ILHAS DE TECNOLOGIA NO NORDESTE BRASILEIRO E A REINVENÇÃO DA NATUREZA lná Elias de Castro*
Islands of technology in the Brazilian Northeast the re-invention of the environment Based on the intensive use of irrigation methods, a series of modem agribusiness zones have emerged in lhe Brazilian Northeast. They represent true 'islands of technology' which contrast sharply with the surrounding areas, still characterized by the persistence of poverty. The article discusses the
and
meaning of these new productive zones for the regional eccnorny and their potential ability to disrupt both the prevailing regional represeritation of an unfavourable environment and the srructural conditions which favor the persistence of backwardness.
Introdução A Região Nordeste tem o triste privilégio de guardar a maior parcela da população pobre do Brasil. Paralelamente, cerca de 80% do seu território possui um clima tropical semi-árido, sujeito a secas periódicas. A relação de causa e efeito entre esses fenômenos social e natural foi inevitável, ao longo da história regional, e tem alimentado um discurso que fundamenta, na natureza, os problemas sócio-econômicos e, ainda hoje, possibilita uma resistente "indústria da seca". No entanto, há três décadas, têm surgido na região "diversos subespaços dotados de infra-estruturas econômicas modernas e ativas, focos de dinamismo, em grande parte responsáveis pelo desempenho relativamente positivo apresentado pelas [suas] atividades econômicas" (BACELAR, 1997).
Dentro dessa problemática, bem mais ampla, a questão central deste trabalho é compreender o significado dos novos espaços produtivos, que têm . Professora do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Janeiro - UFRJ, pesquisadora do LAGET e do CNPq.
Federal do Rio de
46
Revista Território,
Rio de Janeiro,
ano V, n" 9, pp. 45-63, jul./dez.,
2000
surgido com o agrobusiness, nas áreas irrigadas da Região Nordeste. Por se tratarem de áreas pequenas, inseridas no amplo sertão semi-árido, estas constituem verdadeiras "ilhas de tecnologia" que se diferenciam profundamente do seu entorno. Assim, da mesma forma que essa Região tem sido, historicamente, um desafio para explicar a persistente pobreza de parcela significativa da sua população, na atualidade, estas "ilhas" estimulam a reflexão sobre as possibilidades de ruptura tanto do imaginário de uma natureza desfavorável como das condições estruturais que favorecem a persistência do atraso na maior parte do território regional. Em função da necessidade de incorporação de tecnologia e de capital, esta atividade torna-se um vetor portador de elementos de mudanças nos lugares mais atrasados da Região. A atividade aqui referenciada é a fruticultura irrigada, voltada para exportação. A complexidade do processo produtivo que requer capital, pesquisas, experimentos, logística para comercialização, suporte de infra-estrutura de transporte, portos adequados, energia e mão de obra, redefine a dinâmica dos territórios em que se instala, tomando mais numerosos e diferenciados os atores sociais e mais complexas suas demandas. Estes atores - privados e públicos - articulam-se localmente para criar as condições favoráveis à produtividade e à competitividade. Seu modo de agir é paradigmático das seletividades territoriais que decorrem do impacto da economia global sobre a local e das respostas que os territórios são capazes de dar aos impulsos vindos do exterior. O território, objeto da investigação, é o pólo de fruticultura localizado no oeste do Rio Grande do Norte. Embora o pólo de irrigação mais importante da região, e certamente mais estudado, seja o de Petrolina-Juazeiro, no Vale do Rio São Francisco, a área escolhida, bem menor e mais recente, guarda algumas especificidades e, por encontrar-se em estágio mais recente de desenvolvimento e expansão, há maior visibilidade nos processos dinâmicos impostos por essa atividade em meios rurais atrasados. Sendo assim, o objetivo deste trabalho é apontar as evidências dos impactos do agrobusiness, tanto as ressonâncias na organização dos sistemas econômico e social, especialmente nas relações de trabalho, como nas possibilidades que se abrem para a participação política do trabalhador rural do sertão e de um novo imaginário da natureza semi-árida regional. Como percurso metodológico, optamos por uma dupla abordagem que interpreta o setor rural como um eixo de inovações e o território como um campo de ação privilegiado. As mudanças provocadas pelos impulsos do desenvolvimento, as questões por elas suscitadas e as análises na Iiteratura acadêmica que procuram interpretá-las constituem o ponto de partida conceitual que este trabalho se propõe adotar. Mesmo se há na geografia uma importante tradição de pesqui-
Ilhas de Tecnologia
Nordeste
00
sas e anál ise do complexo de análise tradicionais, volvidas
Brasileiro
processo
apoiados
pela economia
e a Reiovenção
de desenvolvimento
principalmente
espacial,
47
da Natureza
regional',
os modelos
nas teorias locacionais,
não mais explicam
os efeitos
desen-
e as limitações
territoriais da dinâmica contemporânea desse processo. Destacando os recursos ótimos para atrair investimentos e assumindo a manutenção da tecnologia como livremente disponível e instantaneamente adaptada por firmas e países, a teoria locacional, volvimento invenção
principal
espacial como
nas décadas
fundamento
teorias reside basicamente como
secundária
referência
para os modelos
de 60 e 70, não considerou
da inovação
e da difusão.
no fato de terem incorporado
em relação
de análise
a outras
condições,
o processo
A limitação
a inovação
entre
do desende
dessas
tecnológica
elas a razão
capital!
trabalho", Nas regiões periféricas o processo de desenvolvimento é uma questão recorrente. Na atualidade, no entanto, ele deve enfrentar os problemas da competitividade, não mais apenas entre produtores, mas também entre os lugares; da existência ou não de condições capazes de favorecer à inovação e da crescente
dificuldade
do Estado
tivo. Este ponto de partida dos tradicionais, identificar
define
as variáveis
conduz
em participar
diretamente
a um modelo
de análise
o território
como
mais conseqüentes
social. Esta é uma opção objetivo de compreender
campo
do setor produque, ao contrário
de ação
para o processo
privilegiado
para
de mudança
eco-
nômico
metodológica que consideramos mais adequada ao como o agrobusiness, especialmente aquele da fru-
ticultura irrigada, tem se tornado um vetor de transformação em alguns lugares do Sertão nordestino brasileiro, locus tradicional do atraso no país. Se do ponto de vista da área ocupada poderia
ser considerada
que já se fazem
sentir,
na região secundária,
e do capital
é necessário
no historicamente
mobilizado interpretar
bem-articulado
esta
atividade
os seus efeitos, discurso
sobre
as
limitações do clima semi-árido e seus períodos incertos de secas. A inversão dos termos deste discurso indica a importância dessa atividade, para muito além da sua extensão territorial, e por si só justificaria realidade, a possibilidade de romper com o mito da natureza
I
1
O
seu estudo. Na semi-árida como
As teorias do desenvolvimento regional de G. Myrdal, A. O. Hirschman;J. Boudeville; W.W. Rostow; F. Perroux, e os trabalhos inspirados na teoria da localização de W. Isard, como os de D. North, W. Alonso; H. W. Richardson estimularam importantes trabalhos na geografia das décadas de 60 e 70 como os de 1. Fricdmann: W. B. Stõhr, B. Berry e, no Brasil, B. Becker, além de uma ácida crítica a esta corrente feita por M. Santos. Ver ZOOK (1997), onde é feita uma ampla revisão bibl iográfica sobre o desenvol vimento regional com 165 citações, além de uma discussão que destaca a importância da inovação nos novos modelos conceituais do desenvolvimento regional.
48
Revista Território, Rio de Janeiro, ano V, n" 9, pp. 45-63, juI./dez., 2000
fundamento da pobreza regional gera importantes conseqüências no plano social e político, com desdobramentos econômicos e territoriais (CASTRO, 1996). Essa natureza, considerada limitante para as atividades tradicionais e que tem alimentado o imaginário de inferioridade regional, constitui hoje uma vantagem competitiva. Na realidade, as condições de implantação e de desenvolvimento da fruticultura irrigada resultam num ambiente produtivo pautado na inovação tecnológica e no capital, muito diferente daquele que a região tradicionalmente conheceu. São estas novas necessidades aliadas às condições particulares do clima tropical semi-árido que, acreditamos, formam eixos dinamizadores no território regional e criam condições para a produção de um novo imaginário regional e um novo discurso, cujos efeitos já se fazem sentir.
1. Território
como campo
de ação
As teorias do desenvolvimento regional, elaboradas para interpretar e alavancar o processo dinâmico das economias nacionais, como indicado acima, não mais respondem aos desafios contemporâneos. Estes residem cada vez mais no domínio das técnicas de controle da distância, na densidade informacional ou relacional dos territórios, na sua dimensão inter-organizacional, na intencionalidade e nas estratégias que modificam substancialmente os atributos definidores do potencial ou da atratividade de uma região ou território (COVAS, 1995). Na realidade, a emergência de novas tecnologias tem contribuído para uma incessante renovação das estruturas econômicas, de produção e de consumo. Tanto o ambiente produtivo mundial alterou-se profundamente como o mercado mundial tem se expandido para uma gama ampla e variada de produtos. Com a globalização da economia, a intensificação das interações entre o local e o global faz com que o sistema produtivo mundial tenha, cada vez mais, a aparência de um mosaico de subsistemas territoriais de produção flexível e especializada em concorrência uns com os outros (FERRÃo, 1992; ALBUQUERQUE, 1998). A proposta do programa de governo Brasil em Ação para o período 9598 é significati va desta transformação e das respostas possíveis da periferia à organização globalizada da economia. Ao contrário dos planos de desenvolvimento de décadas anteriores, ancorados em setores alavancadores de uma economia regionalmente localizada, a opção atual é valorizar o território e estimular suas aptidões produtivas e competitivas através de eixos que constituem corredores ao longo dos quais os investimentos em infra-estrutura são previstos. Esta opção é reflexo do aumento da mobilidade dos fatores que
Ilhas de Tecnologia
no Nordeste
Brasileiro
e a Reinvenção
49
da Natureza
impõe aos governos nacionais estratégias para ampliar a competitividade do conjunto
ou de parte do seu território,
através
do investimento
sistêmica nos fatores
de menor mobilidade, como a qualidade da infra-estrutura tecnológica e da mão de obra, pois as forças propulsoras na economia global são as partes dos sistemas de produção, necessariamente, territorializadas (STORPER, 1994;
SCOTT, STORPER,
1987). perspectiva geográfica,
Numa absorvidos
de modo diferenciado
principalmente
de dinâmicas
os impactos
pelo sistema
do desenvolvimento
reza endógena
e das condições
produtivo
do território.
específicas
uma dinâmica
das mudanças
territorial
recente
que são propícias
globais
e a diferença
são
resulta
Em outras palavras, que decorre
à inovação
há
da sua natu-
e às ações
dos
agentes locais. O território deixa de ser apenas suporte e torna-se cada vez mais ele mesmo um sistema de produção, o que obriga uma mudança na visão do espaço, típica das teorias do desenvolvimento regional dos anos 70, como uma base passiva destinada a acolher atividades móveis, para outra que o percebe como um sistema localmente articulado de organizações ativas, capazes de fazer território
nascer
suporte
de recursos
o processo
de recursos
estratégicos
de inovação.
passivos
Passa-se
e estáticos
e específicos.
Deve
então
àquela
da noção
dc território
ser observado
que,
de
criador
em
1986,
AYDALOT já apontava que os componentes maiores na determinação da capacidade de suscitar inovações num determinado território são a história do seu meio, da sua organização, os comportamentos coletivos que asseguram sua coerência e o consenso que os estrutura. Esta é uma vertente analítica cada vez mais importante amplo
que, ancorando-se
leque de possibilidades
produti vo globalizado.' Pela experiência afirmar
torna-se
as dinâmicas
inserir o território
dos territórios
dos países centrais,
que o território
ças entre
nas experiências
na problemática
frente às condições
e mesmo
uma variável
econômicas
relativas
crucial
dado
variáveis
1
Desde
definidas
o início
perspectiva utilizadas
EWERS
dos
dos
anos
80 há uma
tecnológicos para
e WETIMANN,
este 1995.
ampla
as diferen-
espaços.
bibliografia
Ver AYDALOT,
Porém,
aponta a necessidade de produção. de construção coletiva,
inovadores
sobre
o tema,
As referências 1986;
não sendo
dependem nacionais
especialmente aqui
MAILLAT,
de
Em outras oriundo das
não sendo necessariamente
e da globalização. texto:
do sistema
para explicar
ele aprendizagem
os comportamentos
no nível territorial,
pólos
diretamente
sentido,
um
é possível
do desenvolvimento
dos atores e dos fenômenos
a priori. Neste
revela
dos periféricos,
dos diferentes
compreender a dinâmica dos sistemas territoriais pala vras, o território é o resultado de um processo estratégias
locais,
são apenas 1995
de ou
na as
e 19%:
50
Revista Território, Rio de .Ianeiro, ano V, n" 9, pp. 45-63, jul.ldez., 2000
regionais.
Cada território
territorial
de produção,
possui,
pois, uma ambiência vinculada
ou seja, a uma configuração
de agentes
a um sistema e de elementos
econômicos, socioculturais, políticos e institucionais, que possuem modos de organização e de regulação específicos." Neste sentido, mais importante do que os tradicionais critérios e fatores de localização, como presença de mão de obra qual ificada, centros de pesquisa, aeroporto, amenidades culturais e residenciais, clima agradável, etc., está a ação dos meios disponíveis nos territórios específicos, nos quais se tecem as variadas relações de cooperação entre empresas,
clientes
redes organizacionais
e fornecedores,
centros
de pesquisa
e de formação
de
à inovação.
favoráveis
Portanto, o território torna-se não apenas continente, mas um dado efeli vo da inovação. Esta nova problemática baseia-se na capacidade dos agentes locais em perceber as mudanças que se produzem fora e em realizar para se adaptar, estimulando o fortalecimento dos sistemas territoriais
projetos de pro-
dução aos quais eles estão vinculados. Trata-se então de uma resposta ao novo cenário globalizado e os rearranjos por ele impostos aos diferentes subsistemas que compõem o território
os sistemas
sociais econômicos
hoje o espaço
tecnologia dos como
diferencia "rápidos"
privilegiado
e políticos
da periferia,
da globalização.'
tornando
à
A acessibilidade
cada vez mais os lugares, que podem ser hoje classificaou "lentos" (TOFFLER, 1991) e, embora as vantagens
Iocacionais continuem sendo importantes, mudaram as escalas e seus conteúdos. Mesmo a escala mais local tem hoje possibilidades de articulação global. Neste
sentido,
locacional,
as economias
nacionais
o que impõe tendências
e legais harmonizadas
são substituídas
de vista
à busca de práticas políticas. institucionais à globalização para fazer frente a um
com a tendência
novo tipo de competição,
agora locacional.
Em outras
compreender
diferenciação
do ponto
palavras,
entre os lugares
partida
conceituais,
escalas
locais,
estudo,
o eixo dinarnizador
a dinâmica
geográfica
requer, cada vez mais, a utilização
capazes
de explicitar
seus interesses
os agentes
e suas redes no modelo
da de
que se organizam
de cooperação.
reside
recente de pontos
principalmente
Para
nas
o caso em
nas inovações
tecnológicas recentes no setor agrícola do semi-árido brasileiro. Neste sentido, inovação e fruticultura irrigada constituem elementos-chave em tomo dos quais atividades mentos 4
j
novas surgem e antigas
econômicos,
sociais
se reorganizam,
e políticos
com importantes
para o território
desdobra-
local.
Ver PUTNAM, 1996; mesmo tendo como questão central as instituições, a longa pesquisa sobre a descentralização política na Itália revela a importância dos territórios e suas instituições. Com perspectiva semelhante, também TARROW, 1977. Em reflexões recentes, M. Santos tem explorado as múltiplas facetas da questão. Ver especialmente: Técnica, espaço e tempo c A natureza do espaço.
Ilhas de Tecnologia
no Nordeste
2. Economia
Brasileiro
e a Reinvenção
agrícola
como eixo de inovações
o
da Natureza
51
Brasil contemporâneo é qualitativa e quantitativamente diferente daquele dos anos 60, e sua complexidade é visível na permanência dos contrastes regionais e sociais, nos processos de modernização inacabados, na aceitação social e política da prática de uma cidadania, contraditoriamente ao conceito, diferenciada. A exposição da sociedade brasileira às necessidades impostas pela globalização, entre elas a de integração, submeteu as diferentes partes do território, e seus respectivos setores produtivos, a impactos cujos efeitos foram bastante desiguais. A agricultura tem apresentado resultados importantes e o mapa recente do país revela esta nova dinâmica, ainda em construção. Dados recentes do IBGE apontam uma redução de cerca de 21 milhões ha de área ocupada por lavouras no país entre 1985 e 1995 e, paralelamente, um crescimento da safra de cereais, leguminosas e oleaginosas de cerca de 54 milhões de toneladas em 1985 para cerca de 75 milhões em 1998 e uma previsão de mais de 78 milhões para 1999. Este crescimento, em meio à crise de outros setores produtivos, indica o dinamismo das atividades agrícolas e o seu papel contemporâneo de um setor dinâmico na economia brasileira." No entanto, esse desempenho não é territorialrnente homogêneo e decorre das condições vantajosas em vários pólos de produção espalhados pelo interior do país. Embora sejam ainda o gado e os grãos os grandes motores deste dinamismo que empurra para cima a média nacional, outros setores de pequeno peso no total são extremamente significativos como vetores de uma nova dinâmica territorial em regiões atrasadas. Essas estatísticas devem ser interpretadas também atra vés dos avanços na competência técnica que, no território, dão suporte às atividades econômicas. Ou seja, elas refletem a ação de um conjunto de atores, privados e públicos, como empresários, associações, universidades, laboratórios de pesquisa que se articulam localmente para criação das condições favoráveis ao aumento da produtividade e de competitividade. O mesmo acontece com os pólos de fruticultura irrigada no Sertão Nordestino, nosso objeto de análise. Este setor é paradigmático das seletividades territoriais possíveis como resultado do impacto das relações entre a economia global e a local. A abertura do espaço regional tornou-o locus de múltiplas interações e de diferenciações no seu território. Na realidade, a base técnica da sociedade constitui um dado fundamental na explicação histórica e não é possível ignorar os conteúdos explicativos do meio técnico no presente. É este o ponto de partida de nossas (, Ver Fundação
IBGE, Cana do IBGE, maio de 1999.
52
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reflexões atuais sobre as condições da produção e os efeitos sociais em alguns territórios que se globalizam na Região Nordeste.
e políticos
É preciso chamar atenção, inicialmente. ao fato de ser esta região a parte do território brasileiro cujas especificidades mais têm suscitado debates e referências.
Algumas
serão aqui tomadas nário social, referência
questões
recorrentes
na ampla
como ponto de partida,
político
e econômico
inescapável
longamente
de qualquer
análise.
literatura
ou mesmo construído
A primeira,
sobre
como hipótese
ela
do ce-
e, por isso mesmo, aponta
a permanência
da Região como o espaço tristemente privilegiado da pobreza nacional e como aquele que possui as condições mais favoráveis à sua própria reprodução (PASTORE,
1983; ABRANCHES,
1985; ROCHA,
1995). A segunda,
refere-
se ao papel das suas elites no panorama político nacional, especialmente aquelas vinculadas à atividade agrária, apoiada no histórico monopólio das grandes propriedades, responsável pela produção açucareira, algodoeira e pecuária (REIS, 1980; CAMARGO, 1981; MARTINS, 1984). A terceira, refere-se às características
do seu espaço
geográfico
da Mata do litoral ocidental rados pelas características
que contrasta
com amplos de transição
espaços
a natureza
úmida
semi-áridos
do Agreste.
da Zona
do Sertão,
A percepção
sepa-
das diferen-
ças econômicas, sociais e políticas entre essas naturezas tem sido historicamente referenciada: desde o Manifesto Regionalista de Gilberto Freyrc na década de 30, e suas muitas apologias do Nordeste açucareiro como o mais legítimo berço da nacionalidade brasileira (FREIRE, 1976), até o discurso dramático sobre a seca, elaborado pela el ire política regional para obtenção de recursos e outros favores do Governo Federal (CASTRO, 1992). Paralelamente,
o peso social da estrutura
do país pode ser avaliado
agrária
nordestina
a partir de alguns dados censitários.
no conjunto
Em 1940, viviam
na Região Nordeste 35% do total da população brasileira, enquanto a parcela ela população rural nacional na Região era de 38,9%; em 1996 a participação da Região população
na população total do país caiu para 28%, enquanto a parcela da rural brasileira na Região subiu para aproximadamente 45%. Do
incremento
absoluto
de habitantes
da população
ou seja, 73%. Complementando comparada
rural brasileira,
entre 1940 e 1996, o Nordeste com os espaços
- foi a que menos se alterou. que se reduziu
entre
esta realidade,
mais consolidados O tamanho
que foi de mais de 7.000.000
participou
com mais de 5.000.000,
a estrutura
fundiária
do país - Regiões
médio de suas grandes
1940 e 1960, recuperou
regional,
Sudeste
e Sul
propriedades,
a média de [920 nas décadas
de
60 e 80. enquanto o processo de fragmentação das pequenas propriedades foi, no período, o mais intenso no país. No entanto, o peso econômico das atividades agrícolas regionais no conjunto do pnís está longe de acompanhar o peso da população
residente
na sua zona rural, ou mesmo
o desempenho
das outra
Ilhas de Tecnologia no Nordeste Brasileiro
e a Reinvenção
regiões. Ao contrário do comportamento o valor da sua produção
agrícola
estatístico
S3
da Natureza
da população
teve sua participação
rural na Região,
no conjunto
da produção
nacional reduzida. Não há novidade nestas informações, mas elas são aqui resgatadas pelo significado político que guardam: uma estrutura fundiária resistente, um processo
de modernização
u ma massa populacional 1996, que representam parte empobrecidos, ou dispondo movem
sem o direito
os sujeitos
que caminha
sociais
de propriedade
e as circunstâncias
nordestino
que
do país,
na zona rural em
brasileira,
em sua maior
das terras onde trabalham,
É, portanto,
minúsculas.
a reboque
habitantes
11,4% do total da população
de propriedades
É no meio agrário
agrícola
de mais de 17.000.000
nesse
escolhidos
se encontram
quadro
que se
para a investigação.
as mais
fortes
raízes
do
conservadorismo de uma estrutura capaz de preservar-se há mais de quatro séculos. E é neste meio que devem ser buscados os elementos de desequilíbrio e as possiblidades
de mudanças.
A fruticultura
irrigada,
como
veremos
mais
adiante, possui, na atualidade, condições que a qualificam como um fator de ruptura das relações tradicionais, do imaginário de inferioridade regional e de
desmistificação Sendo forças
da prática da irrigação. o Noroeste brasileiro um caso paradigmático
de difícil
mais conseguiu
conciliação preservar
e a região
de confronto
cuja competência
uma cultura política
das elites
e clientelf'stica,
oligárquica
entre
políticas num
quadro social de persistente pobreza e exclusão, os impactos das mudanças são mais fortes. O confronto entre os atores econômicos articulados com as escalas da nova ordem globalizada e aqueles atores da ordem antiga revelam o processo
de fragmentação
to é uma das perspectivas cujos mecanismos
e de seletividade possíveis
de resistência
Desse também
modo,
estudos
dinâmicos
que
cornpetitividadc,
dos pelos
lugares
relativas
do território
Este contex-
esta nova ordem de pobreza
na Região,
dos atores que
e atraso
têm sido
ainda a maior parte do seu território inserção
do país num mundo
a tecnologias regional,
e produtos,
especialmente
para compreender
sentidos no Sertão,
alguns
processos
aí se instalam. Onde quer que atuem, os imperativos trazidos pelos ventos da glcbalização, deflagram conflitos interesses
é, portanto,
interesses,
pelas estratégias
dos produtores
estabelecidos
propício
desses novos territórios,
regional,
regional.
e as estratégias
da inevitável
de caso privilegiados
c novos atores,
lidar. O momento significados espaço
os impactos
em diferentes
tre velhos
guardando
com novas demandas
constituem
para pensar
às mudanças
com o status quo regional
mais se beneficiam
historicamente mais eficientes, (CASTRO, 1991). globalizado,
no território
para analisar
diferenciados
e os que tentam
da en-
se conso-
e interpretar
os possíveis
pela tecnologia
e dinamiza-
e pelo potencial
de transformação,
de frutas para exportação.
no
S4
Revista Território,
Rio de Janeiro,
ano V, n° 9, pp. 45-63, jul.ldez., 2000
A Região Nordeste tem sido, nas últimas décadas, um palco privilegiado do confronto entre uma estrutura resistente a mudanças e novos agentes econômicos que procuram aproveitar a criação de um clima político propício a seus interesses (MARTIN, 1983; GUNN, 1994; CASTRO, MAGDALENO, 1996). O produto concreto desta novas condições é a multiplicação de iniciativas que se dispersam, transformando as condições de reprodução social e política em diferentes lugares do território regional Aproveitando-se das vantagens locacionais, representadas pelos solos, clima, acessibilidade aos mercados externos e infra-estrutura, a fruticultura irrigada articula a escala local com a nacional e a global. Espaços produtivos tradicionais são conquistados, desencadeando importantes impactos sobre a organização do trabalho, da produção e das parcerias em pesquisas para desenvolver novas tecnologias e nos níveis de mobilização política, transformando visivelmente a densidade informacional e relacional desses territórios. A imperiosa incorporação de capital e conhecimento tem tornado estas atividades portadoras privilegiadas de impulsos de mudança nos redutos mais atrasados da região.
3. Fruticultura
irrigada
e os novos espaços produtivos
Devido à complexidade de uma diferenciação capaz de estabelecer dois conjuntos distintos e incomunicáveis, estabelecemos, como fatores de diferenciação entre as atividades agrícolas tradicionais e as novas, os modos de inserção no sistema produtivo destas últimas, que têm como condicionantes essenciais: a terra como fundamento da produção, porém, associada ao capital e à tecnologia, configurando o que SANTOS (1999) chama de meio técnicocientífico-informacional; a escala internacional, além da local e nacional, necessária na disputa de mercados e na definição de parâmetros de competitividade e de produtividade. Aqui, a incorporação de tecnologia, aliada à baixa umidade do ar e às chu vas escassas do clima tropical semi-árido, invertem os termos da equação das atividades agrícolas tradicionais na Região, com baixa incorporação de técnica e de capital, para as quais o clima tem historicamente imposto condições limitativas ao seu desenvolvimento, tornando-as prisioneiras das irregularidades pluviométricas. Chamamos atenção, porém, para uma característica fundamental destes novos espaços produtivos. Embora o capital tenha sido visto sempre, e reivindicado, como a limitação maior das atividades da Região como um todo, e do semi-árido em particular, a sua associação com a tecnologia de ponta para alcançar, na agricultura, níveis de produtividade e competitividade, nacional e internacional é um fato novo. A perspectiva da possibi Iidade, e da necessidade,
Ilhas de Tecnologia
no Nordeste
de sobrevivência
da atividade,
empresarial
bem diferente
desdobramentos
Brasileiro
e a Reinvenção
mediante
aquela associação,
daquele das atividades
possíveis
que devem
55
da Natureza
cria um "ambiente"
tradicionais
ser analisados.
dominantes,
Afinal,
com
não deve
ser
esquecido que a sobrevivência da cana de açúcar no litoral e do gado no Sertão, por exemplo, nada tem a ver com quaisquer destes dois requisitos. A exemplificação empírica aqui tomada tem por base as informações da pesquisa
sobre
Mossoró
e Baraúnas,
a fruticultura
dade na organização de trabalho a questão
no Vale do Açu e nos municípios do Norte".
do espaço econômico
e nos espaços central
irrigada
no Rio Grande
As ressonâncias
e social, especialmente
que se abrem para a participação
dessa pesquisa.
dessa
Portanto,
nas relações
política
o fio condutor
de ativi-
constituem
da análise
é justa-
mente tentar perceber como se materializam as imposições deste novo ambiente produtivo no território e nos acordos que historicamente garantiram as bases das formas tradicionais de produção e o equilíbrio no domínio dos espaços políticos. A área analisada da área de fruticultura em Petrolina
apresenta irrigada
e Juazeiro
do poder público,
algumas
especificidades
mais importante
que a diferenciam
da Região
no Vale do Rio São Francisco:
Nordeste
localizada
o menor peso da ação
aqui limitado quase que exclusivamente
à construção
de uma
grande barragem, uma vez que a implantação de um perímetro público de irrigação ficou muito aquém do projetado (VALÊNCIO, 1995); o maior porte das empresas aí instaladas, em função da ausência de limites para a apropriação fundiária
- a maior, Mossoró
Agro-Industrial
S.A., possui cerca de 30.000
ha - e a presença importante de capital e de empresários estaduais. Esta área localiza-se no oeste do Rio Grande os tabuleiros
da Chapada
de poços profundos
do Apodi, cuja água para irrigação
nos Municípios
vale do Rio Piranhas-Açu, represa
Engenheiro
valorização empresariais,
Armando
de Mossoró
e Baraúnas
cuja regularização Ribeiro
das terras e facilitou atraindo
regionais ou mesmo do Norte e abrange através do baixo
do curso após a construção
Queiroz,
a expansão
é extraída e aqueles
concluída
da agricultura
um novo tipo de proprietário
da
em 1983, garantiu irrigada
a
em moldes
rural e, conseqüentemente,
°
disputas
e conflitos com as atividades já instaladas. aparecimento destas "ilhas de cornpetitividade" faz surgir novas necessidades na escala local. A mais inovadora e significativa é a dependência da pesquisa
para desenvolvimento
a competitividade 7
dos produtos,
de tecnologia adaptando-os
para aumentar
a qualidade
ao solo e ao clima.
e
As caracte-
ESLa pesquisa foi iniciada em 1994, a área foi visitada 4 vezes desde então, levantamentos foram feitos junto às empresas de fruticultura. sindicatos de trabalhadores rurais, associação de produtores de frutas - PROFRUTAS, Prefeituras, Universidades. órgãos públicos, pequenos irrigaru es do Projeto Açu, COEX - Comissão Executiva da Mosca ela Fruta, etc".
Revista Território,
56 rísticas
e dificuldades
diferentes
daquelas
transposição
Rio de Janeiro,
da transferência observadas
de sementes
de tecnologia
para a indústria,
não oferece
casos podem
tos". Portanto,
o investimento
cada empresa, produtividade
tanto
para novos
de adequações, e experimen-
é uma necessidade
produtos,
A
de que os resultados
anos de observações
mais competitivos.
são muito
para a pecuária.
necessidade
em busca de inovações
na corrida
e por preços
garantia
havendo
durar alguns
na agricultura
ou mesmo
qualquer
sejam iguais aos de seu lugar de origem, que em alguns
ano V, n" 9, pp. 45-63, jul.Zdez., 2000
como
No entanto,
de
na corrida
pela
o que era um es-
forço empresarial isolado nos anos 80 vem cada vez mais se organizando em redes de cooperação e de troca de informações, ampliando a densidade técnica destes territórios. Como resultado desses investimentos, a fruta produzida, ao contrário
da maior parte dos produtos
in natura, possui alto valor agregado e capital, interno
o que define
e externo. Com relação
agrícolas
regionais
tradicionais,
em função da incorporação
seus parâmetros
de competitividade
à mão de obra, sua uti lização
para
mesmo
de tecnologia nos mercados
tarefas
de plantio,
colheita e empacotamento das frutas, além da administração, garantiram em 1997, de acordo com informações da PROFRUTAS - Associação dos Produtores e Exportadores de Frutas Tropicais do Nordeste, - cerca de 12.000 empregos diretos nas empresas. relações de trabalho implica importantes conseqüências contraste
com as formas
coercitivas
com sede em Mossoró A formalização destas sociais e políticas, em
típicas das relações
de produção
tradicio-
nais. Como estratégia produtores, e médios
através
de ampliação
de sistemas
fornecedores,
da produção,
de associações
instituindo-se
surgem
novas relações
das empresas
uma revalorização
entre
com pequenos
e recomposição
das
atividades em algumas pequenas e médias propriedades da área. À semelhança do formato de contratos entre grandes empresas e pequenos produtoresfornecedores, freqüentes nas áreas de agricultura familiar de Santa Catarina e do Rio Grande surgimento
do que poderíamos
algo impensável doeiro.
do Sul, a fruticultura na tradicional
De acordo
com
chamar
no sertão
de uma classe
recentes
agregados,
vem possibilitando média
relação latifúndio-minifúndio
informações
sa tem de 20 a 30 produtores
irrigada
que somam
rural na área",
pecuarista
da PROFRUTAS,
o
ou algo-
cada empre-
cerca de 500 pequenos
, Em função disso as empresas, sempre que têm possibilidade, instalam seus próprios laborutórios para pesquisa e experimentos de nuvos produtos, e buscam, cada vez mais. associação com as universidades e com a EMBRAPA - Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. Sobre a preocupação das empresas com o problema ver AQUI NO (1990). " Esta é uma prática iniciada pelas duas maiores empresas da área - MAlSA e FRUNORTE e que tem se ampliado.
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no Nordeste
Brasileiro
e a Reinvenção
da Natureza
57
e médios produtores para 25 empresas exportadoras. Apesar de os dados serem aproximativos, eles apontam a existência e a dimensão do fenômeno. Os efeitos da fruticultura irrigada devem ser avaliados também em função dos seus desdobramentos necessários em diferentes escalas. Em conjunto, estas atividades definem suas conexões nas escalas local, regional, nacional e internacional, porém de modos e prioridades diferenciados. Ou seja, na escala local encontra-se a base produtiva - solo, sol, água, mão de obra e infraestrutura - e as mediações políticas locais - esferas administrativas públicas, sindicatos rurais, associações empresariais, representantes políticos que configuram a densidade técnica e operacional do sistema territorial de produção. A escala regional pode ou não constituir um mercado, porém como mediação para recursos não pode ser ignorada, pois ela define o recorte adrninistrati vo de importantes fundos públicos - como o FNE (Fundo Constitucional do Nordeste) - e de solidariedades políticas que atuam no Congresso Nacional. A escala nacional, por sua vez, é importante como mercado, pois a parcela da produção que não consegue colocação no exterior é, em muitos casos, superior a 50%; como fonte de financiamentos - BNDES, Banco do Brasil - e como mediadora e interlocutora internacional. A escala internacional é fundamental como definidora dos parâmetros de qualidade dos produtos e da sua competi ti vidade, pois trata-se de atividade produtiva que se instala estimulada pela perspectiva do mercado externo e organ izada de acordo com as exigências dos padrões técnicos e de qualidade desses mercados. Comparando as condições mesmas de sobrevivência da fruticultura irrigada com aquelas tradicionais, fica evidente que os instrumentos utilizados são bastante diferentes. Grandes investimentos na busca de inovação tecnológica são essenciais. É o binômio capital e tecnologia que garante a necessária competitividade nos planos nacional e internacional; além disso, é a racionalidade do mercado que define a escolha dos produtos e o porte dos investimentos. A associação e a cooperação com laboratórios de pesquisas em universidades, empresas e órgãos públicos é um recurso necessário, pelas próprias especificidades e dificuldades da transferência de tecnologia na agricultura. A valorização do território se faz através da disponibilidade da técnica para solução de problemas da produção e para o desenvolvimento de novos produtos, de problemas organizacionais das empresas, ou para organização de redes de apoio e troca de informações, além da utilização da informática para garantir a ligação do local ao mundo, que confere a essa atividade um caráter bastante diferenciado das atividades agrícolas mais tradicionais do semi-árido brasileiro. Outro instrumento é a propriedade fundiária, também reserva de valor, porém, aqui fundamentalmente monetário e não simbólico. Para os grandes
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proprietários, ela garante espaços para a rotação de terras, reservas para expansão da produção. Ela não é o trunfo essencial para a mediação dos interesses empresariais com o poder público, que se faz tanto na relação direta como através de associação dos produtores na escala local. Para os pequenos proprietários, o acesso à tecnologia, independentemente ou por associação com as empresas, abre um novo leque de possibilidades de produção. O cenário produzido pelos atores destes novos territórios, se ainda não possui visibilidade em todas as suas nuanças, é significativo de novas situações. Em primeiro, trata-se de aproveitar a oportunidade aberta pela criação de mercados de consumo que garantem a demanda de frutas frescas e variadas nos mercados do primeiro mundo e no nacional, estimulados, cada vez mais, por hábitos alimentares que valorizam produtos naturais. Em segundo, já existe uma economia altamente capitalizada, tecnicamente sofisticada e competitiva, tanto no plano nacional como internacional. Em terceiro, há necessidade de mão-de-obra minimamente treinada para as atividades diretas de produção e altamente qualificada nos outros níveis e, por tratarse de empresas submetidas à legislação, a normatização das relações de trabalho é um requisito. Além disso, a necessidade de mão-de-obra numerosa na maior parte do ano favorece a organização e a atuação dos movimentos sindicais. Desse modo, o principal mediador das relações de trabalho é a legislação trabalhista, que define direitos e deveres de empregados e empregadores e mesmo o trabalho temporário é registrado e obedece às normas legais. Neste caso, o interlocutor é a empresa, o que torna as relações de trabalho formal izadas e impessoais. Em quarto, permanecem as possibilidades de complementação com a agricultura familiar, no caso de trabalhadores temporários também proprietários de minifúndios, além das novas possibilidades para pequenos e médios produtores, através da terceirização da produção, ou associação, como preferem nomear, na área estudada, como já foi indicado mais acima. A transferência de tecnologia é prevista nos contratos de fornecimento desses produtores com as empresas, feitos com a mediação do Banco do Brasil e do BNB - Banco do Nordeste, que fornecem financiamentos para embalagem ou outras etapas da produção. Finalmente, a vantagem competitiva do território dessa atividade está, entre outros pontos já indicados, na falta de chuvas como um recurso e não como um obstáculo, na capacidade de inovar e de competir para expandir os mercados para os seus produtos e atrair investimentos. O discurso produzido a partir dessas atividades, assim como naquelas tradicionais, tem na natureza a palavra chave. Nele, porém, ela é percebida como um potencial inestimável e um recurso redentor da economia regional, tanto pelas possibilidades de modernização, como pela perspectiva de inserção
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competitiva
no Nordeste
nos mercados
Brasileiro
nacional
e a Reinvenção
e internacional
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da Natureza
que ela oferece!".
O binômio
clima tropical semi-árido e modernas técnicas de irrigação é avaliado como altamente favorável ao desenvolvimento de uma economia agrária sustentada, competitiva
nacional
e internacionalmente,
veitamento
das "janelas
das dos hemisférios
de mercado"
com amplas possibilidades
abertas
pelo inverno
norte e sul, e pelas possibilidades
de apro-
das áreas tempera-
oriundas
da ampliação
do mercado urbano nacional. A idéia forte veiculada por estes, ainda poucos, formadores de opinião estabelece a alternativa à "falta de vontade política", como entrave
ao desenvolvimento
regional
no discurso
tradicional,
apontando
a "falta de vontade empresarial". O binômio irrigação e tecnologia siderados como os eixos de manutenção de uma economia agrária criar fortes
efeitos
multiplicadores
4. Significados É preciso
possíveis
para a sociedade
destes
novos
aqui, mais uma vez, ressaltar
são concapaz de
local.
espaços
o significado
produtivos. particular
da ino-
vação que se instala em meio à estrutura social mais anacrônica do país e que tem sabido preservar, ao longo do tempo, sua capacidade de reprodução através da atividade política altamente profissionalizada e personalizada. É neste cenário conservador que o dinamismo desses sistemas territoriais de produção adquire importância e aponta para possibilidades de aceleração das transformações já em curso. O solapamento fundador, produção,
das bases do discurso
da seca, ou melhor,
do seu mito
é um primeiro efeito positivo. Os outros são as novas relações de com ampliação de relações contratuais de trabalho, estabelecidas
pela mediação
legal. Os novos contratos
de trabalho
têm um efeito importante
na ampliação dos espaços de organização e atuação dos sindicatos rurais, sempre obstruídos pelo personalismo e pelo cornpadrio nas relações coercitivas de trabalho, típicas das formas tradicionais de produção na Região!'. A impessoalidade
nas relações
capitalistas,
maior exploração
da sua força de trabalho,
dos trabalhadores
que, em conjunto,
rei vindicações fruticultura
lU
II
e de obter maiores
se por um lado permite por outro favorece
têm mais possibilidades ressonâncias
e respostas.
à empresa
a organização
de fazer ouvir suas Já se observa
irrigada do Rio Grande do Norte efeitos multiplicadores
na
para alguns
Para os empresários do setor da fruticultura, o Nordeste tem condições para tornar-se a Califórnia brasileira, com vantagens sobre a original americana em [unção da ausência de inverno. O Nordeste ainda possui o menor percentual de trabalhadores rurais com carteira de trabalho assinada.
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pequenos e médios proprietários que se associam às empre as. A terceirização, ou associação, de parte das atividades dessas empresas significa repasse de tecnologia e inserção de pequenos agricultores num circuito produtivo e comercial que garante sustentação das suas atividades. Com relação à propriedade fundiária, se a atividade empresarial no semiárido contribui para a manutenção do monopólio da terra, há um novo significado nesta apropriação, ou seja, cornpetitividade, produção, tecnologia, capital e produtividade, e não status, tradição, herança familiar, aval para fundos públicos, ou capital simbólico para o jogo político. Outro significado importante da entrada em cena destes novos atores refere-se à sua racionalidade produtiva, que requer mão de obra mais qualificada e mais preparada para as características do circuito monetário. Ou seja, o valor do dinheiro para atrair e manter o trabalhador vinculado à empresa e interessado na produção é o mesmo motor que o fará apoiar as lutas sindicais por melhores salários, eleger novos tipos de representantes ou exigir novas ações dos antigos. As possibilidades de rupturas no real, a partir do novo imaginário contido no discurso que exalta as qualidades do clima semi-árido do Nordeste, são importantes por revelarem o anacronismo da imagem trágica da seca, num país inserido no sistema mundo como produtor de tecnologias intermediárias e como espaço aberto à inovação, endógena e exógena (BECKER, EGLER, 1992), encontra-se racionalmente esgotada. A expansão do agrobusiness'", ao atrair uma parte da elite agrária regional tradicional, ou seus descendentes, estabelece a possibilidade de traição dos seus próprios métodos, ou seja, aqueles das atividades lucrativas, mas cuja cornpetitividade possa ser mediada pela política. Como este não é o único requisito da competição na escala internacional, novas mediações são exigidas para a sobrevivência nessa atividade. Neste segmento da produção regional, as articulações em múltiplas escalas permitem algumas reflexões sobre o papel dos agentes, nela envolvidos, para a economia agrária regional, setor mais resistente a mudanças, tanto econômicas e técnicas, como sociais e políticas (OLIVEIRA, 1990). A necessária conexão, entre escalas de produção e de consumo, das economias modernas impõe novas mediações e superações das formas tradicionais, abrindo espaços para novas alternativas produtivas e novas solidariedades. Isto pode ser, por enquanto, apenas um embrião de mudança, mas cuja existência merece atenção. Ao mesmo tempo, a persistência do atraso na zona rural regional é também um elemento decisivo para o triste privilégio de locus da pobreza
I~
Trata-se, nesta pesquisa, do Rio Grande do Norte, mas acreditamos reproduza em outras áreas da Região Nordeste.
que a situação
se
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nacional e do c1ientelismo político de tipo oligárquico, o que nos leva a apontar perspectivas favoráveis nas mudanças deste quadro. apesar de conscientes das escolhas trágicas que a modernização capitalista sempre impõe. A fragilidade política, tanto nas escalas local como regional, de alguns desses novos agentes econômicos, indica uma tendência, já em curso no Ceará, no Rio Grande do Norte e na Bahia, de alianças entre eles e políticos ou burocratas, na busca de espaços de representação de interesses. Do ponto de vista social e político, a inovação ainda deslocou os espaços de poder há muito estabelecidos, mas já tem possibilitado a construção de um novo imaginário sobre o clima semi-árido no Brasil, deslocando aquele que lhes dá sustentação, ao substituir suas mazelas por suas benesses. Além disso, o status da ciência e da tecnologia, como passíveis de romper com estruturas arcaicas, começa, com atraso e de modo ainda restrito, a ter mais valor, possibilitando que a fruticultura irrigada redefina o território e suas vantagens cornparati vas, transformando-os em sistemas dinâmicos que mobilizam e integram diferentes segmentes e interesses sociais e políticos. Finalmente, a desmistificação da irrigação deve ser considerada, em função dos desdobramentos possíveis deste fato. Tendo sido historicamente ocupado pela atividade pecuária, suporte durante séculos da organização econômica, social e política, o sertão semi-árido sempre foi, e continua sendo, menos irrigado que as Regiões Sudeste e Sul do país, com muito mais chuvas. A demanda crescente por implantação de infra-estrutura para irrigação reflete a necessidade de reforçar as vantagens comparativas do território regional e o progressivo enfraquecimento da estrutura social anacrônica que impediu, de acordo com Celso Furtado, que houvesse uma transformação na sua estrutura agrária. Para ele, que é, muito mais do que um economista competente, um ideólogo da Região Nordeste, "se tivéssemos conseguido aprovar aquela lei de irrigação'? há quase quarenta anos, se tivéssemos aberto uma frente de investimentos na agricultura moderna, como em outras partes do inundo se fez, o Nordeste seria hoje diferente" (FURTADO, 1997) É esta possibilidade que dá sentido ao esforço desta pesquisa.
"A referência aqui é a primeira grande discussão na SUDENE, em Teresina, 110 Piauí, em 1958, quando se tentou aprovar o projeto de lei da irrigação, derrotado por oposição da maioria dos governadores da Região.
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