da Real Fazenda, que em 21 de outubro de 1775 fugiram para rumo ignorado, abandonando as obras de construção do Real Forte Príncipe da Beira, e rumando para as partes altas do Guaporé, onde se estabeleceram em quilombos e que alguns dos quais resistiram, e estando aquilombados iriam resistir por longos períodos, como é o caso do Quariterê (ou Piolho) desde sua formação em 1752, até seu total extermínio em 1795. Estando sob a administração da rainha Thereza de Benguela, o quilombo se manteve ativo por quase meio século, vindo a ser destruído após ser atacado e seus descendentes foram presos e humilhados, expostos em praça pública, açoitados, sofreram mutilações em uma das orelhas, sendo marcados a ferro em brasa. Diante da barbárie, Thereza de Benguela ficou inconformada com o assalto e destruição do quilombo que governava, entrou em profundo estado de melancolia e depressão, vindo a enlouquecer e finalmente durante um acesso de fúria suicidou, tendo os descendentes fugidos para o interior da floresta, ocasionando assim um desabastecimento da mão de obra. Como expõe Kauchakje (2010), os movimentos sociais expressam práticas organizativas e participativas de grupos sociais, bem como suas interpretações e representações sobre a experiência social, as forças sociais que consideram representar e sobre aquelas contra as quais se antagonizam”. (KAUCHAKJE, 2010, p. 115).
Melucci (1988) admite que, há oportunidades e constrangimentos objetivos à ação coletiva, mas eles são mediados pelas percepções dos agentes, por uma apreensão cognitiva das possibilidades e limites, produzida no próprio curso da ação: “Indivíduos agindo coletivamente ‘constroem’ suas ações por meio de investimentos ‘organizados’; isto é, eles definem em termos cognitivos o campo de possibilidades e limites que percebem, enquanto, ao mesmo tempo, ativam as Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
63 teorias dos movimentos sociais: um balanço do debate de suas relações de modo a dar sentido ao seu ‘estar junto’ e aos fins que perseguem (MELUCCI, 1988,p 332).
Sabe-se que para a construção do Real Forte Príncipe da Beira em todo seu processo de construção se contabilizou a força da mão-de-obra de mais de mil escravos negros arrebanhados no Guaporé, alguns trazidos da capitania de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Goiás e outros de Belém, e mais outro tanto de mão-de-obra nativa que foi retirada das missões jesuítica, sendo os do sexo masculinos convocados para auxiliarem na construção, e mais 200 especialistas como carpinteiros, artífices que vieram dos grandes centros urbanos como Belém e Rio de janeiro. A resistência dos escravos ao trabalho da construção do Real Forte Príncipe da Beira assumiu um caráter de violência individual e posterior coletiva, dentro de uma esfera de inconformismo, que denunciava a postura extrema adotada pela coroa lusitana e seus representantes, nessa ocasião, os negros escravos aproveitavam de fatores ambientais e físicos, como as doenças e pragas naturais para fugirem. Nesse caso, como afirma Touraine (2006), é necessário não aplicar a noção de movimentos sociais a qualquer tipo de ação coletiva, conflito ou inciativa política. É aceitável aplicar análises, ligadas à noção de “resource mobilization” a todas as formas de ação coletiva e de conflito. Aliás, é mais aceitável que as ações coletivas consideradas possam ser analisadas mais em termos de busca de participação no sistema político, mas não há dificuldade de princípio em aplicar essa categoria a todos os tipos de ação coletivos (TOURAINE. 2006: p, 18).
É por isso também que Melucci (1989) afirma que “os movimentos sociais são difíceis de definir conceitualmente e há várias abordagens de difícil comparação e há mais comparação empírica do que analítica”. O temor do movimento social dos escravos e as constantes insurreições tomaram corpo na colônia brasileira e não passou despercebido em Mato Grosso, embora não se tem registrado levantes da escravatura, pairava no ar um clima de medo e de desconfiança do que poderia vir acontecer mais cedo ou mais tarde. Medidas restritivas foram adotadas e eram constantemente tomadas na tentativa de combater as possibilidades de rebelião, motins ou desordens dos escravos. Bando13 e Alvarás14 eram expedidos pelas autoridades coloniais que permitiam a punição com açoites no pelourinho, o escravo capturado após a fuga e exaltado por liderar certos movimentos eram duramente castigados, marcados com ferro quente no corpo ou na testa, levando a letra “F” que significava fujão, e em caso de alguma reincidência, era amputada uma das orelhas. Nunca se pensou na hipótese de matar um escravo, pois essa atitude geraria um prejuízo gigantesco para o patrão, por tanto deveriam ser mantidos sob as rédeas curtas do feitor. 13
Grupo de pessoas que cometem crimes ou atos condenáveis pela sociedade. Documento ou declaração que garante a autorização de poder funcionar qualquer tipo de empresa ou comércio, à realização de eventos, como também autorização para cometer atos justificado pela coroa. 14
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Além da prática de inúmeros crimes e contravenções acometidos pelos escravos do Guaporé, eles buscavam nas fugas a maneira mais imediata e eficaz de se libertarem do domínio português e do cativeiro em que estavam atrelados, era uma forma, um mecanismo de resistência, as fugas se completavam com a formação nos quilombos. Com o término da construção do Real Forte Príncipe da Beira em 1783, a posse definitiva da região do Guaporé estava agora efetivada a introdução da mão-de-obra escrava de procedência africana, que aproveitando o seu entorno criara uma lavoura de subsistência. Com a escassez de povoadores brancos e livres, em geral, determinou o contínuo subpovoamento do Vale do Guaporé. O trabalho de construção das edificações quer seja em Vila Bela, quer seja no restante do Guaporé, só puderam ser realizados graças à introdução de uma, relativa numerosa, escravaria africana. A guarda fronteiriça e a mineração mantiveram-se a partir do braço escravo, e as lavouras de subsistência15 foram sempre cultivadas pelos negros que resistiram ao ficar na região, mesmo após a saída dos brancos. Nas condições mais adversas, os negros guaporeanos mantiveram as conquistas e a presença dos colonizadores nas vastas regiões do Guaporé, permitindo a continuidade da posse territorial. No decorrer dos tempos, os negros tornaram-se os senhores do Guaporé e a região passa a ser reconhecida pelo estado brasileiro como terra de pretos, que no início prevaleceu os conflitos entre senhores e escravos, hoje com as frentes de colonização, o embate se dá entre latifundiários e posseiros. Para Gohn (2008) sua definição para explicar movimentos sociais é:
Os movimentos sociais são ações sociopolítica construídas por atores sociais coletivos pertencentes a diferentes classes e camadas sociais, articulada em certos cenários da conjuntura socioeconômica e política do país, criando um campo político de força social na sociedade civil. As ações se estruturam a partir de repertórios criados sobre temas e problemas em conflitos, litígios e disputas vivenciados pelo grupo na sociedade. As ações desenvolvem um processo social e político-cultural que cria uma identidade coletiva para o movimento, a partir dos interesses em comum. Esta identidade é amalgamada pela força do princípio da solidariedade e construída a partir da base referencial de valores culturais e políticos compartilhados pelo grupo, em espaço coletivo não institucionalizado. Os movimentos geram uma série de inovações nas esferas pública (GOHN: 2008. p, 251).
15
Agricultura de subsistência é aquela em que, basicamente, a plantação é feita em pequenas propriedades (minifúndios), e a finalidade principal é a sobrevivência do agricultor e de sua família, não para a venda dos produtos excedentes, em contraposição à agricultura comercial. Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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Podemos também analisar o contexto sofrido no decorrer dessas transformações que gerou mudanças quase que significantes, como teorias, como diz ALONSO (2009), que são fundamentais em seus processos de atuação. A autora nos faz lembrar que:
As teorias dos movimentos sociais se constituíram diante de um quadro bastante distinto, o do Ocidente dos anos 1960, quando o próprio termo “movimentos sociais” foi cunhado para designar multidões bradando por mudanças pacíficas (“faça amor, não faça guerra”), desinteressadas do poder do Estado (ALONSO, 2009. p, 51).
É importante salientar que o trabalho escravo no Brasil foi ao longo dos séculos XVI/XIX a principal mola propulsora de uma economia baseada em um sistema falido e ultrapassado, que tinha medo de avançar para um processo inovador e que ao mesmo tempo havia receios de não dar certo. O negro era submetido à exploração assim que chegava ao Brasil, e nas regiões mais afastadas dos grandes centros, como é o caso da região do Guaporé não era diferente essa prática, pelo contrário, aqui não se tinha respeito e nem pudor pela vida. Mesmo assim, para alguns autores heterogêneos como Riesman e Adorno tratam o movimento social tanto de negros como de branco da seguinte maneira: “a teoria que confluiu para as teorias da desmobilização política, cuja chave explicativa estava na cultura, em correlações entre estrutura da personalidade e estrutura da sociedade” (ALONSO, 2009. p, 52). As ciências teóricas16 que buscam explicar os movimentos sociais acabam gerando debate entre si sob as versões economicistas do marxismo, argumentando que o descontentamento é motivo para a mobilização individual e coletiva, sejam eles privações materiais ou interesses de classe, sempre existem, o que os tornariam inócuos para explicar a formação de mobilizações coletivas. Assim, mais importante que identificar as razões seria explicar o processo de mobilização de como esses negros escravos, operários da fortaleza do Real Forte Príncipe da Beira na região do Guaporé se articularam e criaram um meio para reagir ao comando dos seus benfeitores? Sabemos que os negros estando afastado do seu grupo, recluso aos quilombos dentro da mata e distante dos engenhos, minas e faisqueira, teriam a decisão de agir sozinhos e isso seria apenas um ato de deliberação individual, para isso resultariam cálculos racionais entre benefícios e custos. Mas a ação coletiva só se viabilizaria na presença de recursos materiais, humanos e de organização, isto é, da coordenação entre indivíduos doutro modo avulsos. Para a autora Alonso (2009): Vários movimentos podem se formar em torno de um mesmo tema, compondo uma “indústria de movimento social”, na qual haverá cooperação, mas também competição, em torno de recursos materiais e de aderentes a serem garimpados num mercado de 16
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66 consumidores de bens políticos. Daí a emergência de conflitos internos que gerariam faccionalismo, com dissolução de movimentos grandes e formação de subunidades em torno de uma mesma causa (ALONSO, 2009. p, 52).
Como podemos perceber, as ciências sociais tratam dos movimentos e os autores que têm seus pensamentos voltados às explicações mais convincentes sobre manifestações sociais/culturais são unânimes quando o assunto retrata a causa dos menos privilegiados, por isso podemos avaliar e notar que dependendo da classe, interesse e dos grupos que se unem em busca de uma atitude mais sólida, acabam descobrindo razões que podem levar ao fracasso da pesquisa. Kauchakje (2010) corrobora dizendo: Movimentos sociais são fenômenos de diversas facetas e são nucleares na história de diferentes sociedades. Portanto, junto a uma única definição genérica é apropriado relacioná-los ao contexto social do qual emergem: revolta de escravos, seitas sociais e levantes camponeses da Antiguidade e da Idade Média, motins rurais do século XVIII, movimentos milenares do século XIX, movimentos socialistas e trabalhista pós-Revolução Industrial, movimentos de bairro e populares urbanos, movimentos rurais brasileiros, bem como novos movimentos sociais, já na segunda metade do século XX (KAUCHAKJE, 2010, p. 115).
Para o meu objeto de estudo, esbarro em um fator primordial para a explicação de como a classe trabalhadora escrava do Real Forte Príncipe desapareceu de forma instantânea, a falta de documentos que narrem o desaparecimento de uma classe que aos olhos da Coroa portuguesa era insignificante, até porque, entram na história e sai da mesma sem que seja percebido, nesse caso específico parece ser insignificante para a história. Documentos que pudessem dar uma luz na explicação desses resultados penso que possam ser raríssimos, porém, não difíceis, os mesmos precisam ser explorados para uma maior compreensão no mundo científico. Estudá-los em seu contexto trariam à tona como se estabeleciam o relacionamento dos escravos em seu cotidiano, sendo raros na região Amazônica, não que isso seja impossível, mas em se tratando de documento oficial, podendo até ser encontrados na antiga capitania de Mato Grosso e do Rio Negro. Relacionar meu objeto de pesquisa com as ciências sociais me dará um rumo de como devo prosseguir e avançar nas informações, sendo auxiliado por outras ciências que me dará suporte e traçará um caminho para uma explicação teórica, lógica e prática no sentido da palavra. A despeito das modificações no campo teórico e na configuração da realidade, as análises sobre movimento social, quase sempre tendem a vinculá-los ao processo de mudança ou transformação social. Entender o pensamento de diferentes autores que tratam de movimentos sociais também é um desafio que precisa ser vencido, mas no final valerá a pena tê-los conhecidos, são “ossos do ofício” de um pesquisador.
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Conclusão
Em resumo, conhecendo parte do processo que se desenhou sobre os movimentos sociais no Brasil e no mundo, é possível trazer para o regionalismo e fazer uso de comparação mediante eventos relativos de ações voltadas para os protestos sociais. No caso em estudo, suas ações estão voltadas para o contexto de identificar e ressaltar a importância de como os movimentos sociais se estrutura e designa suas conclusões mediante fator social/cultural, na região do Guaporé, foco dessa pesquisa. O que temos é uma gama de informações em prol da exploração do trabalho escravo na região, que nos faz acreditar que o processo de manifestações sociais e culturais advindas da luta e da persistência de mudanças vinculadas ao processo explorador é a chave que abre o caminho para o novo.
Referências
ALONSO, Ângela. As Teorias dos Movimentos Sociais: Um Balanço do Debate. Editora Lua Nova, São Paulo, 2009. GOHN, Maria da Glória. Teoria sobre os Movimentos Sociais. In: Movimentos Sociais e lutas pela moradia. Edição Loyola, p. 21-50. C. 2008 KAUCHAKJE, Samira. 35 anos de pesquisas sobre movimentos sociais. RBCS, n.3, jan/jul. 2010, p. 113- 132. TEIXEIRA, Marco Antônio Domingues. História Regional. Porto Velho, Rondoniana, 2ª Edição, 1998. TOURAINE, Alain. Na Fronteira dos movimentos sociais. Sociedade e Estado, Brasília, v.21, n.1, já/abr.2006, p.17-28. Carta do capitão Engenheiro José Pinheiro de Lacerda ao Governador e Capitão-General da Capitania de Mato Grosso Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres. Enviada em 02 de março de 1780 - REF. BR. APMT. RFP. CA 0137CAIXA Nº 002.
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Ciência e Saúde na Amazônia: uma análise das expedições do Instituto Manguinhos ao vale do Madeira e ao vale do Amazonas Xênia de Castro Barbosa Maria Enísia Soares de Souza Lucas Mariano Dias
Resumo: O texto propõe analisar, em breves linhas, alguns documentos-chave para a compreensão da História da Ciência na Amazônia no século XX: o texto “Considerações gerais sobre as condições sanitárias do rio Madeira”, o “Relatório sobre as condições médico-sanitarias do valle do Amazonas” e o dossiê Miloca (conjunto de cartas enviadas por Oswaldo Cruz a sua esposa). Os textos, de autoria do cientista Oswaldo Cruz e datados respectivamente de 1910, 1913 e as cartas de 1911 são consideradas fontes para o estudo dos desafios ambientais e de saúde pública representados pela Amazônia no início da vida republicana brasileira. A pesquisa pautou-se na Análise Documental e nos procedimentos de avaliação do contexto de produção dos documentos, identificação da posição política do autor e identificação do público ao qual o documento foi direcionado. O objetivo da pesquisa foi produzir uma síntese histórica sobre a visão do Instituto Manguinhos sobre a região amazônica, em especial Porto Velho, evidenciando a relevância das práticas e discursos dessa instituição de pesquisa para a “invenção da Amazônia”. Palavras-chave: saúde; integração nacional; Amazônia. ABSTRACT: The paper proposes to examine, briefly, some key documents for understanding the History of Science in the Amazon in the twentieth century: the text "General considerations on the sanitary conditions of the Madeira River," "A Report on the medical-sanitary conditions valley of the Amazon" and the dossier Miloca (set of letters sent by Oswaldo Cruz to his wife). The texts, written by the scientist Oswaldo Cruz and dated respectively 1910, 1913 and 1911, and the letters are considered sources for the study of environmental and public health challenges represented by the Amazon in the early Brazilian republican life. The research was based on Documental Analysis and assessment procedures of the documents production context, identification of the author´s politics position and the identification of the public to whom the document was directed to. The research objective was to produce a historical contextualization of the Manguinhos Institute view over the Amazon region, especially Porto Velho, highlighting the relevance of the practices and discourses of this research institution to the "invention of the Amazon." Keywords: Health; National Integration; Amazon.
Introdução
No despontar do século XX o Brasil viu nascer o Instituto Soroterápico Federal (mais conhecido como Instituto Manguinhos), inaugurado em 23 de julho de 1900. Esse instituto, cujo principal desafio era produzir vacina contra a peste bubônica, que assolava o Porto de Santos e aterrorizava os pensamentos de uma sociedade ainda predominantemente rural, desenvolveu um papel de destaque para o desenvolvimento nacional e para a própria construção do Estado brasileiro. O Instituto Manguinhos, posteriormente denominado Instituto Oswaldo Cruz (1908) e Fundação Oswaldo Cruz (1974), assumiu o desafio de desenvolver pesquisas tanto em laboratório quanto em campo, revelando os fatores que contribuíam para os limites do desenvolvimento nacional. Graças a essas pesquisas foi possível superar os determinismos que prevaleciam nas análises sociais acerca do Brasil: o determinismo geográfico, que apregoava a inaptidão dos Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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brasileiros para a vida produtiva, e o racial, que propunha o “embranquecimento” da população brasileira como meio para uma “depuração” genética, promovendo o preconceito racial contra afrodescendentes. Para a República que se formava, no limiar do século XX, era fundamental assegurar a soberania nacional, a manutenção da unidade territorial e o controle estatal das regiões e populações remotas, a fim de se construir uma nação e uma identidade nacional. A Amazônia era a vasta região que desafiava o Brasil republicano, seja por sua extensão territorial, seja pela complexidade da vida que se desenvolvia em seu espaço, na qual se incluíam as doenças tropicais. O enfrentamento desses desafios foi favorável não só à manutenção da República, quanto ao desenvolvimento da Medicina Tropical. Conforme Schweickardt (2001, p. 37), As doenças tropicais que tiveram maior conjunto de pesquisas no país e na região amazônica foram a malária e a febre amarela. As pesquisas que trouxeram mudanças significativas no modo de ver essas doenças e no modo de combatê-las levaram à construção da categoria vetor e à identificação deste no processo de sua transmissão. A Amazônia representava o palco típico ideal para o estudo dessas doenças porque reunia as condições favoráveis à reprodução da doença, isto é, o clima, a temperatura e as condições de vida da população colaboravam para a presença permanente do vetor.
Nesse trabalho de produção da nação, os intelectuais tiveram papel de destaque, produzindo análises de utilidade política sobre os mais diversos aspectos dos problemas brasileiros. As expedições do Instituto Manguinhos para os “sertões”, para o Brasil interiorano e desconhecido, revelaram uma vasta população em condições precárias de vida, condições essas que repercutiam diretamente em seus perfis de saúde e doença. Essas expedições significavam a presentificação da ciência e do progresso, sendo os médicos e cientistas tratados com cordialidade e respeito: Não imaginas como essa gente me tem tratado: como um verdadeiro principe. Puzeram a minha disposição um navio da Cia e ás minhas ordens puzeram o Mordomo da Companhia, que depois de indagar ao Belizario da minha dieta etc. poz um cozinheiro pra meu regime e durante toda a viagem, nessas paragens onde não ha recursos fui alimentado a vegetaes, ovos, gallinhas, doces, aguas mineráes, enfim tudo quanto podia desejar. O navio trouxe um carregamento desses alimentos para aqui afim de que me não falte cousa alguma. Installámo-nos na casa do medico em chefe que abandonou seus commodos e tudo nos entregou. Temos criados chineses. Enfim todo o conforto possivel numa grande cidade tenho aqui nessas inhospitas passagens (CRUZ, 2010).
Quase que reverenciado, até mesmo o médico-chefe do hospital da Candelária cedeu sua casa (possivelmente uma das melhores existentes à época), para o sanitarista se hospedar e desenvolver seu trabalho: clínico e de pesquisa. Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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Oswaldo Cruz tinha como desafio, nessa primeira expedição, investigar as condições médicas e sanitárias do Rio Madeira, com ênfase para a região em que se concentravam as instalações da EFMM (o pátio da ferrovia e a vila dos operários). A expedição, liderada por Oswaldo Cruz e Belisário Penna ocorreu entre 16 de junho e 29 de agosto de 1910, financiada pela construtora da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM), que sob a coordenação de Percival Farquhar, retomara o trabalho de construção da ferrovia. A construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, que deu origem à cidade de Porto Velho era uma obra de engenharia de grande porte, cujo objetivo principal consistia em facilitar o transporte da seringa extraída dos seringais amazônicos do Brasil e da Bolívia. A demanda internacional por borracha, matéria-prima para a fabricação de pneumáticos se acentuou a partir de 1890, intensificando a exploração desse recurso natural e produzindo uma nova Amazônia, com uma elite enriquecida e detentora de uma nova mentalidade, diferente das dos caboclos que exploravam recursos naturais para fins de subsistência ou de comércio em escala local. Para Weinstein (1993, p. 15), A economia de exportação, resultante dessa confluência de forças econômicas e ambientais, gerou um crescimento demográfico sem precedentes na região e fez uma área esquecida e muito atrasada um dos mais promissores centros de comércio do Brasil.
A Estrada de Ferro Madeira-Mamoré foi um empreendimento que visava a atender as demandas produtivas do momento, e essa primeira expedição de Oswaldo Cruz à Amazônia17, custeada pela construtora da obra, intencionava colaborar com a indústria da Borracha, na medida em que fornecesse aos administradores do empreendimento, diagnósticos e recomendações científicas para a promoção da saúde dos trabalhadores e o contingenciamento das principais patologias tropicais da época, a malária e a febre amarela. Além do desafio técnico de superar terrenos acidentados e pantanosos para a construção de uma ferrovia no meio da selva amazônica, os trabalhadores enfrentavam um ambiente complexo, de uma diversidade biológica jamais vista, no qual circulavam diversos agentes patológicos, com destaque para os anofelíneos transmissores da Malária.
Embora não haja consenso quanto ao número de trabalhadores mortos ou que tenham adoecido durante a empreitada, sabe-se que esses índices eram elevados, desafiando o poder público
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Embora se afirme que Oswaldo Cruz tenha estado na Amazônia pela primeira vez em 1905, não foi possível localizar documentos sobre essa sua estada, razão pela qual nos detemos na análise das expedições de 1910, ao Vale do Rio Madeira, e na de 1913, ao Vale do Amazonas. Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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e a iniciativa privada, e é na esteira desses desafios que as expedições do Instituto Manguinhos à Amazônia devem ser pensados. Chegando a Porto Velho em 10 de julho de 1910, Oswaldo Cruz e Belizário Pena dedicaram-se a avaliar as condições sanitárias das margens do Rio Madeira, englobando o “canteiro da obra”, os alojamentos dos trabalhadores e a estrutura médico-hospitalar e de diagnóstico, fornecida pela construtora da Estrada de Ferro em Porto Velho, a Madeira-Mamoré Railway e Port of Pará. Fiz hontem o percurso de toda a linha até a extremidade dos trilhos: cerca de 120 kilometros. Sahimos ás 7 h. am e viajamos, parando apenas para o almoço até 10 horas da noite. Fomos além do rio Jacy-Paraná. Estudei os acampamentos dos empregados e fiz as indagações que se me afiguraram de utilidade. A linha é admiravel, rasgada toda no meio da floresta virgem offerece offerece espectaculo grandioso, mostrando a riqueza consideravel deste verdadeiro El Dorado: É de lastimar que a tanta riqueza esteja associada a Morte: onde não reina exclusivamente o impaludismo de caracter pernicioso impera o beri-beri. Minha vida aqui tem sido de trabalho em que procuro afogar o caudal de saudade que me devora. Levo a examinar os numerosos doentes existentes no hospital, ao lado de que móro, trabalho no laboratorio, estudo embriagando o tempo afim de que não faça muito soffrer esta ausencia da família (CRUZ, 2010).
Se nas cartas Oswaldo Cruz escreve em tom intimista, revelando detalhes do seu cotidiano e de seus sentimentos em relação à família, no documento “Considerações Gerais”, enviado ao diretor da Estrada de Ferra, seu tom é mais técnico, embora não deixe de registrar observações muito pessoais acerca de paisagens, culturas e acontecimentos políticos do período, como a greve dos foguistas do Acre. Um dos pontos mais marcantes desse documento diz respeito às medidas profiláticas que promoveu em relação à malária: a administração compulsória de quinino a todos os trabalhadores da EFMM. O quinino, conhecido desde o século XVII é uma substância eficaz no tratamento de malária, especialmente a causada pelo Plasmodium Falcíparum, mas devido a seu sabor extremamente amargo, a administração da droga, por via oral, causava desconforto nos pacientes e população residente na área, que também era obrigada a consumir diariamente o produto. O próprio Oswaldo Cruz fazia uso diário da quinina, conforme excerto da missiva do dia 13 de julho 1910: “Apresenta-se-me hoje a opportunidade de te mandar algumas noticias. De saúde vou admiravelmente fazendo uso diario de quinina”. Compreende-se que a intenção de Oswaldo Cruz fosse a de preservar vidas e contribuir para que os trabalhadores da ferrovia, com saúde, pudessem concluir a obra, todavia, sua atitude também pode ser lida como um exercício de biopoder, entendido como. “o conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo que, na espécie humana, constitui suas características biológicas fundamentais vai poder entrar numa política, numa estratégia política, numa estratégia geral de poder” (FOUCAULT, 1977-1978, p.3). Esse controle sobre os corpos é instrumentalizado mediante estratégias e técnicas diversas, que “docilizam” os corpos com vistas a assegurar a propriedade e o direito. Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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Ainda no que se refere á prática de Oswaldo Cruz, de administração compulsória de medicamento antimalárico, vale destacar que desde o início do século passado o cientista se mostrava favorável a esse tipo de intervenção sobre populações residentes em áreas de risco de doenças, como a população do Rio de Janeiro, em 1905. Oswaldo Cruz, ao propor para Pereira Passos a criação dos batalhões de “mata-mosquitos” e a vacinação obrigatória contribuiu para a ocorrência da Revolta da Vacina – um dos exemplos históricos mais contundentes sobre a necessidade de informações claras para a população e da gestão participativa dos programas e campanhas de saúde pública. A decisão do cientista de aplicar dose (s) diária (s) de quinino ao conjunto de trabalhadores da EFMM (cerca de 2000 ao todo), e só depois comunicar aos responsáveis pela empresa visava à profilaxia e combate da malária, e pode ser vista também como uma medida de emergência, sem prejuízo da leitura na perspectiva do biopoder. Isso porque, embora Oswaldo Cruz não estivesse diretamente a serviço do Estado, as atividades que desenvolveria lhe seriam úteis. A malária, no século XX matou entre 150 e 300 milhões de pessoas (RAMOS, 2007). Por ser uma doença que compromete órgãos internos, como o fígado e o baço, bem como os glóbulos vermelhos, causa grande debilidade física, tornando os enfermos indispostos para as atividades laborais. Como o protozoário permanece no sangue por longos anos, quando não é feito o tratamento correto, a população amazônica – área endêmica da doença -, passava praticamente a vida toda sem condições de se desenvolver plenamente. A ênfase que o texto confere à malária explica-se [...] porque além de ser a questão mais grave na construção da ferrovia, era também o maior problema sanitário de toda a Amazônia e de outras regiões do Brasil. Interessava não somente como um entrave a uma obra determinada, mas como uma temática científica que animava a comunidade científica internacional na área de medicina tropical (SCHWEICKARDT; LIMA, 2007, p.27)
O documento apresenta as condições sanitárias do Rio Madeira, considerando aspectos geográficos, econômicos, sociais e nosológicos, enfatizando a malária (impaludismo). Oswaldo Cruz evidenciou também, em suas considerações gerais, a qualidade dos serviços de saúde prestados pelo Hospital da Candelária, consonante com as orientações modernas da medicina e da enfermagem, mas também seus limites: não era possível atender a todos. O hospital, em sua política, tinha o intuito de atender, gratuitamente, qualquer pessoa que necessitasse, mesmo que não fosse empregada da Companhia ou seu familiar, no entanto, havia uma métrica desigual entre o número de leitos e profissionais disponíveis e a quantidade de pessoas necessitadas dos serviços de saúde. É relevante considerar que o referido hospital, diferente do que ocorre na maioria das regiões do país, não é um hospital de caridade, sustentado por irmandades religiosas, como as Santas Casas, Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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e nem é público. A iniciativa privada tenta suprir, nesse rincão, a ausência do Estado, e constitui-se num exemplo de que, com planejamento e racionalidade, a vida e o trabalho tornam-se possíveis, mesmo em condições ambientais adversas. O autor apontou ainda para as contradições existentes na região de Porto Velho. A cidade, que brotava dos trilhos do pátio da ferrovia apresentava caráter moderno e multiétnico, com trabalhadores oriundos das diversas partes do mundo, com luz elétrica e conjunto habitacional com sistema de esgoto. Crescia com um mínimo de planejamento (embora as ocupações irregulares e insalubres não tardassem a aparecer). Nela havia serviços de saúde consideráveis: um hospital com cerca de 300 leitos, farmácia e serviços laboratoriais de microscopia. No entanto, muito próximo desse “enclave” modernista, estava Santo Antônio do Madeira, mais antiga que Porto Velho, mas sem infraestrutura de saúde e saneamento. Essa não contava com arruamento planejado e nem luz elétrica. Seu monumento mais conhecido são as ruínas de um presídio, em uma ilha do Rio Madeira, para onde eram levados presos políticos e outros criminosos. A população nativa (indígenas, ribeirinhos e seringueiros) que habitava o lugar tinha de conviver com degredados, forasteiros e pessoas consideradas “incômodas” ao governo da jovem República. Quiçá por ter se tornado um lócus privilegiado de castigos aplicados pelo Estado Brasileiro, não se tenham feito os investimentos necessários para que sua população, autóctone ou migrante, pudesse viver com dignidade. A comparação tecida por Oswaldo Cruz sobre as duas vilas é discreta, mas não o exime de registrar a impressão que Santo Antonio lhe causara: Visitamos hontem a cidade de Sto Antonio. Não podes imaginar o que seja. Qualquer descripção por mais pessimista ficaria aquem da realidade. Basta que te diga que na cidade não ha um só habitante filho do lugar. Todas as crianças que ali nascem morrem infallivelmente e as poucas ahi nascidas estão de tal modo doentes que fatalmente morrerão breve. A immundicie é incrível. Para dar uma ideia pallida do que é ella basta que te diga que matam os bois nas ruas e ahi abandonam as visceras cabeça etc. que deixam apodrecer em plena rua, e o máo cheiro é de tal ordem que quase se fica suffocado. Estou horrorizado com tanta porcaria! (CRUZ, 2010).
Para o cientista, fazia-se urgente implantar uma cultura da higiene em Santo Antonio e localidades próximas a Porto Velho, uma vez o conhecimento sobre a ecologia das doenças já lhe fazia supor a circulação de vírus e mosquitos, seres que não reconhecem fronteiras geográficas. Assim, não valeriam de muito as medidas profiláticas adotadas em Porto Velho se seu entorno permanecesse contaminado pela falta de controle sanitário. Na segunda expedição para a Amazônia, o foco das ações dos médicos-pesquisadores foi o chamado “Valle do Amazonas”, a região da bacia amazônica e das microbacias dos rios Purus, Acre, Abunã, dentre outros. Dessa feita, análises sobre o Rio Madeira e Porto Velho, em específico, não foram empreendidas, pelo fato de que, três anos antes, Oswaldo Cruz já tinha tecido suas Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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considerações sobre aquele espaço. Informações construídas naquela ocasião, entretanto, são retomadas no novo texto, exemplificando-o ou atualizando-o com novos dados e leituras. Essa segunda expedição foi composta por Oswaldo Cruz, João Pedroso e Pacheco Leão e se estendeu pelos meses de outubro de 1912 a abril de 1913. O relatório que, registra os trabalhos do grupo foi apresentado ao Senhor Pedro de Toledo, Ministro da Agricultura, Indústria e Comércio, em um contexto no qual a indústria da borracha iniciava sua crise, tanto devido à concorrência com a indústria asiática, quanto do ponto de vista da produtividade média realizada pelos seringueiros amazônicos, na qual influíam doenças tropicais e as dificuldades inerentes a exploração do recurso em um ambiente de floresta densa. Esse relatório foi encomendado pelo próprio ministro da Agricultura, Indústria e Comércio e os cientistas empenharam-se em descrever o cenário percorrido pela expedição, as condições de vida dos seringueiros e uma detalhada nosologia das principais enfermidades presentes na região. Um dos pontos que nos chamou a atenção foi a construção de “tipos” elaborada pelos autores, que se entendemos estereotipada e preconceituosa, também dialoga com as principais representações sociais sobre o caboclo daquele período. Segundo os autores, os que visitam a Amazônia – com exceção deles próprios -, são “aventureiros sem princípios ou sem lógica na vida, ou o cearense corajoso e tenaz, que fugindo da morte nas ardentias da secca sucumbem nos paúes amazônicos, victimas da cruel antithese da natureza” (CRUZ, 1972b). Para os cientistas, o esforço dos nordestinos que migraram para a Amazônia como retirantes da seca deve ser valorizado, e esse grupo étnico é considerado valoroso e trabalhador, contudo, terá de enfrentar a antítese da seca, que é a vida nas várzeas amazônicas. Os discursos dos cientistas do Instituto Manguinhos reproduzem um imaginário tecido por viajantes, cronistas e jornalistas, que interpreta a Amazônia como o “inferno verde”. Nesse espaço de natureza sobrepujante, o homem se vê em toda a sua fragilidade, no entanto, não é só a condição humana que está em jogo na dialética da natureza e da cultura, mas projetos políticos de colonização dos trópicos. Para Lima e Botelho (2013, p. 746) As viagens à Amazônia e os relatos nela inspirados condensam uma complexa discussão sobre as possibilidades, os impasses e os sentidos próprios da construção da civilização nos trópicos. Feitos não apenas por cientistas e intelectuais estrangeiros, mas também brasileiros, os registros dos viajantes contribuíram para a composição de persuasivas representações que se tornaram, ao mesmo tempo, um ponto de partida para discussões mais amplas sobre a sociedade brasileira. Itinerários nos quais se deslocavam ideias, leituras e impressões sobre a natureza, a cultura, as populações locais e as relações entre região e nação, e mesmo entre o Brasil e o mundo, esses deslocamentos e seus correspondentes relatos permaneceram cruciais nas duas primeiras décadas do século XX.
Nesse sentido, os cientistas criticaram ainda a falta de racionalidade na exploração da borracha, que segue as determinações da floresta em vez da lógica humana. Os prejuízos
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econômicos dessa falta de racionalidade são considerados prejudiciais ao florescimento da vida na Amazônia, e esses prejuízos se intensificam ainda mais na medida em aquele espaço é marcado por patologias tropicais que desafiam a saúde pública. A indústria gomífera é desafiada pelas doenças tropicais, que coloca os seringueiros em face do “espectro da morte”, representado principalmente pela malária. Em sua segunda parte o relatório (CRUZ, 1972b) apresenta diversas análises sobre as questões médico-sanitárias dos rios Solimões, Juruá e Tarauacá, indicando a sazonalidade das principais doenças constatadas. A terceira parte, denominada “notas sobre a epidemiologia no Valle do Amazonas” alerta para o fato de que o interior do vale do Amazonas é pouco conhecido e pouco estudado pela Medicina Experimental. Aquela porção do espaço foi descrita no texto como de precárias condições de vida e elevados índices de mortalidade. Para Oswaldo Cruz e sua equipe, contudo, esse quadro é passível de superação na medida em que as medidas profiláticas forem aceitas e adotadas pela população e seus governos. O texto é crítico quanto a determinismos geográficos que atribuem a causas meteorológicas ou ambientais a inadaptação do homem à vida naquele espaço e seu estado de constante enfermidade. Os cientistas representam uma visão moderna e positiva da ciência, mediante a qual as adversidades do meio físico podem ser superadas com medidas científicas, como a produção de vacinas, o controle de vetores, a proteção das residências com telas em suas portas e janelas, o uso de mosquiteiros e de medicação para restabelecimento da saúde. A profilaxia de doenças parece mais enfatizada do que a promoção da saúde, primeiro porque esse não era um conceito muito utilizado naquela época, e segundo porque poderia ser inconveniente, para cientistas que dependem dos recursos do Estado para desenvolver suas pesquisas, levantar todas as obras públicas necessárias para o saneamento da região. Embora os documentos analisados apresentem uma perspectiva bastante técnica, com descrições e medidas objetivas sugeridas aos gestores, é digna de nota a preocupação humanista dos cientistas do Instituto Manguinhos, que compreendem o sofrimento humano das populações amazônicas e o percebem como limite ao desenvolvimento econômico do país. Os documentos, brevemente analisados por essa pesquisa, possibilitaram o entendimento das vinculações entre ciência e saúde no espaço amazônico, nos primórdios da República, o lugar estratégico ocupado pela Amazônia para o Estado brasileiro e para o próprio desenvolvimento científico, além de favorecem o conhecimento sobre Porto Velho no início do século XX, antes mesmo de sua elevação à categoria de município. No caso de Porto Velho, em particular, considerase que a expedição de Oswaldo Cruz de 1910 foi relevante para sua emancipação política, não só pelas medidas profiláticas adotadas após a vinda dos cientistas, que possibilitou melhorias nas condições de vida e saúde da população – especialmente da população ligada aos trabalhos da Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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ferrovia Madeira-Mamoré, quanto por dar visibilidade ao lugar, que graças à recepção de cientistas de renome, se fez lembrar na mídia e na política nacional.
Referências CHAGAS, Carlos. “Notas sobre a epidemiologia do Amazonas”, Brazil Médico, Rio de Janeiro, v.27, n.42, p.450-456. 1913. CRUZ, Oswaldo. Considerações gerais sobre as condições sanitárias do rio Madeira. Rio de Janeiro. Papelaria Americana, 1910. In: Sobre o saneamento da Amazônia. Manaus, Philipe Daou, 1972. _________, Oswaldo. Relatorio sobre as condições medico-sanitarias do valle do Amazonas apresentado a Sua Exa o Sr. Dr. Pedro de Toledo - Ministro da Agricultura, Industria e Commercio. In: OSWALDO Gonçalves Cruz: Opera omnia. Rio de Janeiro: Impr. Brasileira, 1972b. p.663-718. _________, Oswaldo. Dossiê Miloca - 1910/1911 - Expedições científicas de Manguinhos. Fundação Oswaldo Cruz. Disponível em: http://www.invivo.fiocruz.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=607&sid=7 acesso em 02/08/2014. FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população: curso dado no Collège de France (19771978). Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008. LIMA, Nísia Trindade; BOTELHO, André. “Malária como doença e perspectiva cultural nas viagens de Carlos Chagas e Mário de Andrade à Amazônia”. História, Ciências, Saúde – Manguinhos , Rio de Janeiro, v.20, n.3, jul.-set. 2013, p.745-763. SCHWEICKARDT, Júlio Cesar. Ciência, Nação, Região: as doenças tropicais e o saneamento no estado do Amazonas, 1890-1930. Manaus, FAPEAM/FIOCRUZ, 2011. SCHWEICKARDT, Júlio Cesar; LIMA, Nísia Trindade. “Os cientistas brasileiros visitam a Amazônia: as viagens científicas de Oswaldo Cruz e Carlos Chagas (1910-1913)”. Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.14 suppl.0 Rio de Janeiro Dec. 2007
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Uma análise do perfil econômico de famílias impactadas pela cheia do Rio Madeira de 2014 residentes nos bairros Baixa União, Triângulo e Balsa Carlos Miguel Teixeira Ott José Ítalo Oliveira dos Santos Josenaldo Santos Porto Xênia de Castro Barbosa
Resumo: O texto visa a uma breve análise do perfil econômico de 300 famílias residentes nos bairros Baixa União, Triângulo e Balsa, em Porto Velho - bairros localizados às margens do rio Madeira e que foram atingidos pela enchente de 2014. Buscou-se, a partir de uma concepção materialista da História traçar o perfil econômico dessas famílias, por se entender que o fator econômico influi fortemente na capacidade de resiliência de pessoas vítimas de eventos socioambientais extremos, embora não seja o único capaz de contribuir para a retomada dos projetos de vida e a reconstrução dos ambientes de convívio familiar e social. Palavras-chave: Enchente. Perfil econômico. Território urbano. Abstract: The paper aims at a brief analysis of the economic profile of 300 families living in Baixa União, Triângulo and Balsa Districts, in Porto Velho - districts located on the banks of the Madeira River that were affected by the flood of 2014. We tried, through a materialistic conception of history, to trace the economic profile of these families, because it is understood that the economic factor strongly influences the resilience of victims of extreme social and environmental events, although it is not the only factor capable of contributing to the resumption of life projects and reconstruction of family and social scene. Keywords: Flood. Economic profile. Urban territory.
Introdução Esse ensaio é um recorte do estudo “Gestão Ambiental do Território Urbano: uma análise dos riscos e vulnerabilidades socioambientais dos bairros Baixa União, Triângulo e Balsa, em Porto Velho/RO”, desenvolvida no Programa Institucional de Pesquisa do IFRO – PIP/IFRO. O projeto faz parte de um projeto “guarda-chuva” denominado “Banzeiro: uma análise sistêmica da enchente do Rio Madeira de 2014 e seus efeitos socioeconômicos e ambientais em Porto Velho/RO”. O texto visa a uma breve análise do perfil econômico de 300 famílias residentes nos bairros Baixa União, Triângulo e Balsa, em Porto Velho - bairros localizados às margens do rio Madeira e que foram fortemente impactados pelo transbordamento desse rio, em 2014. Buscou-se, a partir de uma concepção materialista da História e do método do materialismo histórico e dialético traçar o perfil econômico dessas famílias, por se entender que o fator econômico influi fortemente na capacidade de resiliência de pessoas vítimas de eventos socioambientais extremos, embora não seja
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o único capaz de contribuir para a retomada de projetos, a reconstrução de moradias, naqueles ou em outros espaços, e a reconstrução de equipamentos urbanos danificados pela enchente. A escolha por uma concepção materialista da História e pelo método do materialismo histórico e dialético como ferramenta de análise se deu com base no entendimento de que, ao procedermos à produção social de nossa existência, nos colocamos em relações determinadas, necessárias, e independentes de nossa vontade, relações que “correspondem a um dado grau de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se ergue uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social” (MARX, 1989, p. 28).
Do mesmo modo, a produção material do espaço se dá a partir das condições materiais disponíveis, essas compreendendo os recursos técnicos, a cultura e as relações de produção que definem a propriedade e os usos do solo. Com base no exposto, torna-se patente que: (1) Os bairros investigados nessa pesquisa, caracterizados como de colonização antiga (centenária), foram formados a partir de ocupação espontânea (não planejada), com exceção das adjacências do pátio da Estrada de Ferro MadeiraMamoré, (2) Não houve ações efetivas por parte do poder público em regular a ocupação desses espaços, sujeitos a alagamento e desabamento de terra, (3) Esses bairros foram formados historicamente por famílias de trabalhadores, em geral funcionários da Ferrovia Madeira-Mamoré ou outros trabalhadores, cujos ofícios contribuíam, direta ou indiretamente, para a manutenção do empreendimento ferroviário, (4) A maioria desses trabalhadores era de condição social humilde e edificou suas residências próximas ao rio e ao pátio da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, porque aquele ambiente lhes proporcionava, simultaneamente, interação social, possibilidade de comércio, acesso a serviço médico-hospitalar (prestados pelo hospital da Candelária), além da exploração das benesses do Rio Madeira, que fornecia a principal fonte de proteína utilizada na época – o peixe, além da água para o consumo humano e irrigação de pequenas hortas. Destaca-se que o rio também se apresentava como o mais importante meio de transporte e conexão entre o mundo ribeirinho amazônico e o nascente mundo urbano de Porto Velho. Com o decorrer dos anos, a população desses bairros se diversificou, abrangendo tanto famílias descendentes desses primeiros povoadores, que se encontram há três ou mais gerações assentadas naqueles espaços, assim como migrantes recentes, das diversas classes sociais. É possível encontrar nesses bairros tanto residências precárias em becos onde não é possível o trânsito nem mesmo de caminhão coletor de lixo, até mansões, edificadas à margem do rio por escolha estética de uma parcela da elite econômica portovelhense. As características estruturais desses bairros levaram-lhes à classificação de “aglomerados subnormais”, que coexistem com residências de alto padrão evidenciando as disparidades Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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econômicas entre as classes. A enchente do Rio Madeira de 2014, que acreditamos ocasionada por uma convergência de fatores de ordem climática e social, afetou indistintamente a ricos e pobres, evidenciando as falhas políticas e técnicas quanto ao uso, distribuição e ocupação do solo urbano em Porto Velho. O fenômeno trouxe à tona o problema do ordenamento territorial, da propriedade do solo, da falta de tratamento do lixo, da inexistência de sistemas de drenagem e de prevenção de enchentes, dentre outros, mobilizando entes privados e públicos no auxílio às vítimas dessa que foi a maior catástrofe enfrentada pela população de Porto Velho desde a criação da Estrada de Ferro MadeiraMamoré. Impacto socioambiental dessa envergadura, apesar de “democrático” em sua extensão, resulta em respostas diferenciadas por parte dos sujeitos por ele afetados. Se os riscos parecem equivalentes a todos os grupos sociais, pelo menos em um primeiro olhar, a vulnerabilidade socioambiental e econômica desses grupos é variável, assim como sua capacidade de resiliência. Para dimensionar os riscos e vulnerabilidades foram entrevistados 300 moradores dos bairros em análise, sendo cem da Baixa União, cem do Triângulo e cem do bairro Balsa. A coleta de dados levantou informações variadas sobre risco e vulnerabilidade socioambiental, mas nesse texto daremos enfoque tão somente a seu perfil econômico. Do total de pessoas entrevistadas, 36 pessoas, ou seja, 12,00% da amostra afirmou receber mensalmente menos de um salário mínimo, 41,33% afirmou receber apenas um salário mínimo, 27,66% dos entrevistados afirmou possuir renda de um a dois salários mínimos, 0,66% disse perceber mensalmente o equivalente de cinco a oito salários mínimos e 1,00% da amostra afirmou possuir renda superior a oito salários mínimos. O conjunto foi representado por 147 pessoas do século masculino e 153 do sexo feminino, correspondendo, respectivamente a 49% e 51% da população entrevistada. No grupo do gênero feminino encontram-se tanto as pessoas com maior renda (acima de oito salários mínimos), quanto aquelas de maior fragilidade econômica (menos de um salário mínimo). Foi possível perceber também que, dentre as pessoas de menor renda econômica encontram-se mulheres jovens, entre 16 e 24 anos. A pesquisa não investigou a quantidade de filhos dessas mulheres, mas foi possível perceber que três delas estavam em estado gestacional avançado, das quais duas não estavam recebendo acompanhamento pré-natal, até o momento em que as contactamos e encaminhamos para a assistência social do município. A procedência Geográfica dos entrevistados revelou-se predominantemente urbana, com apenas 86 pessoas de procedência rural. Importante destacar que esse ambiente rural do qual essas pessoas se deslocaram até chegar a Porto Velho são, predominantemente, os ambientes ribeirinhos do Baixo Madeira e de antigos seringais da região de Humaitá.
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O nível de escolaridade dos entrevistados é considerado baixo: 62,33% (187 pessoas) possui apenas o Ensino Fundamental, sendo que desse percentual constam tanto os que possuem o Ensino Fundamental completo quanto o incompleto. O Tempo médio de permanência na escola vivenciado por aquelas pessoas foi de quatro anos. Apenas 34,66% dos entrevistados – o que equivale a 104 pessoas – tiveram acesso ao Ensino Médio e desse total 16 não estavam frequentando escola no momento da entrevista, devido a mudança para abrigos distantes das escolas onde estudavam e/ou porque a escola onde estudavam também sofreu alagação. Apenas nove, das 300 pessoas entrevistadas possui curso superior completo, estando essas situadas nas faixas que apresentaram os rendimentos econômicos mais elevados. Cabe destacar, contudo, que uma das pessoas que apresentou rendimento superior a oito salários mínimos possui o Ensino Médio incompleto, e justificou seu poder aquisitivo pelo fato de ter herdado propriedades de seu falecido esposo, que lhe deixou oito imóveis de aluguel. Curiosamente, essa pessoa estava servindo-se de um abrigo mantido pela Igreja Católica, como forma de ser vista pelo Estado e receber a indenização que considera justa. A entrevistada alegou também a importância de estar unida às demais pessoas que sofrem pelo mesmo problema, evidenciando que a luta pela reparação aos danos sofridos deve ser uma luta coletiva. O perfil dos atingidos pela enchente do Rio Madeira de 2014 é variável e engloba tantas pessoas de baixa renda, cujo valor preciso não foi possível estimar18, mas sabe-se inferior ao valor do salário mínimo vigente no Brasil, quanto pessoas de classe média e média alta. A maioria, contudo, contudo, é de pessoas pobres, que pela difícil condição socioeconômica em que se encontram sentem de maneira atroz a violência causada pela enchente do Rio Madeira. Para essas pessoas, que perderam tudo, que perderam o pouco capital que possuíam, recomeçar se torna mais difícil, levando-as à dependência do assistencialismo estatal e da filantropia das organizações sociais. É preciso problematizar ainda o dado de que 41,33% da amostra afirmou possuir renda de um salário mínimo, o que pode ter se dado pela necessidade de informar uma renda aquém da que realmente se possui para não se ficar desassistido dos programas sociais, que atendem apenas aos mais carentes. Os fatores emocionais envolvidos no processo e as necessidades materiais imediatas desses trabalhadores, especialmente a de reconstruir suas habitações e assegurar o conforto da família, compensando os prejuízos sofridos deve ser considerado como possível fator de subquantificação da renda familiar. Quanto às informações sobre escolaridade e procedência geográfica, acredita-se estarem corretas, na medida em que se faz necessária sua comprovação documental para cadastros nos 18
Não insistimos no detalhamento dessa informação por entendermos se tratar de assunto que pode causar constrangimento às pessoas que vivem aquela situação. Trabalhamos apenas com as informações que, voluntariamente, as pessoas quiseram dar a esse respeito. Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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programas sociais, assim a expressão da identidade e referenciais geográficos se mostrou, nesse caso, menos problemática do que a revelação da renda familiar, embora se possa afirmar que a maioria das pessoas entrevistadas estavam abrigadas em escolas e igrejas por não possuírem outro imóvel ou não possuírem condições de pagar aluguel, naquelas circunstâncias. Considerou-se o perfil econômico das famílias entrevistadas um agravante da situação de vulnerabilidade que enfrentam, por não lhes possibilitar o acesso aos recursos necessários para a reconstrução da moradia. Mesmo com os subsídios governamentais, não se constatou alterações significativas nesse perfil. Foram pagos às famílias cadastradas e aprovadas pela Secretaria de Assuntos Estratégicos (Seae) o auxílio aluguel, por seis meses, no valor de R$: 500,00 mensais e o Auxílio Vida Nova, no valor de R$ 1.000, pago em parcela única, para utilização conforme necessidade do beneficiário. Também foram efetuados cadastros para o projeto “Morada Nova”, do Governo do Estado de Rondônia, em parceria com o Programa do Governo Federal Minha Casa Minha Vida, mas ainda não houve beneficiados e nem é preciso dizer que os valores pagos às vítimas da cheia (Auxílio aluguel social e auxílio Vida Nova) são simbólicos e insuficientes em vista dos prejuízos sofridos e do alto valor do preço dos alugueis em Porto Velho.
Referências PLEKHÂNOV, Guiorgui. A concepção materialista da História. São Paulo: Ed. Escriba, 1983. MARX, Karl. Prefácio de Contribuição para a Crítica da Economia Política . São Paulo: Mandacaru,1989.
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Violência no trânsito uma abordagem da problemática na cidade de Porto Velho Tiago Lins de Lima Maria Enísia Soares de Souza Xênia de Castro Barbosa Madson Silva de Souza Junior Resumo: O presente trabalho objetiva apresentar um panorama da violência no trânsito na cidade de Porto Velho/Rondônia, com base em estatísticas e relatórios produzidos pelo DENATRAN – Departamento Nacional de Trânsito, DETRAN/RO – Departamento de Trânsito do Estado de Rondônia e o SIM – Sistema de Informações sobre Mortalidade. A pesquisa articulou os métodos bibliográfico-documental e observação em campo para a produção de uma síntese que problematiza o modelo de desenvolvimento e modelo de transporte privilegiado na sociedade de Porto Velho. As reflexões aqui apresentadas foram tecidas tendo como base as discussões relativas aos desafios da cidade de Porto Velho, no contexto de seu centenário, celebrado em dois de outubro de 2014. Palavras-chave: Violência. Trânsito. Porto Velho.
Abstract: This work aims to present an overview of traffic violence in Porto Velho/Rondônia, based on statistics and reports presented by DENATRAN – National Traffic Department, DETRAN/RO – Traffic Department of the State of Rondônia, and SIM – Data System on Mortality Rate. This research related documental-bibliographic methods and field observation to produce a synthesis that questions the development model and the privileged transportation model in the society in Porto Velho. Reflections here presented were based on arguments related to the challenges Porto Velho faces, especially in its centennial context, celebrated on October 2 nd, 2014. Key words: Violence. Traffic. Porto Velho.
INTRODUÇÃO Não é desconhecido o fato de que o Brasil atravessa uma situação crítica em relação ao trânsito, seja no que diz respeito à lentidão do tráfego, devido aos congestionamentos ou número elevado de veículos em circulação, seja no que reporta aos elevados números de acidentes. Nesse texto daremos enfoque para esse segundo aspecto, com vistas produzir uma discussão capaz de contribuir para a mitigação desses danos. Consideramos a educação no trânsito um dos aspectos essenciais das políticas públicas de combate a essa forma de violência. Entretanto, entendemos que, mais do que campanhas educativas – que muitas vezes são direcionadas ao público-alvo errado (estudantes que não dirigem), é necessário discutir o modelo de desenvolvimento adotado no Brasil e seu modelo de transporte. O Brasil vivenciou a partir dos anos 1950 um acentuado processo de urbanização, que consagrou a cidade como espaço privilegiado de vida. As oportunidades (verdadeiras ou não) vislumbradas em relação a ela atraíram grande contingente de migrantes, ocasionando o fenômeno do “êxodo rural”, característico, principalmente, do período de 1960 a 1980. Nas cidades se
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concentraram o comércio, a indústria, os centros de formação acadêmica e as principais opções de lazer, embora nem sempre essas opções estejam de fato disponíveis a todos os que a demandam. A cidade é, por excelência, o espaço da segregação e do desenvolvimento desigual. No seu reverso encontra-se a política agrária brasileira, marcada pela má distribuição da terra, pela retração dos investimentos públicos na agricultura familiar e a incorporação de tecnologias para a agricultura extensiva. De acordo com Mueller e Martine (1997), essas novas tecnologias de produção agrícola atuaram na intensificação das desigualdades socioeconômicas, considerando que seu acesso foi limitado a uma elite agrária. Essa elite, por sua posição social, pode dispor dos créditos e incentivos produtivos, em detrimento da maioria da população camponesa do Brasil, que sem condições de se manter no campo deslocou-se para as cidades em busca de uma vida melhor. Atualmente, 84% da população brasileira residem em áreas urbanas (IBGE, 2010), evidenciando um crescimento de 3% em relação ao ano de 2000. Na escala de Porto Velho, constata-se a reprodução desse modelo: dos 428.527 habitantes que compõem sua população (IBGE, 2010), cerca de 360 mil pessoas residem em espaço urbano. Estudo de Cláudia Pinheiro Nascimento, Carlos Santos e Maurício Silva (2012) indica crescimento negativo da população rural de Porto Velho, ao passo em que sua população urbana se desenvolve a taxas elevadas. De acordo com o estudo (op. cit.), no ano de 2010 houve decréscimo da população rural de Porto Velho em -42%, ou seja, quase metade de sua população rural teria deixado a vida no campo e migrado para outros espaços. A vida nas cidades apresenta desafios peculiares e crescentes, como o da violência no trânsito. Conforme Rodrigues, Violência por definição é um comportamento humano que vise ou possa causar dano a outra pessoa, ser vivo ou objeto. È o ato atentatório contra a autonomia, integridade física ou psicológica e mesmo contra a vida de outro. É um fenômeno que permeia todo o tecido social e assume diferentes formas. É geral. Ocorre do nosso lado e nas mais longínquas regiões terrestres. Pode ser percebida nos bairros nobres das cidades e nas periferias. Está nas ruas e, até mesmo, dentro de nossas casas. É exterior à vontade das pessoas. Alcança todas elas indistintamente variando, porém, em intensidade (RODRIGUES, 2007, p. 1).
Apesar de a violência ser um fenômeno social generalizado, suas expressões podem ser seletivas, atingindo grupos mais vulneráveis, como a violência de gênero, a violência contra crianças e adolescentes ou contra idosos. Os acidentes de trânsito são uma das expressões da violência que perpassa as relações sociais no trânsito, e podem contar ou não com a intencionalidade de seus autores, ou seja, podem ser provocados devido à imprudência dos condutores - que sabendo dos limites de velocidade e da condição de sobriedade necessária para a condução de veículos, as ignoram intencionalmente, ou podem decorrer de problemas não intencionas, como falhas mecânicas no veículo e no sistema de sinalização das vias públicas. Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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Entende-se por acidente aquilo que é casual, “fortuito, imprevisto, não planejado, um evento não intencional que produz danos e/ou ferimentos. Quando esse imprevisto origina um dano grave nas pessoas ou leva à sua morte, converte-se em fatalidade, obra do destino, produto do acaso” (WAISELFISZ, 2013, p. 8). Apesar disso, muito do que se considera “acidente” poderia ser evitado com medidas de educação no trânsito e maior responsabilidade, seja por parte dos condutores, seja por parte do poder público, mediante engenharia de trânsito. A violência no trânsito é uma manifestação específica de violência e, sendo assim, pode ser intencional (crime doloso) ou não intencional (crime culposo). Nesse sentido, é necessário ainda distinguir violência automobilística de violência no trânsito. A violência automobilística é a que envolve um ou mais automóveis, sendo o seu condutor o seu principal agente. A violência no trânsito é toda e qualquer forma de violência que acontece no trânsito, desde o que juridicamente é chamado de crime doloso até um acidente entre um ciclista e um pedestre (VIANA, 2013). O quadro contemporâneo de violência no trânsito é emblemático do modo de vida urbanoindustrial, que imprimiu nas sociedades ocidentais a “ditadura do tempo”, obrigando as pessoas a se deslocarem cada vez mais e com mais “eficiência” pelos espaços. Velocidade e pontualidade se tornaram valores culturais capazes de favorecer ganhos financeiros, e para isso o automóvel foi apresentado como um dos principais aliados. Segundo o Departamento Nacional de Trânsito (DENATRAN, 2014), há em circulação no Brasil 84.892.511 veículos, dos quais 45.444.387 são automóveis, ou seja, 56% da amostra. No período de 2001 a 2011 o número de veículos no Brasil cresceu mais de 100%, e com base no Censo IBGE 2010, calcula-se que o país tenha uma média de 01 carro para cada 2,94 habitantes. Já o município de Porto Velho possui uma frota de 231.004 veículos (DENATRAN, 2014), dentre os quais 71% são de automóveis e motocicletas. A frota de ônibus desse município é de 1623 unidades, ou seja, menos de 1% do total de veículos em circulação. De acordo com Julio Waiselfisz, em seu Mapa da Violência, Mais da metade (52,2%) dos domicílios brasileiros possuem carro e/ou motocicleta. A maior presença é a de carros, que existem isoladamente em 32,9% dos domicílios, além dos 7,9% onde existem acompanhado de motocicleta, com o que o automóvel encontra-se presente em 40,8% dos domicílios do país. A motocicleta existe, de forma exclusiva, em 11,1% dos domicílios e, acompanhada de carro, em mais 7,9%, totalizando 19% dos domicílios do país (WAISELFISZ, 2013, p. 79).
Os dados acima apresentados permitem pensar que o transporte individual de passageiros, realizado principalmente por meio de automóveis e motocicletas não só tem sido priorizado como tem sido estimulado pelo governo, em prejuízo do transporte público. No Brasil, o transporte Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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coletivo – que poderia substituir boa parte do transporte individual, diminuindo o trânsito e a poluição atmosférica – tem qualidade questionável e tarifas incoerentes com a qualidade dos serviços prestados e as condições econômicas da população, o que levou a uma onda de protestos no ano de 2013 que tomou conta das principais capitais do país, forçando os governantes e concessionários do serviço a reduzirem o valor das tarifas. A redução do valor das tarifas não foi suficiente, contudo, para a melhoria da qualidade dos serviços prestados e nem para a universalização do acesso ao serviço, o que faz com que muitas pessoas tenham ou preferiam utilizar automóvel e motocicletas a ônibus. Sem entrar no mérito dos danos ambientais ocasionados por esse modelo de transporte, um dos principais impactos dessa grande quantidade de carros e motos em circulação se dá na desordem do trânsito e na quantidade de vítimas fatais dos acidentes. De acordo com o Sistema de Informação sobre Mortalidade do Ministério da Saúde (SIM, 2011), o número de óbitos por acidente de trânsito no Brasil atingiu a casa dos 46. 253, dos quais 591 ocorreram em Rondônia. O cálculo das taxas de óbito para cada 100 mil habitantes da população total do Brasil no ano de 2011 foi de 22,5 e em Rondônia, de 37, 5, acima, portanto, da média nacional. Sabe-se, todavia que, esses números alarmantes não são restritos ao Brasil e a Rondônia, mas fazem parte da maioria dos países em desenvolvimento no mundo. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS, 2010), no ano de 2010 foram registrados 1,24 milhão de mortes por acidentes de trânsito e de 20 a 50 milhões de pessoas com traumatismos decorrentes de acidentes desse tipo, o que tem levado a própria entidade a falar de uma “epidemia letal” de violência no trânsito (OMS, 2010). No Brasil, como forma de tentar reduzir a mortalidade e ferimentos por acidentes de trânsito foi decretada a Lei Seca (Lei 11.705/2008), que alterou o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), penalizando com multa, suspensão da carteira de habilitação e até detenção os motoristas que trafegarem sob o efeito de álcool. O CTB sofreu nova alteração em 2012, com a Lei n. 12.769, de 20 de dezembro de 2012, que tonou mais rigorosa a fiscalização e punição dos infratores. Com a pesquisa procuramos discorrer brevemente sobre o conjunto documental que deu base ao estudo e dimensionar o problema da violência no trânsito em Porto Velho. A pesquisa, de cunho qualitativo, baseou-se na metodologia da Análise Documental e tomou como fontes relatórios da OMS, DETRAN/RO, do DENATRAN, bem extraiu dados do SIM/DATASUS. Também utilizamos de relatos sistematizados a partir de nossas próprias observações em ruas e avenidas movimentadas da cidade, nas quais costumam ocorrer acidentes de trânsito, como as Avenidas Jorge Teixeira, Calama e Rio Madeira, e as ruas Rafael Vaz e Silva, Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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Guanabara, Joaquim Nabuco e Uruguai. As observações em campo localizaram-se principalmente nos bairros a oeste da região central de Porto Velho: Olaria, São Cristóvão, Liberdade, e Setor Industrial. As noções de acidente e acidente de trânsito utilizadas no presente estudo foram as do SIM/MS, que estão em consonância com as classificações da Organização Mundial da Saúde. A análise dos dados tomou como referência Araújo (2009), Bacchieri e Barros (2011), Viana (2013) e (WAISELFISZ, 2013), dentre outros.
1 AVIOLÊNCIA NO TRÂNSITO EM NÚMEROS Uma multiplicidade de fatores interage para a ocorrência constante de acidentes e violências no trânsito, desde as más condições das vias e falhas mecânicas nos veículos até o consumo de drogas lícitas e ilícitas (ARAÚJO, 2009). Quanto à vulnerabilidade social, a violência do trânsito é extensiva a todas as classes e grupos sociais, todavia, consideram-se mais vulneráveis as populações que não dispõem de boas condições econômicas e de acesso aos serviços de saúde em tempo e qualidade adequados. Por tempo e qualidade adequada se consideram o socorro rápido e eficiente, que pode minimizar a extensão e gravidade dos traumatismos e evitar mortes prematuras. Em Porto Velho, muitos dos acidentes de trânsito são ocasionados por negligência dos condutores, conforme atestam dados provenientes da 4ª edição do Anuário Estatístico de Trânsito (DETRAN, 2013), que reuniu informações da Polícia Civil – PC, Polícia Militar – PM, Polícia Rodoviária Federal – PRF, Delegacia Especializada em Delitos de Trânsito - DEDT e Instituto Médico Legal – IML, do período de 2002 a 2012, com base nas orientações da Associação Brasileira de Normas Técnicas pela NBR 10697. A partir da figura abaixo é possível constatar as principais infrações de trânsito praticadas em Porto Velho no ano de 2013.
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Figura 1: Infrações mais cometidas no município de Porto Velho no ano de 2013
Fonte: CIATRAN/PVH/2013
Ao se analisar os dados do quadriênio 2009-2012 fornecidos pelo DETRAN (DETRAN, 2013), constatam-se que essas mesmas infrações vêm acontecendo sem grandes recuos desde 2009, demandando, portanto, iniciativas mais eficazes de educação para o trânsito. A violação aos artigos 230, 162, 232 e 167 do CTB, por exemplo, aparecem em todos os 4 anos, demonstrando contínuo desrespeito às normatizações de segurança e legalidade.
O quadro seguinte mostra dados da CIATRAN com os resultados da Operação Lei Seca e nos permite perceber que o quantitativo de condutores autuados superou a soma do período 2011-2012. Em 2013, 6.173 motoristas foram autuados por dirigirem embriagados.
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Figura 2: Números da Operação Lei Seca no município de Porto Velho, ano 2013
Com as alterações legais e a operação Lei Seca em Porto Velho houve aumento do número de autuações e de prisões, o que indica que a fiscalização está sendo realizada, no entanto, não se notam transformações de ordem cultural, por parte da sociedade, para um trânsito menos violento. Os entendimentos dessa sociedade e a falta de ética de alguns condutores têm contribuído para a elevação do número de vítimas fatais em acidentes de trânsito no município do Porto Velho.
Figura 3: Número de vítimas fatais no município de Porto Velho segundo sexo VÍTIMAS FATAIS NO MUNICÍPIO DE PORTO VELHO SEGUNDO SEXO
Fonte: DETRAN/RO, 2013.
Quanto ao comportamento das mortes por acidentes de trânsito segundo o sexo, é Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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Com base na imagem acima é possível notar que em Porto Velho, as principais vítimas de acidentes de trânsito no período 2002 a 2012 foram os homens, em uma proporção de 3:1 (três homens para cada uma mulher), indicando a vulnerabilidade desse gênero. Essa pesquisa não teve o propósito de investigar as causas da vulnerabilidade desse grupo, todavia, estima-se que fatores econômicos (como maior acesso a veículos de transporte) e culturais (maior consumo de bebidas alcoólicas) possam estar envolvidos. Figura 4: Quadro comparativo de condutores envolvidos em acidentes
A concentração de mortes em decorrência de acidentes de trânsito tem predominado, nos seis últimos anos, na faixa etária do adulto jovem – 30 a 59 anos, seguido de 18 a 29 anos (DETRAN, 2013). A população dessas faixas etárias são, segundo (WAISELFISZ, 2013), os principais usuários de motocicletas. Essas, conforme Bacchieri e Barros (2011) submergiram no espaço urbano como eficiente ferramentas de transporte e trabalho diante de um trânsito cada vez mais congestionado, tornando-se o meio de transporte individual mais popular no Brasil. Entretanto, a forma de condução e a vulnerabilidade do condutor e passageiro contribuíram para o aumento dos acidentes com motociclistas jovens do sexo masculino, e suas vítimas, os pedestres, o que coloca esse grupo como prioritário nas campanhas educativas e de saúde pública com ênfase no trânsito. Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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Figura 5: Vítimas fatais no município de Porto Velho segundo tipo
Fonte: DETRAN/RO/2013
Cabe destacar que as populações das faixas etárias acima identificadas são classificadas como as economicamente ativas, dessa forma, a perda de vidas de pessoas desse grupo ou acidentes que deixam sequelas duradouras impactam diretamente na economia familiar e do país. A reabilitação de vítimas de acidentes de trânsito também afeta o orçamento público. De acordo com Patrícia Santos Dumont, As alarmantes estatísticas de acidentes no trânsito representam um gasto público de R$ 230 milhões ao ano. O montante corresponde às despesas do Ministério da Saúde com quase 170 mil vítimas internadas em hospitais conveniados ao Sistema Único de Saúde (SUS), em 2013 (DUMONT, 2014, p. 1).
Já dos cofres do INSS saíram, em 2012, cerca de R$ 12 bilhões, gastos com o pagamento de seguro para um milhão de acidentados com danos temporários ou permanentes (PREVIDÊNCIA SOCIAL, 2013), e como o acesso a créditos para aquisição de veículos é crescente, não se percebem perspectivas, em curto prazo, de retração do problema da violência e dos acidentes de trânsito. Considera-se pertinente, contudo, que as responsabilidades por esses índices alarmantes sejam assumidas por todos: pelo Estado, pela sociedade e também, individualmente por cada condutor. Da sociedade em geral, e dos condutores, em particular, se espera o compromisso com a vida, a responsabilidade em cada metro percorrido, e do Estado se espera o reconhecimento do fenômeno como problema de saúde pública, que deve ser efetivamente combatido, com campanhas educativas e com adequada formação aos condutores. É necessária maior fiscalização das escolas de formação de condutores, na proporção do que se faz com as instituições de curso superior e pósgraduação, bem como investimentos sistemáticos em engenharia de trânsito, de modo melhorar a circulação pela cidade, a visualização e entendimento da lógica de seus fluxos. Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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2. A TERRITORIALIZAÇÃO DOS ACIDENTES DE TRÂNSITO EM PORTO VELHO/RO
No que remonta à territorialização dos acidentes de trânsito em Porto Velho, pode-se afirmar que estes estejam distribuídos por toda a malha urbana municipal, com concentração nos bairros e cruzamentos de maior fluxo de pessoas e veículos. Os 15 bairros com maior número de vítimas de acidentes de trânsito foram o Nova Porto Velho, o Centro, Agenor de Carvalho, Embratel, Tancredo Neves, Nossa Senhora das Graças e São Cristóvão, seguidos de Flodoaldo Pontes Pinto, JK, Aponiã, Olaria, Areal, Lagoinha, Caladinho e Nova Floresta, sendo que o bairro Nova Porto Velho concentrou 301 acidentes com vítimas no ano de 2012. Figura 6: Acidentes com vítimas por bairro no município de Porto Velho, 2012
Fonte: DETRAN/RO/2013
O DETRAN/RO (2013), aponta ainda as ruas e avenidas consideradas críticas, onde foram registrados elevados números de acidentes no ano de 2012. Dentre elas destacam-se cinco principais: Avenida Calama com 159 acidentes, 99 vítimas não fatais e 1 fatal, Avenida Jatuarana com 134 acidentes, 95 vítimas não fatais e 3 fatais, Avenida Mamoré com 121 acidentes, 123 vítimas não fatais e 4 fatais, Avenida Campos Sales com 118 acidentes e 90 vítimas não fatais e nenhuma fatal e Avenida Rio Madeira com 102 acidentes, 94 vítimas não fatais e 2 fatais. Em 2013 o DETRAN/RO disponibilizou sua base geocodificada de acidentes de trânsito em cruzamento de vias. A geocodificação de cerca de 55% dos acidentes ocorridos em 2013 foi Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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elaborada com base no Sistema Geodésico Sul-Americano de 1969 (SAD-69) e o sistema de coordenadas geográficas utilizadas foi o Sistema Universal Transversal de Mercator (UTM). A base pode ser acessada do site do DETRAN (http://www.detran.ro.gov.br/category/estatisticas/) e possibilita o conhecimento das principais vias de cruzamento onde ocorreram acidentes, o horário e as condições das vias (se pavimentadas ou não) e s estavam ou não molhadas no momento do acidente. A base, que precisa ser ampliada constitui uma ferramenta importante para os gestores do planejamento urbano, de saúde e da própria autarquia. Quando articulamos o fator tempo às coordenadas espaciais vemos que o número de vítimas por acidente de trânsito em Porto Velho é mais elevado no final de semana, ou seja, nos momentos de lazer, quando é de costume, por parte de muitos condutores, o consumo de bebidas alcoólicas, que somadas ao problema da má sinalização das vias e da crença de que, como é “feriado ou fim de semana existe pouco movimento, então se pode acelerar um pouco mais” ocasionam os acidentes. Figura 7: Relação dias da semana – acidentes, 2012
Fonte: DETRAN/RO/2013
De acordo com Cichovicz, o trânsito é composto pela interação entre três grandes subsistemas - o homem, a via e o veículo, e uma locomoção segura e organizada envolve três elementos principais: engenharia, educação e policiamento/legislação. Contudo, o homem, com seus múltiplos fatores sensoriais, motivacionais, emocionais e de personalidade, é o maior responsável pelas diferentes causas dos acidentes de trânsito (CICHOVICZ, 2011). As relações estabelecidas no trânsito devem contemplar valores ou princípios para um convívio social pacífico, como o respeito ao próximo, a prudência, obediência às leis e a solidariedade, pois, muitas vezes, a sociedade passa por crises, marcada pela agressividade e individualismo (PINTO, 2013). Nessa mesma esteira, Viana (2013) defende a ideia de que a solução para a problemática da violência no trânsito depende de uma profunda transformação nas relações sociais, culturais e valorativas, junto com formas de auto-organização da população e sua Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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intervenção na organização do espaço urbano. Contudo, tendo em vista a complexidade de tal objetivo, antes que ele seja alcançado é preciso que se estabeleça um processo de articulação de ações imediatas e ações a longo prazo. Inserida no conjunto das estratégias para diminuição da violência no trânsito, tem-se a política de conscientização executada por meio de campanhas ou projetos, principalmente nas escolas. A educação aflora o senso crítico, as potencialidades de cada indivíduo e, consequentemente, os predispõem a uma convivência colaborativa e integradora (PINTO, 2013). Um dos mais importantes elementos de educação no trânsito e coibição da violência realizada no trânsito é o Código de Trânsito Brasileiro, que por força da lei impõe sansões aos que violam os preceitos legais, no entanto, a lei em si não é suficiente para promover uma cultura de responsabilidade e respeito à vida, além do que, há que se medir a própria responsabilidade do Estado na conformação do problema, pois muitos acidentes ocorrem por omissão direta do poder público, que deixa de fazer nos investimento necessários nas vias de circulação e sinalizar a cidade, e no limite, o próprio Estado é responsável pelo modelo de transporte hegemônico, pautado no automóvel. A solução que nos parece mais viável à resolução de tal problemática, seria o engendramento de uma política de repressão aliada às ações educativas, visto que, a atual política adotada, de forte repressão, não vem surtindo os efeitos esperados pela legislação vigente. De outra sorte, as campanhas educativas além de demonstrar a importância da segurança pública de trânsito têm por objetivo a transformação de todos os agentes envolvidos no trânsito, contribuindo assim para uma sociedade mais segura para todos.
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Artigos
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História e Realidade Alberto Lins Caldas
Resumo: Este artigo aborda a História enquanto discurso que se apaga enquanto criação discursiva, produzindo o passado enquanto realidade e como se não fosse um constructo de linguagem. Negando assim a própria historicidade, sua essência, torna-se o pensamento do imóvel, do imutável, da identidade, das despolitizações. É essa matriz metafísica que é explicitada aqui. Para isso se expõe sucintamente as operações que “produzem a História” e as consequências desse fazer. Palavras-Chave: Teoria, Método, Escrita da História. Abstract: This article discusses the history as a discourse that goes off while creating discursive, producing the past as reality and as if it was a construct of language. Thus denying the historicity itself, its essence, becomes the thought of the property, the unchanging, the identity of depoliticization. It is this matrix that metaphysics is explained here. For it succinctly exposes operations that "produce history" and the consequences of doing. Key-Words: Theory, Method, Writing of History.
Introdução
Na luta por uma “compreensão mais aguda da existência” os séculos iniciais da modernidade acreditaram que haviam separado a imaginação da razão, a “mitologia” da ciência, separar a crença e os métodos que estabelecem a certeza, a objetividade, o “realmente acontecido” daquilo que se acredita que aconteceu. Espinosa (1983), no centro da criação da história, inocenta a imaginação: “as imaginações da mente, consideradas em si mesmas, não contêm nenhum erro; ou seja, a mente não erra por imaginar” (Ética II, prop.17, esc.). O engano, não estando na imaginação, desliza para um saber que imaginamos sem atinar que não se trata de saber ou conhecimento, não se trata da razão, mas sim de um imaginar que não sabe nem pode saber que é apenas imaginação. A certeza da exclusão da imaginação, das crenças e das mitologias dos campos da razão e da ciência só fez se consolidar até se tornar, na “História de Segundo Grau”, a grande “História Estatal”, e na “opinião pública” um ponto pacífico, e a História jamais esteve fora desta questão ou desta autoilusão. Ao contrário, estando desde Vico (1993; Berlin, 1992; Burke, 1997b) mergulhada na certeza da razão contra a imaginação, no estabelecimento da realidade. A certeza do fundamento histórico, leito do “realmente acontecido”, a certeza da existência do tempo, do tempo ser histórico, certeza do passado e confiança no campo de saber historiográfico enquanto instância própria para pensar e refazer o “tempo morto”, os “feitos e vestígios”: a certeza da “história em si” de Hegel (1990), a estranha confiança metafísica no céu dos verdadeiros fatos, arquétipos a que toda
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interpretação deve se remeter, sempre foram, de uma maneira ou de outra, instâncias da certeza historiográfica. Nem o século XIX nem o Século XX, realmente os consolidadores da História e do tempo enquanto dimensão histórica, conseguiram escapar desse paradigma, dessa episteme periculosa (no fundo essencialmente anti-histórica) porque torna a História um saber transcendental, com uma espécie de má-fé e má consciência de que é apenas mais uma metafísica, discurso que não sabe que é ficcional, que jamais reconhece seu produto (o passado, o que povoa e adensa o imediato) como uma criação, discurso que mesmo depois de muita luta ainda não se moveu de suas confianças (Foucault, 1968; White, 1994, 1995). Essa é uma posição que torna a História mais um discurso do Estado, da mídia, do senso comum e material básico para os imaginários de sustentação de determinadas visões do real. Num malabarismo estranho, negando a própria historicidade, sua essência, torna-se o pensamento do imóvel, do imutável, da identidade, das despolitizações, quando deveria ser precisamente o contrário. É, em parte, essa matriz metafísica que pretendemos desenvolver aqui. Para isso exporemos sucintamente as operações que “produzem a História” e as consequências desse fazer.
Criação Historiográfica
A criação historiográfica é espécie de instalação interpretativa de “materiais linguísticos” com “efeitos de realidade”, precisos “efeitos ideológicos” escondendo suportes jurídicos, policiais, institucionais que, por princípio, dizem as “estruturas sociais” e seus movimentos. Documentos em geral são sempre sistemas de linguagens: figuras, máscaras, peças, montagens, arquivos, astúcias, poderes e forças cristalizadas; interpretações, perspectivas, lócus, disfarces, máscaras, instituição: cicatrizes, chancelas, sinais, inscrições, regras im-postas que formam redes, impõem significados, estabelecem acessos e proibições, naturalizam imagens: o historiador cria redes provindas de redes já organizadas: poder sobre poderes, saberes instaurando perspectivas que devem agir como-se fossem realidades: força contra forças, senhas e contrassenhas: documentos não são indícios de acontecimentos, vestígios do que aconteceu, mas campo já instalado por regras disciplinares, instalação de acontecimentos, de crenças e sistemas teóricos que devem agir enquanto sintomas vivos do passado, esse mega artifício que é a consequência, não o fundamento, da perspectiva historiográfica. A escrita, a escrita da História, muda retroativamente os conjuntos, os dados, as falas, os testemunhos, as perspectivas, os interesses; faz incidir – outras forças, outras esperanças, outras relações, outras miragens, outras configurações – os futuros do fato e as perspectivas, os Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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inescapáveis do historiador, seu tempo, seu conhecimento, suas crenças, mudam retroativamente criando sempre outro fato, outra história, outro tempo, ficando de mesmo apenas a impressão-domesmo, redirecionando o passado, a identidade, os fluxos temporais, as políticas em ação, os imaginários, as ideologias. A História, pelo menos desde Hegel, é um dos principais eixos de apoio discursivo da ocidentalidade, sua maneira privilegiada de pensar o existente. É a geradora e mantenedora disciplinar dessa discursividade enquanto temporalidade e lógica de articulações: é o cão de guarda do tempo, isso que é do “Estado”. A de-formação se dá exatamente naquilo que é formatador, nos fluxos criadores e mantenedores do real enquanto domínio “teórico” dos devires. A missão (função) da História não é desprezível nem sua marca invisível: seus poderes são muito maiores do que se imagina. Assim como a Literatura, ela age numa dimensão gerativa, essencial, atingindo os materiais constitutivos das atividades gerais, as lógicas das relações. A forma, os sentidos, as inter-relações de qualquer “campo fruto de pesquisa” historiográfico é imposição interpretativa e só se efetiva em confronto: entre conceitos, métodos, teorias, procedimentos, tipos de “olhar e faro”: im-posição contra outros “campos” sejam teóricos, institucionais, metodológicos, políticos ou religiosos, conjugação de forças e posições não “estado de existência” independente do interprete-historiador. A história (construção historiográfica) não existe sem a História (campo de saber), o “fato” não existe antes de sua construção teóricometodológica, de sua instauração por uma lógica, por uma perspectiva, por imposição disciplinar. A pesquisa, ao procurar estabelecer o “campo”, impõe e projeta sua narratividade, sua temporalidade, sua valoração e essa valoração é o “fato”. Os signos não se encontram nem estão entrelaçados in natura, muito menos uma “essência” ou uma “verdade” que estão esperando para serem descobertos. A “verdade” é sempre resultante provisória de uma “correlação de forças” (ficção esquecida que é ficção, interpretação, perspectiva, efeitos de realidade, discurso), de guerras, de contrastes, de uma metamorfose incessante enquanto conquista e imposição de sentido: luta pessoal, grupal, coletiva, luta de interpretações, por um lócus de verdade, um naco de potência interpretativa que resultará em poderes de vários tipos. Insaciabilidade de um lócus, sua lógica, suas próprias forças e razões a uma “matéria” que, tanto para ele quanto para seu “leitor”, parecerá ou deverá parecer e aparecer como independente dum trabalho teórico (tratamos do “real como ele é”, como “ele foi”), duma construção, o que não prejudica sua força política, sua materialidade, mas a pressupõe. É exatamente o “efeito de realidade” das construções teóricas que traduzem e possibilita sua utilidade, sua disposição política e plástica capaz de atingir o imediato como lócus de atuação, de mudança, de i-mobilização, de reação (a História enquanto campo disciplinar despolitizador). Se
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houvesse uma “natureza”, uma “sociedade”, um “homem” seria praticamente impossível qualquer tipo de “pesquisa genealógica”. Os discursos se formam sempre dentro e fora de determinados controles que é preciso apreender e surpreender em seu exercício, normalmente camuflado. Controles que estão em todo “sistema”: das instituições, dos documentos, do historiador, das teorias, dos métodos, da escrita, da própria tribo em sua essência: fantasmas não domados dos sistemas de crenças que formatam, formam, reproduzem e direcionam o sujeito como membro da ocidentalidade. Não impor “características genéricas” aceitáveis somente enquanto generalizações vindas de “fora”, formalmente articuladas a outras generalizações num círculo de autocomprovações. Uma coisa é a “matéria do campo” construída pela pesquisa, que nunca é uma “origem”, uma “matéria exata”, mas um não-lugar, um não-eu, mas o disparate in-significante, o absurdo, o equívoco, o paradoxo, que, depois da pesquisa, não conquistará nem chegará a uma verdade, ao definitivo, a uma “identidade primeira”, a um “solo fundamental”, mas a mais um estado de “caos” para outros num círculo de poder transitório; outra é aquele “campo imaginário” (a origem, a causa, o princípio, a paternidade, o fundamento, o que aconteceu, o acontecimento, o fato) que se confundirá com o resultado da pesquisa historiográfica, não por um “erro teórico-metodológico”, mas por uma consequência inescapável das estruturas conceituais, metodológicas e filosóficas da própria História: que não se sustenta sobre nenhuma “realidade autônoma” (sobre poderes), nenhum “absoluto”, mas sim sobre perspectivas e interpretações, “escritas”, onde as forças se ex-põem em guerra, re-velando jogos de dominação (sempre com regras que é preciso compreender) onde o historiador será aquele que atinge com violência a violência do disparate que é o “campo” antes da pesquisa (rede inerte de interpretações que será posta em movimento pelo historiador, rede que passará a existir apenas depois de ser configura enquanto rede significativa). O historiador é, antes de tudo, aquele que subverte interpretações e posições anteriores criando sua própria posição, que chamará de “fato”, de “verdade histórica”, de “realidade histórica”, daí porque seu produto é parte do espólio do Estado, daqueles materiais e lógicas de suporte de um mundo estranhamente imóvel, racional, sem sombras, naturalizado e universalizado para o bem daquilo que rapta o sentido da sua forma de existência. Não há um “encadeamento de fatos” e a eclosão de um “fato” por “acúmulo evolutivo”, “amadurecimento histórico-social”, “ação dos sujeitos”, “clivagem econômica”, mas devires, fluxos de forças em constante formatação por presença sempre triangulada, presença social: cabe ao historiador pôr em andamento o que estava imóvel, morto, cristalizado enquanto “sistema documental”, signos entre signos, signos já organizados, já dis-postos a fazerem parte de uma grade disciplinar, não enquanto “realidade” (antes ou depois): nada aconteceu-antes, tudo acontece-agora Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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no texto historiográfico e naquilo que ele atingir no-mundo. Os “sistemas documentais” não representam nada, não reproduzem nada antes da cozinha e da oficina do historiador onde são criadas certas perspectivas do próprio “presente”, o “tempo” sendo sempre singular, único, estranho e exclusivo, jamais servindo como “elemento numa série”: o historiador atinge “o devir” com as forças e poderes do seu lócus. Tempo é um nome para as redes vivenciais, corporais, trianguladas entre corpos “sociais” e não uma matéria que corre, algo fora dos movimentos grupais e singulares, exterioridade as atividades constitutivas. Ao “construir o campo” é preciso saber esquadrinhar “marcas diferenciais”; repertoriar desvios, lacunas, irregularidades, perturbações, ritmos e acidentes; distinguindo e marcando heterogeneidades, regularidades, dimensões, classificações, interferências: mas antes de tudo é preciso saber que esquadrinhar, repertoriar, apontar, marcar, distinguir diz respeito a ações criativas, interpretativas, valorações que ampliam, reduzem, suprimem, falsificam, revertem, corrigem, inventam, dramatizam, montam, aparecendo como geradoras de realidades discursivas, não ações que encontraram algo que organizaram uma existência prévia, um sistema pré-existente: sem a cimentação do “campo” numa realidade plena, acontecida, não podemos falar de “realidade”, o que existiria autonomamente, independente das ações interpretativas, da presença do historiador munido do seu campo disciplinar, das regras que produzem realidade. A sensação e certeza do “já acontecido” são não apenas um truísmo da teoria, mas uma ingenuidade geral, uma hipóstase daquilo que nós mesmos produzimos. Esse truísmo, essa ingenuidade, essa hipóstase é precisamente aquilo que é transmitido, ensinado e pensado com o nome de “realidade histórica”, “passado”, enfraquecendo essencialmente o trabalho historiador: acreditar no passado prejudica e abastarda a História. Conhecer condições e circunstâncias, forças de onde e quando as atividades surgem, se organizam, se tornam força, singularidade, como se relacionam, se deslocam, como produziram outras atividades, como se tornaram fatos (o q se acredita “acontecido”), como se tornaram significantes. Tudo isso sem perder o sentido de teoria, de se haver com materiais conceituais, narrativos, não a “própria realidade”, o legitimamente acontecido, num deslocamento do “subjetivo” ao “objetivo mesmo”. O historiador precisa retomar, talvez porque nunca tenha tomado, consciência da sua atividade criadora, não reprodutora e repetidora. E mesmo sabendo dessa ideia resta sempre uma margem de reinvidicação de relator do acontecido, servindo perfeitamente para um ensino da História e da história que é cruelmente naturalista e universalizador sem saber, operações estas que tornam imóvel “os campos da História”. A singularidade das emergências, pontos de surgimento que se produzem em determinados estados de forças como um afrontamento entre forças: o lócus privilegiado do historiador: o “campo Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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imaginário” - é o que nos interessa. Esse “campo” não pode ser explicado por “antecedentes” ou pretensos fins, o que seria criar materialidades anteriores e posteriores como “causas” e “efeitos”, o que faz se deixar de ver o historiador como aquele que formata e instaura o “campo” como estado das forças, sendo, ele mesmo, uma das forças principais, aquela que impõe sua perspectiva num campo de saber que é pura imposição de “substância” e “perspectiva”. E temos assim o historiador como uma força que cria funções enquanto dispositivos ideológicos, dispositivos lógicos que retornam ao campo geral das forças enquanto uma força agora repolitizada com símbolo negativo: os fluxos, o caos, os indeterminados agora são feixes precisos e forças despolitizadas Os acidentes, os desvios, as heterogeneidades, as multiplicidades, os diversos poderes em atuação, as forças em questão, quem se apoderou e quem se apodera do “sistema de regras”, os “tipos” em luta, as divergências, os conflitos, as mediações, os momentos instáveis e estáveis, a entrada em cena de cada um dos conflitos: compreender que o “campo” é criado não resolvendo nem eliminando os conflitos, mas entendendo que o “campo” é esse disperso de forças que se impõe ou se dis-põe através do historiador enquanto agente disciplinador, enquanto produto disciplinar. Em cada novo “estado de forças” o “autor”, os “autores” são acrescentados à ação, se tornam a ação, como-se autoria fosse uma força autônoma. O “quem pronunciou?”, o “quem é o responsável” (pela construção, manutenção, difusão, naturalização dos discursos do “campo”)? deve ser entendido como a compreensão de forças em atuação, não como sujeitos, eus, personagens, figuras. O que define os elementos do “campo” estabelece “a verdade e a realidade do campo”, o que aquilo “é”, para que aquilo serve, que forças utilizam tal “campo”: nada é inocente. O historiador não deve se eximir de diagnosticar se as forças postas por ele em ação, e ele mesmo, contribuem para a expansão ou para a degenerescência das perspectivas em ação, se sua própria atividade e construção é periculosa ou não, qual a direção dos valores: que visão de mundo é esta? A quem serve essa mega despolitização de valores? Interpretar, no fundo e fora da perspectiva metafísica da origem (tudo está dentro das loucuras da tribo, faz parte dos seus rituais, suas crenças: vivo enquanto imaginário temporal), é o papel do historiador: conquistar e se apossar dos “sistemas de regras” (em essência in-significantes) im-pondo um sentido, um outro sentido, outro jogo com novas regras, criar o “campo” com seus tradicionais “efeitos de realidade”, principalmente porque a História não consegue “fazer outro jogo”: ela é um dos suportes fundamentais da ocidentalidade (nossa tribo, nossa “máquina tribal”) sem a atividade plena dos eixos da cristandade: sua re-significação é sempre uma “invenção” (o que não tem origem, mas redes de força e poder em configurações) que teima em aparecer como “descoberta”: o que existiria antes da pesquisa, da interpretação: nossa busca é por uma reflexão “contra a coerção de um discurso teórico, unitário, formal e científico”. Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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História e Realidade
A história, criação da História, série escrita, imaginário, mentalidade, construção de valores, imposição de perspectivas, é relação de forças, relação de poder: não é nem poderia jamais ser contínua, fixa, linear ou algo em “constante transformação”, como se “existisse de fato”, fosse algo “externo”, uma espécie de em-si kantiano que fluísse ou o em-si da história de Hegel, que se modificasse pela “ação dos homens”. Por isso a história não poder ser nem descontínua nem descontínua como se tivéssemos tratando de um “processo separado”, de um “objeto”. Seu nãolinear, suas rupturas, que são a “luta entre forças” de interpretação [uma luta por posição, luta ideológica, política, jamais uma luta-aí-no-mundo: antagonismos discursivos que se tornam antagonismos do em-si, do mundo, da sociedade] que estão sempre se impondo e reimpondo enquanto realidade e interpretações verdadeiras e reais (o poder do que nos parece real, verdadeiro, racional). O “contexto histórico” (também texto, criação historiográfica) não é mais do que a resultante que domina o imaginário enquanto realidade (sempre um aqui-agora complexo). A história não possui uma natureza, uma essência, uma origem, uma unidade, um objeto, nem é uma realidade (mas uma grade imaginária, conceitos e imagens, perspectivas dispostas para suas funções políticas), não aquela imaginariamente independente das nossas ações, mas independente da escritura da História. Ao contrário, a história é heterogeneidade, multiplicidade, perspectivas em luta, imaginário de forças ensandecidas pensando que “aconteceu” (daí poderem impor sua perspectiva sempre parcial enquanto “a realidade”) e em in-constante transmutação, escritas que deliram que são o próprio real, discursos pilares da temporalidade: a história é, antes de tudo, “conceito” envergonhado. Mas se a História não fosse esse imaginário reificado, hipostasiado, essa criação conceitual que se torna “força social e política”, não teria sido produzida. É essa a “grande razão” dessa História: ser um dos “suportes ideológicos” das forças disciplinares, das formações e formatações de tudo aquilo que podemos chamar de “trabalhadores”, “população”, “humanidade”, as massas vivas de uma biopolítica. Essa História é a corporificação de um tipo de lógica que foi se tornando visível no século XVII e nos séculos seguintes conquistou não apenas requinte, mas poder político sem precedentes laicos, se apresentado como a História. A história enquanto invenção, escrita, imaginário (jamais “sistema de signos” diante do real como exige o senso comum), é construção de relações e condições de todo tipo, redes vivas de poder e contra poder. Sua emergência e sua proveniência não é um caso de realidade a não ser em segunda instância, quando entra nas “correntes sanguíneas” dos indivíduos, dos grupos, das Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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instituições, das práticas sociais, das transmissões de saber enquanto relações de poder: o fundo da História é uma moral e todo historiador um moralista. A compreensão da “Ciência da História” e da sua criação, a história e o tempo histórico, por grande parte dos professores de História e da mídia, se dão como se a história tratasse de uma realidade realmente acontecida, tendo como fundamento crenças que não fazem parte da História, mas que foram sendo incorporadas ao fazer, ensinar e pensar historiador. Representação com específicos “efeitos de realidade”, oculta, precisamente por isso, que há um conhecer as coisas por palavras, imagens, conceitos, descrevendo, narrando, verbalizando, substantivando e predicando sempre nos círculos dos campos de saber, nas ordens dos métodos, dos estilos, das crenças. A ingênua pretensão de dizer o “existente como ele é”, expor o passado “realmente como foi”, a patética e messiânica pretensão da linguagem replicar o existente da mesma maneira como se põe a “palavra de deus”, que diz o que-é, o que-foi, o que-será, termina minando as racionalidades de suporte do próprio campo de saber, e essa tola mediania é mortal para a História porque despolitiza, despotencializando a compreensão, tornando ela, precisa e ironicamente, anti-histórica.
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Culturas em movimento Antropologia e Literatura entre o Saara e Paris Ricardo Moreno de Melo
Resumo: Este texto visa desenvolver uma análise do romance A gota de ouro, do escritor Michel Tournier, com base nas proposições teóricas de uma Antropologia desenvolvida a partir década de 1960, através de teóricos como James Clifford, George Marcus, Arjun Apaddurai e Edward Said. Os dois primeiros têm chamado a atenção para as relações entre a Etnografia e a Literatura e a dimensão de escritura que tem a primeira com todas as implicações que um construto literário pode ter. As análises de Said contribuíram com a sua tese de que o oriente é uma construção teóricocolonial do ocidente. De Appadurai explorei seus insigths referentes ao papel mobilizador que tem a imaginação como força social na contemporaneidade. O eixo central da narrativa está na história do jovem Idriss, que sai de sua terra natal, um Oásis no deserto do Saara, para viver em Paris. Acompanhando essa jornada identifica-se várias questões relativas à antropologia contemporânea. Palavras chave: Culturas; Antropologia; Literatura
Abstract:This paper aims to develop an analysis of the novel the drop of gold, from writer Michel Tournier, based on theoretical propositions of an anthropology developed from the 1960s through theorists such as James Clifford, George Marcus, Arjun Apaddurai and Edward Said. The first two have drawn attention to the relationship between the Ethnography and Literature, and the dimensions of scripture that has the first with all the implications that a literary construct can have. The analyzes of Said contributed to his thesis that the east is a theoretical and colonial construction of the West. From Appadurai explored their insights regarding the mobilizing role that has the imagination as a social force in the contemporary world. The core of the narrative is the story of young Idriss, who leaves his homeland, an Oasis in the Sahara Desert, to live in Paris. Accompanying this journey is possible to identify several issues relating to contemporary anthropology. Keywords: Culture; Anthropology; Literature.
INTRODUÇÃO
Ao iniciar as reflexões acerca do tema desse texto não pude evitar ser tomado pela lembrança de uma afirmação de uma personagem do romance História do cerco de Lisboa, de José Saramago. No início do romance há um diálogo entre um historiador e um revisor de texto. A conversa em princípio deveria se ater ao livro que o historiador acabara de escrever sobre a expulsão dos árabes da Península Ibérica e sobre o mesmo discutia-se as melhores alternativas de construção das frases, pontuação e coisas do gênero. O revisor tendo-se mostrado homem culto e arguto foi indagado pelo historiador sobre o que ele achava do livro. Respondeu laconicamente que gostou. Mas achando pouco entusiasmada a resposta do revisor, o historiador voltou à carga solicitando que se aprofundasse mais e lhe estimulou a ser mais analítico. O revisor insistiu que sua função lhe exigia sobriedade, e mesmo tendo já visto muita coisa em termos de literatura e vida, Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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preferia ser comedido em seus juízos analíticos. O historiador lhe respondeu que seu livro tratava de História, e não de literatura. Disse isso como a invocar uma aura científica ao seu trabalho. Vale aqui a citação direta do que responde o revisor, sempre em um misto de ironia e sobriedade:
Assim realmente o designariam segundo a classificação geral dos gêneros, porém, não sendo propósito meu apontar outras contradições, em minha discreta opinião, senhor doutor, tudo quanto não for vida, é literatura (Saramago, 1989:12).
O diálogo continua com o historiador acusando o golpe do revisor, e uma vez mais tenta insistir na tese positivista de que o que faz na verdade é ciência, lidando, portanto com fatos positivos efetivamente ocorridos. O embate agonístico não cessa por aí, e tomaria todo o espaço desse texto caso tentasse extrair as implicações e sutilezas profundas produzidas pelo gênio literário do escritor português. Cabe aqui, a título de introdução para este trabalho, uma reflexão sobre as implicações da frase proferida pelo revisor, para as assim chamadas ciências humanas, dando conta de que tudo que não é vida é literatura, Disciplinas tais como a História e a Antropologia têm desde a segunda metade do século XX estado atentas as aproximações entre elas e o fazer literário. Essas aproximações são ricas em possibilidades e insights criativos. A História como disciplina tem seus começos ligados à escrita propriamente dita. Muito simplificadamente pode-se afirmar que seu surgimento está ligado a um ímpeto racional em torno do século VI a.C. momento no qual um conjunto de saberes ligados a oralidade começa a ceder espaço para um saber organizado a partir da escrita, e mais especificamente da escrita alfabética (Havelock, 1996). Curiosamente um dos primeiros protagonistas dessa saga, ainda anterior aos pais fundadores da disciplina, Heródoto e Tucídides, é o logógrafo Hecateus de Mileto, nascido em 550 a.C., que tanto pode ter seu nome ligado às fundações da disciplina histórica quanto da disciplina antropológica. A palavra História provém de Historie, de origem jônica que quer dizer investigação (Boorstin, 2003). Nesse sentido ela é solidária ao referido impulso racionalizador que desabrocha nos albores da Grécia clássica e que vai de certa forma rivalizar com o saber vinculado aos mitos. O impulso de investigação encontra-se também na formulação do saber filosófico que tem em outro ilustre cidadão de Mileto, Tales, um dos seus primeiros formuladores. Na concepção da escola filosófica de Mileto a palavra investigação significava a busca das causas naturais para fenômenos também naturais. Segundo o historiador estadunidense Daniel Boorstin parece ter sido Hecateus um dos primeiros a aplicar o método investigativo dos filósofos físicos ao mundo social. Em suas viagens procurava registrar as tradições “culturais” locais e as genealogias das famílias dos mitos. Guardando as devidas proporções talvez seja lícito afirmar que Hecateus dá início mais de dois mil
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anos antes, ao menos no que ficou registrado, o que irá se estruturar como método, a Etnografia, no início do século XX. Não encontrei registro de Hecateus de Mileto nos livros de História da Antropologia que pesquisei: History and Theory in Anthropology, de Alan Barnard (2004); e História da Antropologia de Eriksen e Nielsen (2012). Neste último há a indicação de Heródoto como um autor que primou por descrições minuciosas que fez de povos que visitou. Os autores chamam a atenção para a ambivalência com a qual Heródoto se referia aos povos com os quais travava contato. Em suas narrativas ele ora agia como um relativista fazendo observações sobre as particularidades do grupo observado, ora agia como um “homem civilizado” fazendo ponderações etnocêntricas e preconceituosas. De todo modo, o que interessa reter desses inícios disciplinares é que a escrita estará em ambos os casos presidindo um novo tipo de organização e produção do saber indissociavelmente a ela ligado. Disciplinas cuja constituição dos seus protocolos, ou dos diversos protocolos, irão estabelecer formas de aproximação da verdade, quer seja diacronicamente, a História, ou sincronicamente, a Antropologia. O produto final tanto do historiador quanto do antropólogo / etnógrafo é um texto que traduz e apresenta uma verdade. Para o antropólogo a verdade etnográfica, e para o historiador a verdade histórica. Os rigores protocolares das disciplinas formalizados ao longo de suas constituições com o objetivo de produzir ou de alcançar uma “verdade” irá fazer com que o texto resultante das pesquisas sofra controles tais que o afastará de uma escrita ficcional ou artística. É somente na década de 1960 que antropólogos como Clifford Geertz e James Clifford, entre outros, vão trazer para o debate da teoria antropológica uma discussão sobre a produção da escrita por parte dos antropólogos. Geertz (2013) em seu projeto semiótico de interpretar a cultura o faz não como faria uma ciência experimental, em busca de leis gerais, mas de uma forma interpretativa em busca de significações. O projeto semiótico de Geertz abre as portas para que se pense o resultado do trabalho antropológico, a etnografia, como possibilidade de interpretação ou tradução cultural. Nesse sentido, José Jorge de Carvalho analisa que a Antropologia poderia ser considerada como uma “vertente etnográfica da Literatura Comparada” (Carvalho, 2003:03). E salienta ainda que o campo da Literatura é o campo da representação e não é outra coisa o trabalho do etnógrafo quando representa em seu texto a figura do outro e de sua “cultura”. Toda essa questão muito rapidamente tratada acima sobre as relações entre Antropologia e Etnografia de um lado e literatura do outro, foi vista por James Clifford (2008) como precipitadora do que veio a ser chamado de questionamento da autoridade etnográfica. Clifford analisa apontamentos que desde a década de 1950 vêm assinalando a insustentabilidade de discursos que
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retratam a condição do outro sem colocar em perspectiva a própria condição ou posição social daquele que traduz, o etnógrafo. A partir dessas críticas surge a necessidade de superação dos paradigmas baseados na experiência e interpretação por outros cuja ênfase recaia no diálogo e nos aspectos polifônicos da construção textual. Nessa perspectiva, Clifford põe em evidência as análises literárias do crítico russo Mikhail Bakhtin, para mostrar como as formas literárias podem ser utilizadas como princípio metodológico na construção de monografias etnográficas. O modelo polifônico tal qual apresentado por Bakhtin, através do qual múltiplos discursos são apresentados no texto possibilitando o rompimento com o excessivo controle, faculta o surgimento de uma pluralidade de visões compondo aquilo que chama de “heteroglossia”. A utilização do modelo do romance polifônico tem muitas possibilidades de desdobramento na própria concepção da cultura, pois assim como o primeiro é visto como uma “arena carnavalesca” sujeita às diversas intervenções e visões de mundo; a segunda é tratada como um espaço aberto sujeito a diversos e novos arranjos, e nunca dado em absoluto. Por fim, Clifford, ainda se utilizando de elementos advindos da teoria literária como um conjunto de reflexões capaz de inflectir a teoria antropológica, cita Roland Barthes, para quem a unidade do texto não está exclusivamente dada na sua própria interioridade, mas também na reconstrução textual operada pelo leitor no seu ato criativo de ler. Essa perspectiva que valoriza a ação receptiva como um ato criador traz interessantes perspectivas para a análise antropológica, uma vez que possibilita leituras enviesadas e polifônicas que criativamente permite ver e ouvir personagens e vozes que de outra maneira poderiam estar ocultas na perspectiva de quem escreveu. O exercício analítico que se seguirá nas próximas páginas se dará na perspectiva das relações entre Antropologia e Literatura. Analisarei, com base principalmente nas reflexões de Arjun Appadurai, Edward Said, James Clifford e George Marcus, um texto do escritor francês Michel Tournier intitulado A gota de ouro, cujo eixo central da narrativa está na história do jovem Idriss, que sai de sua terra natal, um Oásis no deserto do Saara, para ser emigrante em Paris. Questões como a imaginação como força social (Appadurai); a construção do “oriental” pelo ocidente (Said); as culturas viajantes (Clifford) e a possibilidade de uma “Etnografia multicentrada” e processos de identificação em contextos modernos (George Marcus), serão fundamentais para esse trabalho. Será, portanto, uma leitura antropológica de um texto literário. Na seção seguinte, intitulada Uma gota de ouro ou signos em rotação, tratarei da história em questão, para na seção seguinte fazer os nexos possíveis com a teoria antropológica.
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Uma gota de ouro ou signos em rotação
O romance do escritor francês Michel Tournier intitulado A gota de ouro, objeto de análise desse texto, narra as vicissitudes que envolvem a partida do jovem berbere Idriss, de sua comunidade situada em um oásis cujo nome é Tabelbala, ao sul do deserto do Saara. Em certa medida, a partida desse jovem de aproximadamente 15 anos, se iguala a tantas outras partidas, como a de seu próprio primo Achour, compondo um fluxo migratório rumo à França em busca de emprego e melhores condições de vida. Mas há um elemento a ser destacado na migração do jovem Idriss: quando estava a pastorear seu pequeno rebanho de carneiros, Idriss foi surpreendido por um automóvel Land Rover do qual saiu um casal. A mulher loura, ao descer do carro com uma máquina fotográfica, lhe dirigiu a palavra avisando que iria tirar-lhe uma foto. Em seguida, a ele é prometido pela mulher do casal que ao chegar à França iria enviar-lhe a foto. Eis aí no primeiro ato a evidência de um confronto que vai tomando corpo por toda a história: O papel da imagem na tradição árabe e no ocidente. Esse confronto terá termo no capítulo final com a confrontação entre imagem e escrita. Mas esse primeiro ato é também um dos elementos que vão produzir um efeito de evasão no espírito de Idriss. Poder-se-ia elencar vários elementos que vão paulatinamente produzindo esse efeito: a) a morte de seu amigo Ibrahim, um nômade do deserto, cuja vida em movimento e fora do Oásis lhe inspirava bastante; b) a saída do seu primo Achour alguns anos antes do momento que o romance focaliza (Achour é dez anos mais velho que Idriss); e c) por último, a foto tirada no deserto pelo casal francês cuja cópia ele nunca recebeu. Com relação ao primeiro item citado, o jovem Ibrahim representa uma oposição muito clara entre a vida nômade e mais individual de um lado, e a vida mais coletiva e sedentária do Oásis. A imagem não goza de muito prestígio naquele povoado de Tabelbala. A mãe de Idriss dizlhe que foi um pouco dele que os franceses levaram na foto. Ela pergunta como ele há de fazer se acaso ficar doente, revelando uma crença de que com a imagem uma parte da energia vital do garoto também se foi. Havia apenas uma fotografia no povoado, e esta pertencia ao seu tio materno, o cabo Mogadem. Através dele fica-se sabendo que no passado havia outra, mas que tudo levava a crer que foi queimada pela sogra do dono da mesma por conta do receio dos mais velhos com relações a imagens fotográficas. Mogaden serviu na segunda guerra ao lado dos aliados, e desse tempo trouxe a fotografia que ele guardava como um troféu. Tinha ele também uma reflexão sobre a potência das imagens fixadas em um papel. Afirmou, quando perguntado por Idriss se uma foto pode fazer mal a quem foi fotografado, que pode fazer mal caso o fotografado não a tenha consigo. Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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No caso dele, Mogaden, acredita até que teve sorte, pois por tê-la guardado consigo não sofreu nenhum revés durante as batalhas, coisa que não aconteceu com as duas outras pessoas que aparecem com ele na fotografia. Ambos, talvez por não terem a foto em seu poder, vieram a morrer em combate. Em suas reflexões Idriss classificava os homens de Talbebala em duas categorias: os que ficam e casam, e os que partem. Ele se considerava no segundo grupo, e teve ainda mais certeza disso assistindo a um casamento de dois jovens da comunidade. Na noite da festa acompanhou a dança de celebração, principalmente da negra Zett Zobeida. O canto desta mulher vai também servir de presságio para Idriss e reaparecerá através de sua memória durante todo o livro. A letra da canção dizia:
A libélula vibra sobre a água O grilo trila sobre a pedra A libélula vibra e não canta O grilo trila e não fala Mas a asa da libélula é um libelo Mas a asa do grilo é um escrito E esse libelo foge às partidas da morte E esse escrito desvenda o segredo da vida Zett Zobeida estava também ornada com muitas joias para a festa e sem perceber deixa cair uma delas, que nesta mesma noite vai ser encontrada por Idriss. Era a gota de ouro. Idriss a tinha visto em seu colo enquanto a dançarina cantora rodopiava ao som da música. A imagem e sua portadora são postas em contraposição com a mulher loura da fotografia. A mulher negra em oposição à mulher platinada; a imagem que esta última propõe é de conteúdo representativo explícito, enquanto a primeira traz um signo puro. “A gota de ouro não significa nada senão ela própria”, diz o narrador do texto. São personagens e imagens, portanto, antitéticas. Zobeida e sua indumentária eram a evocação de “um mundo sem imagem”. Quando estava às portas do deserto na segunda etapa de sua saída de Tabelbala, Idriss vê um hotel e um museu. Do primeiro é expulso das proximidades e no segundo consegue entrar seguindo um grupo de turistas interessados na vida do deserto. Era o museu do Saara, no qual se podia ver animais da região embalsamados, objetos e habitações. Idirss ouvia o guia com muito interesse, apesar de não compreender algumas coisas ditas. Sua fala era entrecortada com referências a personagens da cultura de massa, como Tartarin de Tarascon, responsabilizado por ter exterminado os leões do deserto argelino. Em outros momentos Idris via desfilar pela sua frente objetos que eram Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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do seu cotidiano. Vale também aqui uma citação direta do texto de Tournier na qual ele descreve a surpresa do jovem habitante do Oásis: Idriss estava com os olhos abertos de espanto. Todos aqueles objetos, de uma limpeza irreal, fixos na sua essência eterna, intangíveis e mumificados, tinham acompanhado a sua infância e a sua adolescência. Havia menos de quarenta e oito horas, comia em um prato assim, via a mãe usar o moinho como aquele (Tournier,1987: 68).
Na sequência dos acontecimentos uma senhora do grupo de turistas pergunta se não há colheres entre os objetos de cozinha. A resposta do guia informa que o habitante do Oásis tal como Adão, come com os dedos, em uma referência possivelmente etnocêntrica a uma prática “não civilizada” ou de um estágio civilizatório precário. Mas a vertigem do jovem Idriss não cessava, antes pelo contrário, tornou-se ainda mais intensa quando o guia fez referências acerca dos hábitos alimentares e das gesticulações que as acompanhavam. Ele as conhecia, mas nunca as tinha visto formuladas daquela maneira. Talvez aqui um exemplo, já me antecipando à parte analítica deste texto, daquilo que Roy Wagner chamou de “invenção da cultura” (Wagner, 2012). Esse Saara turístico que dá vertigem em Idriss vai se reproduzir mais a frente, quando já em solo francês, em Marselha, ele vai ver um outdoor com o convite: “com seu carro, vá passar as festas de fim do ano no paraíso de um Oásis no Saara”. Na verdade a foto que anunciava o comercial era de um hotel, com suas piscinas, moças louras com biquines sumários, compondo aquilo que Marc Augé chamou de “não lugares” (Augé, 1994). Em sua rota de saída, Idriss percorre mais duzentos e quarenta quilômetros de Béni Abbès a Béchar, cidade na qual tomará um trem para Oran, última cidade da Argélia, pois daí seguirá de barco para Marselha. Em Béchar, enquanto espera por dois dias o ônibus para Oran, ele peregrina e acaba por dar com um fotógrafo que faz fotomontagens com turistas. Mustafá, este é o nome do fotógrafo, chama seu atelier de Palácio dos sonhos, pois em suas montagens põe o fotografado em um dos ambientes “exóticos” do deserto: dunas douradas, Oásis verdejantes, tamareiras frondosas. Uma música de caráter oriental toca enquanto o cliente é fotografado, como que sendo um item que atesta, junto com as imagens no fundo, a realidade oriental do lugar. Enquanto isso, Mustafá sempre de forma eloquente diz em brados vigorosos para um homem a ser fotografado: “tu és o xeique, o sultão, o marajá. És orgulhoso. És o grande macho dominador. Tu dominas. Reinas sobre um rebanho de mulheres nuas espalhadas a teus pés (Tournier, 1987:73)”. Já na França Idriss entrará em um caleidoscópio de imagens. Toma parte como figurante em um filme; é chamado para um comercial de uma bebida que evoca o Saara; é associado pelo diretor desse comercial com o pequeno príncipe, personagem literário criado pelo escritor Antoine SaintExupéry; serve de modelo para a confecção de manequim com vistas ao mercado de roupas para jovens árabes; e vê em sua imaginação sua própria história transformada em história em quadrinhos. Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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Por fim a sedução da televisão. Enquanto os mais velhos têm no rádio, falado em árabe, sua forma principal de comunicação de massa, os jovens se identificam com a televisão falada em francês. Mas há também o cinema, e é através dele que Idriss vai ouvir do marquês Sigibert de Beaufond o que é o Saara. Este novo personagem encontra Idriss na porta de um restaurante árabe e lhe pergunta qual daqueles pratos que o jovem do Oásis mais aprecia. Cuscus com frango ou carneiro? Briks com mel ou chorba com ervas? Idriss não conhece nenhum desses pratos. O marquês sem entender indaga se Idriss é mesmo um árabe, e este lhe responde que é berbere, não se reconhecendo na identidade de árabe que lhe é fixada. Sigibert então pergunta qual o prato nacional de onde ele vem e mais uma vez Idriss não entende o que é um prato nacional. A partir desse primeiro diálogo truncado pela falta de registro por parte do jovem berbere das categorias utilizadas pelo marquês, os dois vão almoçar. Durante a ocasião o francês vai explicar a Idriss o que é o Saara e toma em boa parte de sua explicação as referências cinematográficas que possui. O desconforto de Idriss só aumenta e vale aqui mais uma vez uma citação direta do que ele diz: Os franceses têm sempre que explicar tudo. Mas eu não compreendo nada das suas explicações (...). Vejo fotografias em toda a parte. Fotografias de África também, do Saara, do deserto, do oásis. Não reconheço coisa nenhuma. Dizem-me: ‘é o teu país isto. Este és tu’. Isto? Eu? Não reconheço nada. (Tournier,1987:120).
Diante da confissão de Idriss o francês resolve doutrinar-lhe lhe ensinando coisas como o que é um país, um estado nacional, etc. Idriss ouve então a pregação do francês que versava sobre filmes cujo conteúdo tratava da ocupação francesa em Argélia. Nos últimos capítulos, e esta será uma passagem importante para minha análise, Achour, primo de Idriss, o explica sobre o que é a França moderna. Ele diz que os franceses gostam deles, mas do seu jeito: “com a condição de nos deixarmos calcar. Temos de ser humildes, miseráveis. Um árabe rico e poderoso, os franceses não suportam isso”. Achour explica que há um lugar reservado para eles na França, onde eles são pejorativamente chamados de bougnoules. Vai ainda mais além dizendo que os franceses deveriam reconhecer que a França moderna foram eles que a fizeram. Indaga sobre a condição dos imigrantes afirmando que ninguém quer saber deles, mas também que nenhum quer voltar. É como se no fundo eles nem quisessem ficar na França e nem retornar para seus lugares de origem. Analisa que a vinda de Idriss tem uma conotação, e ele fala metaforicamente, de queda em uma ratoeira. Há aí uma ideia de labirinto cuja porta de entrada foi a mulher loura e sua máquina fotográfica. Sair desse labirinto ou saber se mover nele requereria astúcia, e é isso que Idriss consegue a partir do contato com os velhos de sua tradição. Idriss enfastiado das provações do seu labirinto resolve permanecer mais tempo no albergue em que se instalou desde que chegou a Paris. Dessa forma conhece o alfaiate Amouzine cujas Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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reflexões o levavam a pensar que contra o excesso de signos imagéticos que alicia os olhos havia a possibilidade de um antídoto sonoro: a língua e a música árabes veiculados pelo rádio. Com ele pode aprender sobre aquela que era considerada a “estrela do oriente”, a cantora Oum Kalsoum. Idriss acabou por encontrar em Amouzine um guia para essa nova incursão. O alfaiate lhe apresenta o mestre em caligrafia árabe Abd Al Ghafari. Com ele, Idriss teve lições tornando-se um aluno muito aplicado, ocorrência que lhe possibilitou um rápido desenvolvimento. O jovem berbere aprendeu com seu mestre que a imagem pode ser um ópio se não se tem o preparo para lidar com ela, e que se a imagem é matéria, a letra é o espírito. A caligrafia é a álgebra da alma. Por conta de sua rápida evolução, Idriss foi convidado pelo mestre a ouvir a lenda da rainha loura. Essa história provém da tradição oral árabe, e dá conta de uma jovem muito bonita cujos cabelos eram louros, fato que não era comum entre os árabes. Segundo a tradição desses povos, as crianças nascidas com essa tonalidade de cabelo eram fruto da concepção à luz do dia. Essa jovem, porém, era de uma beleza que a todos fascinava, e dessa forma acabou por se tornar rainha. O rei, no entanto, que lhe transformou em rainha teve vida curta, pois seu irmão tomado de ciúme o matou em nome do amor que sentia por ela, e logo depois se suicidou. A partir daí ela não mais se casou e passou a reinar sozinha, porém com o rosto e os cabelos cobertos1. Um jovem pintor, porém, se infiltrou no palácio e fingindo ser uma de suas criadas conseguiu retratar a rainha em um belo quadro, mas tal feito lhe custou a própria vida, pois tendo também se apaixonado pela rainha, acabou por se suicidar por conta de saber que nunca poderia tê-la como amante. Segue-se daí, e mesmo depois da morte da rainha, uma sucessão de ocorrências maléficas com diversas mortes ocorridas àqueles que se envolviam diretamente com o quadro. Após suicídios, assassinatos, doenças e outros tantos malefícios, o quadro caiu em mãos de um pescador de nome Antar. Este, como todos os anteriores que possuíram o quadro, caiu em profunda tristeza apaixonada assim que o encontrou no estômago de um tubarão. Antar parou de pescar deixando sua família à beira da miséria e da fome. O filho mais velho do pescador, cujo nome era Riad e tinha doze anos de idade, porém, era dotado de muita perspicácia e sendo percebido como tal por um importante mestre calígrafo, cujo nome era Ibn Al Houdaida, passou a ser dele um aprendiz. Foi a partir da relação entre Riad com o calígrafo que o encanto do quadro pôde ser quebrado. O mestre da caligrafia ensinou Riad a ler o quadro. Ensinou-o que aquelas linhas, volumes e texturas contidas na imagem eram traços profundamente enraizados na alma de todas as pessoas, e é este enraizamento que por sua vez exerce um profundo fascínio nas pessoas mais simples. A partir de um conhecimento com base nos signos caligráficos, o mestre da escrita facultou ao filho do pescador a decifrar os enigmas contidos nas imagens, e sobretudo nas imagens dos rostos humanos.
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Munido desses saberes, o jovem Riad penetrou na cabana na qual o pai guardava zelosamente o quadro da rainha loura e começou a decifrá-lo. O pai chegou nesse momento e tomado de uma ira sobre-humana tentou golpear o filho. O jovem, porém, conseguiu explicar ao pai a necessidade de decifrar aquelas linhas que tanto fascínio exercia sobre sua alma. O pai aos poucos se acalmando pôde compreender que os traços que compunham aquele rosto que ele aprendera a amar, ainda que de uma forma doentia, eram um poema que revelava todos os sofrimentos pelos quais ela passou, tendo-se tornado vítima de sua própria beleza. Dessa forma o pai só pôde efetivamente se ver liberto quando, na bela expressão do antropólogo Marcio Goldman em análise ao texto de Tournier, transformou o retrato em interlocutor (Goldman, 1992), daí ele se viu liberto do poder encantatório da imagem, e era desse mesmo poder fascinante da imagem que Idriss tentava se libertar com o auxílio do seu próprio mestre calígrafo.
Nativos em diáspora: por uma antropologia em movimento
Na introdução do seu texto Culturas viajantes James Clifford elenca uma série de textos que tratam de viagens e movimentos para introduzir suas reflexões acerca de questões tais como movimento, deslocamento, desterritorialização e suas implicações para a construção do saber antropológico. Ali estão citados, entre outros, Fredric Jameson e Levi-Strauss. Poderia também estar o romance de Michel Tournier aqui analisado, uma vez que este encena aquilo que Stuart Hall (2003) chamou de condição diaspórica acrescentando ser esta a condição exemplar da modernidade tardia. O próprio texto de Clifford produz em sua forma, ainda na introdução, o efeito de seu conteúdo: a vertigem do movimento errático para nos situar dentro daquilo que ele vai abordar. Clifford parte da percepção da Etnografia, prática basilar da ação antropológica do século XX, como um constructo que evolui a partir da viagem moderna. Esse início da prática etnográfica, na perspectiva de Clifford, já a posiciona desconfiada das construções estratégicas localizadoras no que diz respeito à representação das culturas. Em seus inícios, no entanto, é o etnógrafo quem faz a viagem, e toda uma construção do nativo vai se efetivar a partir do contato entre esses dois sujeitos: o etnógrafo e o informante. A relação entre ambos, no entanto, não se deu de forma simétrica ou ingênua ou ainda melhor, fora das relações de poder. Clifford questiona o simplismo envolvido na visão que reduz o informante ou nativo a um ser a-histórico ou congelado em um tempo sem tempo. Toma como paradigma a figura do índio Squanto, que tendo recebido peregrinos em 1620 em
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Massachusetts nos EUA e tendo sido de vital importância para a sobrevivência dos estrangeiros, era falante da língua inglesa e tinha naquele momento acabado de regressar de uma viagem a Europa. Um nativo isolado, confinado e vivendo quase em estado de natureza talvez nunca tenha existido. Talvez ele tenha sido a projeção de uma mentalidade colonial partícipe de uma hierarquia construída pelo colonizador. É nessa perspectiva que segue Arjun Appadurai em seu texto Putting Hierarchy in Its Place. Nesse texto Appadurai tenta demonstrar a construção da ideia de nativo como uma operação política de subalternização. Chama a atenção para o fato de que o termo em si poderia sugerir apenas a ideia de alguém que é nascido em algum lugar, mas efetivamente não é isso que acontece. Ele diz textualmente que What it means is that natives are not only persons who are from certain place, and belong to those places, but they are also those who are somehow incarcerated, or confined, in those places. What we need to examine is this attribution or assumption of incarceration, of imprisonment, or confinement. Why are some people seen as confined to, and by, their places? (Appadurai, 1988: 37).
Se o índio Squanto foi utilizado como figura paradigmática por Clifford como elemento representativo de um indivíduo complexo e atravessado por movimentos de grande envergadura, forçoso é notar que os processos de descolonização dos séculos XIX e XX potencializaram esses movimentos. Idriss, personagem central do romance ora analisado, metonimicamente representa esse conjunto de elementos em trânsito pelo mundo. São os nativos deslocados. A homogeneidade e o simplismo com os quais um determinado senso comum tenta representá-los deixa escapar matizes complexas das supostas existências simples e autocentradas. O campo torna-se agora algo muito mais fluido e matizado e isto sugere reflexões em torno da constituição desse campo. A observação participante sempre estará a sugerir um “onde”, como afirma Clifford, mas cumpre indagar como que metodologicamente essas fronteiras são traçadas, e uma vez que se esteja atento às complexidades inerentes a esta operação deve-se pensar o espaço observado como que cruzado por sentidos, conexões e fluxos diversos. Desde o início do romance Idriss é confrontado por questões tais como a reflexão sobre os modos constituintes dos indivíduos do oásis e do deserto, na comparação que faz entre o que vê em torno de si por um lado, e o que percebe na vida de seu amigo Ibrahim, pastor chaamba de uma tribo seminômade, por outro. É esta figura do amigo Ibrahim que vai entre outros elementos estimular a imaginação de Idriss no sentido de lhe empurrar para a França. Havia também, e principalmente, a fotografia tirada dele no deserto pela mulher loura, e havia ainda a figura do seu tio materno, Mogadem, homem que lutou aliado do exército francês e também possuidor de uma fotografia, que, aliás, era a única do povoado antes que Idriss fosse ele também fotografado no deserto. Todos esses elementos vão compondo uma teia complexa que vão atuar naquilo que Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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Appadurai (1996) chamou de imaginação como força social. Appadurai faz-nos ver em sua teorização acerca do que chamou de etnopaisagens, que o nativo construído na prática antropológica tradicional já não pode mais ser encarado da mesma forma, quando se pensa no grande aumento exponencial dos fluxos migratórios ocorrido no século XX. Ele diz que: Como os grupos migram, refazem em novos locais, reconstroem, a sua história e reconfiguram os seus projetos étnicos, o etno de etnografia assume um caráter esquivo, não localizado, a que as práticas da Antropologia terão que responder. (Appadurai,2004: 71).
Como dito acima sobre as reflexões do próprio Appadurai sobre a constituição teórica do “nativo”, e também se verá mais a frente nas análises de Edward Said – especificamente na constituição do nativo oriental –, a tentação de localizar e circunscrever o nativo como figura enraizada é uma estratégia que tem mais a ver com processo de subalternização do que propriamente com método ou episteme, ou no melhor das hipóteses trata-se de um romantismo ingênuo. Appadurai trabalha mais na perspectiva de certo didatismo quando pensa como polos ideais as figuras do nativo clássico-selvagem por um lado, e o nativo em diáspora por outro. O primeiro, ele mesmo diz, talvez nunca tenha existido. Termos e expressões como “desatar dos laços”, “desterritorialização”, “movimentação transnacional”, são abundantes nas reflexões do pensador indo-estadunidense, e nos sugere a ideia de uma prática antropológica necessariamente em movimento para captar as nuances surgidas nos processos contemporâneos de migração e movimento. A desterritorialização do dinheiro e das finanças, por exemplo, é um fator potencial de acirramento de tensões. É sabido que os investidores do capital procuram as melhores condições para a sua reprodução independente das fronteiras nacionais. Essa questão teorizada por Appadurai aparece no romance de Tournier quando Achour, primo de Idriss, lhe explica que os franceses até gostam dos árabes, mas do seu jeito. O que eles não toleram mesmo são os árabes ricos. No quadro mental imperialista o papel do árabe é o da subalternização e não do investidor. As tensões mencionadas por Appadurai como realidade corrente expressa nos fluxos atuais de grupos étnicos, culturas e finanças, e que compõem por sua vez um dos nós da complexidade do mundo contemporâneo com a qual a prática antropológica tem de lidar através de novas ferramentas teóricas, as quais ele próprio ajuda a forjar, aparece claramente na afirmação de Achour. A partir do termo desterritorialização, falar de produção do local ou de localidade pressupõe agora pensar esses termos atravessados de fluxos poderosos capazes de mobilizar a fantasia e a imaginação dos agentes ditos locais. Recorde-se aqui que o próprio Appadurai afirma que a imaginação e a fantasia sempre tomaram parte na vida social dos povos através dos mitos, contos, sonhos e canções e que sempre compuseram parte do repertório de qualquer sociedade culturalmente organizada. Mas salienta que
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contemporaneamente o papel desses dois itens ganha uma força nova e singular. A conexão entre imaginação e desterritorialização é expressa por ele nos seguintes termos: Os termos da negociação entre vidas imaginadas e mundos desterritorializados são complexos e por certo não podem ser captados apenas pelas estratégias de localização da etnografia tradicional. O que uma nova espécie de etnografia pode fazer é captar o impacto da desterritorialização sobre os recursos imaginativos das experiências locais vividas. (Appadurai, 2004:77).
A hipótese de Appadurai sobre o papel da imaginação no mundo social contemporâneo é particularmente interessante para a análise ora realizada. Em uma chave interpretativa menos matizada, ou talvez até mais vinculada aos domínios do senso comum, é corrente pensar a ação migratória apenas em seus aspectos materiais. Obviamente não se está aqui a dizer que esses aspectos são desprezíveis, mas sim que eles vêm em arranjos complexos com questões e aspectos que também são de suma importância para a análise social. Os sujeitos que migram sempre ou quase sempre se relacionam com os que ficaram: escrevem cartas, enviam dinheiro, contam histórias, visitam seus familiares ou são visitados. Tudo isso concorre para que os que ficam – quase sempre mais jovens, mas nem sempre –, sejam tomados por imagens e projeções poderosas que vão paulatinamente atuando no sentido de estimulá-los a percorrer o mesmo caminho. Em suas reflexões com base no que imaginava ser a vida livre do morador do deserto fora do oásis, Idriss concluía que havia dois tipos de pessoas: os que ficam no povoado para cumprir os ritos da comunidade tais como casar e ter filhos, e os que migravam. Acabou por concluir que ele pertencia ao segundo grupo. Outros elementos foram atuando sobre sua imaginação para que ele pusesse seu plano migratório em ação, sendo o mais significativo deles o encontro no deserto com a mulher loura que lhe tira a foto. Esta fotografia, como objeto-fetiche, será a porta de entrada em um labirinto do qual só poderá sair com a ajuda de sua própria tradição recriada em desterro. E esta recriação da sua própria tradição começa para Idriss através da utilização de um recurso que para Appadurai forma um par com a imaginação no sentido de tornar possível um conjunto mais vasto de possibilidades existenciais: a comunicação de massa, notadamente o rádio. Seguindo as reflexões de Appadurai pode-se facilmente chegar ao entendimento de que a vida sempre foi o vivido + o imaginado. Deuse, porém, na modernidade a ampliação da parte imaginada, sendo essa ampliação um aspecto marcante da vida social contemporânea. Idriss vê sua vida em ciclos concêntricos de expansão em busca de outros mundos quando primeiramente mantêm relações de amizade com seu amigo nômade Ibrahim; depois questiona os valores tradicionais de sua aldeia – o que desafia certa visão etnocêntrica de que os grupos humanos não modernos não são capazes de elaborar contestação no
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quadro das regulações sociais em que vivem –; seu desejo de fuga ganha ímpeto após a ocorrência da foto no deserto. Mas se a imagem pela via da fotografia – objeto vinculado à indústria cultural – foi a porta de entrada de seu labirinto de imagens, o rádio – objeto igualmente vinculado a mesma indústria – foi o início de sua linha de fuga (Deleuze, 1998). Deixo, porém, para o final dessa seção a análise dessa questão, por ter um caráter mais epilogal, para me deter nos próximos parágrafos na ideia da construção do conceito de oriental tal qual esboçado por Edward Said e que também tem implicações importantes para esta análise. Um saber que se constitui em poder é efetivamente um tema caro à tradição intelectual ocidental. Edward Said em seu texto Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente, que trata do conceito ou da invenção do que é Oriental por parte do ocidente, discorre sobre o discurso do conde Arthr James Balfour na câmara dos comuns inglesa no qual este argumenta em favor da permanência da Inglaterra no Egito, ainda no início do século XX. Analisando o discurso de Balfour sobre a manutenção dos ingleses em terras egípcias, Said torna claro o nexo estabelecido pelo conde inglês entre a ocupação britânica e o conhecimento que se tem sobre o povo dominado. Para Balfour, segundo Said, o conhecimento está em definir o outro em suas origens, passar pelo seu apogeu, e chegar à compreensão do seu declínio. Este conhecimento se materializaria na superação do imediatismo e na busca de ir além de si mesmo e nessa rota chegar até a se introduzir no estrangeiro distante. Ter este conhecimento sobre o outro é de certa forma recortá-lo e defini-lo, ou em outras palavras afirmá-lo como realidade ontológica e cognoscível. É, em suma, ter poder sobre ele. A equação torna-se clara na afirmação de que para Balfour o conhecimento inglês sobre o Egito é o próprio Egito. Esta equação também aparece na narrativa de Michel Tournier em, pelo menos, dois momentos. A primeira quando Idriss está em Béni Abbès e vê no museu do Saara os hábitos de sua tribo como objeto recortado e definido como uma cultura. No mesmo movimento em que ele reconhece aqueles hábitos, lugares e objetos, ele estranha o modo de formulação no qual tudo aquilo se coloca. A disposição dos gestos e hábitos dos habitantes do oásis lhe parece estranho, não por ele nunca ter visto, mas pelo fato de que foi recortado como uma unidade observável e cognoscível. Parafraseando Balfour podemos dizer que o conhecimento francês sobre o Saara é o próprio Saara. O segundo momento em que a equação se faz perceber no romance se dá quando estando em Paris à porta de um restaurante de comida “típica” do mundo árabe, Idriss é indagado sobre qual é o prato nacional do seu país. O jovem de Tabelbala sequer entende o que seu interlocutor quer dizer com a palavra nacional. A noção de nacionalidade é tomada pelo marquês Sigibert de Beaufond como um dado autoevidente e natural sobre o qual não são necessárias maiores explicações. O marquês cita dois ou três pratos nacionais que entende ser de povos árabes, Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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mas o jovem berbere (é assim que ele se define) não conhece nenhum. O marquês também estranha e pergunta se Idriss não é um árabe. Este lhe responde que tampouco se vê nessa condição identitária. É a partir desse ponto que o francês vai ensinar a Idriss o que é ser árabe. Vai localizálo, vai defini-lo, vai, por fim, circunscrevê-lo. Esta é sempre uma operação de simplificação das complexidades inerentes a qualquer conjunto humano, e é também uma operação de guerra e de subalternização do outro. É digno de nota que os elementos de doutrinação elencados pelo marquês e que estão em suas memórias são provenientes do cinema cujos filmes tratam justamente da ocupação francesa na Argélia, portanto, refere-se a uma ação de cunho colonial. Era com uma suposta essência árabe que o marquês de Beaufond estava dialogando quando conversava com Idriss à porta do restaurante parisiense. Isto porque essa operação de essencialização está na gênese da visão colonial europeia, e não é outra coisa que afirma Said quando diz que “(...) os orientais, para todos os fins práticos, eram uma essência platônica que qualquer orientalista (ou governantes de orientais) pode ria examinar, compreender e expor” (Said, 2007: 70). O conhecimento do Oriente – tanto do conde Balfour, analisado por Said, quanto do marquês de Beaufond, do romance de Tournier – dá sustentação a ação colonial ao mesmo tempo em que dela se nutre em uma verdadeira dialética entre saber e poder fazendo com que o oriental seja, como colocado por Said, concebido como algo que se possa julgar, como em um tribunal; se possa estudar e descrever, como em um currículo; se possa disciplinar, como em uma prisão ou escola; ou ainda ser ilustrado, como em um manual de zoologia. Na fala da autoridade inglesa analisada por Said, na qual o primeiro tece seus argumentos em favor da importância do papel da Inglaterra no que diz respeito a uma ação civilizatória no Egito, há claramente defendida a ideia de que o Egito teve seu apogeu no passado e que essa etapa em muito contribuiu para o desenvolvimento da civilização como um todo. Mas deixa bem claro que essas conquistas egípcias estão no passado, pois naquele momento presente aquele país estava em seu momento de declínio e comungando com outros orientais a incapacidade de produzir um autogoverno (expressão do próprio Balfour), necessitando por isso da permanência da Inglaterra como potência indutora e criadora de valores verdadeiramente civilizados, no sentido moderno do termo. Em algum momento Balfour diz textualmente que “a ocupação estrangeira torna-se, portanto, a própria base da civilização egípcia contemporânea” (Said, 2007: 65). A contrapelo da retórica imperialista inglesa proferida até mesmo com ares de indulgência por Balfour, surge no romance de Tournier a afirmação, em uma conversa na qual Achour explica a Idriss o que é a França, de que a França contemporânea são eles, os árabes, e que os franceses deveriam reconhecer isto. Aqui os sinais estão invertidos e a fala do primo de Idriss tem o sabor da afirmação psicanalítica que trata do “retorno do reprimido”. Se por um lado os egípcios de Balfour deveriam reconhecer que o Egito contemporâneo só se constitui com a presença dos ingleses, sendo estes Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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colonizadores; por outro, os franceses deveriam, como pensa Achour, reconhecer que não haveria a França contemporânea sem a presença dos pejorativamente chamados de bougnoules. Agora é preciso voltar à estratégia através da qual Idriss consegue sair do seu labirinto de imagens, e para isso será importante a compreensão do que diz Appadurai sobre os modos através dos quais os migrantes recriam seus mundos, elaborando formas complexas de ação e um entendimento menos localizado e reificado do que seja cultura. Se o estopim da saga de Idriss encontra-se na captura de sua imagem no deserto do Saara por uma mulher loura, a qual o texto parece sugerir ser uma modelo, o rádio – assim também como a fotografia, pertencente ao mundo da indústria cultural – será a porta de saída. O olho e a escuta parecem aqui compor um campo de antinomia no qual um drama será performatizado. A partir da foto do deserto um conjunto de ocorrências todas ligadas à imagem vai fazer Idriss experimentar um verdadeiro turbilhão no qual muito do sentido absolutamente lhe escapa, e faz aparecer em sua volta um mundo fragmentário e assustador. O rádio é o meio de comunicação de massa com o qual os velhos das diversas tradições árabes têm mais contato, ao contrário dos jovens que preferem a televisão. E é importante aqui lembrar que para Appadurai os meios de comunicação de massas, as mediapaisagens, são de suma importância para a configuração da imaginação como força social de grande significação. É importante também assinalar que a apropriação do rádio como ferramenta para recriação de formas tradicionais pelos árabes mais velhos, guarda uma estreita relação com os universos orais os quais, de certa maneira, as transmissões através do rádio evoca. É, portanto, através do rádio que Idriss auxiliado pelo alfaiate consegue aos poucos se livrar do fastio provocado pelo excesso de imagens ao qual foi submetido. O rádio lhe coloca em contato com a tradição do canto árabe através da figura da cantora Oum Kalsoum a “estrela do oriente”, e através desse canto Idriss vai estabelecendo ligações e construído uma nova identidade tanto espacial como culturalmente mais abrangente. Vai inventando sua “arabização” na medida em que vai estabelecendo novas relações de sentido. Essa sua nova terra, como alerta Appadurai “é parte inventada, existe apenas na imaginação dos grupos desterritorializados”, mas não é por isso menos verdadeira. O canto da grande diva egípcia serve como antídoto sonoro para a alienação visual do jovem berbere, agora árabe. Na sequência dos fatos o alfaiate apresenta Idriss ao calígrafo Abd Al Ghafari, com quem ele vai adentrado um mundo de conhecimentos profundos ligados à sabedoria dos povos árabes. Com o mestre, Idriss aprendeu que a imagem pode ser perigosa e destruidora quando se lida com ela sem preparo. Acrescenta poética e filosoficamente que a imagem é a matéria, enquanto a letra é o espírito e a caligrafia é a álgebra da alma.
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Conclusão
Seguindo o roteiro complexo e multifacetado típico da contemporaneidade como apontado pela Antropologia das últimas décadas nas figuras de antropólogos tais como Arjun Appadurai; George Marcus; James Clifford e Edward Said, Idriss de Talbelbala, depois Idriss o árabe, torna-se uma personagem prototípica dos novos cenários nos quais a Antropologia se imiscui e cuida de criar novas ferramentas teóricas para compreender o homem em seu eterno devir. A partir de um labirinto de imagens que compõe o cerne de uma sociedade que vai produzindo seus efeitos, Idriss se move e complexamente elabora a recomposição, ou melhor, a invenção de um novo mundo plasmado a partir da decifração que se torna possível na medida em que descobre um a rede de sujeitos que mesmo desterritorializados são possuidores de uma potência agentiva capaz de alinhavar e produzir novos saberes a partir dos elementos dos saberes originários. Idriss não supera a alienação imagética a qual esteve por certo tempo subjugado reencontrando uma cultura original e autêntica, mas pelo contrário, vai “inventando” uma cultura para si a partir da recriação astuta de antigos saberes investidos agora em domínios contemporâneos.
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O desenvolvimento econômico no contexto da industrialização na paraíba: engenhos, curtumes e tecelagens Luciano Bezerra Agra Filho
Resumo: Em que consiste a industrialização na Paraíba? O que são os Engenhos 19? O que são Curtumes20? O que são tecelagens21? Muitas perguntas, muitas respostas... Este artigo relata a partir dos meados do século XIX, sobre a manufatura agroindustrial, ancorada especialmente na cana-de-açúcar e no algodão, era a “pedra de toque” da economia paraibana. Essa análise visa resgatar o período de seu reinado do açúcar, enquanto o “embaixador” Brasileiro, da colônia portuguesa recém desvelada e sem maior exposição da expressão, ou seja, a mesma importância econômica, na Europa dos séculos XVI a XIX. Palavras-Chave: Industrialização na Paraíba – Engenhos – Curtumes – Tecelagens. Abstract: What is the industrialization in Paraíba? What are devices? What are Tanneries ? What are tecelagens ? Many questions, many replies... This article reports from mid 19th century, on the manufacturing agroindustrial, anchored especially in the cane-of-sugar and cotton, was the "cornerstone" of the economy paraibana.This analysis aims rescue the period of his reign of sugar, as the "ambassador" Brazilian Portuguese, of the colony recently uncovered and without greater exposure of expression, or is, the same economic importance, in the Europe of centuries XVI to XIX. Key-words: Industrialization in Paraiba - Devices – Tecelagens - Leather.
Introdução
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Com referência a isso, o engenho é o nome da grande propriedade agrícola destinada à produção do açúcar. Confirma-se, portanto, que os proprietários dos engenhos eram conhecidos como senhores de engenho. Mas afinal, o que faziam parte do engenho? Casa-grande eram construções sólidas e espaçosas, onde viviam o senhor de engenho e sua família: mulher, filhos e agregados. Assim, acredita-se que a casa-grande era o centro da vida social e econômica do engenho. A Capela é o local onde se realizavam os serviços religiosos católicos. Aos domingos e dias santos, a capela era o ponto de encontro da comunidade, ali realizavam-se batizados, casamentos e funerais. A Senzala: era a moradia dos escravos. Era uma habitação rústica e pobre, onde os negros eram amontoados, sem nenhum conforto e por fim o Engenho possuia instalações destinadas ao preparo do açúcar - a moenda, onde a cana era moída para a extração do caldo; as fornalhas, onde o caldo era fervido e purificado em tachos de cobre; a casa de purgar, onde o açúcar era branqueado; os galpões, onde os blocos de açúcar eram quebrados em várias partes e reduzidos a pó. 20
O Curtume é um estabelecimento onde o couro cru é tratado a fim de ser comercializado para indústrias de artefatos de couro. O processo de curtimento consiste na transformação de peles de animais em couro e pode ser classificado em 3 modalidades, a saber, o curtimento mineral, o vegetal e o sintético. Primeiramente o Curtimento Mineral mais conhecido é o à base de cromo, utilizando-se sulfato de cromo com 33% de basicidade. Em seguida o Curtimento Vegetal se dá pela utilização de taninos, ou seja, extrato de plantas que possuem afinidade pelo colágeno, transformando a pele sujeita ao apodrecimento em couro não putrescível. E por fim no curtimento sintético, são empregados curtentes, em geral orgânicos (resinas, taninos sintéticos), que proporcionam um curtimento mais uniforme e aumentam a penetração de outros curtentes, como os taninos e de outros produtos. Isto propicia, por exemplo, um melhor tingimento posterior. Portanto os curtumes geralmente, são mais caros, relativamente aos outros curtentes e são mais usados como auxiliares de curtimento. 21 As Tecelagens são os atos de tecer, entrelaçar fios de trama (transversal) e urdume, ou urdidura, (longitudinal) formando tecidos. Pode-se, vislumbrar, portanto que os tecidos produzidos no processo de tecelagem, ou seja, também conhecidos como tecidos planos ou de cala, não podem ser confundidos com tecidos de malha. Nos tecidos planos há somente duas posições possíveis para os fios de trama, ou, ele passa por baixo ou passa por cima dos fios de urdume. Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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O presente artigo tem por objetivo realizar uma abordagem sobre inovações tecnológicas as características físicas da fibra do algodão colorido e as fibras do algodão branco. Para isto foi realizada uma avaliação de desempenho no processo de fiação a rotor do algodão colorido, face aos promissores investimentos advindos da demanda por produtos ecologicamente corretos, e a decorrente inovação tecnológica requerida à industrialização deste produto. Este estudo foi realizado numa grande indústria têxtil, instalada na Paraíba, tomando-se como base o processo de fiação utilizado por esta indústria. Primeiramente o surgimento da urbanização da Cidade de Campina Grande se encontra lastreada nas atividades comerciais e mercantis desde o início da formação estrutural da própria cidade. Em seguida ela se constituiu um descanso para os tropeiros e consequentemente se estruturou e desenvolveu-se em uma feira de gado, e posteriormente começou-se a desenvolver as atividades tropeiras e ainda o crescimento da cultura do algodão colorido estimulará o crescimento urbano através do município. Isto significa dizer que as atividades comerciais foram expostas como as atividades fundamentais para o crescimento demográfico e a urbanização do município. Como se vê, encontra-se explicação à gênese da urbanização de Campina Grande, tendo como horizonte histórico o período que abrange o século XX. É interessante assinalar que as atividades comerciais, principalmente o comércio do algodão colorido, constroem a urbanização de Campina Grande. Vale ressaltar que é a atividade do comércio, tais como o algodão colorido e o comércio entre produtores, atacadistas, varejista e consumidores industriais e domiciliares que consolida as estruturas urbanas básicas da cidade. Podemos perceber que não podemos deixar de ressaltar a importância que a chegada da ferrovia em 1907, foi a base essencial para o progresso da cidade, ou seja, o algodão colorido surgiu e se consolidou como atividade econômica essencial e quais os rebatimentos dessa atividade para a construção da hegemonia econômica e a urbanização de Campina Grande, mas, a decadência do empório algodoeiro campinense não determina o declínio da economia da cidade, devido à consolidação de uma estrutura econômica diversificada não afetando significativamente o processo de urbanização da cidade. Durante o início do Século XX, o comercio do algodão se tornou-se mais forte significativamente, especialmente após a instalação da estação ferroviária, sendo assim umas das principais atividades da cidade, fazendo de Campina Grande a segunda maior exportadora de algodão no mundo. É preciso perceber que se devia a condição do município como mercado de produtos que eram trazidos pelos tropeiros que traziam suas mercadorias em transportes de tração
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animal, geralmente burros, para ser comercializado na cidade, onde daí era levado para a capital do Estado ou para o porto do Recife, onde seria exportado para o exterior. Entretanto com a decadência do comércio de algodão surgiu uma crise econômica e se estabeleceu praticamente em todos os setores comerciais, sobretudo varejistas e prestação de serviços, implicando assim numa tomada de decisão em que se necessitou dar novos rumos para a economia campinense, isso para não deixar com que houvesse uma retração e consequente estagnação como ocorreu em outras cidades paraibanas que dependiam dessa produção algodoeira. Concluímos que o cultivo do algodão naturalmente colorido desenvolvidas pela Embrapa, o algodão para as condições de semiárido entre o sertão e o Seridó da região nordeste do Brasil, enfocando os aspectos socioeconômicos da agricultura familiar. Destaco que o caráter reestruturante da cultura do algodão colorido, obtido através de técnicas de melhoramento genético, e que tem como principais desafios, a geração de renda e o resgate da cidadania às populações de baixa-renda daquela região, e é por isso que a cultura do algodão colorido, especificamente na região do semiárido nordestino, se demonstra como uma alternativa extremamente viável, sob os pontos de vista econômico, social e ecológico. Outra indagação que podemos perceber é o seguinte: Quais os produtos que podem ser obtidos? Em relação a isto, percebemos que os artefatos, a farinha, o leite, sementes de arroz, feijão, o álcool, pimenta, o limão, frutas, tecidos, hortaliças, fibras, fiação, tecelagem, confecções, corantes, e outros produtos químicos, o milho e a soja e assim sucessivamente. E Por fim a última pergunta. O produto [o algodão colorido] é beneficiado no local, ou é exportado in natura? Todavia muitos esforços tenham sido feitos no sentido de conscientizar a população local sobre a importância do algodão colorido para a economia local, ainda há certa hostilidade que advém principalmente das camadas sociais inferiores, que têm a percepção de que o produto é inacessível e traz benefícios apenas para alguns agentes da Cadeia. Afirmando esta crítica está o fato de que os produtos de algodão colorido são destinados especialmente para os turistas, para a classe média-alta e para a exportação, já que seus preços são relativamente altos. É importante lembrar que é dificilmente encontra-se em Campina Grande um morador que esteja vestindo algum destes produtos. No presente momento, o cultivo do algodão colorido é realizado por pequenos agricultores no formato de agricultura familiar, em regiões zoneadas do sertão Paraibano. Para a fundamentação dos estudos e avaliação dos parâmetros encontrados, utilizou se como referencial analítico às teorias trabalhadas e a realidade encontrada na empresa estudada. Concluiuse a utilização do algodão colorido como inovação tecnológica utilizada na indústria têxtil, é viável, tendo-se um bom desempenho da matéria-prima e do fio, todavia, para que isso se concretize é necessário que a matéria-prima tenha um baixo percentual de desperdício, um comprimento de fibra médio e uma resistência satisfatória. Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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Em seguida, apesar do progresso econômico, da modernização do Estado, da acumulação de capital e da mão de obra ser assalariada ao invés de escrava, encontramos um desnível nas condições de vida no qual as opulências são para poucos e as dificuldades são de muitos.
Desenvolvimento econômico
Essa constatação não é muito diferente do período colonial que Freyre nos apresentou, visto que, embora os homens estejam em um espectro social estruturalmente diferente, ainda encontramos um contraste entre riqueza e pobreza. No período da época passada da Casa Grande & Senzala, tornou-se um dos caminhos para detectarmos o entendimento da essência do preconceito dos anos 70 do século XX. Sendo assim, percebemos que os empregadores de São Paulo poderiam ter preferências por homens ou mulheres, jovens ou velhos, migrantes ou não-migrantes, brancos ou negros, sua opção pode resultar tanto de motivações econômicas ou por preconceitos sociais e raciais. O sociólogo Gilberto Freire dizia em seu livro “Casa-Grande & Senzala”, o seguinte que:
é o estudo integrado do complexo sociocultural que se construiu na zona florestal úmida do litoral nordestino do Brasil, com base na monocultura latifundiária de cana-de-açúcar, na força de trabalho escrava, quase exclusivamente negra; na religiosidade católica impregnada de crenças indígenas e de práticas africanas; no domínio patriarcal do senhor de engenho, refluído na casa-grande com sua esposa e seus filhos, mas polígamo, cruzando com as negras e as mestiça. (FREYRE, 2001, p.28-29)
Como se vê, serão analisados, neste artigo, as características como motivo, facilitadores, dificultadores, pressões, conflitos e consequências decorrentes do ciclo da cana-de-açúcar a partir dos séculos XVI a XIX. É importante perceber que a necessidade de colonizar a terra para protegêla e explorá-las as suas riquezas fizeram com que o Governo de Portugal instalasse os engenhos e produtores de açúcar no nosso litoral, mas essa cultura foi selecionada por se tratar de um produto de alto valor no comércio europeu e por seu consumo crescente na Europa. Portanto, após as dificuldades de sua implantação, a falta de dinheiro para montar a moenda, comprar os escravos, refinar o açúcar e, sobretudo transportá-lo para os mercados consumidores da Europa, o açúcar tornou-se o essencial produto brasileiro e foi à base de sustentação da economia e da colonização do Brasil durante os séculos XVI e XVII. Assim, acredita-se que no século XVIII, houve uma emergência do açúcar de beterraba e a formação dos conhecimentos e as técnicas para construção de uma indústria açucareira por parte dos holandeses, que fizeram com que o nosso principal produto entrasse em decadência e perdesse o mercado consumidor para o continente europeu, e foi Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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por esse motivo que acabaria o monopólio do açúcar e alteraria o quadro político-econômico da época em nosso país. Vale ressaltar que à concorrência com os holandeses, o açúcar há muito tempo vinha se decaindo cada vez mais em torno de seus preços no determinado mercado ao passo que os custos da produção somente aumentavam o que levou o algodão a assumir o lugar de exposição na economia paraibana a partir do século XIX, e como argumentou Aécio Villar de Aquino: “De início competido, quase em condições de igualdade, o algodão vai pouco a pouco adquirindo vantagens sobre o açúcar e antes do término da primeira metade do século, já figurava em primeiro lugar nas exportações da Província”. Confirma-se, portanto, que todas essas classes sociais foram sentidas nas primeiras décadas do século XIX mesmo com as tentativas de soerguimento da capitania sob o governo de Fernando Delgado Freire de Castilho que assumiu em 1798 do século XVIII e com referência a isso, ele afirma o seguinte: “Tentando aliviar a situação econômica, Castilho promoveu uma série de melhorias no manejo do açúcar e do algodão, além de reunir a safra de açúcar e tentar exportá-la pelo porto da Paraíba, em navios solicitados ao Reino” (MARIANO, 2001, p.63). Nessa passagem acima, percebe-se que o açúcar era refinado com os métodos artesanais de fabrico. Isto quer dizer que a precariedade do equipamento de produção se evidenciava por moendas movidas por cavalos e bois, por processos custosos e dispendiosos, onde essas moendas necessitavam de seis ou oito repetições para extrair a matéria-prima da cana, mas, o açúcar tornavase branco através de um processo que utilizava barro, como analisou Aécio Villar de Aquino “bastante complicado e os mestres de açúcar eram de baixa classificação”. Cabe ressaltar que os engenhos d’água pouco eram utilizados, já que as planícies da várzea do Paraíba não ofereciam os desníveis necessários à movimentação daqueles aparelhos. No que tange aos engenhos movidos a vapor, há portanto registros que eles tenham chegado à Paraíba, tardiamente, em 1882 do século XIX, na mesma década em que entraria em funcionamento, mas o primeiro engenho central foi justamente Aécio Villar de Aquino. Ele argumentava que trazia o engenho central, algumas inovações, utilizando a tração a vapor; era uma fábrica de maior capacidade em que o setor industrial estava separado do agrícola, recebendo canas de outros engenhos e de plantadores independentes, isto quer dizer que a experiência constituiu-se num verdadeiro fracasso por causa dos desentendimentos entre a direção e os fornecedores de cana, irregularidades no fornecimento de cana, falta de controle de preços e avultando sobre os demais fatores negativos, o eterno e magno problema de carência de capital. Martha Lúcia Ribeiro Araújo relatava que:
A cultura do algodão, a mais importante do Estado, não consegue acompanhar as mudanças que estão se processando no Centro-Sul. Mantendo Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
128 técnicas atrasadas de plantio e colheita, não aumenta a produção. Além disso, firmas como o SAMBRA e a CLAYTON, financiavam os pequenos produtores, porém, após a colheita, determinavam os preços, em detrimento dos produtores, desestimulando, assim, a produção. (ARAÚJO, 2001, p. 114)
Os empecilhos políticos, os atrasos tecnológicos e os insucessos econômicos destacados pelos historiadores Aécio Villar de Aquino e Martha Lúcia Ribeiro Araújo impediam a Paraíba de ingressar no cenário da industrialização brasileira no século XIX. Pode-se, vislumbrar, portanto, que o setor industrial era bastante insuficiente e insignificante para a economia do Estado, apresentava pouco mais de duzentos estabelecimentos, que majoritariamente eram micro oficinas ou unidades fabris de caráter semi-artesanal, empregando de cinco a dezenove trabalhadores em média por cada unidade. Durante este período destacaram-se alguns segmentos do setor industrial pelo número de estabelecimentos, a exemplo das cinco fábricas de couro, as cinco de tecidos, além das oito indústrias de beneficiamento de algodão com grande destaque para produção têxtil. É nesse contexto, que a indústria de Tibiry, localizada no município de Santa Rita, cuja fundação deu-se nos anos de 1891 do século XIX. Nesse aspecto, seria importante reconhecer que esse município funcionava com trezentos e oitenta e um tear e um quadro de seiscentos e cinquenta trabalhadores. Já no município de Mamanguape a Fábrica Têxtil de Rio Tinto, fundada no ano de 1924, pertencente à família Lundgren de Pernambuco, era de grande porte, equipada com setecentos e sessenta teares e treze mil fusos. Em consequência disto, as fábricas menores se localizavam em outras cidades, tomando por exemplo, Campina Grande e Areia, que empregavam, em média, cinquenta operários por estabelecimento. Mas, afinal em que consiste os Engenhos? Aécio Villar de Aquino nos mostrou que a Paraíba além de possuir um belíssimo litoral, é detentor de um rico e prazeroso roteiro turístico e cultural também pelo interior do estado. Ressaltese, ainda, que as cidades que compõe o Brejo e que foram as principais responsáveis, naquela região, pela chamada "civilização do açúcar". De toda forma as principais cidades que fizeram parte deste cenário são, a saber, como é o caso de Alagoa Grande, Areia, Bananeiras, Borborema, Solânea, Serraria e Arara. Alagoa Grande Teatro Santa Ignês: Situado entre os casarões antigos, é o terceiro teatro mais antigo da Paraíba. O proprietário rural e político Apolônio Zenaide Montenegro foi quem mandou construí-lo. É neste ponto que o estilo italiano e a arquitetura interior em pinho de riga, teve sua construção iniciada em 1902 e foi inaugurado em 1905 do século XX. A Igreja Matriz é uma obra centenária e dedicada a Nossa Sra. da Boa Viagem, mas teve a sua construção iniciada em 1861 do século XIX pelo Frei Alberto de Santa Augusta Cabral, sendo o primeiro vigário da paróquia, e Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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concluída em 1868 do século XIX. Contudo a Areia Museu da Rapadura está localizado no Centro de Ciências Agrárias da UFPB [Campos III], no lugar onde funcionava um engenho açucareiro do século XVIII [Engenho da Várzea]. Além disso, o local, aberto à visitação pública, mantém preservados as instalações e todo o maquinário utilizado para a fabricação da rapadura, do açúcar mascavo, do mel e da aguardente, além de um alambique de barro, que destilava cachaça para uso exclusivo dos seus antigos proprietários. Museu do Brejo: Também está localizado no Centro de Ciências Agrárias acima citado. É um antigo casarão onde funcionava a Casa-Grande do Engenho da Várzea, onde se pode ter uma ideia da arquitetura rural da época. Museu Casa de Pedro Américo: Localizado na Rua Pedro Américo, foi a casa onde o grande pintor paraibano nasceu em 1843 e viveu até os nove anos de idade. Em 1943 foi desapropriada, passando a funcionar como museu. Bananeiras Cruzeiro de Roma trata-se de uma capela construída em 1899 pelo Capitão Joça Rodrigues, em homenagem à Sagrada Família, após ter alcançado uma graça. Situada no topo da Serra da Cupaóba, também é conhecida como "Outeiro de Roma" ou "Capela da Sagrada Família". O Carmelo Sagrado Coração de Jesus e Madre Tereza é um magnífico prédio secular, que se destaca pela sua grandiosidade e imponência arquitetônica. Ali funcionou um antigo Colégio, que foi transformado em Carmelo com a chegada das irmãs carmelitas, em 1999, procedentes da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro. Borborema Igreja-Matriz está situada no topo de uma elevação que domina toda a cidade e é o mais imponente e importante prédio da cidade, mas já passou por inúmeras melhorias e reformas. Chegando-se até ela subir por uma grande escadaria, cujo parapeito é adornados por várias estátuas que representam alguns santos, profetas e antigos patriarcas hebreus. Serraria Engenho Martiniano está de fogo morto, mas seus atuais proprietários estão produzindo a Cachaça "A Cobiçada", de grande aceitação em toda a região. Os restos mortais de seus fundadores [Francisco Duarte e sua esposa Josefa Duarte] estão enterrados na capela da propriedade, que está bem conservada. Sua casa grande também se encontra em perfeito estado. Arara Santa Fé é um Santuário que foi erguido em homenagem ao Padre Ibiapina, e ela está situado bem na divisa com Solânea, onde esse religioso passou os últimos anos de sua vida. O Santuário conta com uma capela, casa dos milagres, pequeno museu [com instrumentos utilizados pelas irmãs nas casas de caridade criadas pelo padre, quadros, utensílios domésticos da época, moedas, etc], casa dos missionários e casa onde morou aquele religioso. Os empecilhos políticos, os atrasos tecnológicos e os insucessos econômicos destacados pelo historiador Aécio Villar de Aquino impediam a Paraíba de ingressar no cenário da industrialização brasileira no século XIX. Pode-se, vislumbrar, portanto, que o setor industrial era bastante insuficiente e insignificante para a economia do Estado, apresentava pouco mais de Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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duzentos estabelecimentos, que majoriamente eram micro oficinas ou unidades fabris de caráter semi-artesanal, empregando de cinco a dezenove trabalhadores em média por cada unidade. Durante este período destacaram-se alguns segmentos do setor industrial pelo número de estabelecimentos, a exemplo das cinco fábricas de couro, as cinco de tecidos, além das oito indústrias de beneficiamento de algodão com grande destaque para produção têxtil. É nesse contexto, que a indústria de Tibiry, localizada no município de Santa Rita, cuja fundação deu-se nos anos de 1891 do século XIX. Esse município funcionava com trezentos e oitenta e um teares e um quadro de seiscentos e cinquenta trabalhadores. Já no município de Mamanguape a Fábrica Têxtil de Rio Tinto, fundada no ano de 1924, pertencente à família Lundgren de Pernambuco, era de grande porte, equipada com setecentos e sessenta teares e treze mil fusos. Em consequência disto, as fábricas menores se localizavam em outras cidades, tomando, por exemplo, Campina Grande e Areia, que empregavam, em média, cinquenta operários por estabelecimento. É importante perceber que a origem da indústria têxtil em Campina Grande segundo o economista Luiz Gonzaga de Sousa, é um prolongamento da industrialização desses municípios: Com isto, surgiram as primeiras fábricas em Campina Grande, como foi o caso das fábricas de beneficiamento de algodão e de sisal. Com o advento do setor de transformação, surgiram a SAMBRA, a ANDERSON CLAYTON e a MARQUES DE ALMEIDA e poucas outras empresas que tinham a finalidade de beneficiar produtos da terra para o uso doméstico e até mesmo exportar. Foi desta forma que apareceu a Indústria Têxtil em Campina Grande. (SOUZA, 1996, p. 57)
O setor têxtil se fez hegemônico nas primeiras décadas do século XX comportando o maior número de estabelecimento industrial e empregando mais de 50% dos operários na Paraíba, acompanhado pelo setor de transformação de alimentos, deixando a terceira posição para o setor de minerais não metálicos. Entrando em crise, nos anos quarenta do século XX, primeiro por não acompanhar a modernização dos avanços tecnológicos, desenvolvida no centro sul do país que passava a inserir no setor, além de novas técnicas de produção, as máquinas de maior, além de novas técnicas de produção, as máquinas de maior porte tecnológico que concentravam as atividades de beneficiamento diminuindo os custos do produto, segundo pela política de financiamento das grandes indústrias têxteis que sofriam com a crise comercial do seu produto instaladas na Paraíba e que açambarcavam a produção local. Isto significa dizer que a Paraíba tem uma economia bastante diversificada com setores emergentes de média tecnologia, alavancada por uma estrutura de serviço e comércio de importância no cenário nordestino. Em relação com a abertura comercial no estado, a economia tem sofrido forte impacto no que diz respeito à concorrência das cidades circunvizinhas, e é por isso que alguns setores se modernizam enquanto outros sofrem retrocesso devido à falta de incentivos para investir em inovações tecnológicas. Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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É importante notar que algumas indústrias têm conseguido se modernizar utilizando algumas estratégias como novos métodos de organização do trabalho e da produção, enquanto que no processo de reestruturação econômica e política da indústria na região, vêm-se utilizando-se da otimização dos recursos locais, mas a indústria paraibana vem se diversificando, pois ela está investindo nos setores que estão ligados pelos grandes centros urbanos, e é através destes setores que são expoentes desta nova dinâmica, podemos citar como exemplo, plásticos, bebidas e couro calçados. Colocando que a indústria de Calçados é a que mais vem se alastrando dentro do próprio Estado, assim o segmento de bens não-duráveis se destaca com 76% das unidades instaladas após 1980 do século XX, das quais 54% após 1990 do século XX, porém a receita das indústrias paraibanas provém, principalmente, da venda de produtos em outros estados, seguidos de venda a mercados da própria região. As Grandes partes das empresas paraibanas, entre 1999 e 2001, apresentam investimento na aquisição de máquinas e equipamentos, programas de treinamento da mão-de-obra e aquisição de equipamentos de informática e os motivos que levam os empresários, segundo eles, a investir na indústria são, a saber, a ampliação da capacidade produtiva, melhoria da qualidade do produto e melhoria da eficiência, como nos apontou a historiadora e socióloga Martha Lúcia Ribeiro: “firmas como a SAMBRA e a CLAYTON, financiavam os pequenos produtores, porém após a colheita, determinavam os preços, em detrimento dos produtos, desestimulando, assim, a produção.” Contudo, a cidade de Campina Grande nos anos 60 do século XX, assistiria ao surgimento de novas indústrias e a proliferação do número de seus estabelecimentos industriais, superando a capital político-administrativa da Paraíba, João Pessoa, cujos índices de crescimento industrial imperavam na década de 40 do século XX. Grandiosa, magnificante, pública e aplicada, Campina Grande destacou-se pelo seu vigoroso crescimento industrial e pela histórica vocação comercial local e para além dos limites do Estado. Observe-se, ainda, que o município de Campina Grande passa a ser beneficiado com essa política de industrialização promovida pelo governo federal, possivelmente por ser a cidade mais desenvolvida do Estado da Paraíba e, em decorrência desse privilegio adquiria importância significativa no cenário regional. Evidentemente havia na região Nordeste outros centros mais desenvolvidos que Campina Grande, no entanto, se tomarmos o desenvolvimento vivenciado por esta cidade e compararmos com a situação geral do Nordeste, chegaremos a conclusão que Campina Grande se desenvolvia muito mais que várias cidades dessa região. As políticas públicas implementadas na região eram, geralmente, ineficazes e atrasadas como mostra essa citação de Raimundo Moreira, comparando as políticas de desenvolvimento do Nordeste e do Centro-Sul:
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132 [...] Desenvolvia-se no Centro-Sul uma política de inversões dentro de um programa orientado com objetivos definidos, visando à industrialização, enquanto no Nordeste se levava a cabo uma política “assistencialista”. A ação governamental no Nordeste centrava-se na política de combate às secas e tinha efetivamente um caráter filantrópico [...] (MOREIRA, 1979, p. 3243).
De acordo com Lima (2004. p. 48): “essa realidade global do Nordeste não se reflete em Campina Grande, ao contrário, ao entrar nos anos cinquenta o município já se destacava como um centro industrial em franca ascensão e continua durante toda década”. O crescimento era tanto que, em 1959, Campina Grande tinha 111 estabelecimentos industriais, enquanto João Pessoa tinha 93 estabelecimentos. Em termos quantitativos, o número de indústrias, de habitantes, de lojas de comércio, somando-se ainda sua importância como polo comercial de algodão, fazia dessa cidade um centro propulsor de crescimento econômico. Como podemos perceber, depois de mais de quarenta anos passados da publicação dessa notícia, o Diário nos mostra a imagem de uma instituição que poderiam contribuindo para o desenvolvimento da cidade, ajudando Campina e região a prosseguir seu processo de desenvolvimento. Além disso, apresenta a situação de desenvolvimento que estava inserida Campina Grande. E com o funcionamento de um curso como o de Ciências Econômicas, seria de fundamental importância, devido essa cidade se encontrar em processo de industrialização. Entre as décadas de cinquenta e final de sessenta, muitas empresas que haviam se instalado na cidade atraída, ainda, pelo reavivamento da fase áurea do algodão, contribuíram para o desenvolvimento socioeconômico campinense. Podemos destacar a Escola Técnica do Comércio de Campina Grande, a Fundação para o Desenvolvimento da Ciência e da Técnica (1956), a Faculdade Católica de Filosofia de Campina Grande (1952), a Faculdade de Serviço Social de Campina Grande (1951), origem da Universidade Regional do Nordeste (URN), criada em 1966 através da Lei Municipal e, transformada 1986, na Universidade Estadual da Paraíba. Foram, também, criadas nessas décadas várias empresas municipais e órgãos voltados para o desenvolvimento da cidade; a Campanha Municipal de Desenvolvimento (COMUDE), criada pela Prefeitura Municipal em 1956. Em 1957, fora criada a SANESA, a primeira Sociedade Mista de Água e Esgoto de todo o Brasil e da América do Sul. Segundo Lima (1996:50) a base do modelo da SANESA serviu posteriormente para a criação da TELINGRA criada em 1955, o Fundo de Desenvolvimento Agro-Industrial (FADIN), o Banco de Fomento Agrícola S.A (BANFOP), criado em 1959, além da Wallig Nordeste S.A, CANDE, FIBRASA, PREMOL e IPELSA, todas criadas em 1966. Segundo o historiador Damião de Lima colocou que: A cidade participou da preparação do projeto de industrialização, desde as primeiras discussões sobre a mudança na política oficial para região Nordeste Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
133 e já se destacava no Estado [...] a única cidade do interior do Brasil, não capital de Estado, que tornou-se sede de um órgão de liderança do processo de industrialização do país, a Federação das Indústrias do Estado da Paraíba – FIEP. (LIMA, 1999, p. 125)
Assim, no ano de 1959, a cidade foi a sede do I Encontro dos Bispos do Nordeste, evento realizado com a finalidade de encontrar alternativas para a dinamização e o desenvolvimento da região. Para sanar os problemas que afligiam o Nordeste, o governo federal ofereceu incentivos fiscais para implementar o desenvolvimento da região. Era criada, em 15 de dezembro de 1960, a SUDENE e a partir daí criava-se juntamente com o órgão as condições necessárias para que o centro dinâmico da região Nordeste, antes exportador e primário, fosse substituído pelo setor industrial, para onde foram canalizados os investimentos do Governo Federal. Oferecendo facilidades não verificadas em outras cidades, Campina Grande conseguiu estrategicamente atrair novas indústrias no início da década de 60 do século XX, beneficiando-se do órgão recém-criado como destacou o historiador Damião de Lima no período compreendido entre 1961 e 1965:
Foram aprovados pela SUDENE, para Campina Grande, 9 projetos, sendo 5 de implantação de novas indústrias e 4 de modernização das indústrias já existentes. Entre esses projetos, dois merecem destaque: o Projeto de Implantação da Campina Grande Industrial Ltda [CANDE], produtora de tubos plásticos e, principalmente, o Projeto de Implantação da WALLIG NORDESTE S/A, empresa de grande porte, produtora de fogões a gás liquefeito. (LIMA, 1999, p. 126)
Pela primeira vez na história o setor secundário superava o terciário campinense, empregado mais 16. 300 pessoas no início da década de 60 do século XX. A industrialização era vista como a panaceia para os problemas sociais da cidade. Nesse sentido, podemos citar o discurso de Newton Rique, empresário e político campinense, onde chegou a expor que: A industrialização de Campina Grande vem sendo o desejo dominante no seio da classe produtora e chegou às massas trabalhadoras sob a forma de uma aspiração coletiva, capaz de solucionar com todo o cortejo de males que ele acarreta. [...] Julgo que é chegado o momento de uma poderosa intervenção do governo municipal para, dirigir, fomentar e disciplinar um maior surto desenvolvimentista, através da industrialização em maior escala no município. (LIMA, 1999, p. 125)
Considerando, então, que a política desenvolvimentista de concessões e incentivos fiscais da SUDENE garantiu ainda o amadurecimento do setor calçadista da Paraíba que teve participação Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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discreta na economia local nas primeiras décadas do século XX, modernizando o polo coureirocalçadista do Estado a partir da vinda de estabelecimentos de peso deslocados das regiões CentroSul para a Paraíba, como a BESA, a AZALEIA e a PARC, implantadas em Campina Grande, o que transformou o município no maior distrito calçadista da Paraíba. Os anos 70 e 80 do século XX, foram marcados pelo impressionante volume de empregos gerados pelo setor de calçados, mas, a concentração técnica e econômica garantiu a indústria calçadista a sua afirmação, o seu “lugar ao sol” como setor vetor de desenvolvimento na economia do Estado. Diametralmente diferente do município de João Pessoa, no que tange a constituição de um aglomerado de empresas de calçados possibilitada pela atração de empresas vindas de outras regiões do país, em Campina Grande a indústria calçadista surgiu no início do século XX enquanto indústria artesanal de beneficiamento e produção de artigos de couros possibilitada pelo comércio do algodão, força propulsora da agropecuária beneficiada pela localização geográfica do município como destaca Damião de Lima: “Campina Grande, localizada no interior do Estado da Paraíba, destacou-se no cenário nordestino, desde sua a origem, como um importante entreposto comercial e um elo entre o interior do Estado e a capital e também o estado de Pernambuco.” A indústria calçadista campinense atingiu seu apogeu no período de 1937 a 1945 contando com mais de trinta novas indústrias, fenômeno efêmero discutindo pelo professor de Economia da UFCG, Luiz Gonzaga de Sousa: “Depois desta fase, como em todo ciclo econômico, muitas destas indústrias faliram, inclusive Luiz Gomes Bezerra, o ‘Lula Gato Preto’, tendo em vista as peculiaridades da economia da época provocaram crise”. Neste fragmento acima, percebe-se que a crise foi superada pelo setor em meados dos anos 50 do século XX com a introdução do couro sintético que tornava o produto mais barato facilitando sua comercialização no mercado local. Na história da formação do setor coureiro-calçadista da Paraíba tanto os pequenos grupos formados por pequenos produtores pioneiros como os Mottas que durante a Segunda Guerra Mundial tinham a sua produção total de fabricação de botas vendida para o Exército Brasileiro, como também um grupo pequeno de grandes empresas vindas do Centro-Sul do país, a partir da criação da SUDENE, estiveram presentes na construção do setor calçadista paraibano. Mas, afinal podemos fazer uma outra indagação: Em que consiste a origem e a evolução da indústria de curtume na Paraíba? Primeiramente Egidio Luiz Furlanetto dizia o seguinte: “O período [...] entre o pós-guerra até o final dos anos 50, houve [...] um desenvolvimento do setor coureiro no Estado da Paraíba com aumento das exportações, com Campina Grande constituindo-se o principal polo coureiro do Estado [...] do Nordeste.” (FURLANETTO, 2004, p. 4). Percebe-se por essa leitura que o período compreendido entre o pós-guerra segunda guerra mundial até o final dos anos 50 do século XX, houve uma comunicação em torno do Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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desenvolvimento econômico do setor coureiro no Estado da Paraíba das exportações, com Campina Grande constituindo-se, assim o principal polo coureiro do Estado, sendo que é um dos mais importantes do Estado do Nordeste da paraíba. Em consequência disto, este crescimento tenha se restringindo durante a década dos anos 70 do século XX, mas em Campina Grande continuava sendo relevante e importância para o setor, basta dizer que em 1973 do século XX, quando o Núcleo de Assistência Industrial da Paraíba [NAI/PB] - célula inicial do que viria a ser o atual SEBRAE, ao realizar um diagnóstico da Indústria de Couros e Calçados no estado da Paraíba, identificou que dos cinco curtumes industriais do Estado quatro encontravam-se em Campina Grande e, somente um em João Pessoa. Campina Grande e, por consequência o estado, viu se restringir a sua importância como importante polo coureiro a partir dos anos 80 do século XX, efeito este que fez com que entrasse no século XXI com reduzido grau de importância no setor, mantendo em atividade somente algumas pequenas e médias unidades que operam muito mais em função de um outro segmento, o qual, diga-se de passagem, vem crescendo de importância dentro do arranjo, o da indústria de equipamentos de proteção individual, tais como luvas, botas, aventais e perneiras, todos produzidos a partir do subproduto do couro bovino denominado de “raspa” . Atualmente a indústria paraibana de curtumes foi uma pujante indústria foi se transformando, aos poucos, numa atividade associada à produção de equipamentos de proteção individual [EPI’s], pois nenhuma daquelas importantes unidades, existentes na década de 80, encontram-se em atividade. Atualmente, não existe nenhuma unidade significativa que processe couros da forma completa em Campina Grande, isto é, que adquira peles “in natura” ou conservadas e as processe. Todas as quatro indústrias que podem ser caracterizadas como indústrias de curtumes, nasceram muito mais para servir de suporte à fabricação de equipamentos de proteção individual [EPI’s], indústria que surgiu em função das iniciativas pioneiras de uma importante empresa, hoje desativada, que produzia uma gama expressiva de EPI’s e das “janelas de oportunidades” que se abriram em função da desativação das indústrias tradicionais de curtume, o que acabou disponibilizando equipamentos e mão-de-obra especializada. Vale ressaltar outro ponto importante que é sobre a tecelagem. Maria da Conceição Gomes Valle, argumentou que para Daniel (2004) o processo para obtenção de artigos prontos torna-se difícil devido à pequena quantidade de fibra produzida. A fiação de toda a produção, atualmente:
Em Campina Grande, Paraíba, é realizada a tecelagem em teares manuais pela Entre fios. Além do algodão ser naturalmente colorido, a fibra do Brasil segundo o presidente da Embrapa, tem constituição orgânica por todo processo ser limpo, apresentando propriedades similares às do algodão branco. O cultivo do algodão colorido traz, benefícios ecológicos, visto que a sua coloração é natural, dispensando desta forma o uso de produtos químicos Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
136 para o tingimento, o que irá contribuir significativamente com a diminuição do nível de poluição dos rios. Além disso, apresenta também vantagens econômicas e sociais, pois, seu cultivo mantém os agricultores no campo, oferecendo-lhes uma oportunidade de renovação da produção algodoeira. Contudo, é importante salientar que além das vantagens citadas acima, o algodão possui uma alta capacidade de absorção, o que faz com que a fibra seja confortável, e mais adequada ao clima quente do Brasil. (VALLE, 2004, p. 62)
É importante destacar nessa passagem que os tecelões paraibanos colocam em suas redes, mantas, tapetes e almofadas, uma mistura viva de cores e formas que traduzem claramente a formação "misturada" que o povo brasileiro possui, sobretudo o povo nordestino. É importante, entretanto, que do Litoral ao Sertão temos comunidades trabalhando e produzindo aquilo que foi identificado como maior expansão do artesanato paraibano, a rede de dormir. No entanto, existem as cidades de Gurinhém, Campina Grande, Boqueirão, São Bento e Aparecida como principais produtoras. Como se vê, é certo que atualmente, a Paraíba também desponta como único produtor de produtos elaborados com a técnica da tecelagem utilizando o fio do algodão colorido, ecologicamente correto e que não é tingido quimicamente, ele já brotou com a cor que vai ser fiado.
Considerações finais
Concluímos que, se por um lado constata-se a quase extinção de um importante setor da economia, por outro se vislumbra o nascimento de uma nova indústria no estado da Paraíba – a indústria de EPI’s, a qual poderá fazer com que o setor consiga “renascer das cinzas”. Podemos concluir que os resultados obtidos, analisar-se-á, as proposições consideradas ao determinado longo deste estudo, bem como a circulação da trajetória indústria de curtumes da Paraíba. É evidente que a partir dos anos 80 do século XX, as políticas de atração de grandes empresas continuaram sendo praticadas pelo governo no Estado. Assim, foram instaladas no município de Campina Grande uma fábrica da SÃO PAULO ALPARGATAS S/A e duas na cidade de João Pessoa, sendo a empresa paulista contemplada na década de 90 do século XX com incentivos ofertados pelo governo para expandir as suas atividades para outros municípios do Estado. Ainda nos anos 90 verificou-se a afirmação da indústria de confecções da Paraíba, setor formado na década de 80 por pequenas e médias empresas e que ganhou novo fôlego com a instalação da unidade de produção da COTEMINAS S.A, que em Campina Grande propiciou a retomada da condição hegemônica de maior produtora de fios do Estado.
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O setor industrial da Paraíba vem realizando particularmente no início do novo milênio, um significativo esforço para adaptar-se às transformações que desafiam os paradigmas básicos de produção, com novas tecnologias e modelos operacionais de gestão em um ritmo avassalador que levaram a indústria a repensar não somente como o “fazer” diante de uma série de metamorfoses globais como também “o que fazer”. Outra perspectiva mais importante é modelo de desenvolvimento do estado da Paraíba, proposto pela Federação das Indústrias [FIEP], baseado no aproveitamento das potencialidades e vocações regionais, leva em consideração o conhecimento como variável chave para que se possa alimentar um processo continuo de geração da inovação tecnológica. É importante ressaltar que diante desse cenário o setor industrial ressente-se da insuficiência e da inadequação da oferta de formação em áreas tecnológicas focadas em setores produtivos. As empresas estão preocupadas com a formação profissional que possa atender as estratégias do negócio. Esse é o contexto no qual emergiu, em 2003 do século XXI na Universidade Corporativa da Indústria da Paraíba, com foco central na formação de profissionais com o perfil de competências demandadas pelo setor produtivo. Desta forma, a Universidade Corporativa da Indústria da Paraíba [UCIP] é associação civil de direito privado, sem fins lucrativos, instituída e mantida pelo Sistema Federação das Indústrias do Estado da Paraíba (FIEP, SESI, SENAI e IEL). Portanto, a UCIP é provedora de conhecimentos, com vistas ao fortalecimento da indústria paraibana, atuando de forma inovadora com um novo conceito de universidade corporativa multisetorial, fundamentada no desenvolvimento de competências. Assim, a UCIP brotou alinhada com os conceitos de educação corporativa
setorial,
tendo
como
propósito
promover
o
desenvolvimento,
difusão
e
compartilhamento de conhecimento por meio de programas de educação continuada, com cursos em todos os níveis e áreas de especialidade das indústrias vinculadas aos sindicatos.
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Os artefatos: um reflexo do habitus das elites alagoanas do século XIX Jarisson Lima Dos Santos Albuquerque Membro do Núcleo de Ensino e Pesquisa Arqueológico - NEPA
Resumo: Este artigo se situa num período em que graduais mudanças afetavam o padrão de vida das elites produtoras de açúcar, que tinham nas terras e nos escravos o símbolo de sua nobreza. Ao longo do século XIX, no entanto, essa dita nobreza sofreu um duro golpe e começou a perder espaço, contudo ainda lutavam para manter sua imagem, poder e influência. Por meio da análise arqueológica, que tem nos artefatos os elementos para pensar socialmente, juntamente com o conceito de habitus, necessário para refletir a respeito do desenvolvimento das maneiras de pensar e agir, buscase compreender a forma com que se modificaram certos comportamentos e costumes cotidianos dos donos de engenho do norte de Alagoas. Palavras-chave: Artefatos, Engenho, Habitus. Abstract: This article is in a period in which gradual changes affected the living standards of Alagoas elites, in what slaves and lands were the symbol of their nobility. Throughout the nineteenth century, however, this so-called nobility suffered a blow and started to loose space, yet still struggled to maintain their image, power and influence. Through archaeological analysis, wherein artifacts are the elements to think socially, along with the concept of habitus, needful to reflect on the development of ways of thinking and acting, seeks to understand the way that certain behaviors and everyday customs of the plantation owners from the north of Alagoas has changed. Key words: Artifacts, Mill, Habitus
Arqueologia e história: uma relação de intimidade
Jacques Le Goff, em História e Memória, afirma que o documento é como um monumento, é o resultado dos esforços das sociedades históricas para impor ao futuro uma determinada visão de si, sendo estão imposição voluntária ou involuntária (Le Goff, 1990:548), sua posição, busca se distanciar de todo e qualquer tipo de noção positivista de uma aparente neutralidade. Segundo Le Goff, o documento não é inócuo, é o resultado de uma ação, de uma montagem, produzido em um determinado contexto, com juízos dos mais variáveis possíveis. Não obstante o que por vezes parecem pensar os principiantes, os documentos não aparecem aqui e ali, pelo efeito de um qualquer imperscrutável desígnio dos deuses. A sua presença ou a sua ausência nos fundos dos arquivos, numa biblioteca, num terreno, dependem de causas humanas que não escapam de forma alguma à análise, e aos problemas postos pela sua transmissão, longe de serem apenas exercícios técnicos, tocam, eles próprios, no mais íntimo da vida do passado, pois o que assim se encontra posto em jogo é nada menos do que a passagem da recordação através das gerações. (Marc Bloch, 1941-42, p.29-30, apud Jacques Le Goff, p. 544, 1990)
O historiador é o responsável pela construção do conhecimento histórico, e a interpretação destas fontes serão certamente influenciadas por suas posições, sejam elas teóricas, metodológicas, políticas, econômicas ou culturais. Uma vez realizado este trabalho, aquilo que está posto aparenta Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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assumir a forma de passado, e faz desaparecer todo o laborioso processo de desenvolvimento e construção historiográfica, parecido com o processo de produção de mercadoria, onde os meios pelos quais são criadas fazem desaparecer o caráter social do trabalho dos homens; de certa forma, algo análogo acontece com a operação historiográfica, que depois de realizada, apaga todos os procedimentos anteriores que foram necessários para chegar ao resultado final da produção. Outra problemática bastante discutida por pensadores como Marc Bloch e Jacques Le Goff se refere a noção de documento, do que poderia ser tido como fonte de análise historiográfica, o foco sai apenas do documento escrito em si, com o intuito de se afastar da noção elitizada do “fazer história” como algo de exclusividade da elite letrada, a fim de expandir as fontes históricas. Há então, como pontua Muniz (1999:34) uma desierarquização do documento, este podendo ser um filme, uma poesia, uma música ou um artigo de jornal; no âmbito da história, todos são discursos que produzem realidade e que são ao mesmo tempo produzidos em determinada condição histórica. “Fazer história”, para Certeau (1982:77) é uma prática, muito antes de uma interpretação, esta ação é mediatizada pelo uso de diversas técnicas, as quais possibilitam a construção do corpo interpretativo da história, contudo essas técnicas são relegadas em segundo plano, e são colocadas em uma posição de subordinação a história, são classificadas como “ciências auxiliares”, sejam elas a paleografia, a diplomática, a numismática, a informática, o folclorismo, ou ainda no caso em questão, a arqueologia; onde as opiniões divergem se ela seria ou não um apêndice da história, contudo, como afirma Jacques Le Goff: “O primeiro diz respeito a arqueologia. O meu problema não é saber se ela é uma ciência auxiliar da história ou uma ciência independente. Apenas faço notar como o seu desenvolvimento renovou a história. Mal deu seus primeiros passos, no século XVIII, ganhou logo o vasto campo da Pré-história e da Proto-história e renovou a história antiga”. (Le Goff, 1990:108)
O ato de desierarquizar os documentos, abre espaço para uma gama bastante vasta de fontes históricas, é nesse contexto que se abre a possibilidade de exploração de outros tipos de fontes de interpretação do passado que possam atuar, em pé de igualdade com a documentação escrita. Assim como os documentos escritos são interpretados, esses outros tipos de fonte devem também ser examinadas por via de um olhar crítico. A operação historiográfica procura se apossar de elementos “naturais”, transformando-os num ambiente cultural, pois de acordo com Michel de Certeau: “De resíduos de papeis, de legumes, até mesmo das geleiras das “neves eternas”, o historiador faz outra coisa: faz deles história. Artificializa a natureza. Participa do trabalho que transforma a natureza em ambiente, e assim modifica a natureza do homem. Suas técnicas o situam, precisamente, nesta articulação. Colocando-o ao nível desta prática, não mais se encontra a dicotomia que opõe o natural ao social, mas a conexão entre uma socialização da natureza e uma “naturalização” (ou materialização) das relações sociais”. (Michel de Certeau, 1982, p. 78)
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Ainda segundo Certeau (1982:79), o historiador é capaz de traduzir uma linguagem social para outra, transformando fenômenos sociais em objetos da história, está habilitado ainda, por meio de uma articulação entre natureza e cultura, a transformar os componentes dos campos naturais em elementos culturais, na medida em que é comum que certos objetos que fazem parte da vida de alguém, por vezes assumam certo significado que vão além da utilidade objetiva. A articulação entre natureza e cultura, não parte de um ponto de vista explicativo a partir de leis, a forma de proceder não é a mesma das ciências da natureza, pois se assim fosse, impossibilitaria uma interpretação que procura observar a vida enquanto processo social e afetivo. Nesse sentido, o leque de possibilidades de fontes de interpretação histórica aumenta de maneira bastante significativa. A cultura material, enquanto fonte de interpretação, enquanto documento, se apresenta como algo de potencial uso na interpretação da história.
Cultura material
Em Domínios da História (1997), Mary del Priore, sustenta que para que o historiador seja capaz de estudar e explicar o cotidiano das populações, seria necessário a união com os estudos arqueológicos da cultura material, valorizando os menores e mais simples utensílios domésticos, a mobília, instrumentos de trabalho, restos de suas dietas alimentares, ou quaisquer outros tipos de objetos que fossem de uso rotineiro. A arqueologia então tem como foco principal os estudos a respeito da materialidade deixada pelo homem ao longo do tempo, privilegiando ainda o ambiente em que se localizam esses restos materiais, pois o contexto em que se encontram esses materiais é de suma importância, algo que não pode ser dissociado do estudo arqueológico, volta também seu olhar para a arquitetura, os monumentos, ou todo e qualquer remanescente que tenha sofrido ação do homem; todo esse conjunto faz parte da cultura material, “os restos arqueológicos são o produto de feitos históricosociais do passado (...) são testemunhos” (Boschin, 1991: 81, apud Reis, 2010:81). No entanto, não é uma tarefa simples trabalhar a cultura material, pois: Uma das categorias da teoria arqueológica que talvez provoque as tais subversão e ambiguidades apontadas é a ‘cultura material’. Aqui sim há polissemia de acordo com a posição teórica do arqueólogo. Cultura material: reflete uma sociedade, dissimula efeitos de poder social, pode ser lida e transformada em texto, são os vestígios materiais do passado, é a agente ativa da vida humana, está significada, simbolizada carregada e imbuída de emoções, de estética, de relações socioculturais-crenças, etc. (Reis, José Alberione, 2010, p. 82)
Alguns arqueólogos da década de 80 começaram a enfatizar o caráter simbólico da cultura material, faziam frente a ideia neopositivista de que os artefatos eram simples formas de adaptação Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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ao meio, acreditavam que esses fragmentos de atividade humana podiam também exprimir significados, logo, as formas, decorações, pinturas, poderiam ultrapassar o quesito de utilidade, dando lugar a uma relação mais íntima entre sujeito e objeto. (Johnson, 2000:133) A interpretação arqueológica parte do pressuposto que a cultura material enfatiza como os objetos aparentemente inanimados, juntamente com o ambiente, agem em conjunto sobre os indivíduos numa relação dialética, mudando então o foco de antigas perspectivas mecanicistas da arqueologia, numa ótica diferente daquela que tem o sujeito como produtor e possuidor do objeto, que o usa segundo sua vontade; para a concepção do objeto como atuante, formador, como algo que não é simplesmente coisa com função prática. (Woodward, 2007:3) A cultura material, é vista como relevante para o conhecimento histórico na medida que estes objetos são resultado das atividades realizadas pelos indivíduos. Diariamente pessoas convivem, se relacionam e criam laços umas com as outras; esses elos, são criados através das ações diárias como: trabalho, consumo e lazer, por exemplo. Essas atividades, são em sua maioria, mediadas por objetos de uso habitual, sejam eles quais forem. Sendo estes objetos atuantes nas relações desenvolvidas pelos indivíduos cotidianamente, num universo que é tanto de palavras, quanto de coisas, é possível considerar que possuem valor histórico (Meneses, 1997:2). Essas “coisas velhas” de fato geram essa controvérsia na mente dos indivíduos, são objetos que escapam a uma categoria funcional ou utilitária, nos dias de hoje não fazemos uso de cerâmicas indígenas ou de faianças portuguesas, são consideradas ultrapassadas para o modo de vida atual, dessa maneira, surge a questão do porquê estudar tal coisa, qual a relevância do maior dos monumentos históricos, ao menor dos fragmentos de cerâmica? A modernidade não compreende o valor desses remanescentes, vivemos no mundo do capital, onde se produzem mercadorias que atendem quesitos práticos, necessidades, e que tem funções bastante específicas, sendo assim, não é de se espantar que esses objetos deslocados do tempo e que não atendem a esses requisitos; causem estranheza a muitas pessoas. Contudo, esses materiais não são carentes de funcionalidade, eles servem precisamente para significar o tempo, resultados das atividades dos homens, indícios culturais (Baudrillard, 2009:82). O que se pretende tratar aqui, mesmo que de maneira sutil, é como esses objetos, que fizeram parte do cotidiano de um grupo, tornaram-se influentes em seu meio, e a maneira que as relações são construídas através de simples práticas rotineiras. Para tentar compreender esse universo onde os objetos são ativos nas relações sociais, o conceito de habitus é para isso, bastante útil.
Habitus
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Bourdieu enquanto sociólogo, trouxe grande contribuição para a compreensão crítica da realidade social, reunindo e aprimorando ideias de outros grandes teóricos como Marx, Weber, Durkheim e Lévi-Strauss. Para entender um pouco seu raciocínio, é necessário compreender o conceito de habitus. Há de se esclarecer previamente, duas características do conceito de habitus, primeiro quando se tratando de algo já estruturado apresenta seus executores como passivos, a cultura por exemplo, quando vista como um conjunto caracterizador de determinadas condutas, crenças e práticas, assume essa característica de algo que já é dado, já está posto, é então instrumento comunicador que cria um consenso quanto a visão de mundo; é também estruturante, pois os indivíduos estão impregnados dessa estrutura e a partir disso se tornam ativos reprodutores dessa formação. Seguindo a tradição marxista, esta realidade é constituída através de um processo de coerção, através de ideologias que servem a classe dominante para legitimar e estabelecer uma ordem, e por meio desta, se estabelecem hierarquias para distinguir aqueles que estão acima e os que se encontram abaixo. Sua comunicação está estreitamente ligada as formas de poder que agem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra, por meio da violência simbólica, contribuindo para a domesticação dos dominados. (Bourdieu, 1992:11) A análise da formação de condutas e das representações é o cerne dos interesses bourdieusianos, as estruturas são responsáveis e dão sentido as ações individuais, são determinadas no tempo e no espaço, historicamente construídas, sendo assim não são um tipo de espírito universal, mas estão sujeitas a mudanças. O habitus põe em evidência as capacidades criadoras, ativas e inventivas, dos indivíduos. (...) o habitus, como indica a palavra, é um conhecimento adquirido, e também um haver, um capital (de um sujeito transcendental na tradição idealista) o habitus, a hexis, indica a disposição incorporada, quase postural – mas sim, o de um agente em ação (...) (Bourdieu, 1992:61)
A noção de habitus orienta o funcionamento do corpo socializado, a sociologia de Bourdieu é uma tentativa de desvendar de que maneira a sociedade consegue reproduzir nos indivíduos todas as suas estruturas, ela age e se reproduz de maneira inconscientes, sua atuação embora não determinada, é condicionada por esse habitus. Ao conceituar habitus, Bourdieu o difere da palavra hábito, a qual considera repetitiva e mecânica, e mais reprodutivo que reprodutor, essa distinção deixa clara sua intenção de não fadar as práticas individuais a meros processos automáticos, o habitus é potencialmente um propulsor de ações com base em nossas condições sociais, contudo a forma com que ele se reproduz está sujeita a transformações imprevisíveis. (Bourdieu, 2003:140) Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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A reprodução é outra característica muito presente em Bourdieu, é através desse processo que as estruturas de valores da sociedade tendem a renovar constantemente seu habitus, servindo como forma de manutenção dos mecanismos da sociedade, são exterioridades que são continuamente interiorizadas na trajetória social dos indivíduos. A estrutura de poder e de dominação que se reproduz sem que o indivíduo tenha consciência, é algo investido no indivíduo e por isso não conscientes, para que ele possa assim ativamente, engendrar as práticas que reproduzem tal estrutura de dominação e de hierarquias, faz surgir então aquilo que parece “normal” ou “natural”, como formas de conceber a realidade social. A dimensão simbólica, é necessariamente política, capaz de construir a realidade, instrumento de integração social e que contribui para a reprodução social, de certas práticas e crenças, organizando a lógica, a ética e a moral, age dessa forma tanto no corpo, quanto na “alma”. Essa concepção da realidade social, busca ir além de objetivismos ou subjetivismo, colocando-se num projeto teórico classificado como “construtivismo estruturalista”, que põe as estruturas objetivas e subjetivas numa relação dialética: Os que ocupam posições dominadas no espaço social, estão também em posições dominadas no campo de produção simbólica e não se vê de onde lhes poderiam vir os instrumentos de produção simbólica de que necessitassem para exprimirem o seu próprio ponto de vista sobre o social, se a lógica própria do campo de produção cultural e os interesses específicos que aí se geram não produzisse o efeito de predispor uma fração dos profissionais envolvidos neste campo a oferecer aos dominados, na base de uma homologia de posição, os instrumentos de ruptura com as representações que se geram na cumplicidade imediata das estruturas sociais e das estruturas mentais e que tendem a garantir a reprodução continuada da distribuição do capital simbólico. (Bourdieu, 1992:152)
Esse espaço social, constitui outro conceito fundamental de Bourdieu, o campo, o lugar onde o poder simbólico é exercido, através do choque de interesses, visando legitimar posições, o campo é onde empiricamente se desenrola o habitus que é previamente estabelecido, é o local de socialização em que os agentes lutam entre si para validar uma representação. É multidimensional, Bourdieu critica a abordagem marxista, para ele, sua visão estritamente econômica para explicar as diferenças do mundo social baseada apenas no campo econômico é bastante limitada, enxergando a posição social como resultante apenas da posição em relação a produção econômica, ignorando com isso as posições ocupadas no diversos campos e subcampos, sobretudo nas relações de produção e reprodução cultural. (Bourdieu, 1992:153)
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O habitus é lei22¹ imanente, depositada em cada agente, condição não somente da concentração das práticas, mas das práticas de concentração, há um consenso entre os que compõem mesma classe, um código comum (Bourdieu, 2003:71), essa concordância faz funcionar o sistema das práticas do campo, onde há um reconhecimento que faz com que os agentes empreguem ações automáticas em prol de um sistema objetivo, onde as atividades cotidianas parecem “sensatas” ou “razoáveis”, em que os indivíduos contribuem para reproduzi-las, quer ele deseje ou não. Tal imanência do habitus pode nos levar a várias reflexões, chamando atenção primeiramente a sua força de imposição, cujo termo “violência simbólica” mencionado anteriormente, é utilizado por Bourdieu como o mediador entre a interiorização e exteriorização, consciência e inconsciência; seria um tipo de dominação mais suave, ou que de tão sorrateira, parece invisível. É algo que toca no sistema de percepção, que à primeira vista parece inocente, mas que encobre seu forte poder coercitivo, em A dominação masculina (2012) Bourdieu fala a respeito da maneira como estão instituídas em todos os corpos os mais diversos tipos de “naturalização”, a começar pela divisão dos sexos, esta que parece estar na “ordem das coisas”, a oposição entre masculino e feminino parece estender-se para além das questões de gênero, distinções como: alto/baixo, em cima/ abaixo, subir/descer, fora (público)/dentro (privado). O paradoxo está no fato de que são as diferenças visíveis entre o corpo feminino e o corpo masculino que, sendo percebidas e construídas segundo esquemas práticos da visão androcêntrica, tornam-se o penhor mais perfeitamente indiscutível de significações e valores que estão de acordo com os princípios desta visão. (Bourdieu, 2012:32)
A força da ordem masculina não carece de justificação, “o mundo social constrói o corpo como realidade sexuada e como depositário de princípios de visão sexualizantes” (Bourdieu, 2012:18). As diferenças biológicas e mais especificamente a diferença anatômica dos sexos são utilizadas como pressuposto em favor de um “natural domínio masculino”, atuando quase como uma regra geral, está estabelecido e é reproduzido, e daí o porquê de ser estrutura estruturada e estruturante. Esse tipo de violência simbólica se manifesta nas coisas mais triviais do cotidiano, Bourdieu toca bastante na questão do feminino e masculino, porém essa violência que não é física, mas nem por isso menos danosa, é evidenciada em outros âmbitos como o cultural, étnico, religioso e etc. Quando os dominados aplicam àquilo que os domina esquemas que são produtos da dominação, ou em outros termos, quando seus pensamentos e suas percepções estão estruturados de conformidade com as estruturas mesmas da dominação que lhes é imposta,
1 A “lei” é para Bourdieu um termo extremamente perigoso de se tratar, que tende a se naturalizar, que defende a hierarquia de dominação, e que se perpetua enquanto útil àqueles a quem serve, sendo tarefa da sociologia esfacelar tais leis. (Boudieu, 2003:50) 22
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146 seus atos de conhecimento são, inevitavelmente, atos de reconhecimento, de submissão. (Bourdieu, 2012:22)
Ao tratar de dominação simbólica, Bourdieu não pretende cair em idealismos, ao demonstrar as capacidades opressivas da violência simbólica, ele não o faz em detrimento da violência física, o que tenta demonstrar é de que maneira ela pode atuar juntamente com a força bruta para impor domínio, pois o reconhecimento da submissão supõe sempre um ato de conhecimento (Bourdieu, 2012:53) Eu estava tão ciente, desde o início do inquérito, de que o efeito de legitimidade, que desempenha um papel tão grande em matéria de linguagem, fazia com que os membros das classes populares interrogados sobre sua cultura tendessem consciente ou inconscientemente, em situação de inquérito, a selecionar o que lhes parecia mais em conformidade com a imagem que tinham da cultura dominante, de tal maneira que não se podia conseguir que dissessem simplesmente aquilo que deveras gostavam. (Bourdieu, 2003:135)
Bourdieu se interessava pela capacidade de alcance dessa dominação simbólica; por meio de inquéritos verbais ele percebeu a tendência que os dominados têm de reproduzir os gostos dos dominantes ou admirá-los, quando colocadas certas questões, pareciam responder mais aquilo que acreditavam ser o que se desejava ouvir, reproduzindo as características que eram comuns as classes dominantes, sempre com a imagem de “bom gosto”, “melhor”, “mais desenvolvido” ou “mais culto”. Essa reprodução presente em Bourdieu é alvo de duras críticas por parte de seus opositores, sendo por muitos identificado como determinista e reprodutivista, ele no entanto rebate tal afirmação argumentando que por vezes há uma confusão entre duas coisas distintas: uma seria a necessidade objetiva dos corpos e a outra a necessidade subjetiva, aquilo que se pensa ser necessário, ao passo que conhecer a necessidade e sua razão, representa um progresso na liberdade possível, e é nesse sentido que para Bourdieu a sociologia se apresenta como arma de reflexão no conhecimento das necessidades, e por consequência, no avanço da liberdade possível (Bourdieu, 2003:49) Apesar da tendência dos indivíduos de reproduzirem seu habitus como um propulsor de ações, a relação entre estruturas objetivas e subjetivas faz com que as orientações sociais sejam concretamente moldadas para determinados fins como forma de se adaptar a contextos históricos específicos “em que os atores são submetidos a efeitos de histerese23 e forçados a sair, por assim
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Trata-se de um desarranjo entre condições práticas e incorporações estruturadas, sendo estas, não mais adequadas como resposta a circunstâncias objetivas. Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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dizer, do ‘piloto automático’” (Peters, 2013:9), e que os colocaria num movimento de reflexão consciente dessas disposições. Por meio da noção de habitus, é possível discutir o processo de formação e transformação das vivencias em terras alagoanas durante o século XIX.
A figura do senhor de engenho e o banguê
Numa relação com o princípio das práticas, procurando compreender as metamorfoses ocorridas em território nacional durante século XIX, percebe-se mudanças que navegam na mesma corrente que iniciada no continente europeu, num longo processo de transformações estruturais. A distinção comportamental sempre agradou aqueles que fazem ou fizeram parte das elites, apregoando normas de conduta que os colocam em um pedestal bem acima das classes inferiores. Essa diferenciação tem sua gênese nas práticas das aristocracias, onde a burguesia tentava incessantemente assumir padrões semelhantes ao dessa camada nobre, criando uma competição, uma concorrência incessante para se colocar em evidência, esse é segundo Norbert Elias, o principal motor do processo civilizador, um jogo constante para aumentar as sofisticações criando assim uma discrepância entre os detentores de certos status e aqueles que não o possuíam. (Elias, 2001:23) Elias da ênfase as alterações pelas quais passavam a sociedade europeia. Com o crescente avanço do poder econômico da burguesia, essa camada começou aos poucos a adquirir certos espaços que anteriormente pertenciam apenas aos mais nobres e privilegiados. Segundo Elias, a uma diferença capital no quesito de consumo entre a burguesia e aqueles que habitam a corte, de acordo com ele o ethos24 social dos profissionais burgueses se pauta pela norma de que seu consumo diário deve ser menor do que seus gastos, para que assim a renda acumulada possa servir para investimentos futuros, de modo que seu êxito social e de sua família, depende da estratégia de ganhos e despesas a longo prazo. Já nas sociedades em que prevalece o consumo em função do status, o oposto se verifica, as despesas domésticas estão diretamente ligadas a esfera social, em que o prestígio e a convivência em meio a determinado grupo são mais importantes (Elias, 2001:86) Nas sociedades pré-industriais, a riqueza mais respeita era aquela que não havia sido conquistada pelo esforço, aquela pela qual não era preciso trabalhar, portanto uma riqueza herdade. Não o trabalho em si, mas o trabalho com o objetivo de ganhar dinheiro, bem como a própria posso do dinheiro bem recebido, ocupava os níveis mais baixos na escala de 24
De acordo com Bourdieu o ethos denota um sistema objetivo de dimensão ética, uma vez que nota-se que os indivíduos podem ser capazes de resolver questões práticas sem a necessidade de uma posição pautada de normas éticas estabelecida; essa noção é abarcada pelo conceito de habitus. Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
148 valores das camadas superiores nas sociedades pré-industriais. Era o que ocorria com ênfase especial na sociedade de corte mais influente do século XVII e XVIII: a francesa. Ao assinalar que muitas famílias da nobless d’épée viviam do seu capital, Montesquieu quer dizer, em primeira instância que elas vendiam terras, e talvez joias ou outros objetos de valor herdados a fim de pagar dívidas. Seus rendimentos diminuíam, mas a coerção para representar não lhes oferecia nenhuma possibilidade honrosa de limitar suas despesas. Contraíam novas dívidas, vendiam mais terras, sua rende continuava a decrescer. Aumentála por meio de uma participação ativa em empreendimentos comerciais lucrativos era não só proibido por lei, como também vergonhoso – do mesmo modo que limitar os gastos com a casa ou com as ostentações (Elias, 2001:91)
Esse caráter de comportamento mais evidenciado nas sociedades pré-industriais, se verifica também nas altas camadas das sociedades industriais, mesmo que em menores proporções, ainda que o prestígio seja de grande relevância, quase não se afigura como aparelho de poder. Na sociedade baseada no consumo de prestígio, a posse de um título de nobreza é muito mais valiosa do que a acumulação de riquezas. Desde os primórdios da colonização do Brasil era bastante comum o pedido de mercês a coroa portuguesa como forma de retribuição pela prestação de algum serviço, é através disso que começam a se constituir as primeiras elites senhoriais na América portuguesa, a chamada “nobreza da terra”, que tinha na figura do proprietário de terras e de escravos, seu símbolo máximo. Contudo a industrialização iniciada na Europa, em especial na Grã-Bretanha, logo se expandiu também para o Brasil e com a Família Real em território nacional, experimentou-se maior liberdade de comércio, o que anteriormente era bastante limitado a trocas com Portugal devido ao pacto colonial. Devido a isso, verificou-se que o poder econômico se concentrava cada vez mais nas mãos de comerciantes, contudo Sheila de Castro Faria destaca que “a casa-grande e seu senhor representavam na época, a aspiração, de podemos supor, quase todos os homens que vieram por vários séculos para a Colônia” (Faria, 1998:48). Diversos foram os motivos da vinda de diversos homens para a colônia, em geral a buscando fazer fortuna nas terras que por muitos era vista como purgatório, outros ainda fugiam de perseguições ou buscavam atender estratégias de família. A América Portuguesa era uma terra de inúmeras possibilidades para os que desejavam se aventurar e que por vezes oferecia recompensas para aqueles com capital necessário para investir, sendo o comércio uma das opções preferidas dos recém chegados a Colônia. (Faria, 1998) A área urbana era o local de atividade do comércio e onde viviam aqueles com profissões manuais, como alfaiates, carpinteiros, sapateiros, médicos, comerciantes e toda a sorte de gente comum, a vila tinha função comercial. Em oposição ao meio urbano, o meio rural era moradia dos produtores de açúcar e objetivo dos que detinham poder aquisitivo suficiente para se tornarem Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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donos de terra e de escravos, a vila era somente trajeto de passagem para esse objetivo principal, onde a estabilidade estava ligada, pelo menos em teoria, aqueles que se enquadravam no modelo da tradição patriarcal, que eram donos de engenho e de muitos escravos. Embora a atividade comercial pudesse oferecer condições necessárias para estabilidade econômica, ela carregava consigo uma chaga profundamente enraizada na sociedade, em que “este desprezo tinha suas raízes na hierarquia medieval cristã, que colocava o mercador mais abaixo na escala social dos que os praticantes de artes mecânicas: camponeses, caçadores, soldados, marinheiros, cirurgiões, tecelões, ferreiros” (Boxer, 1981:303, apud Faria, 1998:176). O que justifica o fato de mesmo sendo o comércio atividade bastante lucrativa, ser apenas o meio para se chegar a um fim, o de se tornar senhor de engenho. O casamento muitas vezes parecia uma alternativa muito eficaz e um meio de rápida ascensão para o comerciante bem sucedido, e ainda mais fortuito para o senhor de engenho que dispunha suas filhas ao casamento como uma maneira de assegurar crédito necessário para a manutenção das fortunas rurais, o benefício era mútuo. Mediante análise de inventários de alguns proprietários rurais da capitania de Paraíba do Sul no Rio de Janeiro, Faria (1998) constatou que a maior parte destes, em algum momento de suas vidas, atuaram como comerciantes, e que foi através disso que conseguiram transformar-se em proprietários rurais. É possível perceber ainda que em meados do século XVIII os comerciantes que conseguiram, seja por casamento ou por acúmulo de riquezas tornar-se senhores de engenho, gozaram durante certo tempo dos privilégios que acompanhavam seu título, porém o mesmo não se verificou nas gerações que o sucederam, pois seus filhos e netos muito dificilmente conseguiam manter o padrão econômico e acabavam pobres e endividados. Esse fenômeno ainda que analisado em contexto regional, pode ser verificado também em Alagoas e persiste até fins do XIX. Além de ser dispendioso e economicamente inviável deixar de ser comerciante para se tornar senhor de engenho, o século XIX trouxe um novo problema para estes, a mecanização a força produtiva que obrigava a esses senhores se modernizarem para que pudessem continuar competindo no mercado mundial do açúcar. Os engenhos a vapor tornaram o sistema banguê obsoleto, produziam açúcar em maior quantidade, em menor custo e em menos tempo. Desse modo, para que conseguissem se manter no topo da pirâmide social, os senhores de engenho necessitavam atualizar o modo de fabrico do açúcar. Foi então que mais arraigou o exclusivismo da cultura açucareira. O banguê sofria os seus primeiros desencantos, mais agravados nos fins do século XIX com o aparecimento da usina. O desenvolvimento técnico da produção criava dificuldades à vida do banguê – do banguê que tinha na água, nos bois, nas bestas, nas “entrosas”, no trabalho escravo os seus elementos fundamentais, os sustentáculos de sua vida. (Diégues Júnior, 206:121) Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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De acordo com Manuel Diegues Júnior, data dos primeiros anos da segunda metade do século XIX a introdução do engenho a vapor em Alagoas. Mesmo sendo no século XIX o período de maior proliferação de engenhos banguês, com um total de 479, a cultura da cana que já não era economicamente satisfatória, declina em vista da concorrência com o engenho a vapor. Para que o engenho banguê conseguisse competir em pé de igualdade era necessário adotar novas tecnologias, contudo isso demandava um alto investimento o qual muitos proprietários do engenho não dispunham. Outro agravante para a situação crise, foi a suspensão do tráfico de escravos por meio da Lei Eusébio de Queiroz em 1851, e a Lei do Ventre Livre em 1871, que sufocaram ainda mais a vida do engenho banguê. Os produtores banguês criticaram duramente o governo imperial pela falta de auxílios destinados a seus engenhos, em face a concorrência com o engenho a vapor que eram obrigados a enfrentar. Desse modo, o governo buscando atender a essas demandas, criou o projeto de engenhos centrais que buscava aperfeiçoar a fabricação do açúcar, contudo houve certa resistência por parte de alguns, e a falta de capital para investimento ainda era preocupação primária, os poucos que buscaram aderir a máquina a vapor, fizeram isso com recursos próprios (Carvalho, 1988; Campos, 2001; Sant’anna, 1970, apud Barbosa, 2012).
Num contexto alagoano
Como afirmava Diegues Júnior, “a história dos engenhos de açúcar nas Alagoas, quase que se confunde com a própria história do hoje Estado, antiga Capitania e Província”. A cultura do açúcar foi amplamente desenvolvida em Alagoas, ela se entrelaçava com a cultura, com a vida social, sem falar é claro de sua indispensável contribuição econômica. O banguê era local onde se congregava a vida social, expressivo elemento da paisagem social de Alagoas. Em torno do engenho que se constitui a família alagoana e é no senhor de engenho que se centraliza a atividade social e política, que tinha na grande propriedade, na capela e nas senzalas, elementos constitutivos do projeto colonizador. Para compreender um pouco da história e do desenvolvimento dos engenhos em território alagoano é necessário citar o nome do português Cristovão Lins, a quem é atribuído a fundação da Vila de Porto Calvo, núcleo de irradiação do povoamento do território de Alagoas e local onde estão situados os engenhos abordados nesse trabalho, bem como desbravamento de todo o norte do Estado, que abrangia os municípios de Porto de Pedras, Camaragibe, Maragogi, Colônia Leopoldina Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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e São Luiz do Quitunde (DIEGUES JÚNIOR, 2006:51). Devido a um projeto político militar com o objetivo de defesa das terras da capitania de Pernambuco, Porto calvo foi um dos primeiros lugares ocupados pelos portugueses (Babosa, 2012:48). A região era vista como ponto estratégico com rotas de importante acesso a capitania (Lindoso, 2000:17 apud Barbosa, 2012, 48). Os engenhos a serem trabalhados são resultado de estudos arqueológicos do projeto Rota da Escravidão/Rota da Liberdade realizado nos anos de 2006 e 2007, que por meio de procedimentos e metodologias da arqueologia, como: sondagem, prospecção visual e poço teste, tinha por objetivo identificar locais de possível interesse arqueológico, em que os materiais obtidos pudessem dar noções do cotidiano dos antigos habitantes da região. Dentro do projeto Rota foram delimitados os sítios: Capiana, Capricho, Colinas, Crastos, Cova da onça, Escurial, Estaleiro, Genipapo, Guaribas, Ilha da Guedes e São Gonçalo. Dentre eles, serão objetivo de discussão os sítios: Capiana, Cova da onça e São Gonçalo, engenhos banguês; e Estaleiro e Escurial, engenhos a vapor. Para compreender o contexto destes, os artefatos de louça recolhidos se apresentam como de grande potencial elucidativo para os sítios aqui abordados.
Louças e análise
Como já mencionado anteriormente, desde de fins do século XVIII a Europa já começava a sentir os sinais de uma gradual mudança provocada pela industrialização, essas transformações vão aos poucos reconfigurando todo o modelo social e econômico dessa região, e como não poderia ser diferente, esse processo se expande para além do continente europeu. Essa expansão buscava mercados consumidores para os novos produtos industrializados, fruto do desenvolvimento cada vez maior das forças capitalistas que buscava fincar suas raízes. A chegada da família real portuguesa ao Brasil e a posterior abertura dos portos para expansão do comércio, trouxe consigo uma série de mudanças no cotidiano desta terra. O meio urbano começou a ser mais valorizado e buscava se diferenciar não só economicamente, mas culturalmente, com maiores requintes, sempre espelhados na corte, e essa por sua vez seguia a mesma corrente de mudanças vivenciadas na Europa. Esse cenário se deu devido a produção em massa propiciada pela indústria dos itens que anteriormente somente eram consumidos pelas classes superiores. O barateamento dessas peças fez com que mais pessoas conseguissem adquiri-las, e entre esses produtos, está a louça.
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152 As louças foram privilegiadas nessa discussão não somente devido à sua onipresença nos sítios domésticos brasileiros do século XIX, mas sobretudo por atuarem como suportes no domínio das refeições, as quais constituíram-se em um dos campos mais propícios para ritualização do universo burguês, ajudando, assim, a definir e redefinir posições sociais bem como inclusão ou exclusão dentro de um determinado grupo (Lima, 1999:209; Lucas, 1994; Wall, 1994; apud Symanski,2002)
No início do século XIX, o Brasil já começava a se tornar um mercado consumidor bastante atrativo para diversos produtos industrializados, numa tentativa de emular as elites europeias, um certo padrão de consumo e comportamento começa a se configurar nas famílias brasileiras mais abastadas, que ao se identificar com um modo de vida mais civilizado, cosmopolita e burguês europeu, busca se distinguir dos demais. Um exemplo do estabelecimento dessas mudanças que visavam estabelecer um padrão de civilidade pode ser visto no livro The Habits of Good Society, em que são enumeradas diversas maneiras de como usar o garfo e faca, como assoar o nariz, como sentar à mesa, em resumo, uma lista bastante extensa, que deveria ser seguida à risca, para afugentar a “barbárie” (Elias, 2011:127) Dessa maneira, a exuberância dos jantares e festas da aristocracia alagoana além tentar tornar visível seu poder e sua aparente riqueza refletida em sua mobília, procuravam também, demonstrar sua proximidade com os altos padrões estabelecidos na Europa, as louças nesse contexto, transparecem certamente poder econômico e social, mas também o alto nível de seus costumes. A escala proposta por Miller (1980 apud Barbosa, 2012), estabelece uma classificação das louças de acordo com seu valor econômico, onde as peças de cor branca e sem decoração eram as mais baratas, logo depois as de decoração simples e com pouca perícia, as louças pintadas a mão, em sua maioria com decorações floridas, geométricas ou paisagísticas e por fim viriam as mais caras, decalcadas na técnica de transfer printing.
(Figura 1: louça pintada a mão. Foto: Rute Barbosa) (Figura 2: louça transfer printing. Foto: Rute Barbosa)
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Os resultados obtidos através da análise do material distribuem as louças dos engenhos do Projeto Rota da seguinte maneira: Engenhos
Branca
Pintada à Mão
Transfer-Print
Capiana
16
35
47
Estaleiro
25
29
13
Escurial
57
64
11
São Gonçalo
137
341
236
Cova da Onça
53
60
46
Pela quantidade de artefatos de louça coletado em cada um dos engenhos e através da análise desse material, podemos perceber que foram encontradas louças do padrão decorativo transfer printing, as mais caras, nos engenhos que ainda faziam uso do sistema banguê, Capiana, Cova da Onça e São Gonçalo; o oposto se verifica nos engenhos a vapor, Estaleiro e Escurial, onde esses artefatos aparecem em menor quantidade. Mesmo numa conjuntura de crise do sistema banguê, é em certa medida curioso encontrarmos as peças mais caras em maior quantidade nestes engenhos, do que aqueles que acompanhavam o desenvolvimento da indústria a vapor. Num diálogo entre os materiais coletados e praxiologia estrutural de Bourdieu, é possível estabelecer uma discussão a respeito das transformações ocorridas no século XIX, que modificam as formas de comportamento da aristocracia alagoana.
Considerações Finais
Como apresentado, o número de fragmentos de louças transfer printing, as mais caras, foram encontrados em maior número nos engenhos que não foram capazes de se modernizar, já aqueles que aderiram ao sistema a vapor, foi constatado uma frequência menor desse tipo de material.
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A partir desse material cerâmico podemos perceber a estrutura que permeava na sociedade alagoana do século XIX. Rute Barbosa (2012), propõe pensar a utilização dessas louças como atividade estratégica dos senhores de engenho para manter seu prestígio social, que estava em queda vertiginosa devido à crise do sistema banguê. Os pressupostos teóricos de Bourdieu oferecem ferramentas importantes na interpretação desse contexto. Podemos pensar o consumo dessas louças na ótica de um mercado simbólico, em que das mesmas maneiras em que no mercado econômico também há uma relação de forças, há conflito. Os produtores de açúcar estavam não só em concorrência objetiva pelo comércio de açúcar, mas também em busca de cada vez mais títulos, mais honras que pudessem elevar seu prestígio. As imposições desse mercado são violentas, exercem um efeito de censura aos que não estão aptos a disputa. O sistema banguê em gradativa derrocada, que tinha na figura forte do senhor de engenho, chefe de sua casa, de sua família, de sua esposa e filhos, detentor de vários escravos, e de vastas propriedades de terra, era incapaz de acompanhar a produção açúcar dos engenhos a vapor. Porém mesmo assim, ainda em meados do século XIX, muitos desejavam se tornar donos de engenhos banguês, o prestígio que possuíam os donos dessas propriedades vinha acompanhado de um habitus “superior”. Ser dono do engenho não era suficiente, era preciso exercer essa função por meio de certos gostos e de algumas práticas e “para que haja gostos, é necessário que haja bens classificados, de ‘bom’ ou de ‘mau’ gosto, ‘distintos’ ou ‘vulgares’, classificados e no mesmo lance classificatórios, hierarquizados e hierarquizantes” (Bourdieu, 2003:169). Esse gosto se encontra a meio caminho do gosto individual e o de classe, um criando e recriando constantemente o outro. Dessa maneira, além da própria figura do senhor de engenho representar poder, seus costumes se adaptaram ao ritual burguês, como forma de continuar a exercer influência na sociedade. O luxo consiste no grande número de peças das baixelas de prata. Quando se hospeda alguém, apresenta-se-lhe para abluções soberbos vasos de metal, de que são também as bandejas que vêm para a mesa, as bridas e os estribos dos cavalos, e o cabo dos punhais (...). Encontrei também belíssimos aparelhos de louças da Inglaterra. (ARQUIVO ERNANI. FICHA, 26836, apud BARBOSA, 2012:176)
O ajustamento do habitus pode variar bastante de acordo com a situações impostas ou imprevistas, as louças na decoração de transfer printing, consideradas as mais caras, presentes nos engenhos banguês nos mostram isso. A sociedade alagoana passa a se organizar de maneira Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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diferente a partir do século XIX, a riqueza que antes estava em segundo lugar como representação de poder - há de se lembrar o caso dos comerciantes ricos que não detinham tanto status quanto os proprietários de terra, como demonstrou Sheila Faria (1998) – passa a tomar conta dos espaços. Há então um elemento estruturador que produz costumes e comportamentos que são imbuídos nos indivíduos, bem como essas incorporações se refletem no meio social por meio da ação dos indivíduos, em um movimento estruturante, a reprodução dos gestos, dos gostos, das formas, do consumo, tende a ativamente contribuir para a reprodução da estrutura Mesmo em uma conjuntura de crise, a estrutura da sociedade banguê, da “nobreza da terra”, consegue ainda se arrastar por longa data, ainda que economicamente respirando com dificuldades, o consumo em favor de um habitus consegue sustentar até boa parte do século XX uma ordem que marchava a ruína. Podemos avaliar que esse caráter estratégico se faz enquanto prática, na medida em que há um habitus disposto nesses indivíduos e que opera em certos limites, o consumo de louças para preservar a notoriedade desses senhores, parece funcionar na defesa de interesses próprios, na mesma medida que defende uma “velha sociedade” e uma antiga hierarquia.
Referências
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Monografias
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Como as instituições de microcrédito promovem a autonomia das mulheres em Moçambique. Estudo de caso da Tchuma, cooperativa de crédito e poupança (Parte II) Catarina Casimiro Trindade (Mestranda Antropologia UNICAMP)
Resumo: Como se organizam mulheres que possuem pequenos negócios nos mercados da cidade de Maputo e que recorrem a instituições de microcrédito? Os seus negócios e família beneficiam do empréstimo que as mulheres recebem das institumicroições financeiras? Poderão estas promover a autonomia financeira das mulheres? Partindo da constatação de que são as mulheres as que mais procuram instituições micro financeiras e as que têm maior taxa de sucesso, a pesquisa partiu do estudo de caso de uma instituição de microcrédito existente na cidade de Maputo, Tchuma, Cooperativa de Crédito e Poupança, e das suas clientes comerciantes, para procurar dar resposta às questões levantadas. Orientadora: Profa. Dra. Virgínia Ferreira. Instituição de ensino: Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Curso: licenciatura em Sociologia. No volume anterior (ANO 16 Vol. 2 - 2014 - Julho/Dezembro) foi publicado o primeiro capítulo. Nesse momento, publicamos a segunda parte que corresponde aos segundo e terceiro capítulo da pesquisa. Palavras-chave: microcrédito; autonomia; mulheres; economia informal.
Operacionalização do estudo
Hipóteses de trabalho
As hipóteses apresentadas foram construídas com a finalidade de dar resposta à pergunta de partida. São elas: 1.
O apoio que as instituições micro-financeiras prestam às mulheres permite-lhes
desenvolver as suas capacidades para um determinado negócio, transformando-os em actividades produtivas, com a finalidade de conseguirem pagar as suas dívidas, podendo, assim, aumentar a sua renda.
Assim, as mulheres tornam-se capazes de cuidar de si e das suas famílias, através do seu próprio trabalho. 2. As instituições de micro-crédito, embora garantam o acesso ao crédito a muitas mulheres, levam a que estas se tornem cada vez mais dependentes do crédito, impedindo-as de se tornarem plenamente autónomas do ponto de vista financeiro.
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Devido à instabilidade do sector financeiro, as mulheres precisarão sempre de recorrer ao micro-crédito para suprir as dificuldades financeiras que enfrentam por não conseguirem vender o suficiente para gerar renda. Desta maneira, o acesso ao crédito torna-se um círculo vicioso, pois as mulheres precisam de dinheiro para comprar produtos, mas se não os vendem nas quantidades necessárias para gerar renda têm que recorrer novamente ao crédito, o que as impossibilita de se tornarem autónomas.
Construção/Operacionalização de conceitos
Ao olhar para a pergunta de partida, um conceito salta logo à vista. Esse conceito é o de autonomia. Pois se a minha questão central é tentar perceber se as instituições de micro-crédito promovem ou não a autonomia das mulheres, fica claro que este conceito é central ao desenvolvimento do estudo. O conceito de autonomia possui múltiplas dimensões, sendo cada uma indispensável para que cada mulher alcance o controle sobre a sua vida. A autonomia física diz respeito à autodefinição da reprodução e da sexualidade; a autonomia política está relacionada com o direito de opinião, de organização e de participação; a autonomia sociocultural refere-se a aspectos de identidade e auto-estima. Mas existe uma dimensão do conceito de autonomia que, no meu entender, é o mais importante e o que merece maior atenção. Estou a falar da dimensão financeira, que está intimamente ligada ao acesso e controle dos meios de produção e dos recursos, ou seja, das condições económicas que assegurem o bem-estar para a mulher e para a sua família. Este é o principal objectivo deste trabalho: tentar perceber se, através das instituições de micro-crédito - que proporcionam às mulheres o acesso ao crédito necessário à melhoria do seu negócio - as mulheres se tornam (ou não) financeiramente autónomas, ou seja, se são ou não capazes de gerir, elas próprias, o seu negócio e aumentá-lo, conseguindo assim lucro suficiente para quitarem as suas dívidas e viverem decentemente. E como saber se uma mulher é ou não financeiramente autónoma? Existem vários indicadores que nos podem mostrar, tais como a possibilidade de pagar, no prazo certo, o empréstimo; poder comprar comida para alimentar os filhos e o resto da família, fazer o rancho mensal e ter dinheiro para a saúde; a possibilidade de mandar os filhos à escola; ter como pagar os transportes públicos; pagar as despesas da casa e fazer melhoramentos na habitação; fazer melhorias no local do negócio ou poder comprar mais produtos para vender e ter dinheiro para
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consumo próprio. É certo que estes indicadores, que mostram uma melhoria no nível de vida das mulheres, só são possíveis se houver lucro suficiente no negócio. Outra questão importante no que respeita à autonomia financeira e que tem que ser bem compreendida durante a fase das entrevistas é a de as mulheres, durante e após o processo de empréstimo, conseguirem (ou não) tornar-se auto-suficientes relativamente ao negócio. Isto quer dizer, conseguirem ter autonomia para continuar o seu negócio sem a ajuda dos empréstimos constantes, mas sim dos seus lucros. Ou, se por outro lado, isto dificilmente acontece, fazendo com que as mulheres tenham que recorrer constantemente aos empréstimos para poderem tocar os negócios em frente, evitando que assim estes vão abaixo.
Estratégia de recolha de informação
A informação inicial foi conseguida através da recolha e análise bibliográfica. A informação recolhida no decorrer do trabalho de campo foi conseguida através de entrevistas semi-estruturadas às mulheres clientes da Cooperativa de Crédito e Poupança Tchuma, análises de conteúdo das próprias entrevistas e observação não-participante, efectuada durante o período em que me encontrei a fazer as entrevistas numa das agências da Tchuma, onde passei várias manhãs, umas a entrevistar várias mulheres e outras a ter conversas informais com os gestores de clientes (quando estes lá se encontravam) e a tirar notas de tudo que se passava à minha volta, o que faziam os funcionários, o que conversavam entre si, quem entrava e saía da agência, o que as pessoas lá iam fazer, entre outras actividades. Explicarei, de seguida, como decorreu o trabalho de campo, passo a passo e com maiores detalhes.
O trabalho de campo
A realização do trabalho de campo foi feita em duas fases, na cidade de Maputo. A primeira foi de 23 de Maio a 14 de Julho de 2006 e a segunda de 8 a 21 de Fevereiro de 2007.
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Fig.1 Mercado do T3, em frente à agência do Infulene, onde trabalha a maior parte das mulheres entrevistadas
Primeira fase do trabalho de campo
Confesso que, quando cheguei a Maputo, não fazia a mínima ideia de como começar a recolher informação. O primeiro passo foi tentar encontrar uma agência onde pudesse fazer o estudo de caso, tarefa nada fácil. Não conhecia ninguém que me pudesse pôr em contacto com as instituições e sozinha também não fui a lado nenhum. Só depois de bastante tempo e de várias tentativas é que, através de um conhecido, entrei em contacto com a Tchuma. O primeiro encontro não correu muito bem, pois a senhora com quem deveria encontrar-me não me recebeu. Só depois de contactar a directora adjunta da Tchuma é que o meu trabalho realmente começou. Depois do encontro, onde expliquei em que consistia o meu trabalho e o que iria fazer na instituição, ficou combinado que iria trabalhar na agência do Infulene, por ser a mais calma, o que facilitaria o trabalho. Combinou-se também um encontro na agência, para ficar a conhecer tudo antes de começar as entrevistas. Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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Após a visita à agência, onde fiquei a conhecer as instalações, fui apresentada aos trabalhadores e tive uma pequena entrevista com o chefe sobre o seu funcionamento, em que se decidiu que o melhor seria fazer as entrevistas na própria agência, numa das salas, à medida que fossem chegando as clientes. Ficou assim decidido por ser mais fácil, uma vez que combinar encontros com as mulheres é muito difícil por causa do seu trabalho.
Análise da primeira fase do trabalho de campo
Depois de voltar a Portugal, iniciei a transcrição das entrevistas e a análise das mesmas. Foi durante esta parte do trabalho que me dei conta de que não tinha informação suficiente para continuar com o trabalho. Penso que a minha falta de experiência na altura dificultou a recolha da informação. Não soube conduzir bem as entrevistas nem tirar toda a informação que precisava. Também não fiz certo tipo de perguntas que, mais tarde, ao analisar as entrevistas, verifiquei que eram bastante importantes. A única solução era voltar a Maputo e tentar entrevistar de novo as mesmas mulheres. Falei então com a directora adjunta da Tchuma, que não se opôs de maneira nenhuma a que eu voltasse a fazer as entrevistas na agência do Infulene. Assim, depois de rever todo o projecto, ler e detectar os erros cometidos durante as primeiras entrevistas e corrigir o guião, acrescentando-lhe algumas questões, voltei para Maputo para dar continuidade ao meu trabalho de campo.
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Fig.2 Mercado do T3, no Infulene
Segunda fase do trabalho de campo
Esta fase do trabalho foi muito mais fácil para mim, visto já ter um à vontade na agência e conhecer bem as pessoas que lá trabalhavam. Depois de um pequeno encontro com a directora adjunta da Tchuma, fiquei a saber que o chefe da agência tinha mudado e que os gestores estavam também em fase de transição. Contou-me que costumam fazer uma rotação do pessoal pelas agências, de tempos a tempos. A única pessoa que ainda estava na agência era uma das gestoras que conheci na primeira fase. Fui à agência antes de começar o trabalho para combinar com uma das senhoras que lá trabalham como iam ser as entrevistas. Fiquei contente por saber que os gestores estariam muito ocupados e que ficaria mais ou menos por minha conta. Contente porque, assim, podia explorar melhor as coisas, ir ao mercado sozinha e procurar as clientes. Por um lado foi mais complicado, porque não tinha ninguém que me anunciasse. Mas por outro, algumas das senhoras já me conheciam e levaram-me a outras. Na agência, o método continuou o mesmo: faria as entrevistas à medida que fossem chegando mulheres à agência.
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O trabalho durou cerca de 10 dias, nos quais consegui fazer 14 entrevistas. Foram menos entrevistas do que as da primeira fase, mas muito melhores em termos da informação recolhida.
Análise da segunda fase do trabalho de campo
Esta foi, sem dúvida, a melhor fase do meu trabalho. Com a experiência ganha anteriormente, consegui recolher mais e melhor informação para os objectivos a que me propus no início do trabalho. Apesar de não ter tido tanto tempo como na primeira fase, consegui fazer tudo. Podia ter feito mais entrevistas, mas acho que, para o que preciso, estas entrevistas são suficientes. Percebo agora melhor como vivem estas mulheres e como é o seu trabalho, as suas preocupações e sonhos de futuro. Depois de transcrever todas as entrevistas, analisei-as, fazendo um quadro com toda a informação obtida, pergunta a pergunta.
Dificuldades encontradas durante o trabalho de campo
No início do trabalho, o mais difícil foi encontrar uma organização de micro-crédito com a qual pudesse trabalhar. Depois de várias tentativas fracassadas, consegui chegar à directora adjunta da TCHUMA através de um conhecido que me colocou em contacto com ela. Já durante o trabalho de campo, penso que o mais difícil para mim foi ganhar a confiança das mulheres a quem entrevistei. Por ser branca e jovem, aparentemente sem experiência, as mulheres desconfiam logo. Não gostam muito de falar sobre o seu negócio, sobre assuntos que envolvam dinheiro, porque as pessoas têm muito receio que façam levantamentos para lhes “roubarem” os bens. Este é, aliás, um problema que se encontra muitas vezes durante o trabalho de campo em Moçambique. O facto de ter que fazer as entrevistas com um gravador também não facilitou as coisas. Foi preciso muita conversa e explicações para as senhoras aceitarem a presença do gravador. Muitas pensavam que eu era uma jornalista e que a entrevista iria estar num jornal, para toda a gente ver. Por isso também insisti para que as entrevistas fossem anónimas. Também foi difícil falar de certos temas. Por mais perguntas que fizesse, as entrevistas nunca duraram mais que 20 minutos. Em certo tipo de perguntas, mais relacionadas com o marido da entrevistada, elas não se estendiam muito, sorriam mas não falavam. Tive que ser eu a puxar por
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elas, a fazer mais perguntas indirectas, para assim chegar ao meu objectivo. Também tive que fazer um esforço para que disessem mais que um “sim” ou “não”. O problema da língua também se fez sentir em algumas entrevistas. Apesar de a maior parte das entrevistadas falar português, por vezes não entendiam o que eu dizia e tinha que repetir várias vezes. O contrário também aconteceu, ou seja, também eu não percebi várias das palavras que as senhoras disseram. Nada de muito relevante, apenas algumas expressões sem muita importância ou nomes de lugares. Somente uma vez aconteceu de eu não poder levar adiante a entrevista por a senhora não falar quase nada de português. Como não encontrei ninguém que me ajudasse com a tradução, tive que desistir de entrevistar a senhora. O local das entrevistas também não foi o ideal. As entrevistas feitas na agência, durante a primeira fase, foram realizadas na sala de reuniões, que não estava sempre vazia. Ora, foi um pouco complicado entrevistar as senhoras com os gestores sempre de volta, a entrar e a sair e a falar entre si, sem qualquer cuidado para com a entrevista que estava a ser feita. Durante a segunda fase as entrevistas foram feitas na copa da agência, um local bem mais calmo, mas que de vez em quando era perturbado pela passagem de alguém, ou para a casa-de-banho ou para buscar algo na copa. Já no mercado, apesar de ter sido bom poder ver onde as senhoras trabalhavam e como era o local, as entrevistas também foram constantemente interrompidas ou por pessoas a passar ou por clientes que perguntavam algo. Não foi nada que perturbasse gravemente o desenvolver das entrevistas, mas muitas vezes quebrou o ritmo e alguns temas que estavam a ser desenvolvidos foram interrompidos e jã não foi possível voltar a eles. Na segunda fase, uma das coisas que muito me desagradou, principalmente ao transcrever as entrevistas, foi o barulho ensurdecedor vindo de uma barraca ao lado da agência, que todos os dias nos inundava de música. Por último, a questão da distância. Apesar de ter tido sempre quem me levasse e trouxesse do bairro do Infulene, onde se encontra a agência, a verdade é que este fica a cerca de 30 minutos de Maputo. Para poder estar na agência todos os dias bem cedo, tinha que acordar mais cedo ainda e enfrentar uma viagem que, muitas vezes, era atrasada pelo trânsito infernal que se verifica a essa hora do dia.
Caracterização da Tchuma, Cooperativa de Crédito e Poupança
Os principais fundadores da TCHUMA são a Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade (FDC) e a Sociedade de Controlo e Gestão das participações Financeiras (SCI), cada um detendo 49,9% do capital social. Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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O seu surgimento A Tchuma foi iniciativa do então presidente do BCI25, Magid Osman. Ao mesmo tempo em que criava o banco, queria estabelecer uma outra instituição para as camadas menos favorecidas. Para tal, juntou-se à FDC. Assim, os accionistas fundadores da Tchuma são a SCI, que é a holding e também accionista do BCI e a FDC. No início, a Tchuma era um projecto pequeno, sem muita viabilidade e sem existência legal. Quem abria as contas bancárias era a SCI e estas ficavam em nome dos principais directores. Tornou-se assim, uma cooperativa, pois na altura era umas das únicas opções. Não foi a opção ideal para a Tchuma o facto desta ter começado como uma cooperativa, pois cada cliente tem que ser atendido como um membro, o que se traduz em mais burocracias para as pessoas e também pelo facto de cada accionista ter um voto, seja ele um banco de fora que investiu uma grande soma ou um cliente que benificiou de um crédito há 5 anos e já não precisa dele. Assim, em termos de investimentos, isso não funciona, facto pelo qual está a pensar-se mudar a situação, fazendo da Tchuma um banco. O mais difícil em termos de origem da Tchuma é o facto de não ter uma organização por trás, que garanta o seu funcionamento. Se, por um lado, torna-se complicado depender de um financiamento, que nem sempre vem na altura certa ou da maneira desejada, por outro dá uma independência que as outras organizações não têm. Missão da Tchuma
A sua missão é a de, através dos serviços financeiros prestados à população menos favorecida lutar, com ela, pela cada vez maior dignidade humana e valorização social e pela melhoria das condições de vida das suas famílias, o que resultará na melhoria da vida social do país em geral. Objectivos da Tchuma
De maneira geral, a Tchuma tem como objectivos oferecer serviços microfinanceiros e outras actividades bancárias permitidas por legislação em vigor no país. Especificamente, os objectivos são:
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a concessão de micro-créditos aos empresários moçambicanos emergentes, em particular as mulheres;
Hoje BCI Fomento Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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a mobilização de poupanças dos seus sócios e a sua orientação para a promoção do empresariado nacional; a mobilização de apoio externo, em particular de instituições bilaterais e multilaterais interessadas no desenvolvimento do sector privado nacional; o apoio ao desenvolvimento de projectos de pequena e média dimensão realizados por organizações a nível da base; a concessão de empréstimos e outras operações activas de crédito a curto, médio e longo prazo que sejam permitidas por lei.
De forma estratégica, a Tchuma pretende ser a melhor instituição microfinanceira do país através do desenvolvimento de uma relação de parceria com os seus clientes, serviços qualitativamente aprovados e uma maior abrangência à escala macional. Organização interna e gestão
A Tchuma tem uma estrutura orgânica formada por: Assembleia Geral Conselho de Administração Comissão Executiva Conselho Fiscal
A sua gestão diária é assegurada por uma equipa de directores e gestores seniores, dirigida por um administrador delegado, que ocupa também funções de director executivo. Funcionários
Trabalham na Tchuma cerca de 103 funcionários, dos quais cerca de 70 é pessoal técnico e o restante administrativo. Mais de 50% são mulheres. Não sendo relevante descrever aqui as funções de todos os funcionários, falarei somente dos gestores de clientes. Estes têm como função principal gerir os clientes, ou seja, cada gestor tem uma carteira de clientes, normalmente distribuída por zonas, da qual tem que fazer a gestão. O seu trabalho consiste em fazer o acompanhamento do negócio do cliente, fazer visitas regulares ao local de trabalho, fazer a promoção dos serviços da Tchuma, controlar as datas de pagamento dos empréstimos e assegurar que estes são pagos em dia. Possuem relatórios bastante detalhados sobre cada cliente, qual a sua situação exacta. Estão a maior parte do tempo fora da agência, a visitar clientes, fazer avaliações ou a promover a cooperativa. Aconselham, aos clientes que têm crédito, a abrir também uma conta poupança, para facilitar o pagamento das prestações. Têm, normalmente, uma relação de confiança e proximidade com cada cliente, o que facilita a resolução de qualquer tipo de problemas que estes possam vir a ter. Este facto confirma-se pois, sempre que um gestor está doente e tem que ser substituído por um Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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polivalente, os clientes preferem esperar que este volte ao trabalho a serem atendidos por uma pessoa “estranha”, que não conhecem e em quem não confiam. Produtos oferecidos
A Tchuma possui os seguintes produtos: Créditos a) Para actividades económicas São créditos de valores que variam entre 500,0026 e 60,000.00 MT, que são oferecidos a pessoam que já desenvolvem um negócio com uma experiência mínima de 6 meses. O prazo do empréstimo varia entre 1 e 12 meses. A taxa de juro, única, é de 5% por mês. As prestações são mensais. Existem duas modalidades de empréstimos, os empréstimos em grupos solidários (não exigem garantias reais) e os empréstimos individuais (exigem garantias constituídas por bens domésticos). b) Para o consumo Este produto, destinado aos empregados do Estado, em particular professores e funcionários da Educação, oferece um valor máximo de 100.000,00 MTS em prazos que vão até 24 meses e taxas de juro que variam entre os 3 e os 3,5%.
Poupanças
É um produto recente na instituição. A Tchuma oferece uma conta de depósito à ordem. Clientes e agências
Tendo começado com uma só agência, em Agosto de 2005 a Tchuma tinha já cerca de 13,403 clientes repartidos por 6 agências na cidade de Maputo, Matola (província de Maputo) e Xai-Xai (província de Gaza) e 3 satélites, 1 em Marracuene (servindo também a Manhiça, ambas na província de Maputo) e 1 em Boane (província de Maputo). Contando com cerca de 842 clientes no seu início, em 2005 possuia cerca de 8,930 clientes de negócio e consumo e cerca de 4,473 de poupanças. Tem-se verificado, assim, uma evolução positiva da actividade e dos resultados que vão sendo alcançados pela Tchuma. Não existe ainda uma ligação on-line entre as agências, mas todas elas comunicam entre si. No fim de cada dia de trabalho, cada agência faz o fecho do dia e envia tudo por e-mail ao centro, 26
R$1,00 equivale a cerca de 12,56 MT (meticais) Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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onde os dados são validados, voltando depois a serem enviados para as agências, para serem reintegrados. Dependendo da utilidade, existem relatórios diários, semanais ou mensais. Existe um relatório diário que é enviado para todas as agências. Em relação aos gestores, estes têm relatórios mais detalhados sobre a situação de cada cliente. No início do mês têm acesso a uma lista sobre o programa de pagamentos dos clientes, em que dia estes devem efectuar os seus pagamentos. O seu trabalho é assim feito com base nessa lista, programam visitas para lembrar aos clientes dos prazos ou então para saberem se estes estão interessados em renovar. Perfil dos clientes
Não existe um perfil ideal de cliente, mas sim exigências que se fazem para uma pessoa se poder tornar sócia. Para ter um crédito na Tchuma, uma pessoa tem que ter já um negócio montado há pelo menos 6 meses, pois é preciso ter o que avaliar para se saber quanto dinheiro a Tchuma está disposta a conceder. O facto de ter já um negócio montado está bastante ligado também com a experiência que a pessoa possa ter, pois é preciso saber se a pessoa está capaz de fazer a gestão do seu próprio dinheiro antes de se lhe conceder o dinheiro para ela gerir. Como não há maneira de se saber ao certo quanto tempo tem um negócio, muitas vezes os gestores, aquando da avaliação, fazem perguntas aos vizinhos do futuro cliente, tentando saber se eles conhecem a pessoa e que tipo de negócio esta faz, onde vende e há quanto tempo, etc. Por isso também a maior parte dos gestores prefere um cliente que tenha sido recomendado por outro cliente, de preferência um bom cliente. Isto porque um bom cliente nunca vai recomendar uma má pessoa, com medo de manchar a sua reputação. E um bom cliente é uma pessoa que paga e investe bem, que fica mais tempo na instituição e que sobe o seu valor. É também alguém que já deu dicas de como se comportar perante a instituição à pessoa que quer entrar na Tchuma. Tudo isto se baseia muito na confiança que as pessoas têm umas nas outras. Os gestores preferem também pessoas que tenham um negócio fixo e não ambulante, não porque estes apresentem um maior risco, mas porque é mais fácil trabalhar com um negócio que tenha um local. O tipo de negócio que cada cliente tem também não é relevante. O mais importante é a capacidade das pessoas para gerir o seu negócio, seja ele criar frangos ou vender roupa no mercado. A idade média dos clientes da Tchuma, que anda à volta dos 45 anos, é mais elevada do que a maioria das outras instituições porque não existe um limite de idade para se ser cliente.
Prazos – Cumprimento e punições Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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Nos procedimentos da Tchuma, cada agente estipula o que um gestor deve fazer quando o cliente não efectua o pagamento. A frequência e o tipo das visitas que deve fazer ao cliente, quem deve executar os bens, etc. Quando o cliente atinge os 30 dias de atraso, a Tchuma tem que apresentar o caso à Comissão de Crédito, que se reúne uma vez por semana. Se se consegue provar que já foi feito tudo, que já se tentou de todas as maneiras fazer com que o cliente pagasse a sua dívida e este não colaborou e que não tem meios de pagar, então é provável que a Comissão aprove a execução dos bens. O que normalmente acontece é que, mesmo existindo já uma autorização para a execução dos bens, o cliente acaba por pagar a dívida antes da Tchuma chegar a sua casa. Isto porque existe um camião, utilizado nas execuções dos bens, que circula pelas agências, ficando uma semana em cada uma. Ora, se existe uma autorização em mãos, mas o camião não se encontra na posse da agência, há ainda uma oportunidade para se conversar com o cliente e tentar que este pague. Então, o que acontece é que, em mais de 50% dos casos, ou o cliente paga antes de o camião chegar a sua casa ou, e isto é sempre muito aborrecido para a agência, quando o camião chega a casa do cliente para fazer a execução, este tira o dinheiro do bolso para pagar. Os outros 50% são divididos entre clientes em que se consegue confiscar os bens, vender e liquidar a dívida. Há ainda outros 25% de casos em que não se consegue executar as garantias, ou porque nunca existiram, porque as pessoas pedem emprestado na altura de conferir, ou porque venderam, esconderam, ou não deixam as pessoas entrar, não há ninguém em casa, porque não se pode confiscar os bens, não se pode entrar forçosamente em casa, tem que ser pacífico. O que a Tchuma tenta fazer para evitar esta situação é, na altura da vistoria, ter a assinatura de todos os membros da família, para confirmar que os bens podem ser oferecidos como garantias, que a pessoa que os está a oferecer tem direito sobre eles, que a família está toda de acordo. E tentase fazer entender à família toda que estes bens serão confiscados se assim for preciso, para depois não poderem dizer que não tinham sido informados. O negócio da Tchuma não é a cobrança e venda de bens, mas sim financiar negócios com valores e prazos que os clientes sejam capazes de reembolsar. A maior parte das vezes, os bens que são apresentados como garantias são simbólicos, pois não é possível vendê-los pelo valor que lhes foi atribuído. Por isso é que, na altura da avaliação, os gestores não olham só para o rendimento do negócio. Olham também para a situação económica da família, para tentar chegar a um valor excedente da unidade familiar. Verificam quanto é que a família gasta em alimentação, renda, telefone, energia, etc, para saber quanto sobra para pagar a prestação. Utilizam esse valor como base e ajustam-no para chegar a um valor que é uma percentagem razoável que não sobrecarregue as pessoas. Isto porque à medida que as pessoas renovam os contratos, pagam melhor e mostram Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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capacidades de pagar, vontade de pagar, os rácios da Tchuma ficam cada vez mais flexíveis e, em termos de garantias, não se exige tanto.
Perspectivas para o futuro
Existem já diversas ideias em desenvolvimento em relação ao futuro da Tchuma. No novo pacote informático que vai ser instalado, foi incluido todo o software para ATM’s27, no pressuposto de que, num futuro muito breve, se possa introduzir essa possibilidade. O novo pacote inclui também novos produtos de depósito e de crédito de consumo, que foi testado com o sector da educação, pois a Tchuma trabalha com escolas. Pensam que se poderá expandir este serviço para outros sectores do governo, pois este é muito estável, ou seja, as pessoas, uma vez admitidas no quadro do Estado, não são facilmente demitidas. A instituição está também num processo de fazer uma agência no Xai-Xai28, com outros produtos, e pretende abrir em mais duas províncias nos próximos dois ou três anos. Pretendem também instituir um produto nas zonas rurais, para a agricultura.
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Automatic Transfering Machine ou o que normalmente se chama caixa electrónica Informação referente a meados de 2005 Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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Agência do Infulene – caracterização e funcionamento
Fig.3 Fachada da agência do Infulene
Tendo aberto em finais de 2004, a agência do Infulene situa-se ao lado da terminal dos chapas29 e em frente a um mercado informal, num bairro chamado T3. As instalações são pequenas. Tem um balcão de atendimento geral e informações, outro de entrega de talões e cobrança e um de depósitos e levantamentos. Possui um número reduzido de pessoal para o que é normal, mas visto ser uma agência pequena, não se justifica ter mais gente a trabalhar. Tem, portanto, sete pessoas ao serviço: o chefe da agência, uma pessoa na caixa, uma tesoureira, uma operadora, que substitui o chefe da agência quando este não se encontra e dá conta da parte informática, das fichas, contratos e relatórios, dois gestores de clientes, que fazem o trabalho de campo, são analistas de crédito, promovem a agência, avaliam e visitam os clientes, com ensino médio e formação para o cargo e, finalmente, uma servente. A agência é composta por um balcão de atendimento logo à entrada, com algumas cadeiras para as pessoas que estão à espera de serem atendidas, uma sala de reuniões, uma sala para o chefe, uma cantina e um pátio exterior onde se encontra a casa-de-banho. 29
Designação popular para transportes semicoletivos de passageiros. Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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O horário de atendimento ao público é das 8h00 às 15h00, sem pausa para almoço. Porém, a agência abre às 7h30 e fecha às 17h30. Todos os dados da agência são remetidos diariamente à sede, que lhes fornece um relatório diário. Existe também um relatório mensal. Os clientes desta agência pertencem ao Posto Administrativo do Infulene, mas a acção não se sente da mesma maneira em todos os bairros. A actividade principal da maior parte dos clientes é o comércio (de alimentos, bebidas, roupas, criação e venda de frangos, etc), existindo também alguns carpinteiros e modistas. No total, existem 408 clientes, dos quais 269 são mulheres e 139 são homens. As principais actividades da agência são a venda dos produtos, o crédito30 e a poupança31, através de reuniões, palestras nos mercados e bairros ou visitas indidualizadas, pessoa a pessoa, nos mercados, onde estas se encontram a trabalhar. Também nesta agência se podem efectuar depósitos, levantamentos, pagamentos (de prestações32) e obter informações diversas. Não sendo na agência que se dá o dinheiro do empréstimo, emite-se um cheque a ser levantado no banco. Relativamente ao serviço de crédito, enquanto que o individual exige garantias, o grupal não. Este pode ser formado por vizinhos ou amigos, pessoas com laços afectivos, cada um com o seu negócio. Exige uma grande solidariedade do grupo, pois quando um membro se encontra em dificuldades, os outros têm que ajudá-lo. Pode ir de 4 a 6 elementos. Relativamente aos empréstimos, no crédito individual o primeiro vai de 1.000,00MT e não pode ser superior a 6.000,00MT, variando consoante a avaliação dos agentes e as garantias que o cliente possui. A taxa de juro é de 5% ao mês e o empréstimo deve ser pago num máximo de 6 meses. A maior parte dos clientes paga, porém, numa média de 2 meses. Os empréstimos seguintes vão subindo, variando entre 8.000,00MT a 10.000,00MT. Já no crédito grupal, o empréstimo pode ir até 2.000,00MT por cada elemento, não podendo cada elemento ultrapassar os 6.000,00MT. A maior parte dos clientes renova os empréstimos, existindo clientes que vão já no seu décimo empréstimo. Existem muito poucas desistências, a tendência é o crescimento no número de contas. Quando existe um mau desempenho por parte dos clientes (ou porque o negócio não corre bem ou porque este estava desempregado e entretanto arranjou um emprego), estes páram o negócio por iniciativa própria. Quando os clientes ultrapassam bastante o prazo do pagamento do empréstimo, a TCHUMA executa os bens que serviam como garantia. Esta acção é, porém, muito rara, uma vez que se consegue quase sempre conversar com os clientes e arranjar maneira de estes pagarem as suas dívidas. Nem todos os clientes da TCHUMA têm conta poupança, assim como nem todos os que têm uma conta poupança são clientes de crédito. Existe, porém, um grande incentivo à poupança.
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Individual ou grupal Este serviço é relativamente novo, tendo cerca de 2 ou 3 anos 32 Por transferência (através da sua conta poupança) ou paga-se no banco e traz-se o recibo 31
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Existe uma relação igual de pessoas que visitam a agência por vontade própria, que ouvem falar através de outros clientes ou através da promoção que os agentes de clientes fazem. Para se tornar cliente da TCHUMA, tem que se ser abonado por dois sócios activos, com o pagamento em dia, ter um negócio há pelo menos 6 meses33, ter mais de 21 anos de idade, possuir garantias (bens)34, ter a documentação em dia e tornar-se sócio da TCHUMA35, pagando a jóia (não devolvível) e um depósito mínimo, correspondente a duas acções na Cooperativa (devolvível se quiser sair da Cooperativa).
Referências
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33
Sujeito a avaliação. Electrodomésticos, mobílias, etc. 35 A admissão como sócio não garante que a TCHUMA concederá o empréstimo. 34
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Amor só de mãe: drama e estigma de mães de adolescentes privados de liberdade (Parte I) Simone de Oliveira Mestre (Mestranda Antropologia UFMG)
Resumo: AMOR SÓ DE MÃE: Drama e estigma de mães de adolescentes privados de liberdade é um estudo etnográfico36 através de uma descrição sócio – antropológica sobre a realidade dessas mulheres/mães. O estudo é fruto de uma pesquisa monográfica que foi realizada em 2012 e 2013 com mães de adolescentes internos na Unidade Socioeducativa de Internação Masculina Sentenciados I/UIMS, localizada em Porto Velho – RO. Com objetivo geral de evidenciar as consequências sociais provocadas pelo vínculo entre a mãe e o filho adolescente privado de liberdade, e os seguintes objetivos específicos: 1) Investigar a recepção e o atendimento das genitoras dos adolescentes em internos na UIMS-I, identificar os marcadores simbólicos dessa situação; 2) Fornecer para sociedade em geral, um estudo compreensivo da realidade de buscando dessas mulheres, a partir da perspectiva de direitos e 3) Identificar e demonstrar as expectativas e angústias dessas mulheres e mães, e as dimensões sociais do fato de ser mãe de um adolescente em conflito com a lei. Introdução O presente estudo foi guiado através da seguinte pergunta: “Por que recai sobre a figura feminina a responsabilidade de acompanhar o filho adolescente durante a execução da medida Socioeducativa?”. E para encontrar a resposta para essa questão, diante do contexto onde as perspectivas sobre maternidade assim como sobre adolescente em conflito com a lei são tão complexas e diversificadas, foi necessário estabelecer uma fronteira acerca das limitações da pesquisa. Neste caso, essa pesquisa delimita-se em explicar/descrever a experiência das mães ao ter um filho adolescente privado de liberdade, que cumprem medida Socioeducativa na I/UIMS-I. Para alcançar os objetivos da pesquisa e chegar a (s) resposta (s) da pergunta chave, foi necessário seguir um percurso metodológico, que permitiu minha vivência de campo e funcionou simultaneamente como o rito de passagem da condição de estudante para pesquisadora, tornando a experiência de campo o exercício prático da pesquisa social que auxilia na produção de um artesanato intelectual. No percurso metodológico, priorizamos a observação participante, bem como buscando
uma abordagem qualitativa e quantitativa (mista), usando as técnicas de coleta de dados, como diário de campo, registro fotográfico, levantamento de dados junto aos registros da unidade e entrevistas. 36
No método etnográfico é possível o(a) pesquisador(a) expressar sua subjetividade, permitindo, portanto o uso da primeira pessoa no texto.
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O presente trabalho será publicado em três partes nesta revista, dividida da seguinte forma: Primeira Parte – Da “VIDA LOKA” ao “AMOR SÓ DE MÃE”; Segunda Parte – UNIDADE, ADOLESCENTE E SUAS MÃES: Contextualizando o cenário de pesquisa; Terceira Parte - DRAMA E ESTIGMA das mães de adolescentes privados de liberdade. Na sequência deste texto, apresento a primeira parte que contém um diálogo com as concepções culturais, históricas e sociais da maternidade, buscando mostrar o sentido presente por trás do “amor só de mãe”, bem como o conceito de sujeitos desviantes e medidas socioeducativas no contexto da construção do adolescente enquanto vidaloka37. Na segunda parte, que será publicada na próxima edição da revista, contextualização do cenário da pesquisa, através do olhar para a unidade, adolescentes e suas mães, o atendimento socioeducativo e unidade, onde trago para reflexão os conceitos de panóptico e de disciplinas de Michel Foucault (2009) e de instituições totais de Goffman (1974). Apresento ainda os aspectos que marcam o cotidiano dos adolescentes internos, e a importância atribuída por eles às suas mães e aos dias de visita durante o cumprimento das medidas socioeducativas. A terceira parte Drama e Estigma das mães de adolescentes privados de liberdade descrevo os estigmas e dramas sociais envolvendo mãe e filho, através do desempenho dos adolescentes e dedicação de suas mães durante os eventos de visitas na unidade. E concluo o último capítulo tecendo considerações acerca dos processos visualizados durante a realização da pesquisa e chamando atenção para necessidade de olharmos os adolescentes privados de liberdade em conexão com suas famílias. Finalizo essa apresentação, ressaltantando que buscas realizadas durante os anos de 2010 a 2013 nos sites da SCIELO (Scientific Electronic Library Online), Google Acadêmico (scholar.google.com.br) e nos periódicos da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) não encontrei nenhuma trabalho acadêmico no Brasil que pesquise mães de adolescentes privados de liberdade, indicando que o presente estudo trata-se de uma pesquisa inédita, sendo assim uma contribuição original no campo de pesquisa das ciências sociais.
2. DA “VIDA LOKA” AO AMOR SÓ DE MÃE: UM ESTUDO DE MÃES DE ADOLESCENTES PRIVADOS DE LIBERDADE
O termo “vidaloka” é sinônimo de agitação, adrenalina, perigo, liberdade e até libertinagem. Ser um vidaloka é ser um indivíduo que não possui medos e restrições ou leis, sem limite entre o certo e o errado. 37
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A frase “Amor só de mãe” entra no título deste estudo por expressar o sentimento do filho pela mãe, no caso desta pesquisa o filho que se encontra privado de liberdade, e a genitora que o acompanha em todo o processo de execução da medida socioeducativa. E também pelo fato da frase traduzir com eficácia a permanência e mutação do mito do amor materno38 na contemporaneidade, ao lado do discurso da mulher moderna. O estudo trata especificamente do drama e do estigma de mães de adolescentes privados de liberdade, assim, seria impossível não abordar alguns aspectos e discussões em torno da maternidade e das questões de gênero. Sendo que ambas fornecem informações pertinentes em relação ao papel e função da mãe em nossa sociedade. A frase consagrada da filósofa feminista Simone de Beauvoir (1967, p. 09): “Ninguém Nasce Mulher: torna-se mulher”, se adapta muito bem na seguinte colocação sobre o processo da maternidade: “Nenhuma mulher nasce mãe, torna-se mãe”, ou seja, a aprendizagem do papel de mãe ocorre através dos moldes da cultura imposta, derivadas da nossa sociedade patriarcal, machista e capitalista. Para nortear o entendimento em torno da maternidade e seus diversos aspectos, farei a seguir a análise da figura materna, do sentimento materno e da construção de relações de gênero, através das contribuições teóricas de Kitzinger (1978), Badinter (1985) e Forna (1999).
2.1 Aspectos históricos, culturais e sociais da maternidade
A maternidade é uma representação social excessivamente complexa, cuja noção é construída a partir de imagens, modelos e crenças estabelecidas da história, do social e culturalmente pela nossa sociedade, o que a torna um campo fértil para os estudos nas áreas das ciências sociais e humanas. Por tratar-se de uma manifestação tão embutida de significados diversos, devemos lançar um olhar minucioso para a diversificação deste fenômeno, uma vez que, segundo S. Kitzinger (1978), “basta-nos olhar para as diferentes manifestações do papel de mãe noutras civilizações para compreender que a Maternidade também é uma atividade multidimensional”. Atualmente, existe um consenso que define a maternidade como um estado ou qualidade de ser mãe, através da ação de pôr uma criança no mundo ou criá-la, onde se prioriza os laços efetivos entre mães e filhos. Através do discurso da naturalização da maternidade, difundidos pela cultura e que colocam como condição natural das mulheres as qualidades essenciais e certas para tornarem-se 38
Para Badinter e Forna a maternidade é configurada no inconsciente coletivo como um mito, um tema sagrado que define o amor materno como uma reação biológica para sustentar o mito da maternidade. Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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mães, como expõe Forna (1999 p. 31- 32): Em cada sociedade há uma tendência a acreditar que só existe um modo de criar filhos, que é o modo adotado naquela cultura. Os antropólogos e sociólogos, porém, demonstraram que a maternidade é uma construção social e cultural que decide não só como criar filhos, mas também quem é responsável pela criação do filho.
Quando falamos em maternidade lembramos da cena de uma mulher abraçada ou segurando uma criança, de maneira afetuosa, que ambos aparentam laços eternos de amor e ternura. Tal cena lembra ainda as telas de Mary Cassat (Mãe e filho, 1900) e Pablo Picasso (A maternidade, 1905 e Mãe e filho, 1921) - figuras 01, 02 e 03. As referidas imagens representam a maternidade no aspecto mítico, em que a figura materna é retratada a partir da perspectiva da devoção, do amor incondicional, da responsabilidade exclusiva dos cuidados e educação do filho.
Figura 01 - Mãe e Filho, 1900. Cassat.
Figura 02 - A Maternidade, 1905. Picasso Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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Figura 03 Mãe E Filho, 1921. Picasso
FONTE: sites: http://viciodapoesia.wordpress.com/tag/mary-cassatt/ http://www.allposters.com.br/-sp/Maternity-posters_i4915897_.htm
Essa ligação óbvia entre mãe e filho (mulher e criança) nas representações visuais, sociais e culturais da maternidade não são o único elemento que demonstram o quanto a maternidade é um fenômeno essencial das configurações sociais de uma sociedade. No entanto, ao aprofundarmos nossos estudos, podemos verificar que esse modelo de maternidade que habita nosso imaginário, nem sempre foi assim. A própria história da maternidade demonstra o quanto ela caminha lado a lado com a história da infância, sendo assim, a maternidade e a infância são processos sociais de dependência mútua. Elisabeth Badinter em sua obra Um Amor Conquistado (1985), afirma que o mito do amor materno faz uma retrospectiva da história da maternidade, descreve que tanto na antiguidade como Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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na idade média, até meados do século XVIII, a maternidade era encarada de maneira extremamente diferente da que vivemos hoje. Para Aminatta Forna (1999) a maternidade foi “inventada” em 1762 e a “ideia de infância era alguma coisa que simplesmente não existia” (p. 36). Buscando explicar essa desvalorização, Badinter (1985) a justifica a partir da fragilidade física da criança da época e suas poucas possibilidades de sobreviver: “como seria possível se interessar pelo pequeno ser que tinha tantas possibilidades de morrer antes de um ano?” (BADINTER, 1985, p. 85). A própria Badinter contrapõe essa afirmação ao observar que “não é porque as crianças morriam como moscas que as mães se interessavam pouco por elas. Mas é em grande parte porque elas não se interessavam que as crianças morriam em tão grande número” (BADINTER, 1985 p. 87). Além disso, o desapego dos pais era notado segundo Badinter (1985) em outras situações, como por exemplo, “em certas paróquias, como em Anjou, nenhum dos pais se dava ao trabalho de comparecer ao enterro de um filho de menos de cinco anos” (p. Idem p. 89), e "é preciso dizer que não se empenham muito em se manter informados da saúde do filho” (Idem, p. 90). No término do século XVIII algumas transformações sociais na concepção de sentimento e de felicidade junto com a valorização da arte e da sensibilidade humana, alteraram intensamente a função da mãe na sociedade e o significado do amor. Foi a “revolução do sentimento”, que teve como catalisador o movimento iluminista, escola filosófica que ressaltava o direito do homem à felicidade, o caráter verdadeiramente nobre do homem, o amor romântico, a liberdade e a natureza. Essa mudança viria tornar o amor (mais que o status ou a obrigação social) a razão principal para o casamento e para o filho ser considerado o fruto ou um dom desse amor. O amor materno surgiu de tudo isso (FORNA, 1999, p. 4).
A figura da mãe totalmente indiferente aos filhos tão presente no “passado” começa a ser vista com reprovação social, dando espaço à figura da mãe devotada, totalmente dedicada aos cuidados do filho. Essa mudança de mentalidade inventou a maternidade e criou o conceito de infância como sugere Forna (1999), além de alterar o papel social da figura feminina, de criatura maléfica para criatura delicada e meiga, como ilustra Badinter: A mulher não é mais identificada à serpente do Gênesis, ou a uma criatura astuta e diabólica que é preciso pôr na linha. Ela se transforma numa pessoa doce e sensata, de quem se espera o comedimento e indulgência. Eva cede lugar, docemente, a Maria. A curiosa, a ambiciosa, a audaciosa metamorfoseia-se numa criatura modesta e ponderada, cujas ambições não ultrapassam os limites do lar. (BADINTER, 1985 p. 176).
Essas transformações sobre a imagem da mãe no final século XVIII impulsionaram o enraizamento do ideal de mãe, em torno da dedicação, do sacrifício da exclusividade total para o filho. Essa imagem auxiliou a construção da concepção que condiciona a felicidade dos filhos como Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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responsabilidade dos pais, sobretudo da figura materna. Porém na segunda parte do século XX essa concepção é alterada e passa-se a atribuir a figura materna, além da responsabilidade pela felicidade do filho, a culpa materna, como explica Badinter: “No século XVII a confirmou, acentuando a responsabilidade da mãe, o Século XX transformou o conceito de responsabilidade materna no de culpa materna” (p.1985, p. 179). Ainda segundo, Badinter, tais transformações ocorreram graças às contribuições da teoria psicanalista: “quer se queira ou não, a psicanálise levou a pensar, durante muito tempo, que uma criança efetivamente infeliz é filho ou filha de uma mãe má mesmo, que o termo má não tenha aqui nenhuma conotação moral” (1985, p. 295) reforçando o mito do amor materno como instinto próprio da condição feminina da maternidade, sendo assim “a Maternidade é, ainda hoje, um tema sagrado… e a mãe continua, no nosso inconsciente coletivo, a ser identificada com Maria, símbolo do indefectível amor-dedicação” (BADINTER, 1985, p. 09).
2.1.2. O mito do amor materno e a culpabilização da mãe
Além da retrospectiva da história da maternidade, Badinter (1958) acrescenta aos debates sobre a maternidade a premissa do mito do amor materno, como uma das condicionantes fundamentais nas representações dos papéis sociais da mulher moderna. O mito do amor materno é sustentando pela ideia do instinto maternal em conjunto com o mito da felicidade feminina no sacrifício e da onisciência paterna, assim as palavras amor e materno “significa[m] não só a promoção do sentimento, como também a da mulher enquanto mãe. Deslocando-se insensivelmente da autoridade para o amor, o foco ideológico ilumina cada vez mais a mãe” (BADINTER, 1985, p. 145). O mito do amor materno é o próprio mito da maternidade que consagra a figura da mãe perfeita, de forma que cabe à mãe “ser completamente devotada não só aos filhos, mas a seu papel de mãe. Deve ser a mãe que compreende os filhos, que dá amor total é o que é mais importante que se entrega totalmente. devendo ser capaz de enormes sacrifícios.” (FORNA, 1999, p. 11). A concepção do mito do amor materno é construído com base no padrão exigido pela sociedade, que defini a figura materna como portadora dos atributos de delicadeza, dedicação e sacrifício em nome do filho, uma vez que a maternidade socialmente é vista como uma condição inerente às mulheres: A maternidade se tornou o que é hoje: um dos estados humanos mais naturais, e um dos mais policiados; uma responsabilidade única das mulheres; não apenas um dever, mas uma vocação altamente idealizada, cercada de emoção por todos os lados. As coisas já eram ruins o bastante para as mães vitorianas, mas e ficaram Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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piores no decorrer do século XX, quando a ciência, a psicologia, a política e a polêmica em torno dos gêneros levaram o mito da maternidade além dos limites (FORNA, 1999, p. 55).
Todavia, o mito do amor materno cede espaço para um fenômeno nomeado pelo feminismo e algumas áreas de ciências sociais de “marianismo”, compreendido como culto das mulheres ao catolicismo ligado à figura da virgem Maria (mãe de Jesus). Segundo Forna (1999), o marianismo é caracterizado por Mulheres pobres que se sacrificam e negam tudo a si mesmas, em favor dos filhos, principalmente os meninos, na esperança de que venham a retribuir seu amor e lealdade quando estiverem velhas. (FORNA, 1999, p. 18). A maternidade se torna mais que um estado biológico ou um ritual de passagem da mulher, passa a ser um estilo posicionado enquanto uma “expressão da cultural, que engloba um sistema de valores relacionados” (KITZINGER, 1978), que organiza o consenso em torno do entendimento do papel materno na sociedade. O mito do amor materno constitui um dos pilares na disseminação da cultura da culpa da mãe, como explica Forna (1999 p. 21): “A culpa ficou tão fortemente associada à maternidade que é considerada um sentimento natural. Pois não é. A culpa não é uma reação biológica regulada por hormônios. As mulheres se sentem culpadas porque as fazem se sentir assim”. As mães que não atendem aos padrões do ideal maternal impostos socialmente através da cultura são julgadas e consequentemente penalizadas socialmente com rótulos e estigmas, como diz Forna:
Paralelamente à imagem idealizada da maternidade entra em funcionamento o segundo instrumento de imposição: A culpa. A cultura da culpa da mãe, por parte de todos, inclusive da criança, está tão profundamente arraigada em nossa sociedade que o mau desempenho da mãe é visto como tributário de uma lista impressionante de problemas contemporâneos (1999, p. 21).
Para S. Kitzinger (1978, p. 05) isso é reflexo do “processo de socialização da vida na sociedade industrializada e capitalista, na qual o sucesso tem uma importância primordial e onde as realizações individuais são tudo”. Toda a culpabilização da figura materna gira em torno do suposto fracasso na criação do filho, e ocupar um espaço central na articulação de todos os problemas sociais, nos quais as mulheres não podem resolver, mesmo estando diretamente ligadas à problemática. Para Forna, o “enfraquecimento das corporações à decadência urbana e à emergência de novas forças econômicas mundiais que desorganizam as economias domésticas e os padrões de emprego” (1999 p. 24) são as explicações mais plausíveis para essa culpabilização que ocorre em torno da figura da mãe. A expressão popular “Quem pariu Mateus que Balance” é uma representação típica de como nossa sociedade atribui à mulher a responsabilização social pela criação do filho, Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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desconsiderando inclusive suas possíveis dificuldades em criar um filho, ou de sua classe social, agregando tal responsabilização a uma categoria de gênero, tanto, que as “mulheres que largam os filhos inspiram um ódio moral, que nunca é endereçado aos milhares de pais que fazem o mesmo” (FORNA, 1999, p. 17). Cabe ainda ressaltar que a maioria dos grupos de mães que são discriminadas ou julgadas como irresponsáveis pertencem às classes populares.
2.1.2. A interface de gênero e maternidade na conexão de novas estruturas familiares.
Para uma melhor compreensão entre maternidade e gênero abordados neste estudo, é fundamental o entendimento da maternidade em conexão com as novas estruturas familiares. As pesquisas acadêmicas que buscam a partir das relações de gênero, uma explicação para alguns fenômenos sociais, vêm apresentando significativo crescimento, principalmente nas Ciências Humanas. Em função disso, “há uma emergência de um campo intelectual em diferentes disciplinas das ciências humanas, definido por privilegiar os estudos sobre mulheres” (MACHADO, 1994, p. 02). A partir de alguns referenciais, observamos que existe hoje, por parte de alguns autores, uma aceitação dos estudos de gênero como instrumento de compreensão das mudanças sociais. A categoria gênero torna mais nítida a compreensão das formas e dos conteúdos que vem tomando as relações entre as gerações, de como vêm ocorrendo às mudanças e as permanências dos “papéis sexuais” na socialização de crianças e adolescentes e, o mais importante, apontando mecanismo de ruptura ou de revisão das hierarquias de gênero (MADEIRA, 1997 p. 90).
As mulheres são, em geral, instruídas para assimilarem o mundo de acordo com as categorias próprias do pensamento masculino (BOURDIEU, 2005) e para não perceberem que o social está dividido em um plano simbólico, cujas representações masculinas estão em torno de funções mais nobres e as representações femininas em torno das tarefas e funções de pouco valor. A divisão do mundo baseada no gênero mantém-se e é regulada por violências múltiplas e variadas. Séculos de patriarcalismo moldaram um processo de socialização da mulher baseado no cuidar do outro, mesmo que em detrimento de suas próprias possibilidades de realização pessoal. Essa posição traz uma questão pertinente: quando alguma coisa não está bem na família, o peso da culpa é direcionado à mãe. Dentro do contexto das relações de gêneros, devemos considerar que o conceito de gênero se situa na esfera social, diferente do conceito de sexo, privilegiando os aspectos sociais. Essa noção permite refletir sobre a forma como são socialmente construídos os papéis do homem e da mulher (SAFFIOTI, 1992, p. 183). É necessário lançar um olhar para diversas situações que delineiam as trajetórias de vidas das mulheres, em especial, aquelas que são mães e as novas configurações de Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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familiar, conforme expõe Del Priore (1994): A presença de famílias compostas por um dos membros adultos e filhos, em maior proporção mãe e filhos, vêm levando demógrafos e sociólogos a criarem termos para nomearem esse tipo de família. Assim, são chamadas de famílias quebradas ou reconstituídas. Estudos demográficos no Brasil Colônia nos mostram que as famílias chefiadas por mulheres não representam, necessariamente, uma invenção da história contemporânea.
Del Priore explica que mesmo os atuais debates sobre o fenômeno do crescimento de famílias chefiadas por mulheres, apresente-se como atual, o referido fenômeno não é tão novo assim. Inclusive alguns estudos apontam a relação maciça entre famílias chefiadas por mulheres (mães) e a pobreza, que contribui para construção de outros estigmas, entre eles os que as mulheres são menos “capazes” de cuidar dos filhos e administrar uma família sem um homem (VITALE, 2000). Essa exigência social da figura materna como a mulher devota ao filho, surge como um paradigma da sociedade capitalista na qual, predominam as relações com base no trabalho e consumo. Kitzinger (1978) e Zola (1998), afirmam que a interpretação da maternidade como tarefa exclusiva das mulheres entra em contradição com a realidade concreta de uma grande parte das mulheres. Uma vez que a distância é imensa entre o ideal de mãe (educadora, sagrada e dedicada exclusivamente) com a vida das mulheres das camadas sociais mais populares, principalmente porque essas mulheres precisam trabalhar e acabam assumindo maternidade nas condições mais precárias e difíceis. Desse cenário social, cultural e histórico mais amplo decorre a discussão das perspectivas sociais que envolvem a relação entre maternidade e a sociedade.
2.2. Contextualizando o envolvimento dos adolescentes com a criminalidade Em nossa sociedade temos a crescente tendência de classificar como desviantes os indivíduos que não se enquadram em nosso padrão cultural em torno do ideal, ou seja, não segue as regras, normas e leis sociais. Sendo que muitas vezes a noção de desviante se apresenta segundo Velho (2013. p. 41):
Carregada de conotações problemáticas que é necessário utilizá-la com muito cuidado. A ideia de desvio, de um modo ou de outro, implica a existência de um comportamento “médio” ou “ideal”, que expressaria uma harmonia com a exigência do funcionamento do sistema social.
O termo “desviante” é atribuído com frequência aos indivíduos que estão em situação de prisão, loucura ou anormalidades. Segundo Gilberto Velho essa nomeação gera um problema, pois Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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no nível do senso comum, o sujeito desviante é sempre remetido a uma perspectiva de patológica, como explica: Tradicionalmente, o indivíduo desviante tem sido encarado a partir de uma perspectiva médica preocupada em distinguir o “são” do “não são” ou do “insano”. Assim, certas pessoas apresentariam características de comportamento “anormais”, sintomas ou expressão de desequilíbrios e doença. Tratar-se-ia, então de diagnosticar o mal e tratá-lo (…) Enfim o mal estaria localizado no individuo (VELHO, 2013, p. 36).
Gilberto Velho (2013), em uma crítica ao entendimento que a origem do comportamento desviante encontra-se no individuo, aponta a desorganização de normas e valores no ambiente social como fator favorável para aparecimento de indivíduos desviantes “a falta de consenso geraria crise nas expectativas de comportamentos, impedindo o funcionamento normal da sociedade” (p.39). Assim, o problema do comportamento desviante não está originado no individuo, e sim no sistema social que gerará os comportamentos individuais desviantes. Sendo que o desviante é: Um indivíduo que não está fora de sua cultura, mas que faz uma “leitura” divergente. Ele poderá estar sozinho (um desviante secreto?) ou fazer parte de uma minoria organizada. Ele não será sempre desviante. Existem áreas de comportamento em que agirá como qualquer cidadão “normal”. Mas em outras áreas divergirá, com seu comportamento, dos valores dominantes (VELHO, 2013 p. 50).
Os comportamentos ditos como desviantes, sempre foram motivo de preocupação por parte de toda a sociedade, assim como também se apresentam como campo fecundo para/na realização de estudos das Ciências Sociais, principalmente na área da sociologia. Richard Miskolci (2005), afirma que “a Sociologia sempre buscou compreender os comportamentos socialmente desviantes”. Pensar uma sociedade sem “desviantes”, ou seja, sem crime é irrealizável, uma vez que a presença de crimes é rotineira e comum em todas as sociedades complexas. Segundo Durkheim (2010), “o crime é normal porque seria inteiramente impossível uma sociedade que se mostrasse isenta dele”. (p. 58). Dessa forma, o crime é visto como um fenômeno que afeta a todos, constituindo-se, segundo Durkheim como um fato social normal, produzido pela própria sociedade. Um dos principais pontos de tensão na leitura e interpretação das relações que permeia a maternidade e a sociedade, está no fato da mãe, no exercício da maternidade, visar proteger o filho ao mesmo tempo que precisa lidar com o fato de que o crime com os quais seus filhos se envolvem é produzido pela própria sociedade, colocando em risco seu papel de guardá-lo por meio dessa maternidade. Por ser um fato social tão presente em nossa sociedade, o envolvimento dos adolescentes no mundo do crime é um tema constante nos noticiários, jornais, programas televisivos e debates em diversos setores da sociedade. Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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2.2.1 Medidas Socioeducativas, ECA e SINASE
No Brasil, a posição do Estado frente ao envolvimento de adolescentes com a criminalidade é dividida em fases doutrinais: a Doutrina da Situação Irregular e a Doutrina da Proteção Integral. A Doutrina da Situação Irregular tem como base a código do menor, que vigorou a partir do início do século XX até meados de 1950 em que crianças e adolescentes eram colocadas no mesmo patamar de tratamento e obrigações que os adultos. Nesse tempo, havia o entendimento que as crianças e os adolescentes pobres eram criminosos, cabendo ao Estado sua tutela. Esse entendimento na época era baseado no senso comum que os mais pobres tivessem certa inclinação natural à desordem e à criminalidade, como Misse (1995, p. 04), em seu artigo “Cinco Teses Equivocadas sobre a Criminalidade Urbana no Brasil” explica: 1) se a pobreza causasse o crime, a maioria dos pobres seria criminoso e não é 2) a esmagadora maioria de presos é de pobres, pretos e desocupados porque a polícia segue um roteiro típico que associa de antemão a pobreza coma criminalidade; 3) os próprios pobres declaram nas pesquisas que não se identificam com qualquer carreira criminal.
No ano de 1988, inicia-se no Brasil a Doutrina de Proteção Integral, que tem como marco inicial a promulgação do Estatuto da Criança e do adolescente – ECA, que prevê direitos para crianças e adolescentes, considerando-as prioridades absolutas, sendo dever de todos (Estado e família) garantirem e efetivação desses direitos, conforme art.4º do ECA: É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (BRASIL, 2000, p. 20).
A Doutrina de Proteção Integral representa uma reviravolta na maneira como a sociedade enxergar o público infanto-juvenil do País. Com a aprovação do ECA (Lei nº 8069/90), foi iniciada a era dos direitos para menores de dezoito anos, tornando o ECA uma das legislações de proteção e garantia de direitos da criança e adolescente mais avançadas do mundo, que prevê inclusive medidas protetivas e socioeducativas para crianças e adolescentes envolvidos com a violência e com a criminalidade. A partir do ano de 1988, os jovens menores de 18 anos tornam-se penalmente inimputáveis, ou seja, adolescentes autores de atos infracionais, análogos crimes do código civil e
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penal, serão submetidos a cumprir medidas socioeducativas, de caráter predominante pedagógico, sendo divididas conforme art. 112 do ECA, em seis modalidades: 1) Advertência; 2) Obrigação de reparo ao dano; 3) Prestação de serviços à comunidade; 4) Liberdade assistida; 5) Inserção em regime de semiliberdade e 6) Privação de liberdade, através de internação em estabelecimento socioeducativo. A medida socioeducativa de privação de liberdade deve ser cumprida pelo adolescente em estabelecimento educacional (socioeducativo) e próprio para esse fim, sendo garantido ao adolescente na aplicação da medida os princípios da brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar do adolescente como pessoa em desenvolvimento, conforme Art. 121 do ECA. Nos anos seguintes da aprovação do ECA, os movimentos de defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes especialmente os militantes que atuam em defesa da humanização das medidas socioeducativas, observando que a nova mentalidade proposta no ECA diante da problemática do envolvimento dos adolescentes com ato infracional e a necessidade de políticas públicas que efetivem a garantia de direitos de adolescentes em conflito com a lei, reuniram-se para construir o SINASE: Em fevereiro de 2004 a Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH), por meio da Subsecretaria Especial de Promoção dos Direitos da criança e do Adolescente (SPDCA), em conjunto com o Conanda e com o apoio do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), sistematizaram e organizaram a proposta do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE. Em novembro do mesmo ano promoveram um amplo diálogo nacional com aproximadamente 160 atores do SGD39, que durante três dias discutiram, aprofundaram e contribuíram de forma imperativa na construção deste documento (SINASE), que se constituirá como um guia na implementação das medidas socioeducativas. A implementação do SINASE objetiva primordialmente o desenvolvimento de uma ação socioeducativas sustentada nos princípios dos direitos (SINASE 2006, p. 15)
A proposta considera que o ECA não esgota a necessidade de estabelecer parâmetros para gestão das medidas socioeducativas nos estados, uma vez que a diretriz regente do atendimento socioeducativo requer um leque de políticas de atendimento específicas e transversais. Deste modo nasce o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE, que é: O conjunto ordenado de princípios, regras e critérios, de caráter jurídico, político, pedagógico, financeiro e administrativo, que envolve desde o processo de apuração de ato infracional até a execução de medidas socioeducativas. Este sistema nacional inclui os sistemas estaduais, distritais e municipais, bem como todas as políticas, planos e programas específicos de atenção a esse público (SINASE 2006, p. 23).
O SINASE visa estabelecer parâmetros pedagógicos, organizacionais e arquitetônicos que 39
Sistema de Garantia de Direitos Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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orientarão os procedimentos das medidas socioeducativos no Estado de forma justa e humana. Recentemente, os princípios e pressupostos do SINASE se tornaram obrigatórios, através da aprovação da lei Nº.12.594 que institui o Sistema Nacional de Execução das Medidas socioeducativas, sancionada pela Presidenta da República, Dilma Rousseff, no dia 18 de Janeiro de 2012.
2.2.2. Uma breve contextualização das medidas socioeducativas em Rondônia
Em Rondônia, as medidas Socioeducativa passam a ser executadas seis anos depois da aprovação do ECA, em 1994, pela Secretaria de Justiça e Cidadania – SEJUCI, através do Decreto n. 6400. No ano de 2000, o Estado passa a ter o entendimento das medidas Socioeducativas como uma política de atendimento social, passando a responsabilidade de execução dessas medidas para a atribuição institucional da Fundação de Assistência Social – FASER. No ano de 2007, a referida Fundação foi extinta do quadro estrutural do governo do estado, e a função de executar as medidas socioeducativas ficaram a cargo da Coordenadoria de Atendimento ao Adolescente em Conflito com a Lei – CAA. O referido órgão é subordinado à Secretaria Estadual de Justiça que, por sua vez, tem como dever de administrar o sistema penitenciário e socioeducativo, conforme Lei Completa N. 412 de 28 de dezembro de 2007. O histórico do atendimento Socioeducativo no Brasil, assim como em Rondônia é bem recente, como evidenciado acima. O estado de Rondônia demonstra certa instabilidade na gestão das medidas socioeducativas, uma vez que gerenciamento das mesmas já passaram por diversas instituições estaduais e algumas pesquisas e informações colocam o estado em uma posição preocupante sobre a situação dos adolescentes em conflito coma lei, como podemos perceber a seguir. O 4º Relatório Nacional sobre os Direitos Humanos no Brasil, realizado pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) aponta um crescimento, entre 2004 e 2006, no número de adolescentes (entre 12 e 17 anos) cumprindo medida de internação, a região Norte teve a maior alta de jovens infratores internados (70%). Rondônia aparece com crescimento de 750% de adolescentes em conflito com a lei, com um número absoluto de crescimento de 30 para 233 jovens. Porto Velho ocupa a 18ª posição entre os 43 municípios, nos quais a taxa de adolescentes em situação de vulnerabilidade é considerada alta, conforme uma pesquisa encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que pesquisou mais de 266 municípios com mais de 100 mil habitantes em 2008. Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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Dados levantados in loco na Coordenadoria de Atendimento ao Adolescente em Conflito com a Lei/CAA revelam que, entre os anos de 2008 a 2009, o número de adolescentes que cumpriram medidas socioeducativas de internação, chegou a 1.372 enquanto o número de saída foi de 1.079, sendo que deste total 339 adolescentes eram reincidentes, conforme gráfico I e II.
Figura 4. Gráfico I: Quantitativo de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação em Rondônia - 2008.
Figura 05 - Gráfico II: Quantitativo de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação em Rondônia – 2009.
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FONTE: Coordenadoria de Atendimento ao Adolescente em Conflito com a Lei- CAA gráficos elaborados pela autora.
No tocante à infraestrutura das unidades socioeducativas de Porto Velho, algumas pesquisas revelam um cenário precário, e que nem sempre os direitos dos adolescentes e dos servidores são garantidos como previstos por lei. O que compromete os atendimentos oferecidos aos adolescentes, eliminando as possibilidades do jovem seguir outro caminho que não seja o da criminalidade, veja a colocação acerca de um estudo realizado na Unidade Feminina de Internação de Porto Velho: As disparidades entre o legalmente instituído pela legislação de garantia de direitos da criança e do adolescente não foi a única revelação da pesquisa de campo, também podemos constatar o quanto o tratamento socioeducativo oferecido a essas adolescentes, é semelhante ao tratamento penitenciário, apresentando o sistema socioeducativo como uma versão “teen” do sistema carcerário. (MESTRE. 2013, p. 08 e 09)
Diante desse cenário, destaca-se a importância dos gestores das medidas socioeducativas, em especial do Estado de Rondônia em se adequar urgentemente aos princípios e regras estabelecidas através do ECA, SINASE e Regras Mínimas das Nações Unidas Para a Administração Da Justiça, da Infância e da Juventude, Conhecidas como Regras de Beijing. 2.2.3. Adolescentes em conflito: entendendo o sentido da “vidaloka”.
A adolescência é caracterizada como o período de transição entre infância e a idade adulta, Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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de origem latina, origina-se adolescência que significa passagem entre criança e adulto. Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA são considerados adolescentes os indivíduos com idade entre 12 a 18 anos, no entanto, o estatuto da Juventude, nomeia como jovens os indivíduos entre 16 a 29 anos. A fase da adolescência é considerada “difícil”, por se tratar de um período que ocorrem muitas mudanças pessoais, sociais, culturais, físicas e hormonais. Essas alterações causam impactos nos sentidos, modos e manifestação em torno dos adolescentes e das pessoas que estão em seu entorno social. A adolescência não é só o conjunto das vidas dos adolescentes. É também uma imagem ou uma série de imagens que muito pesa sobre a vida dos adolescentes. Eles transgridem para serem reconhecidos, e os adultos, para reconhecê-los, constroem visões da adolescência (CALLIGARIS, 2000, p. 35).
Tanto a adolescência como a juventude são representações sociais, construídas na/pela sociedade, uma vez que “as representações sociais – enquanto sistemas de interpretação que regem nossa relação com o mundo e com os outros – orientam e organizam condutas e as comunicações sociais” (JODELET. 2001 p. 22). Nesse aspecto como já destacamos, a história da maternidade caminha lado a lado com a história da infância, representando, assim, as configurações sociais de dada sociedade em determinado contexto histórico, conforme já evidenciado no início deste capítulo. A adolescência e juventude40 tornaram-se um fenômeno social central no foco da organização da sociedade moderna e contemporânea, seja como público-alvo do sistema capitalista (consumismo, mão de obra, publicidade etc.), seja como problema social (violência, baixa escolaridade, desemprego, criminalidade, gravidez etc.). Podemos verificar, por exemplo, que no contexto que vários setores da sociedade atuam na defesa fervorosa da redução da maioridade penal, sob os pilares da falsa ilusão de impunidade dos adolescentes infratores no Brasil. Esses discursos não levam em conta que esse público, “principalmente os rapazes, são também vítimas frequentes da criminalidade urbana. Estão entre os que mais morrem e sofrem violência urbana”41 (ZALUAR, 1997). Algumas estatísticas mostram que o Brasil possui 25 milhões de adolescentes na faixa etária entre 12 a 18 anos, o que representa aproximadamente 15%(quinze por cento) da população
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De acordo com a Lei Nº 12.852, de 05 de agosto de 2013, que Institui o Estatuto da Juventude e dispõe sobre os direitos dos jovens, os princípios e diretrizes das políticas públicas de juventude e o Sistema Nacional de Juventude – SINAJUVE. São consideradas jovens as pessoas com idade entre 15 (quinze) e 29 (vinte e nove) anos de idade. 41 Alba Zaluar, Antropóloga brasileira, pesquisadora das áreas: antropologia urbana e antropologia da violência desenvolve em sua obra A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado da pobreza e demonstra aspectos determinantes da violência urbana. cf. ZALUAR, Alba. A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado da pobreza. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2000, pp.07-38. Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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do País42. Desses jovens cerca de 39.578 estão cumprindo alguma medida socioeducativa43. O país tem a terceira maior população carcerária do mundo, com um total de 496 mil (2011) presos, sendo que 59% são formados por jovens entre 18 a 29 anos, 32% correspondem a jovens entre 18 a 24 anos e os outros 26% a jovens entre 26 a 29 anos44. Esses dados representam uma realidade, que aflige a população em geral: o alto índice de envolvimento da Juventude brasileira com a criminalidade, em especial os adolescentes. Esse fenômeno social atinge de forma avassaladora a sociedade e impulsiona diversos estudos e pesquisas que tentam compreender o fenômeno, porém, muitos desses estudos acabam por legitimar o discurso estigmatizador em torno desses adolescentes, pois não conseguem compreender o adolescente e suas dimensões, como explica Lyra (2013, p.17): A falta de conhecimento sobre quem são esses garotos é uma lacuna inegável nas ciências sociais. Não se produzem reflexões sobre o que pensam a respeito de si mesmo e do mundo à sua volta. Os sentidos que atribuem a seus atos e a maneira como os situam diante dos conflitos éticos e morais subjacentes a eles, são completamente ignorados. Constituem um grupo tão estudado quanto incompreendido.
Segundo a antropóloga Alba Zaluar, um ícone nos estudos de violência e juventude, existe uma estreita relação entre o envolvimento de jovens com a criminalidade e a busca por status de poder. A autora explica que durante a realização de sua pesquisa “os jovens entrevistados falam do fascínio que tanto esses bens quanto a figura dos bandidos exercem sobre eles e os fizeram aproximar-se das quadrilhas. Hoje, homens cada vez mais jovens assumem o domínio no mundo do tráfico” (ZALUAR, 1993, p. 193). Os jovens acabam por adquirir o que Zaluar nomeia de “ethos guerreiro”, que tem a ver com “ethos da honra masculina”, que é estabelecido através da priorização e demonstração da força, da virilidade e da coragem em torno do ideal do homem forte: A idéia do homem forte e da punição (…) é resultante de um ideal de masculinidade baseado na demonstração de força bruta e na lealdade aos chefes que encarnam o grupo de pares. Mata-se, rouba-se, droga-se crianças, torturam-se maus devedores, cala-se diante de maldades, tudo em nome da autoafirmação do homem na construção social baseada na violência, em que outros são meros objetos de uma vontade que não tem limites nos meios empregados, em que as pessoas são mero instrumentos para se ter o que se quer. (ZALUAR, 2004, p. 65).
As masculinidades, do “ethos guerreiro”, são manifestadas por esses adolescentes através de códigos de conduta e performances corporais e visuais, que são incorporadas através de IBGE, (Censo Demográfico 2000 Características gerais da população – resultado da amostra). O Levantamento estatístico da Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente da Secretaria Especial dos Direitos Humanos (2004) 44 Fonte: Departamento Penitenciário Nacional (Ministério da Justiça). 42 43
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tatuagens, vestimentas, pichações, grafites etc. Essas manifestações foram percebidas durante a pesquisa de campo, como podemos perceber nas imagens a seguir. Figura 06 - Vida Loka
FONTE: [MESTRE. Simone. Fotografias dos alojamentos destinados aos internos da UIMS-I]
A expressão “vida loka”, demonstra a grande evidência que eles dão ao termo, sendo manifestada nos discursos verbais e corporais dos adolescentes, e compõem parte da linguagem do grupo funcionando como configurações de auto identificação. A referida expressão é sinônimo de agitação, adrenalina, perigo, liberdade e até libertinagem. Ser um “vida loka” é ser um homem sem limites, não ter medos, é viver sem restrições, sem lei, sem limite entre o certo e o errado. Tais configurações consistem em marcadores simbólicos que desencadeiam um processo de estigma, uma vez que segundo Goffman quando certos traços são percebidos socialmente para identificar ou impor à atenção, acabam afastando as pessoas, no caso dos adolescentes em conflito com a lei, seus atributos negativos são tão evidenciados com autoria do seu ato infracional, que eliminar as possibilidades da sociedade enxergar seus atributos positivos. Em seu artigo, Entre a Frieza, o Cálculo e a “Vida Loka”: violência e sofrimento no trajeto de um adolescente em cumprimento de medida socioeducativa (2011), Paulo Artur Malvasi, Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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apresenta uma interpretação do termo, a partir da letra do rap intitulado Vida Loka Parte 2, do Grupo Racionais M’cs, como explica: Especificamente no cotidiano de jovens que participam do “crime”, a expressão “vida loka” sintetiza o assombro e a dor daqueles que estão situados como a vida matável preferencial na sociedade brasileira contemporânea. A complexidade da “vida loka” no interior do “crime” leva o jovem a um dilema: sair dele e procurar viver como um “Zé”, realizando trabalhos enfadonhos e mal remunerados, comuns aos moradores das periferias paulistas, sem acesso ao mundo de bens desejados, ou continuar vivendo como “Rei”, ainda que de maneira fugaz e perigosa. (MALVASI, 2011, p. 165).
O termo “vida loka” se apresenta também, como uma categorização dos indivíduos que ocupam posições de comando dentro do mundo do crime, especialmente no tráfico de drogas, como explica Malvasi (2011) “Um traficante, em qualquer posição na hierarquia do negócio, pode perder tudo de um dia para o outro. O “amanhã pertence a Deus”, nesse ramo profissional. Quem trabalha com o tráfico é um “vida loka”, pois seu trabalho é altamente errático e arriscado” (p. 349). Esse dilema que coloca o adolescente entre o Rei (Vida loka) e o Zé (trabalhador mal remunerado), é marcado por dores, sofrimento e dramas sociais. Uma enxurrada de sentimentos e angústias giram em torno do adolescente, bem como consequências dos seus atos e o prejuízo emocional que é causado a ele mesmo e aos familiares, especialmente a mãe, como relata Zamora: Sentimentos de arrependimento quanto aos rumos de suas vidas, culpa por ter decepcionado a mãe, planos futuros com ela e preocupações com sua saúde e bemestar foram relatos comuns. Meninos e meninas acreditam no poder da família em ajudá-los a reconstruir suas trajetórias de vida, mesmo que o vínculo seja precário, para nossos padrões (2004 p. 11).
E acreditam na possibilidade de um futuro melhor fora da vida do crime e “apontam o interesse de conseguir um bom emprego, para colaborar com o sustento da família e alcançar a independência financeira, anteriormente alcançada por meio da criminalidade” (LEITE & PRADO, 2012. p. 52).
Considerações
A partir desse estudo etnográfico, que consistiu na descrição e explicação dos cenários sociais que envolvem mãe e filho privado de liberdade, com objetivo de evidenciar as consequências sociais provocadas pelo vínculo entre mãe e filho no contexto de privação de liberdade do filho adolescente. Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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E para chegarmos na resposta para a seguinte pergunta: Por que recai sobre a figura feminina a responsabilidade de acompanhar o filho adolescentes?. Foi necessário aprofundarmos nosso entendimento sobre os aspectos culturais, históricos e sociais da maternidade, buscando compreender a relação entre mito do amor materno e a expressão “amor só de mãe” à luz das teorias de Badinter, Forna e Kitzinger, buscando compreender os significados atribuídos pelos filhos através desta expressão. Dessa forma, foi fundamental entender o envolvimento desses jovens com a criminalidade, tendo em vista a necessidade de contextualizar o que são medidas socioeducativas e compreender o sentindo da “vida loka”, um expressão adotada por eles para indicar um momento tão delicado de suas vidas. E para chegar ao objetivo da pesquisa, a necessidade de desenvolvê-la como um artesanato intelectual como aconselha Wright Mills, tornou-se um exercício desafiador, e, portanto repleto de dualidades. E assim, como todas as pesquisas, afinal, na pesquisa social, como diria Bourdieu (1989, p. 18) nada é mais universal e universalizável que as dificuldades. Assim, o desafio de realizar uma pesquisa etnográfica do cenário urbano, tornou-se através do campo meu ritual de passagem de graduanda para graduada possível. De tal modo que cada relato contado por uma mãe era como uma peça de um quebra cabeça, que às vezes parecia ter sentido e em outros momentos eram confusos, causando dúvidas e reflexões. Contudo, percebi o quanto essa aparente confusão é próprio de quem encarar a pesquisa de campo. A experiência de campo proporcionou-me uma experiência única, marcada por momentos excepcionais de aprendizado e descobertas, que propiciou o contato com as mães, os adolescentes, servidores e unidade, ampliando meus olhares diante da pesquisa, sendo possível contextualizá-los através de descrição de suas dimensões sociais, informações e dados, relatos, imagens e vivências. A realização da pesquisa por meio do contato mencionado torna visível o descompasso entre o proposto pela legislação de proteção da criança e adolescente (ECA e SINASE) e a realidade da unidade socioeducativa, que no lugar de promover um processo socioeducativo, de caráter predominantemente pedagógico, priorizam a vigilância e reclusão dos adolescentes, relevando-se assim, sua posição enquanto instituição total. Provocando a necessidade de entender o que está na base dessas medidas socioeducativas, que em primeiro momento, apresentam-se como uma política pública que ainda é estigmatizadora das juventudes45 das classes mais pobres. Os significados por trás da frase “amor só de mãe” mostram o drama e o estigma que Recentemente no Brasil tem-se enfatizado a utilização do termo no plural – juventudes – como forma de assumir que o termo é plural, que há inúmeros movimentos de juventude com temas de interesse, estratégias de atuação e formas de organização diferentes entre si. (BRASIL. Coletivos Jovens de Meio Ambiente, 2006, p. 11). 45
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marcam a vida dessas mães e de seus filhos, presentes na dicotomia da relação que o filho estabelece em seu meio social, pois ao mesmo tempo que expressa todo seu amor e devoção pela mãe , ele se identifica como um “vida loka”, fato, que acarretam a ele e a própria mãe sentimentos de angústia e sofrimentos. E que são em parte, agravados por vários setores da sociedade que defendem fervorosamente a redução da maioridade penal, sobre os pilares da falsa ilusão de impunidade dos adolescentes infratores no Brasil. Demonstrando o quanto é necessário que as pesquisas sociais e humanas, sobre medidas socioeducativas busquem mostrar a realidade externa e interna dessas unidades de internação, dos adolescentes e seus familiares. Assim, cheguei à resposta que recai sobre a mãe, a responsabilidade de acompanhar o filho durante todo o processo de execução da medida, devido uma consciência coletiva que projeta sobre a figura feminina a responsabilidade materna de cuidar dos filhos, principalmente quando estão em situação de vulnerabilidade. Sendo as mães, diante desse entendimento, obrigadas a passar por todas as condições impostas pela unidade para visitar seu filho, sendo a revista íntima uma representação da violência simbólica na qual essas mães são submetidas. Que consiste em um ato de imposição simbólica, que conforme Bourdieu trata-se de uma ação que “tem a seu favor toda a força do coletivo, do consenso, do senso comum, porque ela é operada por um mandatário do Estado, detentor do monopólio da violência simbólica legítima”(1989, p. 146). Deste modo, espero que esse estudo desperte nas instituições de defesa dos direitos humanos para necessidade de implantar políticas públicas efetivas, que busquem de fato humanizar o atendimento socioeducativo e a estrutura física das unidades de internação, tornando a família protagonista do processo de socioeducação desses adolescentes. Almejo ainda, que essa pesquisa auxilie na construção de mecanismos que excluam essas violências simbólicas presentes durante a execução do atendimento socioeducativo e que contribuem para construção de estigmas do adolescente e seus familiares. Enquanto não desconstruímos esses estigmas sociais que cercam mãe e filho, não podemos promover uma transformação social na vida dessas pessoas, e esse drama sempre estará presente em nossa sociedade. Diante dessa breve leitura do mundo que envolve mães, filhos e unidade socioeducativa, busquei contribuir para uma ciência social que segundo Giddens (2009) empenhem-se em primeiro lugar e acima de tudo, na reelaboração de concepções do ser humano e de fazer humano, reprodução social e transformação social. E para finalizar, lembro à importância que devemos dar as seguintes palavras de Florestan Fernandes (1976, p. 26): “Em nossa época, o cientista social precisa tomar consciência da utilização social e do destino prático reservado a suas descobertas”. Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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Ensaios
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A ditadura em que vivemos Rafael Ademir Oliveira de Andrade Cientista Social e Mestre em Educação
“O problema de hoje em dia é que as pessoas inteligentes estão cheias de dúvidas e as idiotas, cheias de certeza”. Charles Bukowski
Resumo Este ensaio preocupa-se em elucidar algumas questões teóricas e reflexivas acerca de eventos ocorridos nas últimas eleições no Brasil e que desenham um panorama das reflexões políticas realizadas nas redes sociais e nas grandes mídias em geral que, por sua vez, influenciam as decisões e discursos dos indivíduos que tem acesso a estes veículos de massa. Para realizar tal atividade, foram realizadas reflexões acerca de conceitos de Adorno, Gramsci, Ortega y Gasset sobre a sociedade moderna e o posicionamento das massas em conjunto com a observação do autor acerca das ações sociais supracitadas. A discussão foi norteada pela reflexão acerca da ditadura da opinião e suas vicissitudes na sociedade brasileira moderna.
Abstract This essay is concerned with elucidating some theoretical questions and reflective about events that occurred in the last elections in Brazil and drawing a picture of political considerations made on social networks and major media in general that, in turn, influence decisions and speeches of individuals who have access to these mass media. To perform this activity, reflections were made about concepts of Adorno, Gramsci, Ortega y Gasset about modern society and the position of the masses together with the author's observation on the above social actions. The discussion was guided by reflection on the dictatorship of opinion and its vicissitudes in modern Brazilian society.
Na pesquisa de mestrado que realizei, fiz leitura de um autor liberal e culturalista chamado Pedro Ortega y Gasset. Existem algumas afirmações políticas do autor que eu discordo totalmente, mas acreditamos, eu e minha orientadora, que manter um intelectual que não fosse marxista, que defendesse uma perspectiva diferente sobre a sociedade seria importante para o desenvolvimento do texto e para uma realização prática daquilo que propúnhamos na pesquisa: o ensino de Sociologia como possibilidade de crítica/construção da crítica sobre a sociedade de massas. Theodor Adorno irá trazer uma discussão sobre a educação após o evento catastrófico do nazismo: de que o consenso do discurso é um caminho para que o mesmo conceitua como barbárie, a ausência da humanidade, algo que vimos na história do nazismo e outras formas de ditaduras – o mesmo para a URSS, afirmo, para desgosto dos marxistas mais ortodoxos.
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Logo, podemos compreender que a multiplicidade dos discursos é importante para a manutenção de uma intenção de existência futura daquilo que chamamos de democracia. Ou até mesmo para o que chamamos de humanidade. A presença de Ortega y Gasset, liberal e culturalista, dentro de um trabalho acadêmico que organiza conceitos de Adorno, Horkheimer, Marcuse e outros pensadores que nascem dentro da escola marxista do pensamento é uma intenção – prática – de manter o dissenso dentro do que deveria ser puro consenso e, quem sabe, um erro político. Durante a construção do trabalho, pensei estar cometendo um erro teórico, trazer para a “berlinda” das discussões teóricas um autor que, apesar de concordar com o conceito de massas, dá uma origem histórica e uma prática cultural totalmente diferente do que a teoria crítica apontava. Creio então que o trabalho ser aprovado e esta escolha ter sido elogiada pela banca coroou uma certeza política que tinha mesmo frente a incerteza teórica e metodológica. Mais um acerto de muitos de minha orientadora. Qual é o ponto desta introdução? Para a Escola Crítica, a massa é fruto de uma intenção da classe dominante, ela nasce um conjunto de valores que associa a situação econômica das classes não proprietárias com o direcionamento ideológico da classe dominante, em outras palavras, somase miséria, desemprego, desinformação e outras instabilidades sociais com o desejo de uma classe se manter no poder. Claro que esta informação pode ser associada ao Partido dos Trabalhadores (que está atualmente na presidência do Brasil) ao passo que ele representa os interesses de uma classe social privilegiada e não promove a emancipação cultural daqueles que auxilia com seus programas sociais. Gramsci provavelmente analisaria da seguinte forma: existem dois tipos de intelectuais, uma elite de pensamentos burgueses e a militância petista, e há dois tipos de homens-massa (e que surgem da mesma natureza), os que são abarcados pelos programas sociais do PT, concordam com isto e com sua propaganda, e os que não precisam ser (ou até precisam) dos programas sociais e acreditam que “estão sustentando vagabundos”. Nesta sociedade formada por intelectuais dirigentes e homens massa (uma forma de organizar o pensamento sobre a mesma), não se pode esquecer que, sem certo autoconhecimento político, teórico e existencial, somos todos transformados em homem-massa: cooptados pelos intelectuais, assumimos o posicionamento de uma das classes sociais que estão em conflito pelo poder social e nem sempre somos beneficiados pelas escolhas que fazemos. Passamos a defender esta classe com todo afinco e é nesta que surgem os militantes petistas que não conseguem ver corrupção na velha guarda do partido e os militantes da “direita” que
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buscam a volta a ditadura militar, afirmam que o povo nordestino é uma raça inferior (pensamento eugenista que faria Hitler dar gritos de felicidade), dentre outras atrocidades, de todos os lados. Para Ortega y Gasset, a massa se compõe de uma grande parcela da sociedade que, ao se livrando dos padrões culturais e econômicos da elite, se torna incontrolável, rebelando-se contra a ordem que poderia existir naquela sociedade. Este pensamento do filósofo espanhol aponta um distanciamento da sociedade de classes, organizando os indivíduos pelo acesso e recebimento de uma cultura escolhida por certo grupo de indivíduos – sofre do mesmo mal de todos os liberais: quer transformar em magia tudo aquilo que é sólido. Há uma crítica gritante sobre “A Rebelião das Massas”: em nenhum momento o autor aponta que a massa é fruto de interesses sociais, da elite ou mesmo aponta o surgimento das massas como fruto do desenvolvimento dos meios de comunicação em massa, mas creio que afirmar isso seria o mesmo que dizer que as massas são fruto do capital, pois tanto hoje quanto no século passado, é a elite que domina as formas de comunicação em massa. Há um vazio (ou “gap”), um espaço, no discurso deste autor. Ortega y Gasset trás, dentro deste viés que apontei acima, algumas características da massa que considero reflexões da massa no Brasil e essencialmente suas manifestações na última eleição e nos dias que se seguem. Discordo do espanhol essencialmente na “origem histórica” e função da massa, vou concordar com Adorno e Horkheimer, ou seja, com a Teoria Crítica e sua revisão do marxismo. A primeira questão é sobre o filisteu46 da cultura. Neste conceito, o autor vai apontar aqueles indivíduos que são grandes defensores e que seguram o estandarte das massas, das culturas que adotam. Este filisteu da cultura é o líder da exploração, ele desconhece a origem de suas crenças, ele a reproduz violentamente e ao mesmo tempo, subordina os que estão a sua volta à estas crenças sempre que possível, sempre que ocupa espaços de poder. Pode-se afirmar que este filisteu assume uma posição dentro do conflito de classes, mas não como um intelectual consciente, mas como o grande reprodutor da massificação. Temos como exemplo deste o indivíduo que afirma “eu sou um burguês, eu amo a burguesia”, podemos amar os benefícios de uma sociedade burguesa, mas o burguês é aquele que detém os meios de produção material, este filisteu da cultura é um defensor dos valores morais e éticos de uma classe social, mesmo sem participar dos benefícios de pertencer a esta classe. O filisteu da cultura é o agente responsável por manter as pessoas dentro da engrenagem.
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Sei que este termo não é apropriado e demonstra um pensamento arcaico, mas estou mantendo o conceito como ele é escrito em respeito ao autor. Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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Na Alemanha Nazista antes de 1933, a SS (a polícia especial do governo) contava com poucos membros em comparação aos indivíduos das cidades em que atuava: essencialmente ele contava com informantes beneficiados diretamente pelo partido nacional socialista e do filisteu da cultura, aqueles indivíduos que tinham dentro de si antissemitismo e que defendiam os interesses do Fuhrer mesmo sem terem benefícios diretos. No capitalismo, o filisteu vai difundir a necessidade do consumo, do trabalho em qualquer condição, da educação técnica e direcionada, o machismo (ou falocentrismo), o preconceito religioso (colocando certas religiões sobre as outras, essencialmente a sua), dentre outras formas de discurso que vão beneficiar a classe dos empresários no que cerne ao controle ideológico e material das massas. Podemos ver outras formas de atuação do filisteu da cultura: ele é o reprodutor do etnocentrismo! Só sua cultura é a correta, só ela pode salvar a alma, ou o Brasil! A cultura do outro é excêntrica em dois tipos: ou ela é boa para se visitar ou deve ser mantida longe. Os imigrantes haitianos que estão trabalhando no Brasil podem ser bons ou ruins para o filisteu da cultura: quando ele dança, se converte ao cristianismo e trabalha recebendo menos do que um brasileiro, ele é bom, mas quando “rouba meu emprego” ou é praticante de Vodu, ele é mal e deve ser “devolvido ao seu país de origem”, o filisteu compra as intenções da elite, sendo ele um dos mais explorados. Tanto Adorno quanto Ortega y Gasset não presenciaram o amplo desenvolvimento das redes sociais na modernidade. É preciso levar os conceitos que eles cunharam além do jornal, rádio e cinema e tenho compreensão que este simples ensaio não esgotarás as possibilidades de análise, mas proponho uma singela apresentação. O sentido desta parte do texto é apresentar o que seria uma rebelião da massas e como esta se apresenta agora como uma ditadura das massas – não como Ortega y Gasset pensa – mas amparada pelos interesses da classe dominante. Para o filósofo espanhol, a rebelião das massas é quando estas saem do poder da elite dominante cultural e economicamente. Assim, esta rebelião leva à degradação da cultura e do país como um todo, pois vivemos a “imposição da opinião”. A massa é ignorante e não reflete intelectualmente sobre o que vai afirmar: afirma de acordo com seus gostos, impondo sua vontade. Nessa questão, estudando e observando as redes sociais, só posso discordar de uma coisa: as massas não saem do julgo das classes dominantes, mas se emergem no discurso da mesma, que é elitista e segregacionista. Assim, na segunda metade do século XX nós temos a imposição da opinião como força primeira e última da massa, como preceitua o filósofo espanhol, mas qual seriam o alcance e a força motriz dessas afirmações que são tão afirmativas quanto pessoais sobre a generalidade social. Para Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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esta forma de rebelião das massas, a ciência e a reflexão filosófica não são fatos à serem levados em consideração na definição do que é certo ou errado. Com o desenvolvimento das redes sociais, o alcance da imposição da verdade é cada vez mais amplo, atinge a todos e os resultados são óbvios: chegamos ao brasileiro que reclama da ditadura populista pedindo pela ditadura militar, como se esta fosse solução para aquela, como se a tortura e morte fosse a solução para a tortura e a morte que o brasileiro comum sofre diariamente. Tudo começou com os vlogs (blogs de vídeos, ao invés de escrever, os autores postam vídeos) do “youtube”. Na época, em uma discussão sobre a sociedade um dos que pertenciam a mesa citara tal de “Felipe Neto” ao falar de política, economia e mercados. Foi infecunda a possibilidade de citar Marx, Smith (apelei para o lado liberal filisteu da cultura) ou outros autores: o cara que aparece fazendo caretas no Facebook era a autoridade intelectual da mesa. Aí que nós temos um grande problema: a internet 2.0 possibilitou que todos colocassem suas opiniões sobre todos os assuntos e ao invés de uma democratização dos conhecimentos, chegamos ao que chamo de ditadura das opiniões, esta sim, a ditadura que já vivemos. Este movimento da ditadura da opinião criou diversos monstros desde a primeira década do século XXI. Seu espaço não é na academia, a não ser como objeto de estudo, mas vai proliferar nas redes sociais e nas manifestações de opinião. Ela gera Felipe Neto e Pedro Bial, ela dá o tom e retira das catacumbas o Poderoso Olavo de Carvalho – professor sem ter diploma ou experiência, filósofo sem refletir – dando para estes e outros o poder sobre a opinião. Mas a ditadura que vivemos não se instaura aí, neste começo: no inicio estes “intelectuais da massa” vão se preocupar em afirmar sobre sagas de filmes e livros, sobre o conteúdo de refrigerantes e outras questões inerentes à cultura de massas. Pouco a pouco o espaço para a leitura e crítica de livros se restringe à Academia e a espaços mais obscuros da rede mundial de computadores: o estudioso (o nerd de antigamente) não é mais um estudioso, mas um curioso de tudo. A opinião toma conta da rede e dos indivíduos servindo como um reforço, e agora, como um substituto ao antigo poder da televisão. Assim como os intelectuais judeus foram sumariamente trocados por intelectuais eugenistas na Alemanha nazista, o acadêmico e o pesquisador foram trocados pelos “compartilhamentos”, pelas “frases feitas” das redes sociais, belos vídeo-blogs, jornais eletrônicos e outras formas de comunicação em massa. É uma evolução distópica da função que a televisão realizava, o mesmo que a propaganda nazista, propagando ódio e violência quase que na mesma medida. Não quero parecer com Balzac (nem poderia ter a grandeza do mesmo) em “Ilusões Perdidas” e na introdução de “Comédia Humana”, sendo um intelectual que se opõe as novas Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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formas de manifestação da cultura, Balzac foi contra o jornalismo até ser assimilado pelo mesmo em seus trabalhos. É preciso compreender que há uma diferença metodológica e de objetivos entre Roberto DaMatta e Olavo de Carvalho, Sakamoto ou Reinaldo de Azevedo, o primeiro tem uma preocupação em verificar, como cientista, o que uma sociedade é ou apresenta ser e os outros dois tem um grande canal de comunicação a seu serviço para expor sua simples, preconceituosa e direcionada opinião, sendo aclamados pelas massas, que vão concordar com eles pois está dentro do rol de suas crenças aquilo que eles falam: a opinião dá força a opinião e, geralmente, ao preconceito e ao ódio ao outro. Proponho-me como cientista ou como alguém que reflete sobre o tema, tentar atribuir aos bois os nomes certos, como eu fiz no começo deste ensaio: a culpa é de todos os partidos e quem ganha com isto não é o brasileiro, é um interesse de classes e minoritário, claro que, dentro dos partidos, existem indivíduos que possam pensar no coletivo e conseguir certas vitórias, mas minha opinião sobre o tema é distópica. Voltando ao objeto diretamente. Em 2012-2014, por força impulsionadora da grande mídia e das redes sociais foi possível observar a entrada massiva destes agentes da opinião no conflito de classes, no período de eleição, antes e após o mesmo. Artistas e “(v)blogueiros” foram utilizados amplamente como opiniões assertivas e definitivas sobre as questões sociais e políticas no Brasil e no mundo. Muitos se posicionaram diretamente e colocaram suas opiniões a serviço do convencimento para um partido x ou y. Esta relação arte-sociedade não é exatamente nova, mas a minha opinião sobre a necessidade de uma reflexão crítica e científica sobre a sociedade também não: cito principalmente Weber e Mannheim, para sair do eixo marxista-liberal como exemplo, a sociologia da educação dos mesmos (ou objetivos para a educação) é a racionalização da sociedade. A ditadura que nós vivemos, da opinião, se solidifica com os espaços ganhos pela opinião dos seus ditadores: homens embebidos das vontades de uma classe social, defendendo estes posicionamentos a todo custo e difundindo estas ideias com a afirmação de uma verdade religiosa – sem saber ou sabendo – estes “mestres da opinião” levam as massas, ao homem-massa, incapaz de refletir e sedento por acomodação (pelo “sono gostoso” social, como dizia um professor meu, ou pelo “calor acolhedor do rebanho” como diria outro) a seguir todas as tendências: até mesmo querer a volta da tortura e a certeza de que o nordestino é um ser inferior.
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Se nos posicionamos contra a ditadura “bolivariana-petista-bolchevique-maoísta” no Brasil, primeiro deveríamos saber o que realmente é uma ditadura e seus estágios: numa ditadura direta, não poderíamos submeter nossa opinião contra elas. Se vivemos numa ditadura socialista velada, então podemos dizer que vivemos uma ditadura capitalista velada: se pode olhar para a proteção social exacerbada do Estado, pode-se ver também o consumismo cada vez mais presente em nossas crianças, mas como massas, “psdbistas ou petistas” só vemos um lado, o lado de onde estamos e mudamos de opinião de acordo com o que é veiculado nas mídias e não paramos para refletir sobre a veracidade de nenhum dos dados. Refaço uma pergunta de um amigo, estudante de direito: quem de nós aqui fiscalizou o portal da transparência nos últimos dias? Mas todos nós temos uma opinião, que vai concordar com Reinaldos, Lobões, Sakamotos, e outros. Já afirmo: sou contra toda forma de ditadura: do capital, socialista (que historicamente tem sido assassina), de raça ou da opinião. Volto ao conceito do começo do texto: a divergência do pensamento surge da reflexão de cada indivíduo sobre seu condicionamento social, quem disse isso foi Freire, se apropriando de Marx. A sociedade de massas é uma evolução do pensamento capitalista e de outras formas de ditadura: foi presente no nazismo, no socialismo e é presente no capitalismo, é a essência da dominação dos povos, lição que Aristóteles ensinou à Alexandre o Grande, melhor é vencer pela cultura, a vitória pela simples força levaria às revoltas. Só aquilo que eu gostaria de chamar de “conhecimento de sua condição social” pode levar à uma reflexão (esclarecimento) sobre seu posicionamento. Isso requer: olhar pelo olhar do outro e ter as mais diversas lentes para olhar a realidade, que não a da sua classe social apenas. Isso requer, essencialmente, conhecimento sobre a sociedade nas mais variadas ciências (economia, política, sociologia, filosofia), sobre sua construção social e corporal (psicologia, história, educação física) e uma formação para o mercado de trabalho (matemática, química, metodologias de ensino, pesquisa, dentre outras), ou seja, requer a formação de um homem completo, não a de um escravo: basta lembrar que a dulcéia (educação de escravos) remetia ao trabalho direto e a paidéia (formação do cidadão) envolvia uma grande gama de conhecimentos. Em uma sociedade como a nossa em que se ensinam os indivíduos a serem escravos e as eleições são uma disputa pela cooptação dos olhares destes escravos prontos para obedecer, a ditadura se reforça pela opinião dos igualmente ignorantes. Desejamos uma sociedade de homens livres, de raças iguais, de economia menos desigual. Desejamos uma sociedade onde músicos e jogadores de futebol sejam tratados como intelectuais e professores tratados como lixo. Esta sociedade só pode existir com a formação de seres políticos, Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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corporais e laborais, ou seja, capazes de refletir sobre a sociedade política e cultural, que tenham conhecimento de seu corpo e que estejam aptos para estar no mercado de trabalho, dentro de seus direitos. Mais uma vez, isto não é novidade: minha ideia é a soma de minhas reflexões com Platão, Marx e Freire. Além de uma educação completa, é necessária a reforma do sistema político que ai se encontra: contra o povo, por uma manutenção ou chegada ao poder, apoiando os que já são muito ricos, numa dualidade sem fim. Isso não quer dizer que não existam progressos nos últimos 12 anos, mas também não quer dizer que não existiram progressos nos 04 anteriores, não estou comprando lados, estou refletindo. Não aceito a ditadura da opinião sobre o povo, nos transformando em uma massa maleável, hora a favor, hora contra, ao bel prazer do vento ideológico. Eu quero uma democracia de fato, onde homens conscientes votam e escolhem suas falas, sem que nenhum artista falido do século passado venha dizer em quem devo votar.
Referências
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Notas preliminares sobre como escrever nas ciências sociais Maryelle Inacia Morais Ferreira
Resumo: A proposta deste ensaio se norteia por uma breve discussão de vários argumentos que pode nos fazer pensar a legitimidade da escrita nas ciências sociais. Com ajuda de autores antropológicos, sociológicos e ativistas busquei trazer reflexões acerca da forma de escrita que um autor e pesquisador pode exercer. O pensamento inicial é incitar uma possível identidade para a escrita dentro dessa área das ciências humanas, uma escrita de caráter legítimo que coloca em sutis evidências a personalidade crítica, científica e pesquisadora do autor.
As motivações que me levaram tecer essa rápida discussão se iniciaram após uma palestra de um antropólogo. O palestrante que compartilhava conosco suas experiências científicas, foi questionado sobre o seu posicionamento, enquanto cientista e etnólogo, a respeito do infanticídio em etnias indígenas. A resposta, não tão pouco me surpreendeu e intencionou uma problematização de questões acerca do papel de um pesquisador e cientista social diante das clivagens do contato com seu objeto de pesquisa. Não exatamente com essas palavras o palestrante argumentou que um pesquisador não pode se curvar diante das ações emergentes da cultura local de seu objeto de pesquisa, e que naquele momento dentro de uma etnia indígena o que se deve prevalecer é a neutralidade do pesquisador. Enfim, após a palestra busquei propor questões iniciais sobre de qual maneira um cientista social deve instrumentalizar sua atuação científica, de modo que a gênese de sua pesquisa não seja algo meramente objetivo e técnico, mas que contenham elementos políticos sobre a qual questão que ele irá levantar. Para isso, este artigo bebeu das ideias propostas por Max Weber ao criticar a objetividade total nas ciências humanas. Portanto, a tese principal deste ensaio foi trazer realces de como um cientista social pode atuar em sua escrita, uma vez que podemos supor que a escrita seria um dos maiores instrumentos que o pesquisador social detém. Escrever dentro e sobre uma área tão abrangente como a Ciências Sociais, além de não ser uma tarefa fácil e bastante amplificada, exige no mínimo qualidade de escrita e poder sintético. De modo geral esse campo de estudos instiga as mais diversas reflexões: estudo das origens, do desenvolvimento, da organização e do funcionamento das sociedades e culturas humanas. O cientista social pode se quiser estudar os fenômenos, as estruturas e as relações que caracterizam as organizações sociais e culturais, os movimentos e os conflitos populacionais, a construção e desconstrução de identidades e a formação das opiniões. Ele pode pesquisar os costumes e hábitos Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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investigando as relações entre indivíduos, famílias, grupos e instituições. Desenvolve e utiliza um conjunto variado de técnicas e métodos de pesquisa tanto para o estudo das coletividades humanas quanto para metateoria. Assim ele pode interpretar os problemas da sociedade, da política e da cultura. Diante da proporção de possibilidades de estudos, o cientista social é considerado um pesquisador. Ele investiga, vai a campo e vivencia uma multiplicidade de realidades, de modo que depois do processo sistemático de investigação, o pesquisador, é claro, terá que expor seus resultados e a pertinência de seu trabalho. Afinal, estudar as organizações dialéticas dos homens é de extrema importância e, portanto, exige do estudioso dessa ciência uma intervenção escrita, pois é através dela que se legitimam os estudos nas ciências sociais – enquanto campo de pesquisa (CALDEIRA, 1988). O ideal das ciências sociais está em primeiro plano na sua capacidade de teorizar e, em outro plano, no ativismo crítico, isto é, questionar aquilo que é dado e complexificar tudo aquilo que parece elementar no social. Nesse sentido o cientista social deverá possuir uma verossimilhança no modo de agir, e usar seu atributo legítimo “a escrita”, para exercer sua autonomia. Escrever não é apenas uma questão de profissionalismo, e nem pode se conjecturar somente no pólo acadêmico. A escrita requer do autor um sentimento político, um histórico de vivências enquanto consciência crítica e não meramente uma reprodução. O cientista social no ato de sua escrita pode aparecer como uma figura intelectualizada, que ao expor os resultados de sua pesquisa tem a autonomia de exercer um caráter político e social e não apenas se prender nas técnicas profissionais. Este exercício de transitar entre uma escrita normativa e ao mesmo tempo crítica, com a problematização dos resultados de pesquisa, faz dele um intelectual, uma pessoa de caráter político e técnico. É neste contexto que se faz pertinente uma analogia entre a figura do intelectual e a instrumentalização da escrita. Said (1994) analisa a figura deste intelectual e discuti suas representações. Desse modo o autor contribui para o entendimento e proposição do que deve ou do que deveria fazer um cientista social em sua escrita. Há o perigo de que a figura ou imagem do intelectual possa desaparecer num amontoado de detalhe, e que ele possa tornar-se apenas mais um profissional ou uma figura numa tendência social. O que vou discutir nestas conferencias tem como certas essas realidades do final do século XX, originalmente sugeridas por Gramsci, mas quero também insistir no fato de o intelectual ser um indivíduo com um papel público na sociedade, que não pode ser reduzido simplesmente a um profissional sem rosto, um membro componente de uma classe, que só quer cuidar de suas coisas e seus interesses. A questão central para mim, penso, é o fato de o intelectual ser um indivíduo dotado de uma vocação para representar, dar corpo e articular uma mensagem, um ponto de vista (SAID, 1994: p. 25).
Said reitera o verdadeiro papel do intelectual, não muito diferente disso é a atuação da escrita e consequentemente atuação do provedor desta. Não quero delinear aqui o arquétipo de um escritor nas ciências sociais, nem quero também montar um modelo de autor. Mas é de extrema Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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importância e legitimidade que a escrita neste campo contenha elementos que desconstrua a extrema objetividade. Pois, o pesquisador e em seguida escritor, irá expor os resultados de suas pesquisas, resultados esses que, como já dizia Weber (1992), não estão ausentes dos valores dos fenômenos sociais. Essa escrita estará sempre em contato com estes fenômenos e por isso não deixará de lado as representações daquele espaço estudado. É neste momento que o sujeito conhecedor exerce sua autonomia, tanto de produtor de resultados de pesquisa quanto como ser político e social. A teorização ao ser estampada de significados desconstrói as fronteiras que a plena neutralidade impõe. As palavras filosóficas de Foucault (2001) nos ajudam a reforçar essa imagem do autor e cientista social que está sendo discutido neste texto. Pode-se dizer, inicialmente, que a escrita de hoje se libertou do tema da expressão: ela se basta a si mesma, e, por conseqüência, não está obrigada à forma da interioridade; ela se identifica com sua própria exterioridade desdobrada. O que quer dizer que ela é um jogo de signos comandado menos por seu conteúdo significado do que pela própria natureza do significante; e também que essa regularidade da escrita é sempre experimentada no sentido de seus limites; ela está sempre em vias de transgredir e de inverter a regularidade que ela aceita e com a qual se movimenta; a escrita se desenrola como um jogo que vai infalivelmente além de suas regras, e passa assim para fora. Na escrita, não se trata da manifestação ou da exaltação do gesto de escrever; não se trata da amarração de um sujeito em uma linguagem; trata-se da abertura de um espaço onde o sujeito que escreve não para de desaparecer. (FOUCAULT, 1969: p.6).
Seguindo essa linha de raciocínio, a escrita seria um “jogo de signos” que contenha um conjunto de ralações entre o que propriamente está dizendo no corpo do texto, a personalidade do autor – sujeito de conhecimento – e a funcionalidade textual. A funcionalidade pode ser uma provocação ao próprio autor, uma crítica a algo externo ou os resultados de uma pesquisa. No entanto, o mais importante, precisaria ser algo além de resultados neutros de uma pesquisa empírica e não estar extremamente presa ao profissionalismo acadêmico (SAID, 2000). É importante destacar que a escrita não pode deixar totalmente de lado as regularidades, mas deve se sustentar em um campo libertário, de liberdade do autor e liberdade do leitor – seria algo bem politizado e ao mesmo tempo reconhecido pelo seu campo de atuação. O autor pode também utilizar da criação teórica para desconstruir certos conceitos que foram cristalizados por uma forma de conhecimento dominante. Assim, poderá dar abertura para novos lócus de conhecimento e reinventar a epistemologia a partir de conceitos e teorias que abram espaços às margens, que derrubem fronteiras entre povos e desmonte a linha crescente do saber evolucionista. Mignolo (2003) em sua metateoria argumenta que a teoria pode ser utilizada para dar uma nova versão à razão subalterna, podendo se manifestar um novo sujeito que pense o póscolonialismo fora da epistemologia ocidental.
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212 O que estou argumentando neste capítulo e no resto do livro é que deveríamos desvincular o conceito de teoria de sua versão epistemológica moderna (explicando ou fazendo sentido a partir de fatos ou dados isolados), ou de sua versão pós-moderna, a desconstrução de redes conceituais reificadas. Segundo entendo, um dos objetivos da teorização póscolonial/colonial é reinscrever na história da humanidade o que foi reprimido pela razão moderna, em sua versão de missão civilizadora ou em sua versão de pensamento teórico negado aos não-civilizados (Gilroy, 1993). (MIGNOLO, 2003: p. 158).
Este ensaio propõe o início de uma conversa que poderá provocar questionamentos e investigações futuras. Através desse início de discussão e com a contribuição de alguns autores, podemos apresentar elementos que devem compor a escrita nas ciências sociais. Mas é importante lembrar que não coube a este trabalho identificar e apontar os caminhos de uma escrita correta, mas sim levantar uma breve discussão sobre a construção da autonomia de um cientista social perante o objeto de materialização do seu trabalho. Procurei de forma sucinta, dialogar com as possibilidades que o autor nas ciências sociais tem para demarcar sua personalidade de pesquisador, de se sentir próximo do que ele é, do que ele fez e da pessoa externa – o leitor. Seja no formato que for, o autor, pesquisador e cientista seria uma figura dual no ato de sua escrita, isto é, levaria ao campo científico os resultados de um trabalho laboratorial e ao mesmo apresentaria sua identidade política, o ser social que ele é e que seus pesquisados também são. A escrita nas ciências sociais seria o instrumento que o tornaria um intelectual. Enfim, para conter esta discussão, podemos trazer a escritora e ativista Glória Anzaldúa, que ao dedicar uma carta as mulheres escritoras, expressou através do feminismo pós-colonial o conhecimento e o desejo de desconstruir as fronteiras que retrata a subalternidade. Anzaldúa (2000) utiliza a literatura feminista para debater a diferença dentro do próprio movimento e defender que as mulheres podem buscar sua autonomia através da escrita, fazendo surgir novas teorias.
O perigo ao escrever é não fundir nossa experiência pessoal e visão do mundo com a realidade, com nossa vida interior, nossa história, nossa economia e nossa visão. O que nos valida como seres humanos, nos valida como escritoras. O que importa são as relações significativas, seja com nós mesmas ou com os outros. Devemos usar o que achamos importante para chegarmos à escrita. Nenhum assunto é muito trivial. O perigo é ser muito universal e humanitária e invocar o eterno ao custo de sacrificar o particular, o feminino e o momento histórico específico. (ANZALDÚA, 2000: p. 233).
Todos esses argumentos trazidos durante o texto tiveram como base de seguimento a linha de alguns autores antropólogos pós-modernistas que criticavam a teorização das experiências etnográficas da década de 1920. Esses autores lançam mão de uma abordagem que aponta a falta de senso crítico pelos antropólogos modernistas (CALDEIRA, 1988). Essas críticas também já haviam sido discutidas por Geertz em sua linha hermenêutica. Tereza Caldeira (1988), afirma a necessidade do caráter político de um escritor antropólogo. De acordo com a autora, não se deve ignorar o conhecimento que os antropólogos produzem no contato com as relações de poder e desigualdade, Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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os antropólogos não podem ser ausentes em seus textos (CALDEIRA, 1988). Desse modo, as ideias de Caldeira (1988) fornecem vários elementos para reforçar a ideia deste texto, onde a figura do cientista social não deve ser extinta durante a escrita, seus conhecimentos políticos devem ser utilizados para debater e contestar essas relações de poder e subalternidade existentes dentro das relações humanas.
Referências
ANZALDÚA, Glória. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. Revista Estudos Feministas, v. 8, n. 1, p. 229-236, 2000. CALDEIRA, Tereza. P. do Rio. A presença do autor e a pós-modernidade. In: Novos Estudos CEBRAP, n.21, 1988. Disponível em: http://novosestudos.uol.com.br/indice/indice.asp?idEdicao=55#311. FOUCAULT, Michel. O que é um autor? In: _______ Ditos e Escritos: Estética – literatura e pintura, música e cinema (vol. III). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. p. 264-298. SAID, Edward W. Representações do intelectual. Lisboa: Edições Colibri, 2000. MIGNOLO, Walter. D. A razão pós-ocidental. A crise do ocidentalismo e a emergência do pensamento liminar. In: História Locais/Projetos globais. Colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Editora UMFG, 2003. WEBER, Max. A “objetividade” do conhecimento na Ciência Social e na Ciência Política. In:______. Metodologia das ciências sociais. Parte I. São Paulo: Cortez, 1992 [1904].
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Palavra enfatizada pela autora.
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Expressão de Foucault em uma sessão aberta no College de France. Em O que é um autor? Página 6.
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Tradução
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A autoridade em desejo. Algumas reflexões sobre sujeição e sexualidades47 Aina Pérez Fontdevila (Universitat Autònoma de Barcelona) Tradução de Brena Barros (Graduanda Arqueologia UNIR)
Resumo: Este artigo se propõe a refletir sobre as discussões em torno da autoridade do desejo sobre o sujeito e a ficção da singularidade, procurando reivindicar, principalmente no que se refere à expressão das sexualidades não-hegemônicas, a desconstrução de discursos normativos e o exercício de nossa agência transformadora.
“Sabemos del amor por lo que alumbra, (...) por su modo de estar en la penumbra”, como diz o poema de Manuel Alcántara (e a canção de Mayte Martín) e nos apraz esta imagem segundo a qual nunca vemos diretamente o rosto, e sim os efeitos, as marcas. Apaixonar-se é justamente isso: encontrar-nos esboçando um gesto que nos ponha no encalço de um rasto sem tempo para questioná-lo, é permitir que a mão direita ignore o que faz a esquerda. Sem muitas explicações, sem muitas decisões, como se uma intervenção decidida do eu, como se uma interferência da razão, desvirtuassem o amor, subtraindo-lhe autenticidade. Senhorear o desejo, ser demasiadamente ama de si mesma no querer, ou seja (para introduzir a comparação que usarei no momento), ter sobre ele demasiada autoridade, parece atestar sua falsidade. Como se dominar, neste âmbito, quisesse sempre dizer sujeitar, reprimir, com ou sem o reflexivo: Isto é, conter por um coup de force do eu, algo que não sou eu, e por sua vez, por um coup de force do eu, conter-se, conter o eu, aquele que é mais genuíno, isso que constituiria sua única firma verdadeiramente autêntica, precisamente aquela que, de fato, não pode traçar do todo porque não pode firmá-la sozinha. Frequentemente pensamos no desejo, no prazer, na paixão sob um paradigma similar aos que servem também para pensar a criação artística48. Isto é, como aquilo que, provindo de instância alheia e superior – a fonte de inspiração (as musas, as divindades, a Arte em maiúsculo) - nos aflige, nos arrasta, nos ultrapassa, sem que o possamos – e com frequência, sem que o queiramos – evitar. Entendidas desde esse ponto de vista, criatividade e paixão tracejam uma figura ambígua para a subjetividade: espaços de desagenciamento nos quais não sou eu (ou não apenas eu), quem esboça Este artigo se insere no projeto “¿CORPUS AUCTORIS? Análisis téorico-práctico de los procesos de autorización de la obra artístico-literaria como materialización de la figura autorial" (FFI2012-3337I), do grupo de pesquisa consolidado Corpo e Textualidade (Universitat Autònoma de Barcelona). Foi publicado originalmente em língua catalã com o título “L'autoritat en desig. Algunes reflexions sobre subjecció i sexualitats” na revista Quadern de les idees, les arts i les lletres (ISSN 1695-9396), 193, Dezembro 2013 / Janeiro 2014. 48 Como mostram Berensmeyer, Buelens e Demoor, ao longo da história da arte e da literatura encontramos uma alternância entre concepções “fortes” e “fracas” da autoria, que dependem precisamente do grau de agência, propriedade, autoridade, etc., que se atribui ao autor/a. Sou consciente, pois, de que descrevo somente um dos paradigmas através dos quais se compreende a autoria artística. 47
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um gesto ou um escrito, e, por sua vez, espaço de singularização, porque é a mim a quem esta instância fala (sou eu o/a escolhido/a: tenho talento, tenho dom), e porque este esboço (o gesto que faço como se fosse uma marionete) torna-se, paradoxalmente, a assinatura do que me é mais próprio. Já não tanto – ou não tão somente – do que me pertence e sim do que me é mais genuíno, idiossincrático. Tanto em um caso como no outro, essa autenticidade não depende, pois, de um sujeito plenamente soberano, e sim da abertura à alteridade, a um outro concreto e encarnado – o/a amante, o/a amado/a de um lado; o/a leitor/a da obra de outro, mas, sobretudo, a esta alteridade sem rosto que é a instância que move os fios acima de nós. Para além disso, outra característica comum enlaça estas concepções de desejo e criação: o fato de que esta instância desagenciadora não é pensada nunca como uma instância social, porque se o fosse, perderia sua capacidade singularizadora. De fato, o paradigma que estou tentando descrever – sem subscrever – reforça a dicotomia público/privado, cultural/natural, sociedade/indivíduo: a força que nos ultrapassa no desejo e na criação oriunda de um lugar selvagem, instintivo, natural, biológico, indomesticável; ou então, de um lugar divino, atemporal, universal, ideal. Em todo o caso, de um lugar imaginário que se opõe sempre ao espaço social entendido como espaço de homogeneização, repetição, normatividade, domesticidade, tradição ou reprodução. Visitá-lo ou - mais precisamente- ter a sorte de sermos visitados por uma instância oriunda dele, nos permite produzir algo que seja único, irrepetível, singular, e nos tornarmos assim, únicos, irrepetíveis, singulares, isto é, plenamente humanos. É justamente porque não participa do âmbito do comum (em ambos os sentidos: do compartilhado e do corrente), porque tem a ver com a comunicação com instâncias que excedem ao indivíduo – pelo menos como indivíduo social – mas, sobretudo, a comunidade, que o produto deste encontro pode ler-se como expressão genuína da interioridade de um sujeito – embora este não possa sempre considerar-se sua fonte ou origem – frente às forças alienadoras e – insisto – homogeneizadoras do espaço social, público, exterior. Neste sentido, essa comunicação na realidade constitui ou, no mínimo, ratifica (certifica, afirma, firma) o receptor como sujeito/indivíduo entendido como entidade vinculada à unicidade, à indivisibilidade ou à irrepetibilidade, e dotado de um interior capaz de estabelecê-la, para além das interferências exteriores. A verdade ou autenticidade que se descobre neste encontro pode ler-se como intrínseca ou extrínseca do sujeito, ou seja, como uma essência interior velada pelo involtório cultural que se deve desnudar de contingência, ou como uma verdade imutável proveniente de uma instância ideal. Em ambos os casos, o afastamento e o recolhimento em si, seja na solidão total do artista ou na comunidade fechada dos/das amantes, torna-se condição deste descobrimento. Se no âmbito da criação esta ficção ainda opera no modo como construímos algumas das figuras do artista ou do escritor, no âmbito do desejo, do prazer ou da paixão é evidentemente Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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insustentável que sintamos sem padrões, alheios a narrativas previas e compartilhadas, e menos ainda que os gestos que a isso se vinculam nos confiram um caráter singular ou irrepetível. Apesar disso, algumas resistências a considerar sua natureza social, cultural, construída ou textual talvez possam entender-se também desde esta resistência a abandonar esta ficção paradigmática, que, como víamos, é também ou sobretudo uma ficção sobre o que quer dizer ser eu. Há um momento atrás eu escrevia sobre o lugar imaginário do qual brota a fonte do desejo e da criatividade e o caracterizei com duas enumerações que, justapostas, bem que poderiam enumerarse caóticas: um lugar instintivo, natural, biológico; ou um lugar atemporal, universal, ideal. De um lado, o corpo, entendido como realidade inevitável e impermeável à cultura (onde a cultura subtrairia idiossincrasia distorcendo a verdade única deste corpo); do outro, precisamente a possibilidade de transcendê-lo se o consideramos aquilo que nos ata à animalidade, à repetição e a reprodução (que se opõem à singularidade ou a individualidade). Diria que ambos funcionam tanto na ficção do desejo ou a sexualidade, como na ficção da criatividade. Sobre a última, só quero apontar que, embora historicamente se associe ao segundo conjunto de características e, portanto, a um sujeito capaz de sobrepor-se ao jugo do corpo (precário, contingente, sexual, concreto, mortal, enganoso, distorcionante), também buscou em âmbitos que tradicionalmente se lhe associem – a natureza selvagem e indomesticável – o fundamento de sua reivindicação daquilo original, inovador, excepcional, etc., sempre em oposição a uma influência social castradora por anódina, tradicional, repetitiva e normativa: este seria, por exemplo, o paradigma de algumas vanguardas e de suas derivações posteriores49. Quanto aos discursos sobre o desejo – dentre os quais me ocuparei só de alguns dos que pretendem reivindicar as sexualidades não hegemônicas -, a tensão entre o singular e o social, mais que na experiência da relação sexual ou amorosa – onde é evidente a existência de narrativas culturais-, se manifesta na consideração de sua orientação como traço identitário, e o faz – eu diria - em discursos politicamente divergentes. Para começar, as propostas essencialistas ou biologistas, de herança decimonônica, concebem o corpo como espaço de uma verdade natural e original (seja genética, hormonal, cerebral, etc), que as coerções sociais podem oprimir ou mascarar, mas jamais modificar: a agência do sujeito reside aqui, pois, na libertação do jugo social que reprime uma sexualidade verdadeira através do seu descobrimento e de sua reivindicação, mas não na possibilidade de intervir nela50.
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Significativamente, a feminilidade mudou de rosto conforme as flutuações na concepção da criatividade: quando esta se entendeu como transcendência do corpo, aquela se construiu em relação à natureza e a reprodução, vetando assim o acesso das mulheres à legitimidade criativa; quando se entendeu, em câmbio, como espaço do selvagem, a feminilidade se construiu ligada à domesticidade e a reprodução cultural – o paradigma do qual seria, frente a arte, o artesanato -. Para aprofundamento nestes aspectos, recomendo o livro de Michelle Coquillat La poetique du mâle. 50 Na medida em que é um dos discursos que atravessa as representações das sexualidades não hegemônicas, poderíamos dar centenas de exemplos dele, mas proponho, para ilustração, a página da web Born this way, que se apresenta como “a photo/essay project for gay adults (of all genders) to submit childhood pictures and stories (...) reflecting memories and early beginnings of their innate LGBTQ selves. Nurture allows what nature endows. It’s their Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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Neste caso, a/firmar o sujeito frente ao entorno social ou a influência cultural implica subordiná-lo a uma instância que, por outro lado, obtém sua legitimidade de seu caráter imutável, ao menos enquanto dure um corpo efêmero51. Este discurso esconde reversos politicamente questionáveis, porque exime de responsabilidade tanto o indivíduo como o entorno social52. De um lado, produzindo alguns efeitos similares aos da patologização trans, escusa os sujeitos tirando-lhes a capacidade de agência e, portanto, de eleição: se toda desculpa pressupõe a culpa, se sanciona um discurso hegemônico no qual as categorias sexuais aparecem claramente hierarquizadas, justificando a pertinência à categoria inferiorizada. Ademais, possibilita uma inclusão dentro do marco social que garante a sobrevivência de categorias estancas e puras (homossexual/heterossexual) e, no geral, a continuidade dos termos nos que este marco se apresenta: a visibilidade do desejo homossexual não questiona a hegemonia da heterossexualidade, já que, enquanto expressão de uma verdade natural, a diversidade de representações incide relativamente na experiência dos indivíduos. Na melhor das hipóteses, contribui a libertar aqueles que já estão marcados de antemão por uma diferença que se inscreve em um corpo impermeável a aquilo que o rodeia. Outros discursos sobre o desejo não normativo colocam ênfase na pressão alienante de um entorno hegemônico que, agora, é claramente identificado como patriarcal: reivindicam uma instância interior portadora de uma identidade autêntica cuja libertação e cuja possibilidade de expressão se associa com o acesso a uma suposta plenitude como seres humanos, que há que se conseguir mediante o isolamento de uma sociedade coercitiva53. A agência do eu em relação ao desejo fica aqui subordinada. Uma verdade interior a ser descoberta “na privacidade de nossas psiques”, como reza um manifesto de 1970; a autonomia ou a soberania reside uma vez mais na possibilidade de libertar esta verdade de um entorno que nos obriga a mascará-la inclusive quando nos encontramos frente ao espelho. No contexto feminista, onde não é possível menosprezar a importância política de postular que a biologia não é o destino, estes discursos não reivindicam o corpo como origem de uma verdade do desejo, mas não deixam de reforçar as dicotomias indivíduo/sociedade e público/privado, esquecendo, pois, pelo menos em parte, essa outra premissa feminista: que o pessoal é político. Considera-se a sociedade como uma trama normativa, mas se nature, their truth!”. Convido-lhes também a escutar as canções homônimas de Bobby Valentino (1975) e Lady Gaga (2011). 51 E, segundo o olhar, mais além, já que a genética é um vínculo do indivíduo com a espécie, a estirpe, a herança e, portanto, com uma instância em certa medida atemporal ou, no mínimo, que transcende a precariedade do corpo. 52 Para aprofundamento na análise das consequências políticas destes discursos, recomendo o livro de Gerard CollPlanas La voluntad y el Deseo. 53 Refiro-me, por exemplo, a alguns dos discursos que conformam o feminismo lésbico dos anos 70, como mostra o documentário Lesbiana. Une revolution parallele, que reflete sobre os movimentos separatistas, ou a alguns dos manifestos que Rafael Mérida recolhe em Manifiestos Gays, Lesbianos, Queer, como o que assina o coletivo Radicalesbians. As duas citações que aparecem na continuação, no corpo do texto, foram extraídas deste manifesto intitulado “Woman Identified Woman”. Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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preserva um núcleo privado e autêntico que permanece alheio a ela e que pode recuperar-se. A agência do sujeito se arrisca neste gesto de recuperação, que o singulariza na medida em que o diferencia de uma massa social que leva as máscaras de umas “identidades coercitivas”, que são – estas sim- construídas e, portanto, segundo esta lógica, falsas. Apesar de estarem muito distanciadas, desde um ponto de vista tanto genealógico como ideológico, das propostas expostas até aqui, as leituras voluntaristas da teoria queer54 nos permitem estabelecer um diálogo com os postulados sobre a subjetividade que, como tentei mostrar, estruturam aquelas. Graças a uma (enviesada) interpretação da performatividade de gênero proposta por Judith Butler, estas leituras se livram do corpo (que é interpretado agora como materialização discursiva) e da noção de interioridade ligada a uma verdade que se tem que descobrir e expressar (uma interioridade que é, aqui, o efeito do processo de subjetivação e não o seu princípio), e subsumam assim, no primeiro, o segundo termo dos binômios cultural/natural, público/privado, exterior/interior. Não obstante, o menosprezo ao social não é menor que nas outras propostas: em uma consideração do cultural como absolutamente maleável55, o produto destas leituras é -agora sim- um sujeito plenamente soberano, que já não deve nada a uma instância que o co-firme, nem corporal nem idealmente. Como se a compreensão do caráter construído do gênero, a sexualidade e, em última instância, a identidade em todos seus aspectos – uma compreensão que singulariza a aqueles que acessam a ela frente a uma massa que vive na ficção da natureza-; como se o descobrimento da ausência de uma origem ou de uma verdade para o desejo dotassem o sujeito de plena autoridade com respeito a suas encenações. Deste modo, a ficção de uma singularidade a qual se acesse através do exercício da soberania – mais ou menos plena, mais ou menos ligada a autoridade como origem ou como possibilidade de acesso a uma origem alheia – funciona tanto neste como nos outros discursos que tentei analisar anteriormente, sustentando uma bajuladora fantasia do eu, um eu que, de algum modo, continua esforçando-se em preservar um espaço distante do “mundo comum”, como reza o título de Marina Garcés; um espaço onde situar o que é mais próprio, aquele que, em última instância, o faz quem é. Longe deste imaginário, uma leitura atenta das propostas queer – como a que faz boa parte do ativismo e da teoria -, toma nota do vínculo vital da subjetividade como uma trama normativa que não só a restringe ou a oprime, e sim que a habilita e da qual não se pode desfazer sem desfazer-se, embora possa negociar com ela ao negociar-se.
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Para uma leitura crítica dessas propostas, recomendo o livro de Gerard Coll-Planas, La Carne y La Metáfora. Ali serão encontrados alguns exemplos. 55 Consideração que é herdeira do binômio cultural/natural que, neste sentido, fica por desconstruir. Embora o natural se leia aqui como construção discursiva, entender o cultural como maleável continua remetendo a um oposto imutável. Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
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A interioridade, agora, é verdadeiramente um produto da exterioridade, sem esconderijos onde encastelar-se. Por sua vez, a exterioridade, o mundo comum, tampouco sai ileso deste reconhecimento, porque a agência do sujeito (que o discurso social habilita como agente, precisamente) reside em sua capacidade para transformá-lo ao transformar-se e vice-versa, sem a possibilidade de que sobrevenha uma transformação a margem da outra. Mas com a possibilidade – e com a responsabilidade que suceda alguma transformação, embora não nos faça excepcionais, únicos, irrepetíveis se isso significa desvincular-nos do compartilhado e do corrente. O reconhecimento de que nos tornamos sujeitos, e sujeitos do desejo, através da sujeição a normativas de poder e aos discursos culturais onde se materializam, não nos impossibilita como agentes capazes de diversificar, flexibilizar ou desviar estas normas que nos sujeitam apesar de que não as tenhamos ditado nós mesmos; não nos impede de ampliar o âmbito daquilo que podemos imaginar, entender e viver, transformando alguns discursos que, não obstante, continuam interpelando-nos e construindo-nos. Do mesmo modo que não poder considerar-nos donas e amos de nosso desejo, autores do gesto que nos conduz, não nos exime de assumir suas consequências nem de pensar-nos e praticarmos para alargar os limites do que podemos fazer e, sobretudo, nos deixar fazer; os limites do espaço em que a escritura pode traçar-se, embora continuemos sem poder e, por favor, sem querer firmá-la sozinhos.
Referências Berensmeyer, Ingo; Buelens, Geert; Demoor, Marysa. “Autorship as Cultural Performance: New Perspectives in Autorship Studies”. ZAA: Zeitschrift für Anglistik und Americanistik. A Quartely of Language, Literature and Culture, 60.1, 2012. Coll-Planas, Gerard. La Voluntad y el Deseo. La Construcción Social del Gênero y la Sexualidad: El caso de Lesbianas, Gays y Trans. Madrid: Egales, 2010. _________, La Carn i la Metàfora. Una Reflexió Sobre el Cos en la Teoria Queer. Barcelona: Ediloc, 2011. Coquillat, Michelle. La Poetique du Mâle. Paris: Gallimard, 1982. Garcés, Marina. Un mundo común, Barcelona: Edicions Bellaterra, 2013. Mérida, Rafael. M. Manifiestos Gays, Lesbianos, Queer. Testimonios de uma lucha (1969-1994). Barcelona: Icaria, 2009.
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Ensaio Fotográfico
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Glacial Perito Moreno: um olhar sobre o gélido azul na Patagônia Simone Gomes Marques
El Calafate, uma pacata cidade turística argentina está situada na Província de Santa Cruz às margens do lago Argentino, o maior lago da Patagônia Argentina, na fronteira com o Chile. De lá se chega ao Glacial Perito Moreno localizado nas coordenadas 47º e 51º de latitude sul, sendo um dos glaciares do Parque Nacional los Glaciares, pertencente ao banco de gelo continental sul, uma das maiores reservas de água doce do planeta. Ao observar sua majestosa imponência, frente ao paredão gélido azulado com seus 80 metros de altura, ouvimos seu rugido. Avançando numa velocidade de 2 metros/dia, os imensos blocos de gelo chocam entre si empurrando, rachando e provocando rugidos estrondosos. O glacial Perito Moreno produz gelo na mesma proporção em que o perde, mantendo assim o equilíbrio. Quando a produção é maior que a perda, o glacial avança tocando o continente e represando o lago a sua frente. Trava-se uma batalha silenciosa entre o gelo e a água, com o passar do tempo, que pode ser dias ou mês, a pressão da água fura a resistência do gelo ocorrendo um fenômeno chamado “rompimento do glaciar”. Numa rápida sequência se forma um pequeno túnel no bloco, que com o atrito da água vai aumentando através do gelo. Formando-se por vezes uma gigantesca ponte de gelo que finalmente colapsa com enorme estrondo atirando pedaços enormes de gelo no entorno. O enorme estrondo provocado pelo impacto do gelo com a água, em contraste com o silêncio que reina no local é impressionante e ao mesmo tempo fascinante. Há uma passarela para observação do fenômeno a uma distância segura. As informações sobre a geleira foram cedidas pelos guias do Parque Nacional los Glaciares. E as fotos tiradas durante um passeio pela Patagônia Argentina em janeiro de 2014.
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Foto 01: Visão panorâmica do Glacial Perito Moreno com 32 km de extensão e 5 km de largura. Seu nome foi dado em homenagem ao explorador Francisco Moreno que fez o estudo da região no século XIX.
Foto 02: O bloco de gelo chega ao continente.
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Foto 03: Observa-se o túnel já com dimensões suficiente para derrubar o gelo e desbloquear o fluxo de água do lago.
Foto 04: Desprendimento e queda dos blocos de gelo no túnel.
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Foto 05: Os glaciares são formados basicamente de neve compactada, possuindo várias nuances do branco ao azul.
Foto 06: Paredões de gelo compactado com cerca de 80 mts de altura e 100 mts abaixo da água.
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Foto 07: A água descongela e escorre pela geleira abastecendo o grande lago.
Foto 08: Paisagem singular que encanta os olhos e a alma.
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Foto 09: Blocos de gelo desprendem-se, provocando estrondos ao cair nas águas do Canal de los Témpanos (Canal dos Icebergs).
Foto 10: Visão do glacial Perito Moreno na perspectiva angular das passarelas. Fotografia por: Simone Gomes Marques Camêra Digital Canon Power Shot SX50 HS Data: 13/01/2014
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Sobre as autoras e os autores
Brena Caroline Barros. de S. Miranda. Graduanda em Arqueologia, Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Carlos Miguel Teixeira Ott Estudante do Curso Técnico de Química Integrado ao Ensino Médio. IFRO – Câmpus Porto Velho Calama.
[email protected] Catarina Casimiro Trindade possui licenciatura em Sociologia pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Portugal, tendo feito a sua pesquisa de monografia sobre microcrédito e mulheres em Maputo, Moçambique, na área da Sociologia do Trabalho e do Emprego. Em Maputo, trabalhou como oficial de programas numa ONG feminina para a promoção e defesa dos direitos humanos da mulher, e mais tarde numa rede de escolas e centros profissionais, onde desempenhou o cargo de técnica de género. Faz parte da rede de formadores do Fórum Mulher, rede da sociedade civil que congrega várias organizações comprometidas com a defesa dos direitos humanos das mulheres e igualdade de género. É atualmente mestranda do programa de pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas, pesquisando associações de poupança e crédito rotativo também em Maputo, Moçambique, mais especificamente a prática do xitique. Iranira Geminiano de Melo Mestre em Ciências (Educação Rural) pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
[email protected] Jarisson Lima Dos Santos Albuquerque Membro do Núcleo de Ensino e Pesquisa Arqueológico NEPA José Ítalo Oliveira dos Santos Estudante do Curso Técnico de Química Integrado ao Ensino Médio. IFRO – Câmpus Porto Velho Calama.
[email protected] Josenaldo Santos Porto Docente do Instituto Federal de Rondônia – Câmpus Calama.
[email protected] Laura Borges Nogueira Mestre em Desenvolvimento Regional pela Universidade Federal de Rondônia. Docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Rondônia.
[email protected] Liliane Barreira Sanchez Dra. em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
[email protected] Lourismar da Silva Barroso Professor da Rede Estadual de educação, Licenciado em História – UNIR - Especialista em Arqueologia da Amazônia – Faculdade São Lucas e Mestrando pela PUCRS-FCR,
[email protected] Lucas Mariano Dias Estudante do curso técnico de Eletrotécnica Integrado ao Ensino Médio – IFRO/Câmpus Porto Velho Calama.
[email protected] Luciano Bezerra Agra Filho
[email protected] Graduado em Licenciatura em História pela Universidade Estadual da Paraíba [UEPB] e Graduando em Licenciatura Plena em Filosofia pela Universidade Estadual da Paraíba [UEPB].
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Madson Silva de Souza Junior Estudante do curso Técnico de Informática integrado ao Ensino Médio do IFRO – Câmpus Porto Velho Calama.
[email protected] Maria Enísia Soares de Souza Mestre em Linguística pela UNIR. Docente da Faculdade Metropolitana.
[email protected] Maryelle Inacia Morais Ferreira Graduada em Ciências Sociais com Habilitação em Políticas Públicas pela Faculdade de Ciências Sociais – UFG. Email:
[email protected] Rafael Ademir Oliveira de Andrade é Cientista Social e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Rondônia. Atualmente leciona as disciplinas de Sociologia, Antropologia e Sociologia da Educação na rede privada de ensino superior, na cidade de Porto Velho, Rondônia. Reginaldo Martins da Silva de Souza Mestre em Geografia pela Universidade Federal de Rondônia. Docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Rondônia – IFRO.
[email protected] Ricardo Moreno de Melo Professor de Artes do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro; Professor do CBM – Conservatório Brasileiro de Música, onde leciona as disciplinas “Cultura Popular” e “Fundamentos da Antropologia Cultural”. Graduado em Música pela UNIRIO – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, e Mestre pela mesma universidade com a pesquisa: “Tambor de Machadinha: devir e descontinuidade de uma tradição musical em Quissamã”. Atualmente faz doutorado em Antropologia no PPGA da UFF – Universidade Federal Fluminense. Simeia de Oliveira Vaz Silva Aluna do curso de Mestrado em História pela PUCRS-FCR é professora da rede estadual e municipal do Estado de Rondônia, formada em história pela Universidade Federal de Rondônia e pós-graduada em História Regional e Gestão Escolar. E-mail:
[email protected]. Simone Mestre Bacharel e licenciada m Ciências Sociais/UNIR Mestranda em Antropologia social/FAFICH/UFMG Tiago Lins de Lima. Especialista em Java pela FATEC/RO. Analista de TI do IFRO. Acadêmico do curso de Direito – UNIR.
[email protected] Uílian Nogueira Lima Docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Rondônia. Mestrando em História e Estudos Culturais pela Universidade Federal de Rondônia.
[email protected] Xênia de Castro Barbosa Mestre em História Social pela USP. Doutorando em Geografia (DINTER UFPR/UNIR). Docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Rondônia – IFRO.
[email protected]
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