Identidade e Imagem Organizacional como Fenômenos ... - Anpad

Identidade e Imagem Organizacional como Fenômenos Simultâneos e Complementares Autoria: Hilka Vier Machado, João Marcelo Crubellate Resumo: Este ensai...
15 downloads 50 Views 169KB Size

Identidade e Imagem Organizacional como Fenômenos Simultâneos e Complementares Autoria: Hilka Vier Machado, João Marcelo Crubellate Resumo: Este ensaio teórico discute dois fenômenos da Teoria das Organizações, quais sejam, identidade e imagem organizacional. Contudo o objetivo pretendido é o de romper com a abordagem predominantemente encontrada na teoria organizacional que admite circularidade entre aqueles fenômenos. Tradicionalmente identidade organizacional vem sendo descrita como fenômeno dependente das imagens organizacionais objetivamente encontradas no ambiente (também objetivo) das organizações. Identidade, nessa perspectiva, é reflexo das imagens organizacionais, e estas são o reflexo daquela. A esta perspectiva este ensaio busca contrapor-se, com uma versão radicalmente construtivista, baseada na abordagem neofuncionalista baseada na teoria dos sistemas sociais de Niklas Luhmann. Com base principalmente na noção de fronteiras sistêmicas, propomos neste ensaio que a distinção entre sistema e ambientes é construída recursivamente pelo próprio sistema e, portanto, desta perspectiva a identidade organizacional poderia ser melhor descrita como auto-configuração organizacional [self-enactment], mais do que reflexo de imagens objetivas. Implicações desta alternativa teórica de entendimento da relação entre identidade e imagem organizacional são também discutidas no ensaio. 1 Considerações Iniciais. Duas décadas de pesquisa e publicações em identidade organizacional consolidam a área como estratégica para compreender a dinâmica das organizações contemporâneas. Cornelissen (2002) argumentou recentemente que a identidade organizacional representa nada mais do que uma metáfora nos estudos organizacionais, uma vez que os esforços para estudar o tema não fizeram progresso no sentido de oferecer condições de cientificidade relevantes. Porém, Gioia, Schultz e Corley (2002) rejeitam aquela opinião e defendem que há muitos estudos a respeito de identidade que contribuíram para o desenvolvimento do campo dos estudos organizacionais. Ao menos parece plausível afirmar que essas duas décadas de estudo indicam que identidade organizacional não constitui outro tema que possa ser classificado como mais um dos modismos gerenciais. Identidade constitui-se em constructo altamente complexo e mesmo no campo organizacional os pesquisadores vêm encontrando muitos problemas para descrever e estudar este fenômeno, em especial porque organizações enquanto fenômenos também não são simples de serem representadas e compreendidas. Organizações incluem elementos de variada natureza, tanto dentro quanto fora de seus limites geográficos e de sua esfera de ação. Sua representação envolve trajetórias passadas, aspectos presentes e projeções futuras. Sob uma perspectiva construtivista, outros elementos devem ser incluídos quando se pretende entender apropriadamente as organizações e o fenômeno de sua identidade: processos simbólicos, discursivos e comunicativos, por exemplo. No estudo da identidade, alguns pesquisadores têm tradicionalmente relacionado dois níveis analíticos que são, de fato, complementares: identidade individual ou, auto-conceito, e identidade social ou, a forma como alguém define a si próprio em relação a outra ou outras pessoas e grupos (TAJFEL; TURNER, 1986). As pessoas necessitam de comparações para construir seu auto-conceito. Interação é entendida como a fonte processual de referências que nos ajudam a reconhecer quem nós somos para outras pessoas e para nós mesmos. Sendo assim, a identidade tem um caráter imanente, mas, sobretudo, interacional e implica um nível relacional (RICOEUR, 1990; ALVESSON; KÄRREMAN, 2001). 1

Hatch e Schultz (2002, p.991) ressaltam os aspectos internos e externos que estão presentes na definição de identidade, enquanto que Ricoeur (1990) e Alvesson e Kärreman (2001) salientam que a definição de identidade usualmente implica em uma análise relacional. Em decorrência dessa permeabilidade, que envolve o interior e o exterior das organizações, Hatch e Schultz (2002) apontam a relação que existe entre imagem e identidade, sendo que a construção da identidade, no plano organizacional, segue um desenvolvimento ontológico, derivado da complementaridade desses fenômenos. O principal objetivo deste artigo é discutir uma versão específica da identidade organizacional, buscando romper com a suposição de circularidade concreta entre identidade e imagem, em benefício da idéia de processo simultâneo, recursivo. Procura-se discorrer como os elementos da teoria de Niklas Luhmann sobre identidade, especificamente: autopoiese, observação, auto referência, fechamento, comunicação e estrutura (ROMETSCH, 2004), rompem com a dicotomia entre as dimensões externas e internas das organizações, conforme se encontra nas abordagens representacionistas da teoria organizacional e de identidade. Em conseqüência, a abordagem da identidade não se restringe a um fenômeno psicológico, mas estritamente comunicativo, resultante da ação recursiva das organizações no ambiente. Finalmente, espera-se contribuir para a discussão de identidade e imagem, em direção à construção de uma teoria interpretativa da identidade organizacional (conforme GIOIA; THOMAS, 1996), ao explorar a possibilidade de entender-se identidade não apenas como interdependente, mas principalmente como ação social e estrutural, que não permite identificar isoladamente o que é identidade e o que é imagem. Outra implicação desta reteorização da identidade é a possibilidade de remeter seu centro de referência para a própria organização – retirando a força do ´outro´, do externo, do fora, para realocá-la no próprio ´em si mesmo´ da organização. Este ensaio teórico tem como ponto de partida concepções sobre identidade e imagem, apontadas na literatura. Em seguida, aspectos genéricos da teoria neofuncionalista foram resgatados para construção de uma abordagem processual simultânea e complementar sobre identidade e imagem, buscando-se um modelo alternativo à versão bipolar predominante. 2. Concepções de Identidades e Imagens Organizacionais Identidade e imagem são construções subjetivas que orientam a ação dos indivíduos nas organizações. Alguns autores têm chamado a atenção para a complementaridade desses dois fenômenos (DUTTON; DUKERICH, 1991; GIÓIA; SCHULTZ; CORLEY, 2000; HATCH; SCHULTZ, 1997; 2002). Hatch e Schultz (1997) argumentam também que essa associação é refletida no relacionamento entre Marketing e Estudos Organizacionais. Não é difícil perceber que, até mesmo sob o prisma conceitual, há uma sobreposição e uma complementaridade entre os dois fenômenos. Dutton, Dukerich e Harquail (1994) utilizam o mesmo termo ´image´ para definir tanto imagem quanto identidade, sendo a identidade organizacional aquela relacionada à imagem interna e a imagem da organização, a que é relacionada à visão externa da organização. Segundo eles, essas duas imagens organizacionais influenciam a conexão cognitiva que os membros criam com sua organização, assim como os modos de agir que seguem. Enquanto que para Dutton, Dukerich e Harquail (1994) o deslocamento das imagens pelos planos interiores ou exteriores à organização é a linha divisória entre ambos fenômenos, para Fatt et al. (2000, p.28) a imagem corporativa compõe-se pelos dois planos, pois é: “composta de percepções e atitudes do público interno e externo de uma corporação. O público interno inclui gerentes, empregados e investidores. O público externo inclui a comunidade, consumidores, governante e a mídia”.

2

No entanto, em geral, entende-se por imagem a representação da organização construída por observadores externos, tal como assinalam Hatch e Schultz (1997, p.359): "imagem é comumente definida como a síntese das imagens externas" . Ela pode constituir-se uma "impressão transiente" ou uma representação relativamente estável (BERG apud GIÓIA, SCHULTZ; CORLEY, 2000, p. 67). e às vezes é intencionalmente manipulada pelos membros internos da organização para impressionar o público externo, ou seja, o gerenciamento de impressões organizacionais. Dutton, Dukerich e Harquail (1994) utilizam o termo reputação organizacional. Eles consideram que "a imagem organizacional é diferente da reputação, pois esta descreve os atributos de fato dos membros de fora da organização, mas a imagem é o reflexo, para os integrantes da organização, sobre o que as pessoas de fora da organização pensam dela" (DUTTON; DUKERICH, 1991, p. 547). Rindova (1998, p.60) não apenas distingue os dois fenômenos- reputação e imagem-, mas aponta uma complementaridade entre ambos, na medida em que considera o fato de que: "reputações contribuem para o processamento de novas imagens, que são dependentes de imagem e identidades passadas, afetando-se reciprocamente uma a outra". No tocante à identidade, esta usualmente implica em um nível relacional (RICOUER, 1990; ALVESSON; KÄRREMAN, 2001). Desta perspectiva, identidade é sempre construída em relação a um ´outro´, em processo de identificação ou desidentificação (diferenciação). No que tange às organizações, suas identidades são também entendidas como produtos de processos de identificação e diferenciação em relação a outras organizações. Porém, essa perspectiva parece paradoxal em um sentido negativo, uma vez que ela dá origem à dicotomia entre unidade e singularidade, aspectos implicados no construto de identidade organizacional. Unidade se refere à noção de ´sameness´ ou, identificação de uma organização para com outras organizações. Já singularidade se refere à exclusividade, ou diferenciação (FERRET, 1998). Em estudos organizacionais a dimensão da unidade é relacionada a um conjunto de características temporalmente persistentes e que são compartilhadas com outras organizações, enquanto singularidade se refere a peculiaridades em cada organização individual ou, as características que lhe são próprias e exclusivas e por meio das quais é possível perceber o que é “central, distintivo e duradouro” (GIOIA, 1998). Asforth e Mael (1996, p.40) salientam que "há limites para a extensão da identidade podendo envolver percepção de stakeholders externos ou membros internos". Essa visão é compartilhada por Scott e Lane (2000, p.44), que definem identidade como: “o processo, atividade e eventos através dos quais a identidade organizacional torna-se específica na mente dos gerentes organizacionais e dos stakeholders”. Essas definições, do mesmo modo que algumas concepções de imagem organizacional discutidas anteriormente, incluem no conceito de identidade as percepções internas e externas, não singularizando o conceito de identidade frente ao de imagem. Outrossim, Hatch e Schultz (1997, p.312) afirmam que a imagem organizacional tem uma influência nos processos internos de formação da identidade porque: "1- os membros da organização são também integrantes de grupos externos"; 2- o modo através do qual os membros são percebidos como clientes, competidores, podem influenciar a identidade organizacional; 3- a visão estratégica gerencial e a liderança são susceptíveis a influências externas através do gerenciamento da imagem organizacional ” . Tal como o ambiente externo influencia as percepções internas dos integrantes da organização, também os empregados têm o seu papel na projeção da imagem corporativa (FATT et al, 2000). Uma das justificativas para a complementaridade dos fenômenos é o efeito do ambiente sobre as organizações. Para Dutton e Dukerich (1991) o ambiente e as 3

organizações são interligados e elas escolhem estratégias em resposta a mudanças organizacionais, ou selecionam mecanismos a favor de uma forma estrutural mais do que outras. As organizações se adaptam e interferem no ambiente. Segundo eles, na interação da organização com o ambiente estão relacionados os seguintes aspectos: “eventos, desenvolvimentos e padrões que os membros de uma organização coletivamente reconhecem como tendo alguma conseqüência para a organização” (p. 547). A ação organizacional é constantemente organizada em resposta a problemas que ocorrem ao longo do tempo e nesses momentos as identidades e as imagens tornam-se mais explícitas. A interferência do ambiente externo para a conformação da identidade é também mencionada por Nknomo e Cox Jr (1999, p. 349): "no nível organizacional, atenção deve ser dada aos fatores do contexto externo, que afetam e dão forma às identidades. Significados sociais e construções da identidade e também a formação da identidade são permeados pelas fronteiras organizacionais. Por exemplo, uma nova legislação, o desenvolvimento político e mudanças demográficas afetam como a identidade é percebida e compreendida." Não é somente o ambiente que molda as concepções de identidade e imagem, mas há que se considerar também a influência subjetiva na conformação deles: “As ações e medidas dos gerentes superiores afetam simultaneamente a identidade e a imagem organizacional. Isso ocorre, em parte, devido ao aumento dos níveis de interação entre os membros organizacionais, os fornecedores, clientes, reguladores e outros atores instrumentais, e os múltiplos papéis que agem tanto dentro, como fora das organizações (HATCH; SCHULTZ, 1997, p. 356). Há que se considerar ainda que "as imagens não são projetadas somente através de atos oficiais, mas também através de comunicações emitidas por todos os níveis da organização, que transmitem imagens” (RINDOVA, 1998, p.60). De acordo com Dutton, Dukerich e Harquail (1994) há uma força derivada da projeção da imagem externa sobre a imagem interna, sendo que, se os membros interpretam a imagem organizacional externa como desfavorável, eles podem experimentar resultados pessoais negativos, tais como depressão e stress. Do mesmo modo, uma imagem atrativa encoraja um alinhamento entre o auto conceito dos membros e a definição organizacional. Também mudanças na estrutura e cultura ou na estratégia competitiva podem induzir os membros a revisar sua percepção da identidade organizacional e da imagem externa construída. Para Hatch e Schultz (1997, p.363): "a ligação entre a fronteira interna e externa estabelece que a gestão da identidade corporativa envolva a formulação e comunicação da visão organizacional e da estratégia em referência à imagem externa. Sendo assim, o gerenciamento da identidade e da imagem é um processo interligado” . Ambos, identidade e imagem organizacional, são constructos ligados à mente dos membros da organização. "Eles captam pontos chaves que uma organização necessita para que os indivíduos atribuam significado e tenham motivação de modo particular e em determinado tempo" (DUTTON; DUKERICH, 1991, p. 547). Tanto a imagem, quanto a identidade podem ser internalizadas em diferentes gradações. Assim, as manifestações de super identificação, desidentificação ou sub identificação (DUKERICH et al, 1998) podem ser utilizadas para interpretação da identidade ou da imagem corporativa. Os efeitos negativos ou positivos que a identidade e a imagem geram sobre as expectativas dos indivíduos contribuem para a fixação de um sentimento de filiação ou não filiação, tanto para os integrantes internos, quanto para os integrantes externos à organização. Essa é uma das possibilidades de transposição de estudos de um campo para outro, não explorada ainda nos estudos sobre imagem organizacional. A unidade e a unicidade são elementos presentes nas concepções de identidade e de imagem. Quanto à identidade, estudos já mencionados anteriormente utilizam essas configurações para explicar o fenômeno, mas também para a imagem elas são essenciais, pois

4

são essas que asseguram o caráter distintivo e duradouro, necessário também para a imagem corporativa. Pode-se afirmar que há uma relação de similaridade e de simultaneidade entre a identidade e a imagem. A similaridade pode ser percebida na apresentação dos conceitos. Quanto à simultaneidade, essa pode ser compreendida sob a ótica da alteridade, pois o “outro” quando se trata de identidade organizacional é a imagem, é esta que atua como espelho para conformar os elementos “centrais, distintivos e duradouros na organização” (ALBERT, 1998). Sendo assim, não existe identidade organizacional sem imagem organizacional e não há uma imagem de organização que não seja o reflexo de uma identidade. Ambas estão constantemente em construção e podem assumir múltiplas configurações. Fazem parte de um processo simultâneo, que é orientador e determinante da ação e das estratégias organizacionais. 3. Organizações na Perspectiva Neofuncionalista A mesma visão bi-polar (ou dicotômica) que se nota em relação à identidade e imagem organizacional pode ser localizada em outros enfoques na teoria organizacional, como as vinculadas ao nível de análise - tanto micro, como macro -, estrutura e ação, ou a natureza do comportamento organizacional. Como sugerem Bakken e Hernes (2003), tais dicotomias provêm de duas vertentes paradigmáticas sob as quais se desenvolveu a teoria organizacional. Uma dessas vertentes é o funcionalismo parsoniano. A outra corresponde à visão interacional das organizações, representada principalmente, mas não exclusivamente pela abordagem de Weick (1969, por exemplo). Tal herança bi-polarizada, que não é privilégio ou demérito da teoria organizacional, mas ocorre em outras áreas da teoria social e vem gerando, nas últimas décadas, esforços relevantes para que se supere o caráter dicotômico que resulta dessa dupla herança. Dentre tais esforços (representados, por exemplo, pela teoria da estruturação de GIDDENS, 2004, e pela teoria institucional de autores como HINNINGS e GREENWOOD, 1988 e Scott, 2001), quer-se destacar a teoria dos sistemas sociais ou abordagem neofuncionalista, proposta por autores como Münch (1999) e, principalmente, Luhmann (1976; 1995; 2002), pois representam uma perspectiva analítica com potencial de superação das restrições impostas pelas tradições funcionalista e interacional, quando tomadas isoladamente. Para Bakken e Hernes (2003) e também para Cohn (1998) o neo-funcionalismo proposto por Luhmann significa um projeto teórico ´funcionalista radical´. Nos termos de Cohn (1998, p. 58) “... Luhmann reúne as condições para inverter a ótica estrutural-funcional parsoniana, ao deslocar a questão de quais as funções requeridas pelo sistema para a questão de como este é levado a responder a exigências funcionais [ou, exigências operacionais de funcionamento]”. As implicações desta inversão são significativas para a teoria organizacional porque a afetam em alguns de seus aspectos fundamentais, dentre os quais a própria noção de organização e a relação entre organizações e ambiente. No que se refere à natureza de organizações e ambientes organizacionais, a perspectiva neofuncionalista parece ser apropriadamente caracterizada a partir da lógica da complexidade. Como afirma Luhmann (1976), com o contingencialismo em teoria organizacional, as organizações foram tradicionalmente definidas como sistemas responsivos a determinações provenientes de seu meio. Para aquele autor tal versão é altamente devedora de certa concepção religiosa de mundo, derivada da noção de uma divindade transcendente e, deste modo, inacessível mas que, em contrapartida, tudo determina sem por nada ser determinada. Daí decorre a noção de organizações como sistemas abertos (BERTALLANFY, 1975; KATZ; KAHN, 1976), segundo a qual organizações são permeáveis ao ambiente. Também para Luhmann (1976) tal noção de abertura sistêmica e fatalismo ambiental tem função e razão 5

metodológica, ao simplificar a relação entre variáveis e construtos sob análise, quando permite a distinção entre variáveis independentes e variáveis dependentes. Porém, sob a lógica neofuncionalista, a natureza de organizações e ambientes sofre considerável alteração em relação ao que parece supor a linha uni causal implícita ou, em maior ou menor grau, explícita nas teorias sistêmicas tradicionais. Para Luhmann (1989) a natureza autopoiética dos sistemas sociais (e das organizações, portanto) implica entendê-los como sistemas simultaneamente abertos e fechados, uma vez que autopoiese é definida como “... a rede de produção de componentes, que resulta fechada sobre si mesma, porque os componentes que produz a constituem ao gerar as próprias dinâmicas de produção que a produziu” (MATURANA, 2002, p. 15). A respeito especificamente das organizações, o mecanismo operacional que lhes dá a capacidade autopoiética, nos termos de Luhmann (2002, p. 32), é a capacidade de decisão: “... Sistemas sociais organizados podem ser compreendidos como sistemas que determinam suas decisões e são capazes de completar as decisões que determinam por meio de decisões que fazem eles decidirem”. Deste modo, tem-se nas decisões o mecanismo operacional de “clausura auto-referencial” (LUHMANN, 2002, p. 32) que permite às organizações se autoreproduzirem e, em conseqüência, responderem a pressões ambientais sem serem diluídas naqueles ambientes. Então, organizações são definidas como sistemas com capacidade de responsividade ao ambiente e, ao mesmo tempo, de manutenção da sua identidade. Neste mesmo sentido o que se convencionou, em teoria organizacional, chamar-se de ambiente, deixa de ser definido como fonte de determinações ou contingências a afetarem as organizações. Na ótica do neofuncionalismo, ambientes e sistemas deixam de existir de modo objetivo e passam a ser definidos como co-dependentes. Essa co-dependência, a ser discutida à frente, implica em que não se pode designar o que seja o ambiente sem que se faça referência a sistemas: um ambiente é ambiente da perspectiva de algum sistema. Sendo assim, ambientes não são definidos como fonte de informações, mas como fonte de ´irritabilidade´ (LUHMANN, 1995) ou perturbação (LUHMANN, 2002): “não há informação que se mova de fora para dentro do sistema” (LUHMANN, 2002, p. 135), porque o sistema não prescinde de interpretação e seleção daquelas perturbações, convertendo-as em significados e, apenas então constituindo suas ações que se tornam, deste modo, menos representação e mais configuração do ambiente (LUHMANN, 2002). Deste modo e se sistemas constituem os ambientes tanto quanto estes àqueles, o que se tem é uma dupla contingência, cuja base é o neo-funcionalismo, com razão, radical. Além disso, a co-dependência ou dupla contingência entre ambiente e sistema exige reconhecer que também aquele não escapa de algum grau de contingência. Como conseqüência tem-se o que é apontado por Cohn (1998) em termos da relação organização e ambiente, isto é, que um ambiente também marcado pela contingência é “... incapaz [...] de orientar a constituição mais adequada do sistema” (COHN, 1998, p. 58). Co-dependência é, então, também co-deriva no que se refere à constituição. Porém, tal co-deriva não significa completa ausência de referências. Pelo contrário, a relação entre organização e ambiente, sob a lógica neofuncionalista, se não é determinada no sentido contingencialista do ambiente como causa do sistema, também não reconhece a atomização das referências ou a completa liberdade dos sistemas. Tal relação é, usando noção já corrente na teoria social, definida como recursiva. Recursividade é definida por Luhmann (2002, p. 139) nos seguintes termos: “um processo é chamado recursivo quando ele usa o resultado de suas próprias operações como base para outras operações subseqüentes [...] tais processos usam seus próprios resultados como entradas”. Falar em termos de recursividade significa admitir que, na relação entre organização e ambiente, não há um foco causal privilegiado. Mas recursividade se refere principalmente à dinâmica da relação entre organização e ambiente e com sua natureza 6

ontológica. Como se fez menção no princípio deste tópico, a teoria organizacional é marcada por versões dicotômicas quanto àquela dinâmica, com polarizações entre a visão estrutural e a visão interacional, ou seja, duas visões quanto à temporalidade do fenômeno organizacional: a permanência e o fluxo contínuo. No que tange à natureza ontológica de organizações e ambientes, o realismo predominante na teoria organizacional cede espaço, sob a lógica neofuncionalista de compreensão, à perspectiva construtivista. Com relação à temporalidade dos fenômenos implicados nesta discussão, a noção e recursividade implica admitir que organizações e ambientes são não apenas co-dependentes, mas simultâneos. Neste sentido, deve-se notar que não se está referindo-se a simples circularidade causal, circunstância em que uma força afeta e é posteriormente afetada por outra força. Em termos neofuncionalistas, “o que é simultâneo não pode ser influenciado, não pode ser integrado nas constelações causais do sistema, não pode ser sincronizado” (LUHMANN, 2002, p. 137). A explicação da plausibilidade dessa simultaneidade de sistemas-organizações e ambiente está, finalmente, na realidade suposta para aqueles fenômenos e no processo mediante o qual ela é conformada, e isto é um ponto-chave para a rediscussão de identidade e imagem que se pretende delinear. A ontologia admitida na perspectiva neofuncionalista é sem dúvida paradoxal, porque implica em ruptura com o pensamento lógico, na medida em que: “A é ambos A e não-A” (LUHMANN, 2002, p. 5) ou, nos termos sistêmicos, “...qualquer coisa que possa existir é, para qualquer sistema, definido como sistema ou como ambiente” (LUHMANN, 1995, p. 44). Note-se com isso que a co-dependência entre sistemas e ambientes tem, no que tange à sua realidade, um sentido de co-construção. A noção de recursividade implica que sistemas ´constroem´ seus ambientes e são também por eles ´construídos´. Já a noção complementar de simultaneidade indica que – sem negar alguma realidade objetiva a tais fenômenos – essa co-construção é melhor entendida como diferenciação: a perspectiva neofuncionalista é, nestes termos, construtivista (KNODT, 1995), ao indicar que sistema e não-sistema (o ambiente) não possuem uma distinção objetiva, mas são provenientes do próprio esforço sistêmico por se auto definir. Eis a razão da questão central de Luhmann (2002, p. 113), quanto à noção de identidade: “O que ou como?” A questão ´o que` implica o fixo, o lógico, o objetivamente distinto. A questão ´como´ implica não somente o resultado final como também o seu processo de configuração. Nos termos de Luhmann, o processo de configuração de sistemas e ambientes tem na observação o seu ponto principal: “o mundo assim se torna o ´meta-mundo imaginário de todos os mundos que se forma quando sistemas fazem a distinção entre o que é sistema e o que é ambiente” (LUHMANN, 2002, p. 115). A questão então se torna: “como identidade [identidade dos sistemas e, em decorrência, das organizações] é produzida”? (LUHMANN, 2002, p. 119), e a resposta indica quebra da dicotomia representada pela própria distinção objetiva entre sistema/organização e ambiente, uma vez que a identidade do sistema é produzida pelo próprio processo mediante o qual o sistema observa a si mesmo, de modo recursivo e assim estabelecendo suas próprias fronteiras, diferenciando-se a si mesmo e ao seu ambiente. Sistemas se comunicam com ambientes apenas na medida em que eles próprios, de forma auto-referida, selecionam internamente os significados aos quais irão responder (´constróem´, portanto, para si mesmos os estímulos ao invés de responderem diretamente às perturbações objetivas provenientes de forças externas). Tais significados configuram e reconfiguram as fronteiras entre sistema e ambiente (LUHMANN, 1989; 1995; PATERSON, 1997; COHN, 1998; MINGERS, 2002) o que implica, então, que o próprio sistema se autoproduz enquanto produz seu próprio ambiente (e vice-versa). Implica também dizer, em última instância, que tal produção e reprodução – a distinção entre sistema e ambiente – se dá pelo auto-estabelecimento das fronteiras do sistema. 7

4. Identidade e Imagem: uma Proposta Analítica Neofuncionalista Nos termos geralmente admitidos, identidade e imagem organizacional são definidas mediante o contínuo interno (inside) e externo (outside), sendo que sua interação corresponde a um processo que pode ser localizado em uma dimensão espaço-temporal realista. Mesmo autores como Dutton, Dukerich e Harquail (1994), que incluem a noção de percepção como fator interveniente do impacto da imagem sobre a conformação da identidade, permanecem discutindo aqueles elementos como localizados e concretamente distintos na dimensão objetiva do espaço-tempo. Tais dimensões (interna-externa e espaço-tempo) também são elementos importantes na perspectiva neofuncionalista, mas com sentido bastante diverso, uma vez que elas se fundamentam em diferentes pressupostos básicos, quando admitidas sob a noção de recursividade. Ao responder à sua questão central no que se refere à identidade – “como a identidade é produzida” – Luhmann (2002, p. 119) assume perspectiva construtivista e, com isto, rompe a lógica circular entre as noções de externo e interno, indicando novas vias de entendimento da relação entre identidade e imagem. Para Seidl (2003) a concepção de identidade associada à teoria dos sistemas sociais em Luhmann (2002), baseia-se também na distinção entre dimensões internas e externas. Porém, para ele aquelas dimensões somente podem ser adequadamente estudadas mediante a noção de borda (ou, fronteira), constructo que permite definir o que é interno e o que é externo, o que está dentro e o que está fora, o que integra a identidade e o que não a integra. Na teoria desenvolvida por Luhmann, dois aspectos são relevantes: sem bordas não há forma, sendo este um outro conceito importante para o estudo da identidade. Além disso, a borda é produto da observação de observadores e, deste modo, é fixada no esforço de observação feito no intuito de distinguir sistema e ambiente. O processo de comunicação, propriedade dos sistemas organizacionais, define as fronteiras e, conseqüentemente a sua construção e reconstrução constantes, produzindo diferenciação no ambiente. Trata-se da autopoiesis, que atribui aos sistemas a capacidade de geração e regeneração, garantindo a singularidade (SEIDL, 2003). Luhmann apresenta uma perspectiva construtivista para o estudo da identidade, uma vez que na sua teoria o processo de identificação tem que ser entendido como recursivo, isto é, processo que “[...] utiliza suas próprias operações como base para operações posteriores” (LUHMANN, 2002, p. 139). A natureza recursiva daquele processo permite outra abordagem às dicotomias como interno e externo e, conseqüentemente, à versão também dicotômica entre identidade e imagens. Sendo observadores (mesmo a própria organização) que estipulam a borda que separa sistema e ambiente, interno e externo, organização e contexto, demarcando, ao mesmo tempo, o que é a identidade e o que é a imagem, a fronteira só pode ser desenhada no interior do sistema. A auto referência estabelece a fronteira e se estabelece no interior dela, conseqüentemente, representando o fechamento em relação ao ambiente (HERNES; BAKKEN, 2003). Na perspectiva de Luhman (2002) identidade e imagens organizacionais são, portanto e desta perspectiva, produto de auto-observações organizacionais, e o aspecto social implicado nesta diferenciação não é mais do que o que Luhmann (2002) chama de ´perturbação´ do sistema, que é necessária, mas não suficiente para explicar o processo de construção da identidade. A identidade só pode ser apropriadamente explicada por meio de uma abordagem que reconheça a força interna do sistema, que pode ser ainda derivada de múltiplas auto referências (ROMETSCH, 2004). O resultado é que na abordagem recursiva neofuncionalista há uma ruptura com a versão ´representacionista´ da identidade organizacional, uma vez que ela descreve identidade e imagens como sendo resultantes de processos ´configuracionalistas´ ou, ´enactivistas´ (TSOUKAS; KNUDSEN, 2002; WEICK, 1969). Sugere-se que o termo ´configuracionalista´ 8

signifique que a distinção é produto do esforço sócio-cognitivo de organizações para ´decretar´ (to enact) a realidade com a qual elas precisam lidar e, portanto, a identidade é, desta forma, não auto-representação e sim auto-construção. De acordo com a noção de recursividade, a produção da identidade não pode ser entendida sem recurso à noção de imagem, mas não em termos de circularidade. Circularidade implica objetividade entre dimensões sociais (no caso, identidade e imagem) e co-relação entre ambas, em diferentes e sucessivos momentos. Mas, na perspectiva que se pretende levar adiante, identidade deve ser analisada a partir da distinção entre as categorias de ser/não-ser [being/nonbeing], em uma dimensão temporal simultânea. Nestes termos, ser e não-ser, sistema e ambiente e, conseqüentemente, identidade e imagem, são constituídos a partir de um processo de observação e distinção, cujo resultado é duplo, porque estabelece a “diferença em relação a tudo o mais – identidade – e a “diferença de si mesmo” – tudo o mais (LUHMANN, 1995, p. 18). Para Luhmann (2002, p. 114) a distinção é o resultado de toda observação: “toda observação designa algo e também distingue esse algo de outras coisas”. A partir desse enfoque, há um rompimento na distinção objetiva entre interno e externo, sistema e ambiente, identidade e imagem. Tais categorias, nos termos neofuncionalistas, não são mais do que conceitos (LUHMANN, 2002) usados por observadores para designar e distinguir elementos da realidade observada que, então, pode ser apropriadamente descrita como realidade construída. Ainda para Luhmann (2002) o significado é a unidade de distinção, isto é, o elemento que permite designar e distinguir elementos da realidade. É por meio de significados que o sistema processa toda e qualquer perturbação externa (LUHMANN, 1995) e a importância desse processo para a constituição da identidade sistêmica está em que ele é o elemento fundamental da relação recursiva entre sistema e ambiente. De acordo com Luhmann (1995, p. 65), “significado é a contínua realização de potencialidades”, isto é, ao processar perturbações objetivas por meio da sua significação, sistemas manifestam suas potencialidades e, desse modo, se auto-constituem. Como resultado, o que se pode chamar de identidade provém, em termos do sistema, dessa auto-realização [self-actualization], ou o processo pelo qual a organização, enquanto sistema, interpreta perturbações externas, construindo para si um ambiente significativo e responde a esse ambiente significativo. A resposta pode ser representada por diferenciações ou identificações com outras organizações. Em termos de identidade e imagem, tal esquema rompe a lógica de circularidade tradicional. A relação entre sistema e ambiente e entre identidade e imagem passa a ser vista como recursiva, uma vez que a auto-realização do sistema – a manifestação de suas potencialidades – tem relação apenas com o que é interpretado: a imagem que serve de referência ao processo de identificação só pode ser a imagem interpretada pelo próprio sistema. Deste modo, a identidade, ao invés de representação de imagens internamente constituídas, parece ser melhor entendida – desta perspectiva – como auto-realização ou, auto configuração [self-enactment], porque para ela não concorre diretamente com qualquer força externa ao próprio sistema. Identidade e imagem, nesta abordagem, são dois produtos de um único processo de significação. São os dois lados da fronteira que define, para o próprio sistema, o que é sistema e o que é não-sistema. Tal processo, entretanto, não implica em toda a liberdade que de início pode parecer nele contido. Luhmann (1995) o qualifica como sendo de intensificação: o sistema só pode interpretar perturbações externas de acordo com limites que lhe são próprios. Ao interpretá-las, contudo, o sistema simultânea e necessariamente diferencia-se de tudo o mais por meio da manifestação das condições de interpretação que lhe são próprias. No enfoque neofuncionalista, portanto, o mundo objetivo, inacessível enquanto tal ao sistema, é apenas a possibilidade de manifestação do sistema, enquanto o processo de 9

significação é a condição e o limite daquele mesmo sistema, de modo que tanto identidade quanto imagem organizacionais se tornam representações de mesma natureza, co-dependentes entre si, para cuja conformação concorrem forças internas e externas, ainda que apenas enquanto perturbações originais e não determinações ambientais. O pressuposto que embasa esta proposição na relação entre identidade e imagem organizacional funda-se em três características, sendo que a primeira é necessariamente uma relação derivada de uma significação, a segunda é uma relação configuracionalista e a terceira, uma relação simultânea. Sobre a primeira característica, note-se que ao invés de impacto direto da imagem da organização sobre a identidade organizacional, a perspectiva neofuncionalista admite apenas impacto mediato: assim como o ambiente que afeta a organização é apenas o que se pode chamar de ambiente significativo, também a forma como outros vêem a organização, na definição tradicional de imagem, não afetará diretamente sua identificação/diferenciação enquanto não for processada internamente. Diferentemente da proposição de autores como Dutton e Dukerich (1991) e Dutton, Dukerich e Harquail (1994), não se trata apenas da “... forma como membros organizacionais acreditam que os outros vêem a organização” (GIOIA, SCHULTZ; CORLEY, 2000), mas sim de interpretação que segue os limites sistêmicos da natureza da organização, nos termos há pouco delineados. Por exemplo, uma organização com fins lucrativos próxima, portanto, de um sistema do tipo econômico, nunca abrirá mão de seu fim lucrativo e é a partir dessa lógica que todas as forças externas serão interpretadas, mesmo quando se tratarem de problemas de outra ordem. E isso nem sempre por vontade ou decisão consciente das pessoas nela engajadas, senão pela razão de que a ruptura com essa lógica significaria a ruptura com o próprio sistema. Em relação à segunda característica, a relação entre identidade e imagem não é entendida como representacional. Isto é, não se admite que a identidade seja ´espelho´ da imagem externamente construída e, na via oposta, que a imagem reflita a identidade internamente gerada. Sob a noção de representacionalismo (TSOUKAS; KNUDSEN, 2002) admite-se que identidade e imagem se co-reforçam; sendo fenômenos distintos (um interno ou imanente e outro externo ou transcendente), são produzidos mediante circularidade, mas por atores sociais distintos e com base em aspectos objetivos da realidade que se tenta representar. Assim a identidade representa, mesmo que apenas parcialmente, imagens objetivamente existentes sobre a organização. Já sob a noção de configuracionalismo (também chamada de ´enactivismo´ TSOUKAS; KNUDSEN, 2002), a identidade não segue qualquer representação externa. Uma vez que qualquer força externa, enquanto tal, não afeta diretamente o sistema, a imagem ou as imagens que servem de referência ao sistema são aquelas internamente geradas. Assim como o ambiente, desta perspectiva, é sempre ambiente ´decretado´ [enacted] (WEICK, 1969, por exemplo), também as imagens aqui são sempre ´imagens decretadas´ [enacted images]. Daí que a produção da identidade organizacional, nestes termos, é processo recursivo e autoreferente: as imagens, que servem de referência à identificação/diferenciação, são produzidas mediante a lógica e os limites próprios da organização enquanto sistema. Conseqüentemente, identidade só pode ser uma questão de intensificação (LUHMANN, 1995) de características que são inerentes ao sistema, e nunca a manifestação de características inéditas. Novamente cabe dizer, as perturbações externas e as próprias imagens são condições, e nunca a determinação, da identidade organizacional: se imagens são ´imagens decretadas´, então identidades não são mais do que auto-configurações [self-enactment]. Finalmente, a terceira característica, referente à relação entre identidade e imagem é que tal relação é, no que concerne à temporalidade, simultânea se aceitas as duas características anteriores. Nega-se a noção de circularidade, porque não há dois pontos objetivos – sistema e ambiente – em tempos distintos, mas todo momento que qualquer 10

sistema define para si o que é o ambiente, estará também definindo o que ele é para si mesmo. Em outras palavras, para definir para si quais as imagens significativas de si mesmo, qualquer sistema depende de uma definição prévia: o que ele é – qual sua identidade. Contudo, uma vez que qualquer identidade depende de alguma diferenciação (se algo é semelhante a tudo o mais, esse algo não tem identidade), então a própria identidade também depende de uma definição prévia: o que o sistema não é – do que ele se diferencia. As imagens são indispensáveis para que a organização produza essa diferenciação. Ao mesmo tempo, as imagens constituem o reflexo da significação no ambiente, contendo mensagens do que a organização é, como do que ela não é. Em decorrência, não se pode ter identidade sem imagens de referência e nem estas sem aquela, de modo que toda vez – e no exato momento – que uma organização define para si imagens relevantes, estará definindo e redefinindo sua identidade, e vice-versa. Tem-se, então, a condição paradoxal da relação entre identidade-imagem organizacional, como já se delineou anteriormente no que se refere às dimensões mais amplas de sistema e ambiente. Algumas decorrências dessas características e principalmente da condição paradoxal dessa relação são mencionadas nas considerações finais deste ensaio. 5. Considerações Finais Os apontamentos construídos neste ensaio, quanto a noções de identidade e imagem, têm como uma de suas conseqüências teóricas a definição daqueles conceitos, constituindo em duas faces de um mesmo fenômeno, que talvez possa ser apropriadamente definido como um movimento de identificação/diferenciação. A condição paradoxal daquelas duas ´facetas´, conforme definido no final do ponto anterior, implica em defini-las como sendo imersas uma na outra, no sentido de que o que se denomina de imagem organizacional –o contexto de referência para a configuração da identidade organizacional e esta – o contexto de referência de configuração daquelas imagens. Em termos neofuncionalistas, esta imersão implica reconhecer que a distinção entre identidade e imagens é uma questão de definição de significados ou, em termos sistêmicos, de definição de fronteiras. Em decorrência, ambas as facetas podem ser entendidas por meio das categorias de realidade e possibilidade: do ponto de vista da organização (que se autoobserva) identidade é a realização das possibilidades condicionadas ou oferecidas pelas imagens (sem imagens possíveis, uma identidade não se configurará), e estas são realizações das possibilidades condicionadas pela identidade (sem uma identidade de referência, o sistema não poderá capturar perturbações externas, interpretá-las e configurar imagens possíveis). Desta forma, deve-se notar que apesar da necessária relação entre identidade e imagem, para que ambas se constituam, tal constituição é processualmente fechada. Nem a identidade pode ser explicada diretamente pelas imagens que se pode objetivamente localizar em relação à organização, nem aquelas imagens objetivas podem ser explicadas pela identidade organizacional. Em termos da teoria neofuncionalista, talvez a melhor forma para explicar esta relação seria utilizando a noção de expectativas de expectativas, ou seja, quando se admite que tanto a identidade quanto as imagens contêm expectativas de comportamento organizacional, a teorização proposta neste ensaio indica que a identidade organizacional se forma não em referência direta às expectativas de comportamento que se têm quanto à organização, em seu ambiente objetivo, mas sim em referência àquelas expectativas percebidas e interpretadas pela própria organização, dentro dos seus próprios limites sistêmicos ou, com referência a expectativas de expectativas (LUHMANN, 1983). Nestes termos, a construção da identidade organizacional é autopoiética, o que significa dizer que ela é processualmente fechada.

11

A relação implicada nesta construção teórica não precisa – nem pode – ser interpretada como defesa da imutabilidade ou completa estabilidade da identidade. O que se tem nesta corrente é uma defesa do caráter evolucionário da identidade sistêmica, mesmo em se tratando de sistemas sociais. A idéia é de uma identidade estruturada que, apesar disso, demanda condições para se manifestar e se concretizar e que neste percurso, irá tanto ser reproduzida quanto alterada ou gerada ´de novo´. Na medida em que o circuito perturbação externa – significação – configuração de imagens significativas e identidade ocorre o sistema busca conformidade às perturbações externas. Por isso, ele tende à mudança, contínua e incremental, que segue o percurso da intensificação contínua de sua identidade constantemente estruturada. O escopo desta teorização é a negação da adaptação sistêmica a ambientes objetivos e a reafirmação de certo condicionamento estrutural (nos termos deste artigo, condicionamento identitário) que, entretanto, não prescinde de forças ambientais, mas tem nelas seu elemento disparador. Ao invés de pensar em estabilidade ou instabilidade identitária (outra dicotomia), a teoria neofuncionalista admite a constante estruturação da identidade, o que significa a crescente capacidade dos sistemas responderem (e se adaptarem) a seus ambientes, mas somente os ambientes significativos e nunca objetivos, porque o movimento é estruturado em torno da lógica que lhes é própria. Ao contrário da conclusão de Gioia, Schultz e Corley (2000, p. 79) – “instabilidade favorece a adaptabilidade” – a decorrência das considerações tecidas neste ensaio, no que se refere à identidade, é que ´estabilidade favorece a adaptabilidade´. Se tal decorrência aponta novas vias de entendimento da produção – o como – da identidade organizacional, ela reforça a premissa que as organizações procuram construir fronteiras, por meio de configurações e significações, mediadas sobretudo pelo ambiente, porque é a partir da fronteira que elas podem perceber o que são e o que não são, indicando que configuram imagens e identidades a partir de si mesmas, em um ambiente por elas interpretado. A partir de uma abordagem neofuncionalista de identidade, busca-se contribuir para o contínuo esforço de construção de uma teoria interpretativa da identidade organizacional (conforme GIOIA; THOMAS, 1996), ao explorar a possibilidade de entender-se identidade não apenas como interdependente, mas principalmente como ação social e estrutural, que não permite identificar isoladamente o que é identidade e o que é imagem. Outra implicação desta re-teorização da identidade é a possibilidade de remeter seu centro de referência para a própria organização – retirando a força do ´outro´, do externo, do fora, para realoca-la no próprio ´em si mesmo´ da organização. Acredita-se, finalmente, que o esforço de teorização encaminhado neste ensaio enseje o pensamento sobre outros aspectos da teoria organizacional, não apenas aqueles diretamente ligados às categorias de identidade e imagem, mas também outros temas organizacionais que, da perspectiva da identidade como fenômeno autopoiético, podem adquirir novos significados, constituindo-se em novas formas de reflexão. Parece plausível admitir que, sob a lógica recursiva e neofuncionalista pretendida neste artigo e com base no conceito de identidade, conforme aqui proposto, pode-se encontrar caminhos explicativos diferentes para aqueles temas organizacionais, com a possibilidade de superação daquela dicotomia de base. 6. Referências. ALBERT, S. The Definition and Metadefinition of Identity. In: WHETTEN, D.; GODFREY, P. Identity in organizations. London: Sage, p. 1-16, 1998. ALVESSON, M.; KÄRREMAN, D. Making Newsmakers: Conversational Identity at Work. Organizational Studies, v. 22, n.1, p. 59-89, 2001. 12

ASFORTH, B.; MAEL, F. Organizational Identity and Strategy as a context for the individual. Advances in Strategic Management, v. 13, p. 19-64, 1996. BAKKEN, T.; HERNES, T. The macro-micro problem in organization theory: Luhmann´s autopoiesis as a way of handling recursivity. In: BAKKEN, T.; HERNES, T. (eds). Autopoietic organization theory: drawing on Niklas Luhmann´s social systems perspective. Copenhagem: Abstrakt-Liber-Copenhagen Business School Press, p. 53-75, 2003. BERTALLANFY, L. Teoria geral dos sistemas. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1975. BROWN, A.; HUMPHREYS, M. Nostalgia and Narrativization of Identity: A Turkish Case Study. British Academy of Management, v. 13, 141-159, 2002. COHN, G. As diferenças finas: de Simmel a Luhmann. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 13, n.38, p. 53-62, 1998. CORNELISSEN, J. On the 'Organizational identity' Metaphor. British Journal of Management, 13, p. 259-268, 2002. DUKERICH, J. et al. Identification with organizations. In: WHETTEN, D; GODFREY, P. Identity in organizations. London: Sage, p. 209-272, 1998. DUTTON, J.; DUKERICH, J.; HARQUAIL, C. Organizational Images and Member Identifications. Administrative Science Quarterly, 259, 1994. DUTTON, J.; DUKERICH, J. Keeping an eye on the mirror: image and identity in organizational adaptation. Academy of Management Journal, 1991, v. 34, 3, p. 517-554. FATT, J.; WEI, M., YUEN, S. e SUAN, W. Enhancing Corporate Image in Organisations. Management Research News. 23, 5/6, p. 28-44, 2000. FERRET, S. L'identité. Paris: Corpus Flammarion, 1998. GIDDENS, A. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2004. GIOIA, D. From individual to organizational identity. In: WHETTEN, D.; GODFREY, P. Identity in organizations. London: Sage, p. 17-31, 1998. GIOIA, D.; THOMAS, J. Identity, image and issue interpretation: sensemaking during strategic change in academia. Administrative Science Quarterly, 41, p. 370-403, 1996. GIOIA, D.; SCHULTZ, M.; CORLEY, K. On celebrating the organizational identiy metaphor: a Rejoinder to Cornelissen. British Journal of Management, 13, p. 269-275, 2002. GIOIA, D.; SCHULTZ, M.; CORLEY, K. Organizational Identity, Image and Adaptive Instability. Academy of Management Review, v. 25, n. 1, 63-81, 2000. HARRISON, J. Multiple Imaginings of Institutional Identity. The Journal of Applied Behavioral Science, v. 36, n. 4, p. 425-455, 2000. HATCH, M.; SCHULTZ, M. Relation between organizational culture, identity and image. European Journal of Marketing, v. 31, n.5/6, p. 356-365, 1997. HATCH, M.; SCHULTZ, M. The dynamics of organizational identity. Human Relations, v.55, n.8, p. 989-1018, 2002. HERNES, T.; BAKKEN, T. Implications of Self-Reference: Niklas Luhmann’s Autopoiesis and Organization Theory. Organization Studies, v.24, n.9, p. 1511-1535, 2003. HINNINGS, C.; GREENWOOD, R. The dynamics of strategic change. New York: Basil Blackwell, 1988. KATZ, D; KAHN, R. Psicologia social das organizações. São Paulo: Atlas, 1976. KNODT, E. Foreword. In: LUHMANN, N. Social systems. Stanford: Stanford University Press, p. ix-xxxvi, 1995. LUHMANN, N. Sociologia do direito I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. LUHMANN, N. A general theory of organized social systems. In: Geert, H.; Kassem, S. European contributions to organization theory. Amsterdam: Van Gorcum, p. 96-113, 1976.

13

LUHMANN, N. Ecological communication. Chicago: The University of Chicago Press, 1989. LUHMANN, N. Social systems. Stanford: Stanford University Press, 1995. LUHMANN, N. Theories of distinction: redescribing the descriptions of modernity. Stanford: Stanford University Press, 2002. MATURANA, Romesin, H. Prefacio de Humberto Maturana Romesin à segunda edição. In: MATURANA, Romesin, H.; VARELA Garcia, F. De máquinas e seres vivos – autopoiese – a organização do vivo. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2002. MINGERS, J. Can social systems be autopoietic? Assessing Luhmann´s social theory. The Sociological Review, v. 50, n. 2, p. 278-299, 2002. MÜNCH, R. A teoria parsoniana hoje: a busca de uma nova síntese. In: GIDDENS, A.; TURNER, J. Teoria social hoje. São Paulo: Editora Unesp, 1999. NKNOMO, S.; COX JR, T. Diversidade e Identidade nas organizações. In: CLEGG, S.; HARDY, C.; NORD, W. Handbook de Estudos Organizacionais. São Paulo: Atlas, 1999. PATERSON, J. An introduction to Luhmann. Theory, Culture & Society, v. 14, n. 1, p. 3739, 1997. RICOEUR, P. O si mesmo como um outro. São Paulo: Papirus, 1990. RINDOVA, V. The identity of organizations. In: WHETTEN, D.; GODFREY, P. Identity in organizations. London: Sage, p. 33-80, 1998. ROMTESCH, M. Organizational Identities in Networks – A new systems Theory Approach. Electronic Proceedings: 20 th EGOS- Colloquium on The Organization as a Set of Dynamic Relationships. Slovenia, 2004. SEIDL, D. Organisational Identity in Luhmann’s theory of social systems. In; BAKKEN, T.; HERNES, T. Autopoietic Organization Theory. Oslo: Copenhagen Business School Press, 2003. SCOTT, W.R. Institutions and organizations. 2nd ed. Thousand Oaks: Sage, 2001. SCOTT, S.; LANE, S. A stakeholder approach to organizational identity. Academy of Management Review, v. 25, n. 1, p. 43-62, 2000. TAJFEL, H.; TURNER, J. The Social Identity Theory of Intergroup Behavior In: WORCHEL, S.; AUSTIN, W. Psychology of Intergroup relations. Chicago: Edition Nelson-Hale Publishers, 1986. TSOUKAS, H.; KNUDSEN, C. The conduct of strategy research. In: PETTIGREW, A.; THOMAS, H.; WHITTINGTON, H. (eds). Handbook of strategy and management. London: Sage, p. 411-435, 2002. WEICK, K. The psychology of organizing. Reading: Addison-Wesley Publ. Co.., 1969. WHETTEN, D.; GODFREY, P. Identity in Organizations. London: Sage, 1998.

14