Grazielle Albuquerque - Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico

DIREITO À CIDADE: NOVOS OLHARES Samara Takashiro DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO. 3 Apresentação Instituto Brasileiro de Direito Urb...
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DIREITO À CIDADE: NOVOS OLHARES

Samara Takashiro

DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO.

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Apresentação Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico - IBDU Diretoria Executiva | Gestão 2016-2017 Presidente: Daniela Campos Libório Vice-Presidente: Betânia de Moraes Alfonsin Tesoureira: Vanessa Koetz Diretora Administrativa: Ligia Maria Silva Melo de Casimiro Diretor Administrativo: Alex Ferreira Magalhães Secretário Executivo: Henrique Botelho Frota Organização e edição: Vanessa Koetz Helena Duarte Marques Jessica Tavares Cerqueira Projeto Gráfico e diagramação: Mariana Boaventura Fotos: Coletivo Dicampana e Samara Takashiro

IN59 Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico - IBDU Direito à Cidade: uma outra visão de gênero - São Paulo: IBDU, 2017. 113p. ISBN: 978-85-68957-06-6 1. Direito à Cidade 2. Gênero 3. Diversidade 4. Sociedade 5. Brasil I. Título II. Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico III. Fundação Ford Brasil CDD 349 + 305 CDU 305-055.2

Attribution-NonCommercial-ShareAlike 4.0 International (CC BY-NC-SA 4.0)

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Com muita satisfação, o Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico - IBDU lança o segundo volume da linha editorial “Direito à Cidade - Novos Olhares”, composta por publicações coletivas com o intuito de promover reflexões sobre o direito à cidade a partir de recortes de gênero, raça, diversidade sexual e identidade de gênero. O primeiro volume já lançado, dedicou-se a discutir o direito à cidade a partir de um olhar de gênero. Para isso, contamos com a colaboração de dezesseis mulheres que abordaram temáticas como mobilidade urbana, conflitos fundiários, direito à saúde, direitos sexuais e reprodutivos, formulação de políticas públicas, luta por moradia, dentre outros. A receptividade desta primeira publicação, demonstrou o quanto essas percepções são necessárias e urgentes na atualidade. No entanto, desde a idealização do projeto editorial - que foi concebido para o mês de março em referência ao dia internacional da mulher -, já tínhamos clareza de que uma única edição não poderia suprir todas as abordagens possíveis, mesmo que dentro de um só recorte, como o de gênero feminino. Por isso, para este novo volume, convidamos mais mulheres a contar suas vivências e percepções acerca do direito à cidade, por meio de pequenos textos, ensaios e imagens. Essas autoras, em sua maioria ativistas e militantes, ajudaram-nos a dirigir o olhar para questões não exploradas no primeiro volume. As intersecções entre raça e gênero, por exemplo, são muito mais marcantes neste volume dialogando com o dia 25 de julho, o dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. Por reconhecer as desigualdades que se colocam nos territórios, de variadas formas, o IBDU visa ampliar essas vozes para que ecoem entre os círculos acadêmicos, militantes, ou de formulação de políticas, que tratam de assuntos relativos ao planejamento urbano. Mas, principalmente, que esse debate supere as fronteiras dos grupos já iniciados e possa chegar a população de uma maneira geral. Considerando o empenho de todas que abraçaram essa proposta de construção coletiva, agradecemos imensamente as autoras que aceitaram o nosso convite, assim como as fotógrafas que ilustram o livro, e a designer gráfica que deu forma e identidade visual a este trabalho. Entendemos que o papel de publicações como essa não é esgotar os debates ou fechar questões, pois a historicidade e complexibilidade dos temas não cabe e nem se resolve em um conjunto de textos. A intenção é muito mais lançar provocações e algumas reflexões no sentido do acúmulo coletivo. Não temos, ainda, qualquer pretensão em ser pioneiras, pois reconhecemos e valorizamos que muitas outras mulheres têm contribuído para o direito à cidade, nem sempre em produções técnicas e acadêmicas, mas igualmente ou até mais importantes. Nossos passos vêm de longe! Salve Carolina Maria de Jesus! Boa leitura! As organizadoras.

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SUMÁRIO Apresentação.............................................................................................................................................. 5 1.

Nossos corpos, nossa cor, nossa cidade: Os impactos causados pelas intervenções decorrentes dos grandes projetos de urbanização no Rio de Janeiro Marielle Franco; Mônica Francisco; Rossana Tavares ............................................................. 10

2.

Sociabilidade e Resistência Negra na Cidade de São Paulo Thaís Santos ..................................................................................................................................... 18

3.

Mulheres negras e ocupação do espaço público: ativismo cultural nos saraus da cidade de São Paulo Bruna da Silva Magno; Diana Mendes dos Santos ................................................................... 25

4.

Barreiras visíveis e invisíveis na favela: Pelo bem viver das nossas mulheres Jessica Tavares Cerqueira .............................................................................................................. 32

5.

Mães pretas em luto(a): para se ter direito à cidade, é preciso viver Paula Nunes dos Santos................................................................................................................. 42

6.

Mulheres vítimas da velha guerra e da Nova Luz Helena Duarte Marques................................................................................................................. 48

7.

Mulheres e uso problemático de álcool e outras drogas: desmontando estigmas e colhendo sonhos Fernanda Araújo de Almeida......................................................................................................... 56

8.

Gênero e Cidades: Violência, Assédio e Exclusão Anna Luiza Salles Souto................................................................................................................. 70

9.

Violência contra a mulher e feminicídio: A urgente necessidade de informação atualizada e contínua. Patrícia Tuma Martins Bertolin; Denise Almeida de Andrade................................................. 75

10.

A casa delas, na luta e no direito Simone Gatti .................................................................................................................................... 83

11.

Lugar de mulher é no espaço público! E que o teatro tem a ver com isso? Fernanda Azevedo........................................................................................................................... 92

12.

A visibilidade em outros espaços: Os papéis sociais mudam o modo como uma mulher se coloca como cidadã? Grazielle Albuquerque.................................................................................................................... 98

13.

CIDADE, Substantivo Feminino Amanda Marcatti; Isadora Penna ................................................................................................ 104

14.

Di campana ...................................................................................................................................... 109

15.

Samara Takashiro............................................................................................................................ 112

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1 Marielle Franco é vereadora da cidade do Rio de Janeiro (PSOL) e mestra em políticas públicas (UFF). Mônica Francisco é membro da Rede de Instituições do Borel, coordenadora do Grupo Arteiras e consultora na ONG ASPLANDE. Rossana Tavares é arquiteta urbanista e professora. Doutora em urbanismo (UFRJ).

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LÉFÈBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001, p. 56. LÉFÈBVRE, Henri. De lo rural a lo urbano. Barcelona: Edicciones Península, 1973, p. 206.

AS MULHERES E O DIREITO À CIDADE: UM GRANDE DESAFIO DO SÉCULO XXI

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NOSSOS CORPOS, NOSSA COR, NOSSA CIDADE: OS IMPACTOS CAUSADOS PELAS INTERVENÇÕES DECORRENTES DOS GRANDES PROJETOS DE URBANIZAÇÃO NO RIO DE JANEIRO Marielle Franco Mônica Francisco Rossana Tavares As experiências urbanas das pessoas em uma cidade como o Rio de Janeiro não podem ser vistas de uma forma única, sobretudo quando colocamos o foco no cotidiano e nos desafios de mulheres negras e faveladas. O debate sobre violência urbana e segurança pública tem roubado a cena nos últimos anos. E ganha contornos mais complexos quando o associamos à problemática da moradia, da mobilidade e da saúde pública, que projetam o valor de resistência dos nossos corpos nesta cidade. A visibilidade pública e política destas questões ainda estão em disputa, já que depende do lugar de fala e a própria perspectiva do debate que centralmente aponta para um viés economicista de efeitos em curto prazo em detrimento da perspectiva de gênero, raça e geração. Nesse contexto, como é possível dar conta do reconhecimento destas diferenças quando buscamos pensar os efeitos da indiferença quanto ao déficit de cidade às mulheres negras, empurradas para um processo de segregação paradoxal? Essa pergunta não se explica somente por questões materiais e geográficas, mas também simbólicas e culturais que operam simultaneamente. Independentemente de estarmos no centro, na zona sul ou na favela, sobre nossos corpos se impõe uma perversidade que restringe e limita nossa experiência urbana onde atuam machismo e racismo. Segregação nos espaços de representação: quando conquistamos um lugar de liderança e de poder, outros desafios surgem; de manter e garantir esse lugar de fala e disputa política. Do contrário, ser apartada ou colocada na invisibilidade política faz parte da dinâmica de perpetuação deste espaço como um lugar de homens. Reafirmar a identidade feminina negra como feminista potencializa oposições e conflitos. Desse modo, estar como vereadora e nas assessorias é uma conquista cotidiana para contribuir de fato para a construção de alternativas no legislativo para garantia ao direito à cidade, onde imperam a lógica do favor, da fragmentação, do sexismo/machismo e racismo. A segregação pode ser entendida pela localização: espaço doméstico, nos conjuntos habitacionais e loteamentos periféricos, nas favelas. Entre seus efeitos podemos destacar:

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isolamento no espaço público (nos bairros) e privado (em casa), restrição/controle sobre o direito de ir e vir (vigilância e moralidade; dificuldade de acesso ao transporte público e andar a pé como “alternativa”), vulnerabilidade física e psicológica (assédio, violência doméstica e urbana, depressão). Sobre isso, as mulheres constroem sua resistência pela solidariedade: puxadinhos, improvisos, coabitação, diversidade, laços fortes de vizinhança que são fundamentais - apesar de alguns desses aspectos serem vistos pelo senso comum, basicamente, como problemas. Nesse sentido, valorizar esse ponto de vista da segregação, tenciona inclusive o debate clássico do feminismo sobre o antagonismo entre espaço público (masculino) e espaço privado (feminino). O modo como o patriarcado historicamente traduziu a propriedade privada sempre foi de modo a apartar as mulheres do direito ao seu domínio jurídico, isolando-a ao espaço doméstico. As mulheres nas favelas ressignificam essa dualidade, revelando como essa condição se reconfigura na luta pelo direito à cidade. Não é por acaso que nós estamos em maior número nos movimentos de moradia e contra os despejos forçados. A conquista pela preferência à titularidade da moradia em programas de habitação popular realmente é ganho diante desse processo histórico, mas o direito à cidade nos impõe avançar no entendimento sobre o acesso à terra. Nos basta a propriedade? Circulamos e somos para além desses limites. Mesmo nas periferias e nas favelas, precisamos disputar e resistir para fora das fronteiras impostas por outra dualidade: a cidade formal x informal, ou o asfalto x o morro. Somos uma mão de obra barata mas que ativamente interfere na dinâmica social da cidade através do trabalho. Em grande parte dos bairros mais pobres do Rio de Janeiro, metade dos domicílios são chefiados por mulheres. As campanhas contra o assédio nas ruas e no transporte público e o polêmico vagão rosa que, apesar das críticas se incorpora como interesse das que se sentem vulneráveis à violência machista, revelam esse processo contraditório mas necessário de resistência urbana cotidiana. Numa cidade acostumada, nos últimos anos, a grandes projetos arquitetônicos que favorecem basicamente processos especulativos da terra urbana, trazer à tona a noção acerca do direito à cidade na perspectiva das desigualdades de gênero aponta para a valorização dos espaços públicos. É preciso diferenciar o valor de troca, que vincula a cidade à ideia de mercadoria, do valor de uso, que é o lugar da garantia da democracia, da diversidade dos modos de apropriação do espaço urbano. Por essa razão, o modo como tem sido concebido programas de urbanização de favelas como foram o Favela-Bairro, PAC das Favelas e Morar Carioca não responde às demandas e interesses dos favelados. Um grande problema é a mobilidade, sobretudo para as mulheres que precisam circular pelos becos estreitos e íngremes para ir trabalhar, levar as crianças na escola, fazer compras, cuidar de seus idosos. Saídas possíveis seriam a melhoria das calçadas, pavimentação de vias para deslocamentos a pé, de bicicleta, de moto e até escadas rolantes em determinados trechos - vide experiência em Medellín. Essas são formas de melhoria de locomoção com custos menores e que valorizam a realidade e as características das favelas. No entanto a resposta apresentada à questão da locomoção foi a construção de teleféricos que serviram mais à construção de uma imagem global para os megaeventos associado ao turismo, e a uma

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ideia forçada de integração do Complexo do Alemão1 e Providência ao restante da cidade. Apesar da urgência, é preciso levar em consideração os desafios da participação na elaboração das propostas. Mas ao mesmo tempo, “pequenas” soluções e intervenções urbanas, podem ter um efeito significativo na vida das mulheres negras e consequentemente na vida da cidade como um todo. A iluminação pública e a valorização das calçadas pode ser revolucionário para contribuir para a construção de uma cidade mais segura. médias da sociedade, o que produziu certa hostilidade ao corpo negro no todo urbano. No que se refere às mulheres negras, estas sempre tiveram sua circulação e vivência da cidade completamente distintos das mulheres brancas, inclusive das mulheres brancas pobres. O racismo estrutural produziu uma série de injustiças, dentre elas as injustiças urbanas, que se traduzem na forma como estas mulheres são percebidas ou não na sua movimentação pela cidade. Movimentação esta eivada de preconceitos e estigmas, circunscrevendo as mulheres negras a determinados lugares sociais e estereótipos e gerando uma fixidez na sua maneira de viver a cidade. Assim, o fluxo das mulheres negras, quando acessam a possibilidade de romper com esta lógica e transpor estes lugares, acessando lugares diferentes dos socialmente determinados, geram surpresa, incômodo e hostilidade. Como a maioria da população negra ocupa os espaços de pobreza, vulnerabilizados por políticas públicas de habitação e infraestrutura precárias, as mulheres negras, maioria na população também nestas áreas, acabam sofrendo ainda mais todas estas iniqüidades. Em contexto mais amplo no entendimento das violências concretas e simbólicas produzidas pelo Estado, não seria diferente neste âmbito, dada a precariedade destas políticas e suas descontinuidades quando são direcionadas a esta população, gerando resultados absurdos no que se refere à qualidade de vida das mulheres negras. O Rio de Janeiro nos últimos 20 anos se configurou em um dos sítios onde as mudanças urbanísticas ocorreram de forma diferenciada das demais capitais. Embora não seja mais capital federal desde a década de 1960, sua capitalidade2 , fenômeno que a torna uma espécie de paradigma para o resto do país, faz com o que ocorre nela rapidamente reverbere. Conseqüentemente, a cidade se transforma em um grande laboratório para o capital financeiro internacional, recebendo uma grande quantidade de investimentos e se transformando em uma espécie de vitrine para o mundo e, mais do que isso, ela mesma um produto valorizado e disputado, e ainda se consagra como cenário perfeito para protagonizar a realização de megaeventos e se torna laboratório para projetos na área da segurança pública. Nesse contexto, a população mais pobre e os espaços populares se tornam alvo de intervenção pesada. A desumanização do corpo negro feminino, produzida pela perda histórica de sua cidadania plena, e sua eleição como sujeita de segunda classe, encerrando nestes corpos No Complexo do Alemão o teleférico construído fez parte do PAC Favelas, inaugurando em 2011, e na Favela da Providência o teleférico inaugurado em 2014, fez parte do escopo do Morar Carioca. Ambos estão parados. 2 Trata-se de uma característica singular da cidade do Rio de Janeiro no cenário da Federação brasileira: o fato dela ter se construído historicamente como o “eixo da capitalidade” do país ou como a sua “cidade-capital”. Giulio Argan (1964). 1

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a vivência diária de uma cidadania mutilada e incompleta, gera ainda uma tensão identitária, pois não é possível usufruir plenamente a sua negritude (cabelos, vestimentas, linguagem e mitos) nos diversos espaços da cidade. Deste modo, os impactos causados pelas intervenções decorrentes dos grandes projetos de urbanização dos quais a cidade do Rio de Janeiro foi alvo ao longo de sua história vão além das mudanças na infraestrutura e na estética dos lugares. Atravessam estas políticas uma série de questões, entre elas a questão da Segurança Pública. Com as mudanças no tecido urbano, a formulação das políticas públicas de segurança sempre foram voltadas para o controle da circulação dos corpos negros no todo da cidade. Basta perceber a implantação de projetos de segurança pública, onde forças de segurança oficiais são implementadas nas áreas onde habitam as camadas populares, e as medidas que cerceiam o deslocamento desta população pela cidade, sendo a Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, o local onde essa prática é observada de maneira mais óbvia. No andamento da política de ocupação dos espaços populares pelas forças policiais na atualidade (UPP) , tendo como pano de fundo a implementação de obras de infraestrutura do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e do Morar Carioca . O adoecimento, o sofrimento mental e morte são os efeitos colaterais nefastos deste processo. Suas maiores vítimas, sem dúvida alguma, são as mulheres negras e as brancas pobres. Dentre elas, as negras são as que mais sofrem com as instabilidades produzidas na relação com a cidade. Seja com o próprio poder público, seja pela incompletude das obras, seja pela indefinição nos casos de remoções, realocações e indenizações. São as mulheres negras e pobres que ainda gastam mais horas no cuidado da casa e da família, que sofrem com a precariedade do saneamento, da iluminação, da falta de equipamentos públicos que atendam as necessidades das famílias e delas mesmas, como creches, escolas, postos de saúde e áreas de lazer e de convivência. As mudanças na malha viária, por exemplo, com a extinção de linhas de ônibus e a redução do transporte alternativo, em detrimento da sua regulamentação, a mudança de itinerários, o horário da circulação de muitos ônibus em determinadas áreas da cidade e a má qualidade do transporte público também afetam diretamente a vida dessas mulheres. A circulação na cidade se torna objeto de tensão e medo. A mudança de diversas paradas de ônibus, por exemplo, transferindo-os para áreas mal iluminadas e hostis à noite, com itinerários que fazem com que os ônibus circulem por áreas desertas, demonstram a dificuldade de se pensar nas mulheres no momento da formulação das políticas públicas de mobilidade urbana. E isto em todos os modais. Neste contexto, são as mulheres que apresentam nos seus corpos e mentes os sinais da relação com a perda das referências, com a violência do apagamento da memória dos lugares de afeto e da ruptura nas relações pessoais, na perda de familiares e na reconstrução de si mesmas, sempre atravessadas pela violência institucional. As mulheres sofrem com a dificuldade Unidade de Polícia Pacificadora: projeto da Secretaria Estadual de Segurança do Rio de Janeiro que pretende instituir polícias comunitárias em favelas, principalmente na capital do estado, como forma de desarticular quadrilhas que, antes, controlavam estes territórios como verdadeiros estados paralelos. (Fonte:Wikipedia) 4 O 3º Programa de Aceleração do Crescimento lançado em 28 de janeiro de 2007, foi um programa do governo federal brasileiro que englobava um conjunto de políticas econômicas, planejadas para os quatro anos seguintes, e que teve como objetivo acelerar o crescimento econômico do Brasil, prevendo investimentos totais de R$ 503,9 bilhões até 2010, sendo uma de suas prioridades o investimento em infraestrutura, em áreas como saneamento, habitação, transporte, energia e recursos hídricos, entre outros.(Fonte Wikipedia) 5 Programa de Integração de Assentamentos Precários Informais Morar Carioca. (Fonte: Prefeitura do Rio de janeiro) 3

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de transitarem de maneira livre em muitas partes da cidade e, neste caso, as mulheres negras são as que apresentam as maiores dificuldades no que se refere à circulação. A eleição do corpo negro (seja masculino ou feminino) como sujeito(a) a suspeição permanente, atitude cristalizada na sociedade e consequentemente pelos aparatos de segurança oficiais e que são reproduzidos por seguranças privados em diversos contextos da cidade, acirram as atitudes violentas contra esta população. Nesse sentido, as mulheres negras vêm acumulando um déficit de acesso à cidade em toda a sua trajetória de vida e uma quase anulação da sua figura no tecido urbano, o que vai de encontro ao que deveria ser a dinâmica lógica das cidades, que deveriam propiciar o encontro e a troca entre os(as) diferentes. Assim, são cada vez mais necessárias ações de fortalecimento das redes de atuação e de solidariedade onde nós mulheres estamos inseridas e que privilegiem a escuta e a nossa participação plena na construção das políticas públicas que contemplem as nossas reais necessidades e demandas no âmbito da cidade. Queremos circular com segurança, acessar a saúde, as formas de lazer e cultura e poder expressar nossas escolhas em todos os sentidos.

2 Thaís Santos - Ativista do movimento negro e feminista interseccional. Cientista Social e Mestranda em Sociologia, investiga os estereótipos raciais de mulheres negras.  

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Di Campana 16

DIREITO DIREITOÀ ÀCIDADE: CIDADE:UMA UMAVISÃO OUTRA POR VISÃO GÊNERO. DE GÊNERO.

ÁGUAS DE 8 DE MARÇO DE 2017, FEMINISTAS E FEMININAS

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SOCIABILIDADE E RESISTÊNCIA NEGRA NA CIDADE DE SÃO PAULO Thaís Santos “Os preto dança todo mundo igual sem errar! Agradecendo aos céus pela chuva que cai, Deus me fez funk, obrigada meu Pai!” A frase da música “Sou função” do grupo Racionais MC’s ilustra bem a sociabilidade negra, que desde a década de 1970 dominou as comunidades paulistanas. Os bailes blacks, como eram chamados, imperaram no centro da cidade mobilizando a juventude periférica para dançar ao som de soul, funk e R&B. Inclusive a união do próprio Racionais foi o encontro de KL Jay e Edi Rock, da Zona Norte, com os primos Mano Brown e Ice Blue, do Capão Redondo – Zona Sul de São Paulo, no centro da cidade na Rua São Bento, reduto dos grafiteiros e rappers dos anos 80. O caso ilustra uma realidade que se repetiria ano após ano. Passados quase 40 anos, o deslocamento de jovens no sentido periferia–centro, continua sendo um tema central para pensar o direito do jovem periférico ao acesso à cidade e ao lazer. Fazendo um recorte à periferia negra, esse direito passa a se relacionar com temas que intersectam os direitos humanos, fala-se sobre racismo e segurança pública, também. Proponho aqui refletir sobre alguns casos que mostram como cultura e lazer estão intimamente relacionados a estratégias de resistência dos sujeitos, sobretudo sujeitas, negras e periféricas. O sujeito indesejado em circulação ou o que acontece quando a periferia sai do lugar. A cultura e o lazer são direitos fundamentais que devem ser assegurados pelo Estado de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, mas não é nova a ideia de que na ausência do Estado a população precisa resolver suas demandas e angústias. A exemplo disso, cito os “rolêzinhos”, que desde 2014, reúne adolescentes, que se organizam em eventos no Facebook para promover encontros em Shoppings localizados nas áreas “nobres” da cidade, mobilizando cada vez mais adolescentes de periferia – em um deles 6 mil jovens compareceram ao Shopping do Metrô Itaquera. O evento tem despertado diferentes reações, alguns casos foram proibidos, em outros tantos casos a saída foi a repressão, a ponto de ano passado uma juíza proibir o “rolêzinho” e ordenar a restrição de acesso aos que parecessem “ter perfil” de frequentadores do evento. É inevitável pensar: quem eles restringem o acesso, quando se atentam ao perfil do adolescente periférico que vai para o rolêzinho? O tema praticamente se tornou

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questão de segurança pública. Mas o que dizer quando o Estado discrimina a partir de características físicas determinado segmento social, impedindo o acesso do mesmo a locais de livre circulação? A solução do poder público foi a criação do “Rolezinho da Cidadania” pela Prefeitura de São Paulo, uma tentativa de concentrar a atividade em espaços que não fossem Shoppings, mas em outros locais públicos controlados pela gestão do município. Surpreende, o rebuliço causado pelos “indesejados”, ou ainda, o que acontece quando a juventude negra e periférica sai do lugar que lhe foi pré-determinado. Outro exemplo é a proibição dos “fluxos”, bailes de funk nas periferias que aglutinam jovens nas ruas de zonas residenciais. Existentes desde 2005, começaram a aglutinar cada vez mais pessoas, sendo separados entre legais e ilegais; ou seja, aqueles liberados pela prefeitura nos espaços permitidos. Uma tentativa de conter o enorme crescimento dos eventos na gestão Haddad foi a tentativa de colocá-los em Centros de Cultura, ignorando as demandas desses jovens que por vezes não queriam se deslocar até pontos como a Nova Cachoeirinha, caso morem no Peruche, para chegar nas festas do CCJ1. O que ambos os exemplos explicitam é, sobretudo, uma urgência de se debater as demandas dessa juventude negra e pobre, disposta a se deslocar aos locais centrais, ou mesmo entre as próprias periferias em busca de um lazer que o poder público, além de não contribuir para suprir, estimula a repressão dos mesmos. Restringindo geograficamente os espaços de circulação permitidos a essa população, que não pode marcar rolêzinho no Parque Ibirapuera ou Shopping Tatuapé, e deve se limitar aos seus locais de moradia sem, contudo, atrapalhar os moradores para evitar a repressão policial. De fato, são limitações e tanto!

Jovens negras, vivas e agentes! Surpreende, no entanto, que se não há interesse do poder público em suprir as demandas dessa população, os mesmos parecem encontrar suas próprias saídas para viver o lazer, direito básico para uma vida plena. Neste contexto, um dos agentes que têm se sobressaído é a juventude negra LGBT, as festas Batekoo, Don’t Touch My Hair, Sarrada no Brejo e Afrogeladinho são apenas alguns dos exemplos. A maior parte delas com uma equipe de produção inteira feminina, parece dizer: Agora é nossa vez! E o é de fato. A festa Batekoo teve início nas periferias de Salvador, trazida para São Paulo pelo DJ baiano Miranda e logo se tornou a principal festa LGBT da cidade. Organizada por Miranda, Renata Prado e Arthur Santoro, passou reunir centenas de jovens no centro da cidade, das mais longínquas periferias. A festa reúne um público ansioso por usar seus cabelos naturais, nas mais diversas cores e formatos, roupas de estilos ousados e inovadores esbanjam o chamado estilo “afrofuturista”, lésbicas e bis negras se beijam, também os meninos, todos incluídos nesse espaço pensado para a sociabilidade preta. No palco, a DJ e produtora Renata Prado fala sobre genocídio negro ao mesmo tempo que toca os funks mais recentes – a playlist é só de músicos negros – para embalar o público animado que só pelas 7 horas esvazia a pista rumo a suas “quebradas”. O sucesso 1

Centro Cultural Municipal da Juventude (CCJ) – Equipamento da Secretaria Municipal de Cultura, sediado na Vila Nova Cachoeirinha.

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da festa foi imediato, de mensal para quinzenal, por vezes aos sábados, por vezes aos domingos, sempre lotada a festa teve a ousadia de realizar a comemoração de aniversário de seu um ano, na Cidade Tiradentes, lotando a pista mais uma vez. Na página do Facebook, os animados participantes combinavam como chegar ao local, montavam bondes para sair do metrô Itaquera, grupos no Whatsapp e propunham companhias para os mais tímidos que estavam sozinhos. Unindo extremos, a festa AfroGeladinho é uma dissidência da Batekoo, o empreendimento de duas jovens negras teve início na festa para logo se tornar um evento independente, também lotado. Uma produtora do extremo sul e a outra, da outra ponta da cidade, reunidas para a produção do Afrogeladinho, mas também para conduzir a festa. O que teve início para arrecadar algum dinheiro para as duas jovens desempregadas acabou adquirindo uma proporção maior, política e social. É interessante notar quantos temas são interseccionados e solucionados parcialmente a partir destas iniciativas, além de propor um local seguro para um enorme contingente que parecia não se localizar em nenhum espaço – Ou como imaginar mulheres negras jovens lésbicas e bissexuais com um espaço para se desejar, se sentir belas e viverem suas sexualidades sem se preocupar com exotização ou hiperssexualização, apenas entre seus pares? É uma pequena revolução em alguns dias dos finais de semana por mês. Questionando a estrutura que segrega socialmente, oprime institucionalmente e limita politicamente. No caso da festa Sarrada no Brejo, o público-alvo ainda mais direcionado propõe algo inédito no país: uma festa exclusiva para mulheres lésbicas e bissexuais, cujo o público prioritário são as mulheres negras. Com filas que dobram o quarteirão e lotam as duas pistas da casa de festa, a balada é organizada pela Coletiva Luana Barbosa, grupo formado no início de 2016 a partir do trágico caso de assassinato de Luana Barbosa dos Reis na cidade de Ribeirão Preto, interior de São Paulo. O caso que chocou pela brutalidade, envolveu um espancamento de policiais militares sob a jovem Luana, que faleceu poucos dias depois após ser mal atendida no hospital, por a considerarem uma criminosa que desacatou as autoridades policiais. A repercussão fez com que atos acontecessem na cidade e movimentou jovens da capital até a cidade de Ribeirão Preto para questionar a violência racista, machista e também lesbofóbica que assassinou Luana. A partir desse caso a Coletiva tomou a iniciativa de organizar as festas, como espaços seguros que concentram jovens mulheres das mais diversas regiões, atentas a diferentes demandas. Como por exemplo, o Brejinho, iniciativa precursora de instaurar uma creche para que as mamães possam frequentar a festa e deixar seus filhos em um local seguro, outras iniciativas como rodas de conversa sobre redução de danos, isto é, o consumo de bebidas alcoólicas e outros tipos de drogas; conversa sobre abusos e assédios entre mulheres; situações decorrentes das festas que as mulheres se preocuparam em tratar publicamente e em espaços de discussão política. A Coletiva e a Batekoo são dois, dos exemplos mais importantes, sobre como pensar a sociabilidade negra na cidade de São Paulo é debater temas como violência sexista, lesbofóbica e homofóbica, mas, sobretudo, debater como as jovens negras tem transformado experiências dolorosas em resiliência.

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A perspectiva interseccional que essas experiências impõem se explicita também nas estratégias de resistência. Uma mulher negra lésbica que frequenta uma festa para exercer sua liberdade sexual e afetiva contesta não só os estereótipos raciais que impõe que seu corpo deve estar a serviço do interesse, olhar e desejo masculino branco, mas também questiona o direito ao lazer, à cultura e à vida que é sistematicamente negado para essa população. Se lembramos que os principais temas com que se enfrentam a juventude negra hoje é o genocídio e encarceramento sistemático de corpos negros – basta lembrar do caso de Claúdia da Silva Ferreira ou de Rafael Braga – que conseguimos compreender a importância de espaços em que ser negra ou negro não seja um crime. Festas negras conectam periferias. Festas negras criam laços entre pessoas que o Estado julga que não deveriam sequer estar vivas. Festas negras são resistência. Surpreende que o público que mais tenha aparecido nos últimos tempos sejam as gays, lésbicas e bissexuais. Demonstrando que há uma forte demanda de espaços de cultura, lazer e fazer político para esse público, mas mostram principalmente que há uma energia mobilizadora que ronda tais grupos a ponto de já não esperarem que o Estado resolva as lacunas, tão pouco se escondem dentro dos armários que hiperssexualizam corpos negros, privando-os de individualidade. Periferias conectadas e coloridas dizem: Resistimos

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Sarau das Pretas - foto enviada pelas autoras

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MULHERES NEGRAS E OCUPAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO: ATIVISMO CULTURAL NOS SARAUS DA CIDADE DE SÃO PAULO Bruna da Silva Magno Diana Mendes dos Santos

Bruna da Silva Magno - Graduada no Bacharelado em Ciência e Tecnologia da Universidade Federal do ABC Graduanda no Bacharelado em Matemática da Universidade Federal do ABC Mestranda em Matemática da Universidade Federal do ABC Militante do Coletivo Negro Vozes UFABC Diana Mendes dos Santos - Graduada no Bacharelado em Ciências e Humanidades da Universidade Federal do ABC Graduada no Bacharelado em Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC Graduanda no Bacharelado de Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC Militante do Coletivo Negro Vozes UFABC

Nós, mulheres negras, somos 44% da população brasileira e segundo os dados do último censo do IBGE de 2014, a população preta e parda representa 53,6% do total de brasileiros. Desse total, na parcela dos mais ricos, 79% são brancos. As estatísticas nos mostram uma assimetria que não é apenas econômica, mas também de condições de vida e acesso. Podemos nos perguntar a quantas políticas públicas temos acesso? Territorialmente, há uma concentração da população negra em bairros mais afastados como Itaim paulista, M’Boi Mirim, Cidade Ademar, Guaianazes, Cidade Tiradentes, São Mateus1 e tantos outros bairros e muitas vezes o estado não chega até lá. Se o poder público não alcança essa população, o que a atinge, então? A auto-organização das comunidades que se levanta em todos os âmbitos, colocando em prática seu direito à cidade, especialmente por meio da arte. É importante ressaltar que partimos do entendimento que o racismo é uma questão complexa. Não é somente uma questão sobre “negros contra brancos”, pois também envolve diversas contradições que afetam todos os outros grupos raciais ou étnicos no mundo. Contudo, parafraseando Lênin, em última instância o racismo é “uma questão de pão”. Se não há o suficiente para todos, as pessoas vão se dividir ao longo de linhas secundárias para lutar pelo que sobra na mesa. A história mostra que, quando as condições de vida melhoram para todos, as tensões raciais, étnicas e de gênero começam a afrouxar. No entanto, enquanto vivermos em um mundo em que a maioria sofre com a escassez e a desigualdade social, o flagelo do racismo vai continuar (PETERSON, 2014). Diante desse contexto, a ideia proposta no presente artigo é lançar luz exatamente onde é escuro para o governo e para a maioria da população, mostrando como a população negra, mesmo diante do racismo, criou políticas, especialmente culturais, que são protagonizadas pelas mulheres negras nos seus bairros, falando das suas realidades e da disparidade social por meio dos saraus e dos slams. Iniciamos com o poema Menimelímetros de Luz Ribeiro (2016) sobre o que não é dito nas pesquisas sobre a periferia: Dados do Relatório de Gestão da Secretaria de Políticas de Igualdade Racial em São Paulo, 2013. Disponível em: http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/igualdade_racial/arquivos/relatorios/Relatorio-de-Gestao-SMPIR-2013.pdf 1

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DIREITO DIREITO À CIDADE: À CIDADE: UMA VISÃO UMA OUTRA POR GÊNERO. VISÃO DE GÊNERO.

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“Os meninos passam liso Pelos becos e vielas Você que fala becos e vielas Sabe quantos centímetros cabe em um menino? Sabe de quantos metros ele despenca quando uma bala perdida o encontra? Sabe quantos nãos ele já perdeu a conta? Quando ceis citam quebrada nos seus tccs e teses Ceis citam as cores das paredes natural tijolo baiano? Ceis citam os seis filhos que dormem juntos? Ceis citam o geladinho que é bom porque custa 1,00? Ceis citam que quando ceis chegam pra fazer suas pesquisas seus vidros não se abaixam?’’ O sarau é um espaço para compartilhamento artístico, seja ele escrito, musicado ou corporal. Entre os saraus organizados somente por mulheres negras se destacam o Sarau Das Pretas que é itinerante e o Sarau das Pretas Peri que acontece no Jardim Camargo Velho (Zona Leste de São Paulo). Citamos também alguns saraus onde a mulher negra tem posição de destaque na organização, como o Sarau da Ponte Pra Cá que tem em sua organização Thata Alves e é realizado no Campo Limpo (Zona Sul de São Paulo), o Sarau Mínimo e o Sarau da Ademar (este último já inexistente) localizados na Cidade Ademar (Zona Sul de São Paulo). O slam é uma batalha de poesia que funciona com algumas regras: as poesias apresentadas devem ser autorais não podendo ser repetidas, não é permitido a utilização de objetos ou acompanhamentos musicais ou cênicos/visuais e a apresentação não pode ultrapassar 3 minutos. Em 2008, Roberta Estrela D’Alva inaugurou o primeiro slam no Brasil, Zona Autônoma da Palavra ou ZAP Slam como é conhecido. Desde então eles têm se propagado e as mulheres seguem se colocando e disputando estes espaços como no caso do Slam da Norte, que tem na sua organização Ingrid Martins e o Slam das Minas, com Luz Ribeiro e Mel Duarte. Em 2016, oito anos após a criação do primeiro por parte de uma mulher negra, Luz Ribeiro ganhou o Slam BR, que é a competição nacional, sendo a primeira mulher a ganhar o campeonato. Entendemos que essa manifestação artística é política, porque além da arte, ela faz com que possamos avistar a cidade como nossa também, expressando nossa cultura e/ou recitando poesias sobre a nossa realidade aos quatro cantos. A relação entre arte e política estudada por Miguel Chaia (2007B) pode acontecer de duas maneiras: a primeira, quando as atividades artísticas se querem políticas e a segunda, quando as práticas políticas buscam suporte na arte. Tomando como estudo de caso, os saraus e os slams organizados por mulheres negras, percebe-se uma arte urbana que quer ser política. Elas transmitem um discurso político por meio da arte e da poesia. Em suas poesias as mulheres negras abordam temas como violência policial, o descaso do

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estado para com a população negra e até questões como o amor afrocentrado. A intersecção entre arte e política é analisada por Chaia (2007A) em uma trajetória histórica dos movimentos sociais no final da década de 60, que estavam ligados à luta por direitos civis, mobilizações estudantis e à contracultura. Esses acontecimentos sociais tornaram-se referências que acionam o ativismo cultural na contemporaneidade. O surgimento do próprio grafite e cultura hip hop como arte urbana tem origem não somente como movimento artístico, mas também, como processo político e social possibilitando às camadas mais baixas um instrumento artístico de expressão e protesto contra a opressão social que as mesmas sofrem. O momento histórico estudado por Chaia (2007A) somado à arte conceitual da década de 70 resulta na emergência da arte ativista a partir dos anos 80. Portanto, pode-se entender que há uma trajetória histórica e política no surgimento da arte nas cidades, e estando a cultura negra inserida nesse cenário, os saraus e os slams podem ser entendidos como um produto dessa mesma trajetória. As mulheres artistas ativistas estão em uma relação social fundamentada no desejo de luta e responsabilidade social por reconhecer os conflitos sociais, o racismo, as opressões e as violências diárias que sofrem. Durante essa relação, é fundamental o reconhecimento do outro, afinal, a construção dos saraus e slams tem o objetivo de provocar reflexão em outra pessoa que não só, as próprias artistas e poetas. A arte política tem um realismo político que dá à arte uma função sócio-política. Uma realidade que começa nas ruas (microcosmo) e chega até as redes como internet (macrocosmo) como é o caso das poetas e dos artistas que publicam seus trabalhos nas redes sociais: “Esta prática desloca o cenário da arte e da política para o espaço público. Sai do espaço fechado e branco para o espaço cinza das ruas ou para o espaço virtual da internet.” (CHAIA, 2007, pág. 3) Por fim, a ocupação do espaço público por meio do ativismo cultural perpassa a história da população negra e a identificação com a mesma e com a realidade presente em todas as manifestações artísticas nos saraus e slams. O surgimento e continuidade de manifestações culturais como essas, nas cidades, só é possível porque a população se reconhece nelas. Angela Davis explicitou em seu livro Mulheres, Raça e Classe (2016) que há um legado da escravidão que estabelece parâmetros para uma nova condição da mulher, especialmente a mulher negra. As mulheres escravas foram quem transmitiram para suas descendentes do sexo feminino, nominalmente livres, um legado de trabalho duro, perseverança e autossuficiência, um legado de tenacidade, resistência e insistência na igualdade sexual – em resumo, um legado que explicita os parâmetros para uma nova condição da mulher. Por isso, é possível ver o levante das mulheres negras na luta por seus direitos, incluindo o direito à cidade na construção da nossa cultura e acesso a políticas públicas. O mapeamento presente no artigo em relação aos saraus e slams mostra uma pequena parte de onde queremos chegar com nossos sonhos e nossas realidades. Da Zona Leste à Zona Sul, queremos uma sociedade livre do racismo e da desigualdade

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para a nossa população.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CHAIA, Miguel, Arte e Política – Rio de Janeiro, Azougue Editorial, 2007A. CHAIA, Miguel, Artivismo – Arte e Política Hoje – Aurora, Revista de Artes, Mídia e Política, PUC, 2007B. DAVIS, Angela, Mulheres, Raça e Classe - Editora Boitempo, 2016. p. 41. PETERSON, John. Sobre o Programa do Partido dos Panteras Negras: Que caminho seguir para os trabalhadores e jovens negros? - Parte I. Publicado em 04/11/2014. Disponível em: http://www.marxismo.org.br/content/sobre-o-programa-do-partido-dos-panteras-negras-que-caminho-seguir-para-os-trabalhadores-e RIBEIRO, Luz. Menimelímetros. 2016. Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=09KDfTVPAeE

4 Jessica Tavares Cerqueira - é mulher negra e feminista, que atravessa cidades. Bacharela em Ciências e Humanidades Bacharela em Políticas Públicas Assistente de Coordenação do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico Acredita que a vida não cabe em apresentações.

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MULHER E O MUNICÍPIO DE SÃO PAULO: DIGRESSÕES SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS MUNICIPAIS

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Di Campana

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BARREIRAS VISÍVEIS E INVISÍVEIS NA FAVELA: PELO BEM VIVER DAS NOSSAS MULHERES. Jessica Tavares Cerqueira “É que em todo o lado, mesmo no invisível, há uma porta. Longe ou perto, não somos donos, mas simples convidados. A vida, por respeito, requer licença.” (Mia Couto) Em julho de 2016, eu pedia licença a moradores da favela da Vila Sônia Maria, em São Bernardo do Campo, para falarmos sobre o projeto de urbanização previsto no âmbito do PAC-UAP1 para o assentamento precário. A proposta era falar de lacunas na participação dos moradores na elaboração e implementação do projeto. Para isso, foi feito um roteiro de entrevistas, focado principalmente em questões urbanísticas. Nossas conversas renderam horas de áudio e mostraram as mais variadas lacunas de participação social e crises de representatividade. No entanto, o que gritava nas repetidas vezes em que eu examinava aquele material era o que as mulheres contavam nas entrelinhas: solidão e abandono. O trabalho concluiu-se focado em sua proposta inicial, e apenas hoje, retomo à contundência desses depoimentos. Por isso, peço mais uma vez licença a todas as dedicadas vozes que já se debruçaram sobre o tema da solidão e isolamento de mulheres pobres e negras. Em nome de todas, cito a gigante Carolina Maria de Jesus, que anunciou a favela como quarto de despejo da cidade. Para mim, seus escritos evidenciaram uma solidão que não era apenas urbanística, mas, sobretudo, social. Nossos passos vêm de longe.

Raízes da desigualdade e a cor das sem terra Para falar de mulheres é necessário reafirmar quem elas são e os porquês de sua condição, questões que guardam estreita relação com o nosso processo de urbanização. A concentração da terra e da renda inviabilizou a sobrevivência no campo, levando a uma espécie de expulsão dos mais vulneráveis para as cidades pela falta de oportunidades e condições de subsistência. A intensificação do êxodo rural foi vivido apenas a partir da década de 1930, com os incentivos ao trabalho urbano movido pela modernização. No 1

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entanto, ainda no Brasil Imperial, a promulgação da Lei Áurea, em 1888, já havia levado alguns negros a migrarem para o espaço urbano, uma vez que, alijados ao trabalho na terra, a população negra foi jogada à própria sorte. A abolição da escravatura não trouxe consigo quaisquer reparações sociais e econômicas. Fora promulgada completamente deslocada de uma política de democratização do solo, e por essa razão, forçou com que muitos negros mudassem para os centros urbanos em busca de oportunidades e de condições de moradia. É fundamental frisar que nossa abolição não resultou do reconhecimento de um passado vergonhoso da desumanização de um povo, mas sim de uma mudança necessária para a inserção no sistema econômico mundial, que já havia adotado o trabalho assalariado. E não há como realizar qualquer debate acerca do direito à cidade sem considerar a privação das pessoas negras, em relação ao atraso a que foram submetidos no acesso à terra, quando esta virou propriedade privada. Segundo MARICATO (2003) a emergência de mão de obra livre, em 1888, contribuiu para definir o início de um processo, no qual industrialização e urbanização caminharam juntas sobre o lema positivista da ordem e do progresso. A lógica da constante formação das metrópoles brasileiras, nós já sabemos. Ao contrário do que se esperava, o espaço urbano não superou as heranças deixadas pelos períodos colonial e imperial, marcados pela concentração de renda e terra, clientelismo, monocultura e patriarcado. Pelo contrário, estes são elementos estruturantes do nosso espaço urbano. As cidades atuais espelham nossas desigualdades de classe e raça, empurrando para as favelas aqueles que são a base da força de trabalho do país.

Desenho urbano, agente do isolamento físico das favelas É difícil conceituar o que é uma favela no Brasil. O alto índice do déficit habitacional faz com que sejam desenvolvidas as mais diversas soluções habitacionais, e em territórios com topografias também muito variadas. Dessa maneira, o que pode ser lido, na região Sudeste, como favela - caracterizando um aglomerado espontâneo subnormal, de padrão construtivo precário, e ausência de serviços de saneamento - pode e provavelmente terá outras características e/ou nomenclaturas nas demais regiões do país. Nesse sentido, é importante salientar que a percepção sobre a abrangência da pobreza urbana considera aspectos mais amplos do que apenas o padrão construtivo de uma casa. A favela é caracterizada principalmente pela ocupação irregular de áreas em que o mercado imobiliário não pode atuar - ou seja, principalmente em áreas protegidas ambientalmente e/ou áreas de risco -, ausência de serviços de infraestrutura urbana, maior exposição à violência seja por parte do estado, seja por parte de criminosos, assim como maior exposição aos problemas da ordem de saúde pública, entre outros. Ser favelada é estar na periferia dos direitos. E, em muitas vezes, esta situação desenha um círculo vicioso, em que uma privação leva a outra. Como por exemplo, a falta de salubridade da habitação leva a problemas de saúde que afetam o rendimento escolar das crianças e adolescentes. Em geral, são as mães que se responsabilizam pelos cuidados da família e, por isso, precisam levar os filhos frequentemente a hospitais, pedindo dispensa

Programa de Aceleração do Crescimento - Urbanização de Assentamentos Precários

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do trabalho ou equilibrando triplas jornadas. Esses exemplos são tão especulativos quanto podem ser realidade, e gostaria de chamar atenção aqui, para as suas implicações no bem viver dessas mulheres. Para falar sobre solidão e isolamento, cito o caso da favela da Vila Sônia Maria, mais conhecida como “Buraco Quente”, que resiste há 49 anos. Para contextualizar a fala das moradoras, segue breve panorama da tipologia física urbanística da área ocupada.2 As vias públicas existentes não se enquadram na estrutura de hierarquização viária do município. O sistema viário tem pavimentação somente nas ruas dos principais acessos, sendo o restante sem pavimentação e, em muitos pontos, com pavimento irregular e sem calçadas. O assentamento precário ocupa fundo de vale com inclinação entre 10 e 20º e apresenta a área total de 18.178,07. De forma sintética, trata - se de assentamento não consolidado, caracterizado pela carência de infraestrutura, traçado irregular, e apresenta a necessidade de execução de obras de infra - estrutura urbana, consolidação geotécnica ou de drenagem urbana, abrigando habitações inadequadas. A maior parte dos imóveis possuem metragem inferior a 40m² e apenas 20% é isolado no terreno, sendo as demais germinadas de um ou ambos os lados. As habitações de madeira representam 10% do total de imóveis do assentamento. A drenagem de águas pluviais do núcleo Vila Sônia Maria ocorre, em sua maioria, através do escoamento superficial direto nas vielas existentes ou tubulação para captação de chuva nas coberturas, apenas naquelas que possibilitam a instalação deste tipo de dispositivo. Algumas vielas são estreitas e ainda mais limitadas devido sua utilização para instalação de escadas de acesso aos imóveis, disposição de varais e descarte de resíduos de diversas categorias. Esse é o cenário. E como esta desagradável realidade impacta a vida e sonhos das moradoras? Como colocam seu corpo na cidade e para quê? Para quem? Quem pode enxergar as violações de vidas de promessas de urbanizações que não se concluem? De despejos e ameaças de remoções? Em que medida, a precariedade física e visível, torna-se agente de barreiras que, com anos, transformam essas mulheres não somente isoladas da cidade legal, mas principalmente solitárias afetivamente?

Desromantização da favela e a Solidão afetiva da mulher Bell Hooks em sua brilhante e elucidativa obra Vivendo de Amor, escreveu sobre a solidão afetiva da mulher negra. Ao ouvir as falas das moradoras da Vila Sônia, não pude deixar de lembrar desse texto e de como dialoga com a solidão que é causada pelo desenho urbano das favela, e que se expande para o campo afetivo. Bell Hooks fala das barreiras históricas que afastaram a mulher negra de vivenciar o amor, e neste caso, proponho pautar o quanto as condições de precariedade afastam as mulheres faveladas de possibilidades de sociabilidade. Um ponto significativo para iniciar a discussão que pode ser clichê mas bastante central, é o abandono do Estado. Não somente o abandono porque não chega em forma 2

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Informações concedidas pela Secretaria de Habitação de São Bernardo do Campo. Relatório para Obtenção de Licença Prévia

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de qualquer serviço público, mas por que chega e vai embora sem qualquer justificativa da não resposta, sobre o vácuo que ecoará pelos próximos quatros anos, até que voltem a debater urbanização. “Sempre vem eles, sempre mostra, quando é política eles vão e nunca faz, vão embora.” “Eles não dão resposta de nada” a última vez que vieram foi em novembro do ano passado” (Moradora 1) “Eu to aqui há 09 anos, e as reuniões foi só política. ninguém nunca chegou aqui pra dar uma resposta pra gente” (Moradora 2) “Eu moro aqui há 26 anos, só promessas, eles vêm e vão” (Moradora 3) Não se recebe com indiferença tamanho descaso. Esse ir e vir, vir e sumir causa desesperança nas chefes de famílias que se desdobram para acompanhar reuniões onde se debate urbanização, e são deixadas no limbo das instituições, até que saia a próxima licença, a próxima liberação de recurso, e enquanto isso, elas seguem sem acreditar. O padrão de comportamento, em que a visita na favela se segue de anos sem resposta, mina um lugar da cidadania dessas mulheres, que deveria ser de incentivo a participação e monitoramento mas é transformado em abandono e em quebra de confiança. “Eu não acredito que vai sair nada aqui, fazer igual o santo: ver pra crer” (Moradora 2) A presente fala, que associa política à presença no território, denota a sensação de uso a que são submetidas. Não são reconhecidas como sujeitas de direito, merecedoras da responsividade do Estado. São peças necessárias para o jogo político. “O que mudou foi o que a gente fez. Era barraco e constrói de alvenaria, o esgoto era tampado com madeira e aí colocamos cimento, e cada um tenta melhorar dentro da sua casa, mas da casa pra rua, nao tem infraestrutura nenhuma.” (Moradora 3) A contagem dos anos em que estão à espera aparece com frequência. Quem esquece, são eles. Nós não. Estamos contando. E para as moradoras de buracos, morros, margens de córregos, a medida que o tempo avança, fica cada vez mais difícil de se imaginar em outro lugar, e se tornam muito destrutivos quando alteram nossa habilidade de lutar e acreditar. Outro ponto possível de ser abordado de acordo com as vivências diárias em locais de precariedade é como podem e limitam nossas relações no campo afetivo. Talvez, o que há de tão urgente quanto urbanizações participativas, é que estas venham acompanhadas do cuidado da saúde mental dos e das que ali vivem.

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“É um buraco, não é uma área plana... e há 26 anos eu sonho com isso” “Nós temos aqui esgoto a céu aberto, tudo embolora, móveis, travesseiro, colchão…é uma situação bem ruinzinha” (Moradora 3) Afirmo isso, pois para a sociabilidade da mulher favelada há um componente complicador, que a atinge para além do machismo e do racismo: a discriminação de classe. E que se torna potencialmente danoso quando é interiorizado, onde se cria o sentimento de inferioridade. “Qualquer um dos dois (apartamento ou casa) seria bom. Pra quem quer uma moradia digna, entrar um carro, uma correspondência, a gente poder receber nossos amigos de outro tipo de classe, porque faz vergonha, os becos da favela é muito sujo. Eu não tenho coragem de trazer o pessoal da igreja na minha casa. Tem um lá que é louco pra vir, mas eu tenho vergonha de trazer um engenheiro aqui.” Moradora 2 A fala acima sintetiza a minha motivação maior de escrever este breve artigo falando sobre sentimento e solidão, da perspectiva urbana. Quando assumimos que pisar no esgoto, descer vielas, subir ladeiras não é para todos, que o encontro não pode se dar no meu lugar, porque não é digno de receber o outro, eu já estou em um espaço diferente. Que é sujo, apertado, íngreme, inapropriado e não quero que ninguém me veja aqui. Dentro de nós, esse lugar é uma ilha. Só partilhamos entre nós, que dividimos esse agrupamento solitário. Dói, que em seus íntimos, estejam de acordo que um engenheiro não possa vir a visitar, porque implica que se interiorizou que da favela também não podem sair engenheiros e nem médicos, advogados, urbanistas e gestores. Eles não pisam aqui. Nós pisamos, porque nos acostumamos que somos um pouco menos. Um pouco menos gente. Há tantos anos aqui sem respostas, mesmo com tantas perguntas que nos fazem no censo, nos mestrados e doutorados. Nós que nos relacionamos entre nós, porque as visitas externas, no geral, acontecem quando o waze, manda alguém para uma quebrada, e desesperados: meia volta e fim. Ou quando precisam de algo que vendem por aqui, neste caso, não há constrangimento. No que mais podemos servir? A sociedade por engano ou pelo vício. O Estado para nos matar e encarcerar. E por amor, quem vem? As barreiras físicas e visíveis nem nos afastam tanto, mas o que se molda em torno delas, sim. O desafio da sociabilidade da mulher favelada, deixa de ter teor puramente urbanístico e se agrava em barreiras do campo afetivo. Busco incitar provocações que explicitam a insegurança e vulnerabilização psicológica causadas pelo projeto de desenvolvimento urbano excludente brasileiro. Ainda que uma intervenção urbanística aconteça, foram anos, evitando visitas, caronas, e situações de estigma. Para que desenvolva laços fora de seu núcleo habitacional,

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esta mulher deve ser ainda agente ativa que autoriza e convida o outro para o seu lugar. Neste processo, em que apresenta o seu lugar, ainda que o considerando inferior e vergonhoso, as mulheres tentam vencer os estigmas e isolamentos sociais. “A gente não tem acesso a rua, a nada, fica aqui nesse buraco, parados, sem acesso a nada.” A gente quer mesmo é sair daqui. Isso aqui é um buraco” (Moradora 4) A convivência com esgoto a céu aberto, lixo, disputa por espaço, falta de privacidade, abandono estatal e interiorização da inferioridade, modificam a forma como colocamos nossos corpos na cidade. Nos sentimos menos aptas para deixar de atravessar lugares para passar a ocupá-los. Qual a relação que as moradoras conseguem estabelecer com os espaços de lazer? Caso haja tempo e recurso, elas os têm frequentado? Em artigo anterior, de minha autoria, “Mulheres que atravessam as cidades”, já havia levantado sobre a forma que a relação centro-periferia para as mulheres paulistanas se dá predominantemente no deslocamento casa - trabalho, ou em atividades que sejam extensões de seus papel social no espaço privado. Como por exemplo, levar os filhos a escola ou ao hospital, ir ao mercado, etc. Explícita é a ausência de espaços em que as mulheres se sintam confortáveis de ocupar, no âmbito do lazer e da cultura. “Deixa eu ver o meu sonho! Tem uma praça, tudo bonitinho?” (Moradora 3) “Se sair, vai ser ótimo! Ter área de lazer.” (Moradora 1) O texto traz mais perguntas que afirmações, porque precisamos começar a deixar que respondam. A cuidar. A ouvir. Apenas quando essas mulheres se sentirem parte da cidade, ela será realmente justa e democrática. E só quando o debate de direito à cidade chegar na favela, estaremos próximos de alcançá-lo. “A gente vive aqui numa situação bem difícil de infraestrutura, as crianças tem muito problema de alergia, respiratório, aqui já teve até cobra, preá, isso seria uma melhoria de vida e de saúde principalmente, e de auto estima, só traria benefícios pra nós (...) a gente precisa de uma moradia digna.” (Moradora 3) Nós, militantes, agentes públicos e acadêmicos, temos muito o que aprender com essas vozes, que nas entrelinhas ensinam sobre corpo e cidade e como o meio tem interferido no campo afetivo e consequentemente, político. Nós, enquanto gente, de carne, osso e sentimentos devemos lutar incansáveis para que a regra da condição de habitação de pessoas predominantemente negras no Brasil deixe de ser precária e irregular, e que a consequência disto, cause mais isolamento e so-

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lidão de nossas mulheres. “A gente merecia uma coisa melhor, e é o sonho de todo mundo” Moradora 2

5 Paula Nunes dos Santos - Mulher negra. Advogada criminalista formada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.  

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Samara Takashiro 40

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O PAPEL DAS MULHERES NA LUTA PELO DIREITO À MORADIA

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O histórico da relação entre mães e filhos negros

MÃES PRETAS EM LUTO(A): PARA SE TER DIREITO À CIDADE, É PRECISO VIVER Paula Nunes dos Santos 243. Esse número aparentemente pequeno ganha proporção estrondosa quando se tem ciência de que é a quantidade de “mortes decorrentes de intervenção policial”1, ocorridas somente no estado de São Paulo entre 1º de janeiro e 5 de abril deste ano, segundo levantamento da Polícia Civil.2 Apenas no segundo semestre de 2016, 295 denúncias por homicídio foram recebidas pela Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo, ou seja, 6,12% a mais do que o registrado no mesmo período do ano de 2015. O total de denúncias formalizadas pelo órgão no ano passado foi de 525. Não há novidades no fato de que a polícia militar brasileira é a que mais mata no mundo 3. Também não é novidade que o perfil das vítimas é essencialmente formado por homens jovens e negros. O último Mapa da Violência4 divulgado demonstrou que morrem por arma de fogo no país, proporcionalmente, 158,9% mais negros do que brancos. Pouco se fala, no entanto, de uma parte que existe e resiste nessa estatística: as mães pretas do genocídio, mulheres que sobrevivem e se reinventam para superar a dor da perda de seus filhos assassinados pela polícia em todo o mundo. Além da dor, as mulheres negras protagonizam a luta contra a violência policial. Um grande exemplo de protagonismo feminino negro é o movimento Black Lives Matter, dos Estados Unidos, que nasceu a partir da hashtag com o mesmo conteúdo criada por três mulheres negras - Alicia Garza, Opal Tometi e Patrisse Cullors – depois da absolvição do segurança responsável pelo assassinato de Trayvon Martin, de 17 anos, em 2013. No Brasil, há anos, mães de jovens assassinados pela polícia se organizam para transformar o luto em luta, como é o caso do Movimento Mães de Maio, que surgiu depois do assassinato de pelo menos 564 pessoas entre os dias 12 e 20 de maio de 2006, no estado de São Paulo. O movimento não abarca apenas as mães das vítimas daquele período, mas funciona como referência para mães que tiveram os seus filhos assassinados desde então até os dias atuais. A Resolução nº 5 da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, de 7 de janeiro de 2013, determina que, desde aquela data, as autoridades policiais não podem se utilizar mais da nomenclatura “autos de resistência” ou “resistência seguida de morte”, que devem ser substituídos por “lesão decorrente de intervenção policial” ou “morte decorrente de intervenção policial”. A Resolução conjunta nº 2, publicada em 4 de janeiro de 2016, e elaborada pela Polícia Federal e pelo Conselho Nacional dos Chefes de Polícia Civil adotou a utilização dos termos “lesão corporal decorrente de oposição à intervenção policial” ou “homicídio decorrente de oposição à intervenção policial”. 2 https://ponte.org/onde-e-quem-a-pm-de-sp-matou-em-2017/ 3 http://exame.abril.com.br/brasil/policia-brasileira-e-a-que-mais-mata-no-mundo-diz-relatorio/ 4 http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2016/Mapa2016_armas_web.pdf. 1

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DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO.

Ao tratar da escravidão dos negros nos Estados Unidos, a pesquisadora e professora Angela Davis destacou que “as mulheres têm autoinduzido abortos desde o início os primeiros dias da escravidão. Muitas escravas se recusavam a trazer crianças a um mundo de trabalho forçado interminável, em que correntes, açoites e o abuso sexual de mulheres eram as condições da vida cotidiana” (DAVIS, 2016, p. 207). Durante quase todo o período da escravidão, nos países onde ela existiu, não era garantido às negras o direito à maternidade. Filhos eram arrancados de suas mães ainda muito jovens para serem comercializados como escravos e, para evitar a dor da separação ou o sofrimento de suas crianças, muitas mulheres abortavam. Enquanto, no auge do século XIX, a expectativa social em torno das mulheres brancas era de constituição do matrimônio e imposição da maternidade, as mulheres negras eram avaliadas pela sua capacidade reprodutiva tão somente para que se estimasse a quantos novos escravos elas poderiam dar à luz. Mesmo passados quase 130 anos desde a abolição da escravidão e o fortalecimento da ideologia da miscigenação como possibilidade de integração e mobilidade social, as mulheres negras continuam correndo o risco de se separar involuntariamente de seus filhos e ver a vida deles ceifada em nome da suposta garantia da segurança pública, não importa a idade que tenham.5 Isso porque, mesmo com o advento da suposta democracia – na qual está embutido o conceito de democracia racial -, os negros continuam sendo categorizados como ameaça à ordem pública o que faz com que, ainda que de forma velada, a sua vida tenha menos valor. Nesse sentido, leciona E. Zaffaroni que “na América Latina, todo suspeito é tratado como inimigo, apesar da legitimação do direito processual penal. Em geral, a categoria do inimigo não é expressamente introduzida ou não são feitas referências claras a ela no direito ordinário, visto que ao menos institui-se sua incompatibilidade com o princípio do Estado de direito” (ZAFFARONI, 2007, p. 189-190).

O direito à vida negra como direito à cidade Ao tratar do direito à cidade, é necessário compreender que parte importante da população brasileira está lutando para, ao menos, ter garantido o seu direito à vida. Em uma realidade marcada por taxas de homicídio que ultrapassam as de importantes guerras ao redor do mundo, um jovem negro ter mais de 24 anos é, literalmente, quebrar uma estatística. Ainda que a maior marca seja a violência policial, o racismo se expressa nas diversas instituições que compõem a estrutura do sistema capitalista. As mães pretas em luto, que Dados levantados pelo O Globo a partir de informações do Sistema de Informação de Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde demonstraram que entre 2005 e 2015, 82 crianças e adolescentes até 14 anos foram assassinadas pela polícia, sendo que 50 casos ocorreram no Rio de Janeiro (https://oglobo.globo.com/rio/estado-do-rio-teve-em-dez-anos-50-criancas-mortas-por-policiais-60-de-todos-os-casos-no-pais-15789318). 5

MÃES PRETAS EM LUTO(A): PARA SE TER DIREITO À CIDADE, É PRECISO VIVER

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quase sempre vivem nas extremidades das grandes cidades, são as mesmas que lidam com o desemprego e a precariedade dos trabalhos terceirizados e que atravessam as cidades todos os dias em transportes públicos sub-humanos. São elas também que chefiam mais da metade das famílias chefiadas por mulheres no país - com salário médio aproximadamente 50% menor do que o recebido por mulheres brancas -, sendo que menos de 3% delas dividem esse posto com um cônjuge ou companheiro.6 Para idealizar e concretizar uma cidade inclusiva para as mulheres, é necessário o desenvolvimento da compreensão de que uma análise estritamente de gênero não é suficiente, mas sim a articulação entre gênero, raça e classe. Seguindo o exemplo das mães negras que transformam o luto em luta, o objetivo daqueles que almejam uma cidade transformada e inclusiva para as mulheres deve ser pensar uma cidade em que elas não mais precisem chorar a morte de seus filhos e na qual a sobrevivência não seja, também, uma luta.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CARAMANTE, André (organização). Mães em luta – dez anos dos crimes de maio de 2006 - São Paulo: Nós por nós, 2016. DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe - São Paulo: Boitempo, 2016. FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos - São Paulo: Global, 2013. MARCONDES, Mariana Mazzini (organização). Dossiê mulheres negras: retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil – Brasília: Ipea, 2013. WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2016: Homicídios por armas de fogo no Brasil. 26 de agosto de 2015. ZAFFARONI, E. Raúl. O inimigo no Direito Penal – Rio de Janeiro: Renavan, 2007.

6 Helena Duarte Marques - Mulher, feminista e advogada popular. Assessora jurídica do IBDU. Graduada em Direito pela PUCSP. Mestrando em Direitos Humanos na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

MARCONDES, Mariana Mazzini. Dossiê mulheres negras: retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil – Brasília: Ipea, 2013. 6

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O PESO DA VIDA URBANA SOBRE OS OMBROS DAS MULHERES E A DIMENSÃO DOS DESPEJOS FORÇADOS

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MULHERES VÍTIMAS DA VELHA GUERRA E DA NOVA LUZ Helena Duarte Marques A guerra às drogas teve início no século XX, sendo uma política liderada pelos Estados Unidos que impôs a centralidade da proibição das drogas com uma forte campanha militar e ideológica não só em seu próprio território, como também nos países nos quais exerce o seu imperialismo. Nas grandes cidades da América Latina, esse discurso se traduz, na prática, como uma guerra aos pobres, sendo seu alvo principal, a juventude negra que vive nas periferias dos centros urbanos. A esquemática é simples: sob o argumento de combater o tráfico de drogas, o Estado, intervém militarmente nos territórios, promovendo um verdadeiro genocídio dessa juventude, e aos que sobrevivem a este extermínio resta a vigilância e a repressão constantes, como é o caso das ocupações militares nas comunidades do Rio de Janeiro. O discurso de guerra às drogas é “perfeito” para legitimar a intervenção militar nas cidades e justificar políticas, que sob o manto da moralidade do combate ao uso de drogas, tem em seu cerne objetivos escusos muito mais lucrativos. Este é o caso da Cracolândia na cidade de São Paulo.

O centro, a droga e a Cracolândia Desde as décadas de 1970 e 1980 houve uma migração na cidade de São Paulo, em que os mais ricos da população saíram do centro da cidade, levando seu comércio e serviços para outras regiões, a exemplo da Paulista e Faria Lima. A partir da década de 1990, os escritórios de alto padrão e centros comerciais também mudaram seu endereço para as mesmas regiões, acrescentando locais na Avenida Berrini e Marginal Pinheiros. Ao mesmo tempo que houve este movimento das classes médias e ricas para longe do centro, houve uma ocupação crescente da população de baixa renda, seja pela facilidade de transporte (inauguração da estação de metrô Sé, em 1978) ou oportunidades de emprego e moradia. Este contexto e esta movimentação permanecem até hoje. De acordo com pesquisa realizada em 20151, no ano, havia 15.905 pessoas em situação de rua na capital paulista, sendo que mais de 52% desse total estão no centro da cida1

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Censo da população em situação de rua na cidade de São Paulo, 2015.

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de e é justamente na Cracolândia, local na região central de São Paulo, que se concentra diversas pessoas nesta situação. Os motivos que levaram estas pessoas a viveram na rua são muitos, desde a crise econômica que assola o nosso país, como problemas familiares, psicológicos, e também o uso problemático de drogas, sejam elas lícitas ou ilícitas. As pessoas que vivem em situação de rua passam por condições extremas de miséria, violência e vulnerabilidade. São vítimas de repressão e da “higienização” promovidas pelo poder público. Sofrem com as abordagens policiais, ações de despejo e reintegração de posse violentas e até ataques com jatos d´água feitos por funcionários da prefeitura. Ou seja, a espinha dorsal da política pública é a lógica da criminalização. É verdade que se aumentou o consumo de crack nos últimos anos, deste fato não podemos escapar. Porém, é preciso destacar o sensacionalismo da grande mídia sobre a Cracolândia e a população em situação de rua no centro de São Paulo. O senso comum predominante é de que o centro de São Paulo é um lugar degradado, violento, perigoso, nojento, lotado de “crackudos”, que vivem como zumbis, agressivos e não deveriam estar ali (ou em verdade, para este senso comum, ali ou em lugar algum). Desta forma, é criada uma narrativa pró-higienista que justifica a “limpeza” social por meio da força policial. Ao mesmo tempo em que se criminaliza as pessoas em situação de rua, sendo elas usuários, traficantes ou não, também se legitima o discurso de que o centro necessita de um projeto de revitalização que o salve do abandono.

A “revitalização” As soluções propostas são calçadas na criminalização das drogas e na apresentação de um projeto de “revitalização” para a região. De forma simultânea, há a imposição de violência policial para retirada dos moradores, prisão de diversas pessoas e políticas como a internação compulsória, e também há a apresentação de um projeto de “renovação” urbanística da região, com a construção de praças, canteiros, espaços de lazer e novos prédios. No entanto, os principais objetivos destes projetos de “revitalização” não é a melhoraria da cidade ou oferecer condições mínimas de vida digna para as pessoas em situação de rua. Aqui, a roda gira no sentido do lucro empresarial. Há uma grande especulação imobiliária, de forma que a valorização de uma área com um projeto de “revitalização” gera lucro para as empresas donas dos terrenos da região. O exemplo emblemático do lucro dessas grandes corporações com a revitalização do centro, são as parcerias público-privadas, especificamente, o projeto do Banco Itaú para revitalização do Vale do Anhangabaú. Na Cracolândia não é diferente. Há diversos interesses econômicos na região, que vem ganhando espaço. O projeto proposto, hoje pelo atual prefeito João Dória é chamado Nova Luz e em muito se assemelha com propostas inclusive de mesmos nomes, dos antigos prefeitos José Serra e Gilberto Kassab. Vale destacar que esta ideia de “revitalização” do centro é anterior a estes políticos. O primeiro projeto deste tipo surgiu na década de 1970, criado pelo prefeito Olavo Setúbal.

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O projeto atual ainda não foi apresentado por completo, mas o antigo envolvia uma parceria bilionária entre o poder público e setor privado, com a transformação de mais de 40 quadras no centro da cidade em uma área com comércio, serviços e polos culturais direcionados às elites. Outro ponto da “revitalização” seria o conjunto de incentivos fiscais oferecido pelo poder público a empresas de hotelaria, lazer, cultura, entre outros. O próprio projeto era alarmante, uma vez que havia diversos pontos controversos, sendo os dois principais o uso do instrumento de concessão urbanística (previsto no Plano Diretor Estratégico de 2005) que permitiria ao setor privado que desapropriasse os imóveis; e a falta de participação da sociedade civil no projeto - que, inclusive, é assegurada pelo Estatuto da Cidade. E tudo isto seria viabilizado por meio da Operação Dor e Sofrimento - cujo nome já é, por si, só simbólico. Ainda que formalmente o atual prefeito não tenha apresentado um projeto para a região, ele, materialmente, já vem sendo implementado na Cracolândia. Na realidade o projeto se expressa pelas cenas de extrema violência protagonizadas pela polícia na região, em que já efetuou a prisão de supostos traficantes e retirada da população em situação de rua. Além disso, iniciou-se o processo de demolição dos prédios, sem a legalidade cabível à situação, chegando ao absurdo de demoli-los com pessoas ainda dentro. É importante entender que este projeto não contempla políticas públicas de longo prazo capazes de, minimamente ,dar conta de questões históricas como déficit habitacional, atendimento permanente às populações vulneráveis e acesso à educação e à saúde pública – tudo isso agravado pelas questões estruturais que aumentam esses problemas: o racismo e o machismo.

As mulheres Para as mulheres este cenário é brutal. Partindo do pressuposto que as mulheres já sofrem com todas as expressões do machismo na sociedade, quando elas estão em situação de rua e/ou são criminalizadas por serem usuárias ou traficantes, elas são dupla ou triplamente invisibilizadas. Segundo pesquisa de 20152 , 14,6% das pessoas em situação de rua na cidade de São Paulo são mulheres. Um estudo específico3 realizado na Cracolândia apontam o seguinte perfil: 16,8% são mulheres, 3,7% são transexuais e 17% das mulheres estão grávidas. As razões que as levam a esta situação tem especificidades em relação aos homens. Na sociedade, as mulheres, principalmente as negras, ocupam os piores empregos, e recebem substancialmente um salário menor apesar de realizarem o mesmo trabalho que os homens. O desemprego atinge mais as trabalhadoras femininas4. Ademais, as mulheres são as responsáveis pela família. Mesmo quando tem companheiros, o peso do cuidado familiar recai sobre a mulher. Algumas criam seus filhos sozinhas, enquanto outras dependem financeiramente de seus companheiros, o que gera 2 3 4

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Senso da população em situação de rua na cidade de São Paulo, 2015. Pesquisa do Programa Recomeço, 2017. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 2016.

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uma grande instabilidade. Assim, muitas estão na rua com os seus filhos. Vivendo nas ruas, estas mulheres ficam desamparadas de qualquer direito, como saúde, educação, moradia digna. As soluções paliativas, como abrigos temporários ignoram a realidade destas mulheres e se tornam ineficazes. Há menos vagas para mulheres nestes equipamentos, e nem todos aceitam crianças pequenas. E não há nenhuma política que garanta assistência no sentido de moradia definitiva ou emprego. A violência também é um ponto de destaque na vida destas mulheres. Neste ponto, ficamos em um campo cego, uma vez que não há pesquisas com o enfoque de produzir dados sobre a violência da mulher sofrida por aquelas que vivem nas ruas. No entanto, sabemos que viver na rua, para as mulheres, implica a necessidade de construírem relações que assegurem a viabilidade da sua vida cotidiana. Sozinhas elas estão muito mais vulneráveis às violências da rua. Por isso, muitas vezes se envolvem em relações violentas e/ou abusivas para assegurar a sua sobrevivência. É consensual que as ruas da cidade não oferecem segurança a nenhuma mulher, todos os dias os assédios e estupros ocorrem em locais públicos. Assim, àquelas mulheres que vivem na rua estão muito mais suscetíveis a estas formas de violência. Situação que ainda é pior para as lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais. A violência também se expressa nas intervenções policiais contra as pessoas em situação de rua, como as ações realizadas na Cracolândia, que atingem as mulheres. Tanto porque são retiradas com violência dos locais onde estavam, como pela criminalização das usuárias e traficantes. No Brasil, desde a implementação da Lei de Drogas (Lei 11.343 de 23/08/2006), a população carcerária feminina aumentou 117%. O tráfico de drogas foi o crime que mais motivou a prisão de mulheres (64%), seguido por roubo (10%) e furto (9%). O perfil destas mulheres é comum, 50% têm entre 18 e 29 anos e 60% são negras. Sabemos que, no tráfico, estas mulheres cumprem um papel coadjuvante, raramente ocupando postos de comando, mas para a justiça brasileira, isto pouco importa. As condições precárias e desumanas das prisões brasileiras afetam as mulheres presas que não tem acesso a absorventes, não tem estruturas mínimas para receberem seus filhos ou para dar a luz. Apenas em abril deste ano o projeto de lei 23/20175, que altera o Código de Processo Penal acrescentando um parágrafo único ao artigo 292 e proibindo o uso de algemas nos partos das mulheres presas, foi sancionado. A criminalização tem um efeito negativo àquelas mulheres que tem um uso problemático de drogas, gera um grande medo e elas, dificilmente, sentem confiança de pedir ajuda. A atual legislação não distingue os traficantes dos usuários, o que só aumenta o problema.

Considerações Finais Os projetos de “revitalização” geram o discurso de uma cidade “mais humana”, “mais limpa” e “melhor para todos”. Mas na verdade, eles excluem, ignoram e criminalizam uma grande parcela da população que vive nos centros urbanos. 5

Lei 13.434 de 12/04/2017.

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A cidade “melhor para todos”, não é melhor para as pessoas em situação de rua, uma vez que sequer tem medidas simples que poderiam ser concretizadas. Como moradias definitivas, já que há mais imóveis vazios do que famílias sem moradia na capital paulista6 ou então a garantia de aluguel social. É necessário pensar uma política de superação das desigualdades da cidade, ao mesmo tempo, a legalização das drogas é central. Uma vez que envolve um conjunto de medidas como uso consciente, redução de danos, cuidado com aqueles que queiram deixar de usar drogas. Além de ter um grande impacto, principalmente, em relação a população negra da periferia, diminuindo os índices de mortes, encarceramento. Outra consequência se dá sobre a violência gerada pelo tráfico. O tema da Cracolândia deve ser pensado a partir de toda a sua complexidade, ou seja, a partir da relação entre as contradições do espaço urbano e a criminalização das drogas, e a transversalidade do racismo, machismo e LGBTfobia nestas questões. As soluções só podem surgir a partir do encontro de todos estes olhares.

7 Fernanda Araújo de Almeida - Mulher, filha da Mazé Araujo, operária fabril, boadrasta da Maju Rodrigues, secunda feminista, tia da Julinha Almeida, boa semente para o futuro. Ciclista. Assistente Social, servidora pública municipal, atua em Centro de Apoio Psico-Social – Álcool e Drogas (Caps – AD). Professora convidada da Fundação Perseu Abramo. Pesquisadora desde 2005 do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ética e Direitos Humanos (Nepedh) da PUC-SP, coordenado pela professora Dra. Maria Lúcia Barroco. É frequente nas ruas e nas lutas populares.

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Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 2010.

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https://www.facebook.com/lutapopular/

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MULHERES E USO PROBLEMÁTICO DE ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS: DESMONTANDO ESTIGMAS E COLHENDO SONHOS Fernanda Araújo de Almeida

Acelera São Paulo: a contrafissura em velocidade máxima “Acelera São Paulo”. Com esse slogan o prefeito de São Paulo, João Dória, vai imprimindo seu ritmo na implantação de seu programa de governo e revelando seu modo de fazer política. O prefeito tem pressa. No entanto, sua urgência tem conflitado com o Tempo socialmente necessário para enfrentar um dos problemas mais complexos da cidade – a chamada “cracolândia” na região central1. Mas que Tempo2 é esse? Para a reflexão que pretendemos fazer aqui é necessário explicitar que o Tempo é tomado no seu sentido mais amplo, ou seja, é mais que tempo de relógio, é o Tempo da história e de seus processos, ou, como sugere Antônio Cândido, “o tempo é o tecido da nossa vida”. Ao mesmo tempo, ele é aqui uma categoria de análise, uma dimensão que precisa ser compreendida na sua totalidade, pois, vivemos um Tempo em que os gestores pedem aceleração. Essa dimensão frenética das coisas não é um acaso, ou somente uma peça de marketing daqueles que imaginam que a rapidez e a velocidade são as saídas para a resolução de tão graves problemas. Essa aceleração é própria da sociabilidade do tempo presente, do efêmero e do fugaz. É próprio da pós-modernidade3 e daqueles que desconhecem e desprezam a história e os processos já existentes. Sim, temos urgência na resolução dos graves problemas sociais do nosso País, do mesmo modo que do nosso Estado e da nossa Cidade. Sim, temos pressa em recompor o Estado Democrático de Direito – ultrajado pelo Golpe de 2016 – entendendo-o como patamar mínimo e limitado, porém, necessário para avançar nos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras e para a população mais vulnerável, mas não aceitamos essa urgência dissimulada que desconsidera a história e os processos já consolidados. Dito de outra maneira, esse Tempo acelerado que aí estão propondo é o Tempo da alienação em todas as suas dimensões, da negação dos direitos conquistados, da venda da cidade aos interesses imobiliários – é o Tempo do capitalismo financeiro na sua fase de Barbárie. Um Maior cena de uso de consumo de drogas da cidade de São Paulo – o território será detalhado mais adiante. O livro “O tempo e o cão: a atualidade das depressões” (2009) de Maria Rita Kehl serviu de referência e fonte de inspiração para essa reflexão. Nele, ela afirma que o “tempo é construção social”. 3 Como referência para a Pós-Modernidade indicamos Perry Anderson em “As origens da Pós-Modernidade” (1999) e David Harvey em “Condição Pós-Moderna” (1989). 1 2

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Tempo que é tão frenético quanto à fissura dos dependentes químicos, ou nos termos do saudoso Antonio Lancetti, é a Contrafissura4 em uma velocidade máxima, que impulsiona ações e as respostas imediatas e não planejadas, aquelas que não respeitam o Tempo da democracia, da diversidade e do respeito aos Direitos Humanos. Nesse sentido, a ação do Estado se assemelha a fissura dos dependentes químicos. A mesma impulsividade que move o dependente em busca de diminuir o mal-estar causado pela abstinência, move o governante em diminuir o “mal-estar” causado pela presença e permanência de usuários de drogas em vias públicas. São pressões de ordens distintas, mas que caminham no mesmo sentido. Eliminar o mal-estar! A Contrafissura nunca foi tão explícita quanto agora, ao desmistificar o simulacro da epidemia de crack, Lancetti cunhou o termo Contrafissura para caracterizar a ânsia tanto da sociedade quanto de gestores públicos por “resolver” os “problemas” de forma rápida e imediata, construindo campanhas alarmistas que produzem efeitos contrários à diminuição do consumo problemático de álcool e outras drogas. Para ele, a raiz da Contrafissura reside na lógica do proibicionismo, e da Guerra às Drogas que pregam um mundo sem drogas, promovem a violência de Estado e a criminalização dos sujeitos. Igualmente, ele afirma que, “também o enfrentamento desse sintoma social não se resolve mudando de problema de segurança para problema de saúde porque uma das raízes do proibicionismo foi precisamente à autoridade médica moral”. (LANCETTI, 2015). Como vimos recentemente, na contramão da Contrafissura, o debate foi encampado pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) que criticou a ação policial na “cracolândia”5 , chamando a atenção para a complexidade do problema e sua necessidade de articulação de políticas sociais integradas6. O que queremos afirmar é que tratar a uso problemático de álcool e outras drogas, assim como a própria dependência química7, como um problema de segurança é um erro, mas do mesmo modo, enquadrá-la como problema de saúde é simplificar demais a questão, pois o consumo de drogas envolve diversas dimensões da vida social – cultura, desejo, miséria, ausência de projetos individuais e coletivos, enfim, um emaranhado de objetividades e subjetividades – uma complexidade que exige tempo, política pública de Estado8, trabalho técnico estruturado e muito diálogo. O contrário disso é o aprisionamento, o confinamento e a exclusão, são as formas mais tradicionais e conservadoras para resolver o problema dos “indesejáveis” da cidaAntonio Lancetti em “Contrafissura e plasticidade psíquica” (2015). Nota no site do CREMESP: https://www.cremesp.org.br/novaHome.php?siteAcao=Imprensa&acao=crm_midia&id=634 6 Da mesma forma, o Conselho Federal de Psicologia qualificou como “barbárie” a ação da Prefeitura de São Paulo. Juntamente com outras entidades de classes, moradores e beneficiários do Programa “Braços Abertos”, parlamentares, movimentos sociais, profissionais da saúde, militantes dos direitos humanos, no dia 26/05/2017 protestaram em Audiência Pública na Câmara Municipal contra a ação do Governo do Estado e Prefeitura. http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2017/05/gestao-doria-promove-cacada-humana-na-cracolandia-denunciam-ativistas 7 Optamos nesse artigo por tratar de forma distinta, dependência química e uso problemático de álcool e outras drogas, pois, assim como Maristela Moraes, “não entendemos que seja possível um mundo sem drogas porque elas fazem parte das práticas humanas, nem partimos do princípio de que todo uso de droga é sempre problemático” (2011). 8 Existem diversos estudos que descrevem o processo da Reforma Psiquiátrica no Brasil. De forma bem resumida podemos considerar que a Reforma tem como diretrizes o atendimento humanizado pautado na liberdade, na cidadania e na defesa dos direitos humanos. Sob a consigna de uma “sociedade sem manicômios” a Reforma Psiquiátrica no Brasil segue como grande referência e paradigma a ser percorrido. O Sistema Único de Saúde (SUS) incorporou na estruturação da política de saúde mental seus princípios e a defesa dessas conquistas está na ordem do dia. 4 5

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de. A história da humanidade possui diversos capítulos nos quais é possível perceber que parcelas da sociedade quando não se “enquadram” num determinado padrão de comportamento e/ou característica física, são imediatamente expulsos. Tratadas como pessoas abjetas perdem o “título” de cidadãos e transformam-se em meros problemas. No caso do consumo problemático de álcool e drogas, sobretudo o crack, nas grandes cidades brasileiras, tais pessoas ganharam a alcunha de “zumbis”, em alusão à sua suposta morte psíquica e moral. Quem se dispõe a ter um diálogo mínimo com algumas dessas pessoas perceberá que existem: histórias, sonhos, desejos, projetos, sensibilidade, inteligência, carências, sofrimentos e solidão, ou seja, existem humanos na sua inteireza, com tudo aquilo que admiramos e odiamos, ou como diz o poeta afirmando uma concepção eminentemente ontológica, “Nada do que é humano me é estranho”9. Ainda segundo Lancetti, a Contrafissura está impregnada em todos os poros da sociedade, “é um afã por resolver imediatamente e de modo simplificado problemas de tamanha complexidade”: Noias queimam pedra, e autoridades, políticos e editores de jornais escritos e televisivos ficam alterados. Mas a Contrafissura não se manifesta somente em matérias sensacionalistas de jornais, revistas e televisão, ela orienta também programas de governo como o Programa Recomeço que inicia com internação para estatização e continua com internação em comunidade terapêutica para aprender a viver em sociedade. O programa é tão eficaz do ponto de vista da propaganda política como fracassado na prática, porque é focado na droga e não na pessoa. (LANCETTI, 2015, p. 30). Por fim, enquanto escrevia esse texto, aturdida, observava os helicópteros sobrevoarem a região da Luz anunciando que a resistência organizada por parte da militância e toda a repercussão das ações desastrosas do triste domingo de 11 de junho de 2017 não conteve a Contrafissura do Prefeito e do Governador. Uma nova ação policial e midiática10 perseguiu maltrapilhos e esfarrapados – mulheres e homens fragilizados pela dependência e pela miséria – criando uma espécie de ponte imagética com a Nau dos Loucos do período da Renascença descrita por Foucault em “História da Loucura”. A cidade em que meses antes os havia tratado com os “Braços Abertos”11, em mais uma manhã dominical – a mais fria do ano de 2017 – era um ambiente de guerra e destruição. Há um desafio originário para o enfrentamento desses problemas: De autoria de Publio Terêncio Afro, dramaturgo e poeta romano, nascido entre 195-185 a.C, a frase ficou popularizada quando de sua utilização por Karl Marx – 1818-1883.. 10 Em 20 dias (21/06/2017 e 11/06/2017) o Governo do Estado e a Prefeitura realizaram duas operações policiais de dimensões surpreendentes na região da Luz, zona central da cidade. Tal qual a primeira, os policiais chegaram durante a madrugada dispersando usuários e recolhendo seus pertences. A estratégia foi apontada pelo Governador Geraldo Alckmin como necessária para diminuir o fluxo e ação dos traficantes. http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/nova-operacao-na-cracolandia-prende-2-traficantes-e-doria-diz-que-fluxo-vaidiminuir.ghtml. Por outro lado, Guilherme Paiva e Felipe de Paula, em artigo contundente apresentam outra perspectiva do ponto de vista da gestão, nacional e municipal, http://revistaconstrucao.org/politica-social/fazer-o-simples-e-persistir-no-erro-sobre-a-acao-publica-quequer-varrer-a-cracolandia/#_ftn2 11 O Programa “Braços Abertos” foi uma iniciativa da Gestão do Prefeito Fernando Haddad (PT) ancorada nos fundamentos da Política de Redução de Danos. Com políticas intersetoriais, o programa previa moradia em hotéis da região, alimentação e uma bolsa trabalho com remuneração semanal. Premiado internacionalmente, o Prefeito eleito João Doria (PSDB) anunciou sua extinção imediatamente após ser eleito. 9

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A contrafissura é o primeiro obstáculo a ser vencido para poder se relacionar com as pessoas, biografias, corpos e também para elaborar políticas inteligentes e eficazes. Mas quando programas assistenciais começam a funcionar os egos crescem paralelamente aos drogados que assistem, e a contrafissura, metamorfoseada, reaparece. Nunca nos livraremos dela. (LANCETTI, 2015, p. 41).

Uso problemático de álcool e outras drogas, miséria e gênero12 A dependência química é um tema controvertido em nosso país, que divide a sociedade, a opinião pública, bem como os especialistas . Tais polêmicas revelam nossa origem extremamente conservadora, repressora e que somadas à questão de gênero revela nossa face estruturalmente patriarcal. Com isso, indicamos que o debate sobre o uso problemático de álcool e outras drogas deve ser construído articulando diversas dimensões da vida social . Em vista disso, a questão do uso problemático de álcool e outras drogas pelas mulheres merece toda a nossa atenção; embora pesquisas interessantes venham sendo realizadas nas universidades , acumulando informações e dados reveladores, essa discussão precisa ser apropriada pelas mulheres num amplo debate público com a sociedade. Assim como as mulheres tomaram a cena pública mais recentemente e retomaram a direção política do debate sobre seus direitos, numa jornada de lutas internacionais, igualmente será necessário pautar a complexa questão das drogas. Ou seja, se há um ranço em desconstruir valores machistas e conservadores, quando somamos à questão das drogas a batalha é ainda maior, pois envolve superar uma moralidade que é extremamente hipócrita com quem faz uso de substâncias psicoativas, sobretudo se forem pobres, negros e negras, mulheres e a população LBGT. Portanto, nossa intenção é deixar pistas para o debate, sabendo que ainda existe um longo percurso pela frente. Inicialmente é importante ressaltar que o uso problemático de álcool e outras drogas por mulheres ultrapassa as classes sociais – ainda que seja por elas particularizado –, é Para fins de definição, tomaremos emprestada a discussão de Gênero elaborada no artigo, “Gênero e usos de drogas: porque é importante articular esses temas”?, da professora Maristela Moraes. Nesse artigo a autora recupera o debate conceitual sobre gênero. Para ela há uma banalização que se expressa pela simplificação do termo, ou seja, “feminino” e “masculino”, são, por exemplo, substituídos pelo termo gênero. Para ela o debate está na compreensão de que tanto feminino quanto masculino, e até mesmo a categoria gênero são construções sociais, portanto, devem ser compreendidos a partir de sua estrutura histórica e social. Assim, ela toma por definição apontando que: “gênero é um elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças entre os sexos; é uma forma primária de relações significantes de poder; um campo primário dentro do qual ou por meio do qual se articula o poder; facilita um modo de descodificar o significado e de compreender as complexas conexões entre várias formas de interação humana” (2010, p. 17) disponível em: http://psicologiasocial.uab.es/fic/es/webfm_send/523 13 São polêmicas que envolvem questões políticas, ideológicas, religiosas, morais e que se sobrepõe às questões científicas e técnicas, desmistificando assim, a suposta neutralidade das ciências. 14 Para um estudo aprofundado sobre isso e outras questões indicamos Maria Cristina Brites em: “Ética e uso de drogas: uma contribuição da ontologia social para o campo da saúde pública e da redução de danos.” Tese de Doutorado em Serviço Social (2006). A autora tem como perspectiva situar o uso de drogas como uma atividade que responde às necessidades postas pela práxis social. 15 Ressaltamos o trabalho do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad), um serviço ligado ao Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e também o Programa da Mulher Dependente Química (Promud) doHospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq – HC FMUSP). 12

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preciso buscar as determinações daquilo que é comum e ao mesmo tempo fazer a distinção das consequências quando os fatores econômico e cultural tornam-se preponderantes. Dito de outra maneira, sabemos que mesmo entre as mulheres há uma profunda diferença que é socialmente determinada, seja pela condição de classe, raça, etnia, orientação sexual, identidade de gênero e condição física revelando a necessidade de respostas distintas16. Daquilo que é comum pode-se apontar algumas razões e muitos estigmas. Pesquisas e estudos vêm apontando o aumento significativo de mulheres com uso problemático de álcool e outras drogas. Alguns fatores incidem para esse aumento – são determinações, como já apontamos, de ordem econômico-social e ideo-culturais –, entre os quais vale destacar: • • • • • •

o estresse relacionado à dupla jornada de trabalho; a cobrança social por melhores empregos e colocação no mercado de trabalho; a violência doméstica; a prostituição; a cobrança moral em relação à família e aos filhos; a própria violência relacionada ao uso de drogas ilegais, seja pelo envolvimento com narcotráfico e ou ações ilícitas, ou ainda pela condição de rua.

Ao mesmo tempo, o estigma carregado pelas mulheres que fazem uso de substâncias psicoativas é muito forte e tem um significado subjetivo devastador. De “louca à fraca”, de “irresponsável à inconsequente”, quem nunca ouviu frases como: “mulheres que bebem não merecem respeito” ou ainda, “é muito feio homem que usa drogas, mas a mulher é horrível”. É comum nos atendimentos em Centros de Atenção Psicossocial de Álcool e Drogas - CAPS-AD ouvirmos isso, mesmo entre as mulheres. Quando chegam ao serviço de saúde em busca de tratamento o estigma social e moral é muitas vezes maior e mais danoso que sua dependência. A vergonha, por vezes retarda a busca por ajuda e tratamento, assim, construir estratégias para reconhecer quais as principais determinações para o uso problemático e ainda produzir mais pesquisas qualitativas com mulheres que fazem uso de substâncias psicoativas auxilia na elaboração de políticas para atender as especificidades, acolher suas demandas e humanizar o atendimento. Ainda no tocante aos aspectos de saúde, já há acúmulo científico importante que explicita o quanto o álcool e demais drogas são mais prejudiciais à saúde das mulheres. Tais pesquisas apontam fatores biológicos e que necessitam de atenção. Segundo Drauzio Varella, nas mulheres, por exemplo: A fragilidade aos efeitos embriagadores é justificada pela maior proporção de tecido gorduroso, por variações na absorção do álcool no decorrer do ciclo menstrual e porque a concentração gástrica da desidrogenase alcoólica (enzima essencial para a decomposição do álcool) é mais baixa do que nos homens17. A publicação de Angela Davis “Mulher, raça e classe” (1981 original, e recentemente 2016) reascende a urgente necessidade de refletir sobre as questões de gênero articuladas com as concepções de raça e classe. Seguindo a mesma trilha a Rede Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas (INNPD) vem fomentando o debate e ações que permitam dar visibilidade aos efeitos perversos da atual política de drogas sobre parcela significativa da população negra brasileira, sobretudo jovem. 17 Mais informações no site: https://drauziovarella.com.br/drauzio/artigos/as-mulheres-e-o-alcool-2/ e https://drauziovarella.com.br/dependencia-quimica/alcoolismo/alcoolismo-em-mulheres/ 16

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Outras particularidades e agravos à saúde foram observados, sobretudo vinculados à gestação e aos cânceres de mama e útero – agravos de saúde que são tipicamente da composição física das mulheres – no entanto, outras pesquisas no campo da saúde mental vêm sendo desenvolvidas: estas envolvem as depressões, alto índice de tentativas de suicídios, entre outros. A alta exposição a doenças sexualmente transmissíveis também é uma preocupação no campo da saúde para quem trabalha com dependentes químicos. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), as mulheres representam mais da metade das pessoas infectadas pelo vírus HIV no mundo. Em 2012, 86,8% dos casos registrados de pessoas infectadas pelo HIV, são do sexo feminino, e decorreram de relações heterossexuais. Nossa experiência em CAPS-AD acompanha alguns dos indicadores. Embora o número de mulheres seja inferior em relação aos homens, quando chegam ao serviço suas histórias, na maioria das vezes são carregadas de significados e trazem o estigma da sociedade patriarcal, machista e homofóbica. Em certo atendimento individual, uma jovem mulher de 32 anos, (mãe de 2 filhos pequenos, babá e manicure nos finais de semana, com histórico de violência doméstica, e abandono na infância, dependente química desde os 13 anos de álcool e cocaína. Quando chegou ao CAPS apresentava importantes sintomas de crise de abstinência, especialmente do álcool) relatou que na noite anterior ao atendimento havia sido muito difícil controlar as fissuras e manter-se abstinente. Pedimos que ela então descrevesse qual era a situação em que estava. Ela assim enumerou suas tarefas após um dia de trabalho: “pegar filhos na creche; dar banho; fazer o jantar; ajeitar a casa; lavar a louça do jantar; ajudar o irmão adolescente fazer trabalho escolar; separar briga dos filhos pelo controle da televisão; passar os uniformes escolares; dar recomendações ao irmão adolescente para o dia seguinte; falar no “zap” com o namorado que perdeu a confiança depois da última recaída; colocar os filhos pra dormir... ao final ela disse que estava cansada, chorou baixinho para não acordar ninguém e sentiu uma enorme vontade de relaxar, sentiu-se sozinha”. Histórias como essas são frequentes e dão real medida da necessidade de estabelecer atendimentos humanizados não focados nas drogas, mas sim nas pessoas, não focados na dependência, mas sim nas histórias de vida. Por sua vez, a condição de rua torna-se uma particularidade ainda mais complexa para as mulheres. As questões acima descritas ganham contornos ainda mais ásperos e, portanto, exigem maior atenção por parte dos governos e da sociedade. A cidade de São Paulo possui maior concentração de população de rua do país; de acordo com o último censo 201517, realizado pela FIPE, estão em condição de rua 15.905 pessoas, destas, 8.570 estão em centros de acolhida e 7.335 permanecem durante todo o tempo nas ruas. São 13.046 que declararam sendo do sexo masculino e 2.326 do sexo feminino, há ainda um número de 533 que não foram identificados (esse dado não está detalhado). Na gestão do prefeito Fernando Haddad algumas pesquisas importantes foram realizadas. O próprio Censo Rua 2015, embora muito criticado pelos movimentos organiLink com os relatórios das pesquisas censitárias realizadas sobre população em situação de rua, e outros estudos: http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/assistencia_social/observatorio_social/pesquisas/index.php?p=18626

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zados, revela indicadores que podem ser apropriados para elaboração de políticas mais estruturadas. Outra pesquisa relevante foi elaborada pela Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo – Pesquisa Social Participativa – e envolveu uma equipe de pesquisadores profissionais e por pessoas em situação de rua. Os dados qualitativos18 e a própria metodologia desenvolvida pela “SUR Clínica e Intervenção Social” são aparatos emblemáticos na construção de respostas. Mais especificamente sobre a região da Luz, a Open Society Foundations19 , financiou uma ampla pesquisa com os beneficiários do “Programa Braços Abertos”. A pesquisa foi coordenada pela doutora em antropologia Taniele Rui e contou com a consultoria do Coordenador da Plataforma Brasileira de Políticas sobre Drogas Mauricio Fiore, e do psiquiatra e professor Luiz Fernando Tófoli. A pesquisa envolveu o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e o Laboratório de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (Leipsi). O relatório da pesquisa, assim como outras informações pode ser obtido na Plataforma Brasileira de Políticas sobre Drogas. Duas outras publicações merecem ser citadas, pois são emblemáticas para a compreensão das condições de vida da população em situação de rua e das graves violações de direitos humanos – o livro “Saúde Mental das pessoas em situação de Rua: conceitos e práticas para profissionais da assistência social”, de âmbito municipal e o “Manual sobre o cuidado à saúde junto à população em situação de rua”, uma publicação nacional.20 Retomando a questão das mulheres em situação de rua, todos esses relatórios e publicações expressam a necessidade do reconhecimento de suas particularidades – evidentemente a população LGBT sofre de condições semelhantes, em algumas vezes até mais agravadas, dadas as condições e a estrutura de gênero do nosso país, a condição das travestis em situação de rua causa arrepios até naqueles que têm um mínimo de empatia, sua saúde mereceria uma atenção altamente especializada. Submetidas a toda forma de violência e estigma essas mulheres – todas – resistem à própria sorte. Se somarmos todos esses documentos aqui citados, e que são em sua maioria publicações com a participação do próprio Estado veremos que há uma violação de direitos assistida e consentida. Ao mesmo tempo, o Brasil possui uma aparato jurídico significativo21, que contrasta com a Contrafissura impregnada na sociedade e nos meios de comunicação, dificultando, por exemplo, a abertura do debate sobre a Legalização da Drogas e regulamentação da produção. Portanto, a explicação para tais condições não pode ser simplificada a opinião pública, os movimentos sociais, não podem estar dispersos diante dos discursos e jogos eleitorais que confundem e minimizam as determinações seja das condições das mulheres, do consumo de substâncias psicoativas, ou mesmo da miséria, resultado de uma sociedade altamente estratificada e que cada vez mais criminaliza as mais bárbaras expressões da Questão Social22.

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Link com publicação sobre a pesquisa http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/direitos_humanos/Pesquisa%20 Social%20Participativa.pdf 19 Link com o relatório final da pesquisa https://www.opensocietyfoundations.org/sites/default/files/crack-reduzir-danos-20170129.pdf 20 Ver ambos em referências bibliográficas 21 Ver em referências bibliográficas. 22 Para estudo da Questão Social indicamos: “Serviço Social em tempo de capital fetiche: capital financeiro, trabalho e questão social” (2007) de Marilda Villela Iamamoto. 18

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A cidade como palco de violência Essa informação foi amplamente divulgada nas redes sociais: São Paulo e região metropolitana tem 29,6% de sua população com algum problema mental23. Os problemas diagnosticados mais comuns foram ansiedade com 19,9%, seguido de mudanças comportamentais, impulsividade e abuso de substâncias químicas. De acordo com os pesquisadores, o índice é um reflexo da alta urbanização juntamente com privações sociais. A reportagem cita ainda: Os dois grupos mais afetados são os homens migrantes e as mulheres em regiões de instabilidade social. A região metropolitana de São Paulo deixou para trás inclusive os Estados Unidos, que apesar de não ter revelado a cidade pesquisada, contabilizou quase 25 casos de doenças mentais por cada grupo de 100 habitantes pesquisados. Além de liderar o ranking da OMS para maior incidência de doenças mentais, São Paulo também ficou na frente quanto à gravidade desses problemas. Capital e região metropolitana somaram 10% de casos graves, enquanto a cidade norte-americana ficou com 5,7%, seguida da Nova Zelândia, com 4,7%. A Pesquisa foi financiada pela FAPESP.24 Ainda que seja necessário qualificar melhor os critérios adotados para o enquadramento – algum problema mental – e ainda, entender quais foram os parâmetros para realização da pesquisa, uma vez que o debate sobre saúde mental e loucura exija mais do que a classificação de doenças e produção de diagnósticos , os dados saltam aos olhos. Estudos mostram a saturação da vida nas grandes metrópoles, se tomarmos como referência só mobilidade e o deslocamento nos grandes centros urbanos encontraremos um potencial extraordinário de estresse e ansiedades. E mais uma vez são as mulheres as que mais sofrem, por todas as razões antes mencionadas. Por outro lado, de acordo com o psiquiatra Dartiu Xavier, “ao examinarmos a história da humanidade constatamos que o homem (e mulheres) sempre procurou estados alterados de consciência. São conhecidos registros de uso de drogas nas mais diversas culturas desde a antiguidade”. Outras tantas pesquisas buscam demonstrar na história quando as drogas se transformaram em problemas e doenças. A “cracolândia” paulistana existe desde a década de 1990, quando o crack se transformou numa preocupação para saúde pública para a cidade. Trata-se de uma importante cena de uso de drogas – prioritariamente o crack, mas não exclusivo – nas ruas da região do bairro da Luz. De lá para cá muita coisa aconteceu, há diversas e complexas questões a serem compreendidas. Vale ressaltar que a região é constantemente foco dos interesses da especulação imobiliária. Projetos não faltam, no entanto, a degradação e abandono coexistem Os dados indicados são da OMS. http://www.saopaulo.com.br/sao-paulo-tem-o-maior-indice-de-problemas-mentais-do-mundo/ 25 Para aprofundar esse debate indicamos, “Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros” de Christian Ingo Lenz Dunker. 23 24

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com ações de extrema violência. Cada gestão municipal imprime sua forma de buscar enfrentar o problema, há muitos registros sobre esse processo que é histórico. Mais recentemente, no dia 21 de maio de 2017, iniciada durante a madrugada, a Prefeitura em parceria com o Governo do Estado realizou a maior operação já então vista na região. Um efetivo de 900 policiais adentrou nas ruas estreitas com objetivo de acabar com o assim chamado “fluxo” – cena de uso e venda de drogas. Foi uma operação com características de guerra. Amplamente noticiado pela mídia, um vídeo do Prefeito circulou pelas redes sociais no qual ele anuncia o “fim da cracolândia”. Ao final do mesmo dia as pessoas se reagruparam e um novo fluxo se estabeleceu a poucos metros do epicentro da operação26 , em algumas horas ele já era maior e mais exposto. Mauro Iasi no posfácio do livro “Violência” de Slavoj Zizek, obra que analisa as grandes convulsões urbanas como resultante do processo de segregação fruto das relações sociais no capitalismo contemporâneo aponta:

área já produziram importantes reflexões, perdoem essa recém-chegada profissional da saúde, sabemos das profundas lacunas e muito provavelmente da reiteração de muito do que já foi dito. Atenta às incompletudes sabemos que não foi possível citar todas as importantes pesquisas produzidas. Contamos com a generosidade e nos colocamos nas fileiras para juntas enfrentarmos tais questões. Em terreno que não se conhece pede-se licença para entrar e agradece a oportunidade de opinar. Se o Tempo foi a categoria de análise escolhida para abrir o debate nesse artigo, ele que é uma dimensão essencialmente humana, é com ele, o Tempo que apontamos os desafios atordoantes para o futuro, como preveniu Bertolt Brecht – “Que tempos são estes, em que temos que defender o óbvio?” – assim, a compreensão temporal ajuda-nos a pensar que a história não se repete. Façamos a história do nosso tempo. O Tempo é agora.

A violência psiquiátrica, então, protege o próprio louco contra ele mesmo, assim as operações de limpeza urbana que recolhem os viciados em crack das ruas de nossas cidades são apresentadas como “tratamento”, mesmo que forçado, se necessário. (2014, p. 173). Vivemos em tempos de imagem, quem acompanhou as duas últimas ações na “cracolândia” deve ter observado que aquele território parecia montado. As imagens são tão fantásticas que nem parecem reais. Um olhar mais atento e sensível logo vai notar mensagens escritas nos muros, frases que contrastam com a força armada dos homens vestidos de preto pisando firme com seus coturnos. Hollywood gasta milhões para produzir algo parecido. Mas aquelas frases não estavam ali por acaso. Elas fizeram parte de um Projeto Piloto chamado Casa Rodante que levou arte, cultura, informação e buscou construir integração entre o “fluxo” e os moradores do bairro. O projeto integrava as ações de intersetorialidade, por meio da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, do Programa “Braços Abertos”.27 A jornalista Gleyma Lima em oposição a Contrafissura que segue institucionalizada e legitimada escreveu um belíssimo relato intitulado “Mulheres da Cracolândia – Cidadãs sem classe”28, no qual a história de quatro mulheres é descrita a partir uma perspectiva feminina e feminista. Uma página na rede social facebook – Mulheres da Cracolândia – relata ações para o autocuidado dessas mulheres. Sabemos do abismo social e da conjuntura extremamente desfavorável. O objetivo aqui foi demonstrar que há aparato científico, técnico e jurídico para minimizar o sofrimento dessas mulheres. Nesse sentido a disputa está no campo da política e das lutas sociais. Por fim, para não ser injusta, sabemos que muitas mulheres maravilhosas, (e também homens) comprometidas com o tema, com muito mais conhecimento e experiência na Mais informações no site: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/05/1886022-policia-faz-megaoperacao-de-combate-ao-trafico-na-cracolandia.shtml 27 Mais informações no site: https://www.cartacapital.com.br/revista/927/na-cracolandia-o-fim-do-convite-ao-convivio 28 Mais informações no site: http://www.huffpostbrasil.com/gleyma-lima/mulheres-da-cracolandia-cidadas-sem-classe_a_22122662/?utm_hp_ref=br-homepage&ncid=fcbklnkbrhpmg00000004 26

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Manual sobre o cuidado à saúde junto à população em situação de rua. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Brasília: Ministério da Saúde, 2012. 98 p.: il. – (Série A. Normas e Manuais Técnicos) BRASIL. Legislação e políticas públicas sobre drogas no Brasil. Brasília: Ministério da Justiça; Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, 2011. 106 p. BRITES, Cristina Maria. Ética e uso de drogas: uma contribuição da ontologia social para o campo da saúde pública e da redução de danos. 148 f. Tese (Doutorado em Serviço Social). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006. CHAUI, Marilena. Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez, 2017. DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Tradução: Heci Regina Candiani. 1ª ed. Boitempo: São Paulo, 2016. DUNKER, Christian Ingo Lenz. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo, 2015. FOUCAULT, Michel. História da Loucura: na idade clássica. Tradução José Teixeira Coelho. São Paulo: Perspectiva, 2010. IAMAMOTO, Marilda Villela. Serviço Social em tempo de capital fetiche: capital financeiro, trabalho e questão social. São Paulo: Cortez, 2007. LANCETTI, Antonio. Contrafissura e plasticidade psíquica. São Paulo: Hucitec, 2015. (Políticas do Desejo). KEHL, Maria Rita. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2009.

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MORAES, Maristela; CASTRO, Ricardo; PETUCO, Dênis. (Orgs.). Gênero e drogas: contribuições para uma atenção integral à saúde. Recife: Instituto PAPAI, 2010. (Série Homens e Políticas Públicas). NIEL, Marcelo; da SILVEIRA, Dartiu Xavier. Drogas e Redução de Danos: uma cartilha para profissionais de saúde/ Marcelo Niel & Dartiu Xavier da Silveira (orgs). – São Paulo, 2008. xi, 149f. RUI. T; FIORI, M; TÓFOLI, L. F. Pesquisa preliminar de avaliação do Programa “De Braços Abertos”. Plataforma Brasileira de Políticas de Drogas (PBPD)/ Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). São Paulo, 2016. SANTANA, Carmen Lúcia Albuquerque de; ROSA, Anderson da Silva. (Orgs.). Saúde mental das pessoas em situação de rua: conceitos e práticas para profissionais da assistência social. São Paulo: Epidaurus Medicina e Arte, 2016. SOUZA, Márcia Rebeca Rocha de; OLIVEIRA, Jeane Freitas de Oliveira; NASCIMENTO, Enilda Rosendo do. A saúde de mulheres e o fenômeno das drogas em revistas brasileiras. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/tce/v23n1/pt_0104-0707-tce-23-01-00092. pdf ZIZEK, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais. Tradução Miguel Serras Pereira. São Paulo: Boitempo, 2014.

8 Anna Luiza Salles Souto - Socióloga, coordenadora das áreas de juventude e participação cidadã do Instituto Pólis.

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DIREITO DIREITOÀ ÀCIDADE: CIDADE:UMA UMAVISÃO OUTRA POR VISÃO GÊNERO. DE GÊNERO.

DO LAR ÀS RUAS: PIXO, POLÍTICA E MULHERES

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GÊNERO E CIDADES: VIOLÊNCIA, ASSÉDIO E EXCLUSÃO Anna Luiza Salles Souto As desigualdades no mundo urbano se fazem sentir em múltiplas dimensões e demandam ações urgentes para reverter o quadro das iniquidades e a violação de direitos de amplos segmentos da população. Para além do direito à moradia, ao saneamento, à infraestrutura urbana, ao transporte, aos serviços públicos etc., todos e todas cidadãs têm direito à cidade, aqui compreendido numa dimensão integral dos direitos humanos no território. Assim, o direito à cidade é um direito de todos os habitantes dessa e das futuras gerações, de ocupar, usar e produzir cidades justas, inclusivas, sustentáveis, pacíficas e livres de discriminações. Como diz David Harvey, “o direito à cidade não é apenas um direito condicional de acesso aquilo que já existe, mas sim um direito ativo de fazer a cidade diferente, de formá-la mais de acordo com nossas necessidades coletivas (por assim dizer), definir uma maneira alternativa de simplesmente ser humano. Se nosso mundo urbano foi imaginado e feito, então ele pode ser reimaginado e refeito”1. Nas grandes cidades brasileiras, as desigualdades territoriais são gritantes e visíveis a olho nu. É notório que a infraestrutura urbana e o acesso a serviços de transporte, saúde, educação e a equipamentos de cultura e lazer estão concentrados em determinadas regiões da cidade, onde vivem moradores de mais alta renda. No entanto, há outras desigualdades que, manifestas de múltiplas formas, têm por base o machismo, o racismo e as diversas discriminações vigentes na nossa sociedade. Nunca é demais ressaltar o quanto a igualdade de gênero se impõe como princípio a ser perseguido para a construção de cidades mais inclusivas, solidárias e democráticas. Pesquisa publicada pelo IPEA em março de 20172 aponta o aumento na proporção de domicílios chefiados por mulheres ao longo da série histórica compreendida entre os anos 1995 e 2015. Esse fenômeno, marcadamente urbano, mostra que em 20 anos as chefes de família passaram de 25% para 40%, sendo que nas cidades houve um aumento de aproximadamente 18 pontos percentuais no período. Não cabe aqui analisar as implicações desse fenômeno e seus efeitos no que tange à vulnerabilidade de grande parte dessas famílias, mas apenas chamar atenção para o fato de que as mulheres vêm, ao longo do tempo, assumindo um novo papel social ao mesmo tempo em que seguem sofrendo violências e opressões no seu cotidiano, muitas delas vivenciadas no espaço público. Harvey, David. A liberdade da cidade, in Cidades Rebeldes: Passe Livre e as Manifestações que Tomaram as Ruas no Brasil. São Paulo. Boitempo - Carta Maior. 2013 2 IPEA et al. Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça. 4ª ed. Brasilia. IPEA. 2011.

Para além de tantas outras desigualdades de gênero expressas, por exemplo, no acesso ao mercado de trabalho ou nas disparidades salariais entre homens e mulheres, como a desigualdade de gênero se manifesta no uso e apropriação do espaço urbano? Como as mulheres vivenciam as cidades? Os dados de outra pesquisa, publicada em março de 2017 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP)3, revelam um quadro alarmante. Os números falam por si: 43% dos casos mais graves de agressão sofrida por mulheres nos 12 meses anteriores ao levantamento ocorreram em casa, seguido pela rua com 39%. Ao contrário das mulheres brancas ou de mais alta renda, cuja vitimização está mais concentrada em casa, as agressões sofridas por mulheres com baixos rendimentos e também as de raça/cor negra distribuem-se igualmente entre a casa e a rua. A mesma pesquisa revela que 40% das entrevistadas relataram ter sofrido algum tipo de assédio, chegando a 70% entre as mais jovens e 43% entre as negras (versus 35% das brancas). Entre as negras, chega a 47% a taxa entre as autodeclaradas de cor preta. Entre os tipos de assédio mais frequentes, 36% das mulheres citaram “receber comentários desrespeitosos ao andar na rua” e 10% mencionam o assédio físico no transporte público. Se considerarmos o recorte racial, as mulheres negras sofrem em maior proporção todas as modalidades de assédio. Renda e o território, portanto, não são os únicos fatores que respondem pelas desigualdades na cidade. Gênero e raça, ainda mais quando sobrepostos, incidem fortemente nas experiências de vida urbana, comprometendo o exercício do direito à cidade. Para as mulheres, a rua, ou melhor, o espaço público é um locus de constrangimento, não de liberdade. A fala de uma jovem entrevistada na pesquisa realizada pelo Instituto Pólis intitulada Juventude e Cultura no Mundo Urbano reafirma as intimidações e restrições vivenciadas pelas mulheres no espaço urbano: Eles podem fazer muita coisa que a mulher não pode. Eu acho que eu nunca vou ver um cara atravessar a rua porque tem um bar cheio de mulher, porque ele sabe que ele vai passar ali e as mulheres não vão mexer com ele. É muito desconfortável estar andando e, se tem um bar cheio de caras, provavelmente vão fazer graça. Não vai me agradar, então sou obrigada a teoricamente atravessar a rua. As desigualdades de gênero também aparecem entre a nova geração, com implicações no modo como as mulheres vivenciam a cidade. A pesquisa Agenda Juventude Brasil4 – pesquisa nacional de perfil e opinião dos jovens brasileiros levantou uma riqueza de informações sobre o universo juvenil, abordando, entre outros aspectos, o uso do tempo livre e o acesso a bens e equipamentos culturais. E nesse caso são visíveis as disparidades de comportamento entre jovens homens e mulheres. Apenas a título de exemplo, as jovens mulheres seguem pouco envolvidas em atividades de lazer e/ou entretenimento fora do ambiente doméstico, reproduzindo o papel social tradicionalmente atribuído ao segmento feminino.

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Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil. 2017. Novaes, R.; Venturi, G.; Ribeiro, E.; Pinheiro, D. (Orgs). Agenda Juventude Brasil: leituras sobre uma década de mudanças. Rio de Janeiro. Unirio. 2016. 3 4

GÊNERO E CIDADES: VIOLÊNCIA, ASSÉDIO E EXCLUSÃO

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Ainda que os dados disponíveis não possibilitem o cruzamento entre local de moradia (rural/urbano) e gênero, podemos considerar que as informações levantadas são representativas dos jovens urbanos, já que 84% deles moram nas cidades. Assim, os dados da pesquisa revelam que as jovens mulheres se mostram mais caseiras do que os homens em todas as faixas etárias que compõem o universo juvenil (15 a 29 anos de idade). Metade delas (50%) diz realizar atividades dentro de casa em seu tempo livre nos finais de semana frente a 39% dos homens. O cruzamento sexo-idade reafirma as disparidades, mostrando que as mulheres entre 15 e 17 anos são mais caseiras do que os homens dessa mesma faixa etária (79% delas citam atividades dentro de casa ante 64% deles); mostra também que com o aumento da idade as mulheres, em maior proporção do que os homens, abrem mão das atividades de entretenimento e lazer: de 45% entre as meninas de 15 a 17 anos, a dedicação a esse tipo de atividade cai para 29% entre as mais velhas. Entre os homens os índices oscilam menos: de 49% para 41% nas respectivas faixas etárias. Os dados aqui arrolados revelam os constrangimentos impostos à livre circulação das mulheres na cidade e as limitações ao usufruto do que esta oferece em termos de entretenimento, lazer e oportunidade de novas sociabilidades. Mais do que isso, expressam o quanto as desigualdades de gênero limitam o direito à cidade das mulheres e, enquanto tal, interpelam-nos a seguir lutando contra o sexismo e o racismo que produzem e reproduzem desigualdades de diversas naturezas, inclusive no que tange à vivência e à ocupação do espaço urbano.  

9 Patrícia Tuma Martins Bertolin - Pós-Doutora pela Superintendência de Educação e Pesquisa da Fundação Carlos Chagas. Doutora e Mestre em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo. Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Líder do Grupo de Pesquisa Mulher, Sociedade e Direitos Humanos. Denise Almeida de Andrade - Pós-doutoranda em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (CAPES-PNPD). Doutora e Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Mulher, Sociedade e Direitos Humanos.  

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VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E FEMINICÍDIO: A URGENTE NECESSIDADE DE INFORMAÇÃO ATUALIZADA E CONTÍNUA1. Patrícia Tuma Martins Bertolin Denise Almeida de Andrade A violência contra a mulher é ainda uma realidade no Brasil, e na América Latina, em pleno século XXI. São múltiplas as suas formas de expressão: física, psicológica, sexual, patrimonial, moral2, a partir das quais se estabelece um ciclo de violência de difícil superação sem o auxílio de terceiros (sejam profissionais da saúde, do serviço social, dos órgãos de segurança). Dentre as variadas formas de agressão, a expressão mais extrema é o homicídio. De acordo com o Mapa da Violência 20153, aproximadamente 7 mulheres são assassinadas por dia, tendo como homicida, um familiar. Esse número representa a totalidade de mortes, ou seja, contempla todos os casos de homicídio (morte no trânsito, por tráfico de drogas etc.). Destacamos, para este ensaio, o homicídio praticado por (ex)parceiro/marido/namorado, uma vez que se maximiza a crueldade da violência, na medida em que além de acontecer no âmbito da residência da vítima, é praticada por alguém que deveria contribuir para a qualidade de vida e segurança desta mulher. Nestes casos, também de acordo com o Mapa da Violência 20154 , a média é de 4 feminicídios por dia. Para além de todas as dificuldades de que o Estado brasileiro padece no enfrentamento à violência contra a mulher, entendemos que a ausência de informação de qualidade, essencial à compreensão adequada desse fenômeno é imprescindível para a elaboração

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¹ Esse texto se refere às reflexões preliminares em pesquisa realizada com o apoio do CNPq (Feminicídio: quando a desigualdade de gênero mata”, processo CNPq n0 449640/2014-0). 2 Vide artigo 7o da Lei no 11.340 de 2006 – Lei Maria da Penha: “Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal; II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria”(grifamos). 3 WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2015: Homicídio de mulheres no Brasil. 2015. Brasilia. Disponível em: http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf. Acesso em: 20 mai. 2017. 4 WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2015: Homicídio de mulheres no Brasil. 2015. Brasilia. Disponível em: http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf. Acesso em: 20 mai. 2017.

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de ações e políticas oficiais verdadeiramente eficientes, tem comprometido sobremaneira a atuação satisfatória do poder público. Não há no Brasil, atualmente, pesquisa com dados primários, obtidos por meio de indicadores básicos que contemplem as inúmeras variáveis atinentes à complexidade deste crime. Referida lacuna compromete as ações públicas voltadas ao enfrentamento desse crime, uma vez que não estão subsidiadas em informações precisas e atuais. Segundo o Informe de los Amigos de la Presidencia de la Comisión de Estadística de las Naciones Unidas5 são indicadores básicos sobre violência contra as mulheres: a) taxa geral, e por grupo de idade, de mulheres vítimas de violência física (no interregno dos últimos 12 meses, da data da realização da pesquisa), por gravidade do ato, relação entre autor e vítima e a frequência dos atos de violência já praticados; b) taxa geral, e por grupo de idade, de mulheres vítimas de violência física ao longo de sua vida, por gravidade do ato, relação entre autor e vítima e a frequência dos atos de violência já praticados; c) taxa geral, e por grupo de idade, de mulheres vítimas de violência sexual (no interregno dos últimos 12 meses, da data da realização da pesquisa), por gravidade do ato, relação entre autor e vítima e a frequência dos atos de violência já praticados. Os dados sobre violência contra as mulheres que têm sido produzidos pelo Brasil, e também pelos demais países da América Latina e Caribe, são de difícil comparação, pois, apesar de se contar com os indicadores do Informe dos Amigos da Presidência da Comissão de Estatística da ONU, parece ser muito difícil a adoção de indicadores homogêneos com validade internacional nos países da região. A coleta dos dados é, em geral, descentralizada e sem consistência, nos diferentes Estados e mesmo entre diversas repartições de um mesmo Estado. Não existe consenso, nacional e internacionalmente, sobre os atos que devam constar dos registros e também sobre a maneira de registrá-los, para que seja possível se contar com dados comparáveis. Há problemas como o subregistro dessas ocorrências, o duplo registro, o registro incompleto (dos quais não se extrai informações suficientes sobre a prática do homicídio), os quais se relacionam diretamente com a ausência de pesquisas, censos ou estatísticas de qualidade. No cenário ideal, defendemos que a coleta das informações seja feita de maneira autônoma, com dados primários, obtidos por instituição de credibilidade. As estatísticas deveriam resultar de um sistema único e integrado que contemplasse as diversas instituições envolvidas no acompanhamento das vítimas de violência contra a mulher e suas famílias. Sabemos, contudo, que, ao menos em curto prazo, não teremos essa resposta. Diante disso, poderia ser uma alternativa a inserção de módulos específicos em iniciativas já existentes, como o Censo do IBGE, realizado a cada 10 anos. O IBGE, desde 2009, inseriu como indicadores - na categoria Direitos Humanos da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE6 que trata do direito de não ser submetido à tortura, a tratamento e punição desumanos e degradantes - perguntas sobre a violência doméstiNACIONES UNIDAS. Consejo Económico y Social. Informe de los Amigos de la Presidencia de la Comisión de Estadística de las Naciones Unidas sobre los indicadores de la violencia contra la mujer. 2010. Disponível em: https://unstats.un.org/unsd/statcom/doc11/2011-5FOC-GenderStats-S.pdf. Acesso em: 21 mai. 2017. 6 BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio: indicadores sociais 2009. Disponível: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv62715.pdf. Acesso em: 14 set. 2015.

ca contra a mulher. Em relação à agressão física, 2,5 milhões de pessoas de 10 anos ou mais de idade foram vítimas, o que representa 1,6% da população do País. Nas Regiões Norte e Nordeste, foram observadas as maiores frequências, 1,9% e 1,8%, respectivamente. As menores frequências foram registradas nas Regiões Sudeste e Sul, ambas com 1,4% (Tabela 6.13). Na desagregação das agressões por último agressor, segundo o sexo da vítima, observa-se que, em cerca de 70% das agressões sofridas por mulheres, o agressor era uma pessoa conhecida e, em 25,9% dos casos, o era o cônjuge ou ex-cônjuge.7 Essas informações foram reiteradas na Pesquisa do IBGE sobre Vitimização e Acesso à Justiça, publicada a partir das mesmas fontes de dados.8

A pesquisa importou dados da Central de Atendimento à Mulher – Disque 180 – da Secretaria de Política para as Mulheres (SPM), para abordar a violência contra a mulher e assim elaborar um detalhamento das características dos crimes praticados contra as mulheres, agrupadas no gráfico a seguir:

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BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio: indicadores sociais 2009. Disponível: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv62715.pdf. Acesso em: 14 set. 2015. 8 BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Características da vitimização e do acesso à justiça no Brasil: 2009. Disponível: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv47311.pdf. Acesso em: 14 set. 2015. 7

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Percebemos que há um esforço para mapear a situação da violência contra a mulher, contudo os resultados oriundos desta adaptação (inserção de módulos sobre o tema em pesquisas já existentes) não são completos, tendo em estar inserida no escopo de outra pesquisa, o que, por conseguinte, impõe algumas limitações. No que se refere a termos um registro único e integrado de todos os serviços de atendimento à vítima ou sua família, acreditamos que teriam baixo custo, pois de certa forma já existem, no Estado brasileiro. Uma vez que as unidades de saúde, os distritos policiais e os serviços sociais têm que catalogar as ocorrências, mas em sistemas independentes, bastaria que se comunicassem e que funcionassem ininterruptamente, garantindo a continuidade da coleta, além de uma unificação das metodologias utilizadas nos registros, para que o país dispusesse de dados fidedignos. Desta forma, com um registro único superaríamos os duplos registros, bem como consolidaríamos as informações coletadas. A cada ocasião de atendimento, o agente público teria oportunidade de coletar mais dados, inserir mais detalhes sobre as circunstâncias do crime, sobre a vítima e autor, os quais se traduziriam na consolidação das informações. Reconhecemos, todavia, que mesmo implantado um sistema único e integrado, teríamos dados apenas dos casos levados ao conhecimento dos órgãos de atendimento; e sabemos que, não raro, as mulheres não denunciam ou buscam atendimento, por vergonha, medo de novas agressões e descrença na atuação do Estado. Diante disto, defendemos a urgência de pesquisas que sejam realizadas com periodicidade, a partir de indicadores básicos claros e metodologia que permita comparação

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com pesquisas futuras. Admitimos que não foram poucas as pesquisas realizadas no Brasil, nos últimos 5 anos, objetivando apreender a prevalência e a ocorrência das diversas formas de violência contra a mulher. Entre elas: O Poder Judiciário na Aplicação da Lei Maria da Penha, do Conselho Nacional de Justiça (2013); Percepção da sociedade sobre violência e assassinato de mulheres, do Instituto Patrícia Galvão/Data Popular (2013); Percepções de Homens sobre a Violência contra as Mulheres, do Instituto Avon/Data Popular (2013); Pesquisa Nacional de Vitimização, do Senasp/Data Folha (2013); Mapa da Violência 2012 – Atualização: Homicídio de Mulheres no Brasil, do CEBELA e do FLACSO Brasil; Tolerância social à violência contra as mulheres do Ipea (2014); Violência contra a Mulher: o jovem está ligado?, do Instituto Avon/Data Popular (2014); Balanço 2014 – Ligue 180. Todavia, cada uma dessas pesquisas têm objetivos diferentes, adota metodologia diversa e atinge um universo também diferente, de modo que o Brasil parece estar muito distante de uma utilização dos indicadores do Informe de los Amigos de la Presidencia de la Comisión de Estadística de las Naciones Unidas sobre Indicadores de la violencia contra la mujer. Acreditamos que no Brasil, especialmente por suas características de extensa dimensão territorial, grande diversidade cultural e intensa concentração da população nas zonas urbanas, entre outras, as medidas oficiais de enfrentamento à violência contra a mulher e ao feminicídio só serão eficazes quando subsidiadas por informações atuais e fidedignas. Somente o conhecimento do atual cenário de violência e suas peculiaridades se traduzirá em uma atuação eficiente do Estado.

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10 Simone Gatti - Arquiteta e urbanista e doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Atualmente é professora de planejamento urbano e pós-doutoranda na FAU USP. Trabalhou na coordenação de diversos e projetos urbanos, foi consultora do Instituto Pólis e conselheira no Conselho Gestor da ZEIS 3 inserida no perímetro do projeto Nova Luz e co-fundadora da AMOALUZ. É autora do livro Espaços Públicos: Diagnóstico e Metodologia de Projeto e ministra curso homônimo de capacitação para os municípios brasileiros, sob iniciativa do programa Soluções para Cidades da ABCP. Publicou artigos e capítulos de livros sobre habitação e projetos urbanos no Brasil e no exterior e atuou como docente no Centro Universitário SENAC, na UNIABC e na FAU USP. Atua como pesquisadora do NAPPLAC (Núcleo de apoio à pesquisa, produção e linguagem do ambiente construído e representa o IABsp na Comissão Executiva da Operação Urbana Centro da Prefeitura Municipal de São Paulo.  

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A CASA DELAS, NA LUTA E NO DIREITO Simone Gatti A conquista de direitos pelas mulheres no âmbito do acesso à moradia no Brasil registra pequenos e significativos avanços ao longo da última década, tanto do ponto de vista legal, com inclusão de medidas protecionistas nos programas de moradia de alcance federal, como do ponto de vista do empoderamento feminino, relacionado à participação política e a ruptura dos processos de opressão e privação de direitos. O Governo Dilma avançou alguns capítulos no processo de inclusão de gênero nas políticas habitacionais. Desde 2012 as mulheres passaram a ter a preferência na escritura das casas do Programa Minha Casa Minha Vida, e o programa ainda passou a prever que mulheres separadas com renda inferior a três salários mínimos pudessem adquirir o imóvel mesmo sem a assinatura do cônjuge ou sem divórcio judicial, caso o pai não tenha a guarda dos filhos. Essa medida visa proteger o direito das mulheres, que são as principais vítimas dos danos decorrentes dos processos de separação. A titulação tem o importante papel de fornecer a segurança jurídica da posse para os moradores, mas ainda não é suficiente para promover a integração socioespacial, evitar a dissolução das comunidades e reduzir a desigualdade de gênero. Em 2015, 89% das moradias do programa federal eram de propriedade das mulheres. Já no Programa Nacional de Habitação Rural (criado no âmbito do programa Minha Casa Minha Vida Rural para atender agricultores familiares, comunidades indígenas, descendentes de quilombolas, extrativistas e pescadores que vivem em áreas rurais, ribeirinhos ou cidadãos que moram em regiões de difícil acesso) as mulheres respondiam em 2016 por 75% dos contratos das residências, segundo dados da Superintendência Nacional de Habitação Rural da Caixa Econômica Federal. Em contraposição, pesquisa recente realizada por Priscila Specie e Miguel Jacob a partir dos dados georeferenciados do IPTU, a quantidade de imóveis pertencentes às mulheres na cidade de São Paulo é quase duas vezes menor do que a dos homens. E as paulistanas mais pobres têm ainda menos acesso à propriedade imobiliária, já que os imóveis com proprietárias mulheres estão concentrados no centro expandido, área mais rica da cidade, o que mostra uma dificuldade de acesso das mulheres pobres aos serviços públicos e ao emprego, concentrados nas áreas mais centrais. Estes dados são cruciais considerando que a forma de moradia dominante nas cidades brasileiras se dá pelo acesso à propriedade, grande parte dela na esfera privada, mas também aponta a necessidade da implantação de formas alternativas de acesso à moradia, que possa oferecer habitação de aluguel aos mais pobres por valores proporcionais à

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renda familiar na escala do déficit habitacional, independente do gênero. Frente ao déficit e à falta de alternativas de habitação acessível em áreas bem localizadas e próximas ao emprego e aos serviços básicos, a sociedade civil tem se estruturado em outros formatos, não endossados pelo Estado. Neste contexto se sobressai a luta de mulheres engajadas na pauta do direito à moradia junto a movimentos organizados. São lutas que permeiam à margem das esferas públicas e do regramento jurídico, lutas espontâneas que se solidificaram em movimentos de transformação, lutas cotidianas que acumulam conquistas coletivas, conquistas para o outro. Estas lutas vão à contramão do direito adquirido, já que se dão pela busca deste direito inexistente, a partir da formatação de grupos independentes que caminham na direção oposta dos espaços institucionalizados. Cito três mulheres, que representam dezenas de centenas de outras conectadas a elas direta ou indiretamente, com quem tive a honra de me deparar na minha trajetória profissional e se tornaram referência e inspiração para permanecer nesta injusta e árdua batalha pelo direito à moradia. Seus nomes são Olga Quiroga, Ivanete Araújo e Paula Ribas. Uma conheci de perto, freqüentei sua casa, conheci sua história e sua família. Paula, uma jornalista que morava no coração da Santa Efigênia, a que queriam transformar em Nova Luz, e que hoje querem fazer nova novamente. Essa mulher começou uma luta por interesses particulares na defesa do seu prédio que poderia ser desapropriado, e em poucos meses essa luta se transformou na luta do bairro todo, na luta pelos pobres ou imigrantes clandestinos moradores de cortiços que não se julgavam no direito de reivindicar direitos. Paula se empoderou do discurso pelo direito à moradia, conheceu as leis que regiam o território onde vivia e, empunhada de um megafone e do poder de comunicação que era só dela, ia pra feira do bairro mobilizar a população e informar os mandos e desmandos da gestão Kassab. A presença de Paula Ribas na liderança da AMOALUZ possibilitou a integração de diversos setores da sociedade civil em um objetivo comum. Comerciantes, associações de bairro, movimentos sociais organizados e moradores, sejam eles locatários ou proprietários, se integraram no debate sobre o projeto Nova Luz e na busca pela inclusão em um processo previamente excludente e autoritário. Foi ao lado dessa mulher que formamos o primeiro Conselho Gestor de uma Zona Especial de Interesse Social em áreas centrais na cidade de São Paulo, a ZEIS 3. Foi onde conheci as principais lideranças dos movimentos de moradia da cidade e me deparei com dezenas de mulheres tão cheias de força como ela, as mulheres da moradia, as mulheres do direito á cidade, mulheres vindas de tão longe a tão paulistanas como nenhuma outra. Dona Olga é a que veio de mais longe. Uma senhora animada, com brilhos nos olhos e sotaque castelhano, que veio do Chile na década de 50 depois de ter se filiado a um partido radical de esquerda. Vi esta mulher pela primeira vez em uma das jornadas pela moradia organizada pelo Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, em 2011. Ela organizava a mística, uma espécie de dança que abre ou encerra os atos dos movimentos sociais e convida todos os presentes para um momento de motivação e celebração. Dona Olga é uma das coordenadoras do Garmic, o Grupo de Articulação para a Conquista de Moradia dos Idosos da Capital, fundado em 1999 e responsável pela reivin-

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Paula Ribas e o “Papo com Megafone” realizado em um domingo de 2010 nas ruas do perímetro do Projeto Nova Luz [Foto: Camila de Oliveira]. dicação do projeto da Vila dos Idosos junto à Secretaria Municipal de Habitação de São Paulo. A Vila dos Idosos é o melhor exemplo do Programa Locação Social, construído na gestão da prefeita Marta Suplicy e que hoje abriga mais de 200 idosos, todos aposentados ou beneficiários da Lei Orgânica de Assistência Social que pagam o correspondente a 10% da renda para o aluguel no edifício de propriedade pública. Aos 80 anos de idade, Dona Olga atua ativamente na militância não somente dos idosos, mas junto aos inúmeros movimentos sociais que atuam em prol da moradia no município. Junto ao Garmic, “preparamos, capacitamos politicamente o idoso para que ele more com dignidade. Falamos a ele que tem direitos, assegurados pela Política Nacional do Idoso e pelo Estatuto do Idoso. Também desenvolvemos trabalho conjunto com a Defensoria Pública, na defesa dos idosos contra maus tratos.” Por último, a Neti, Ivaneti Araújo, mulher símbolo da resistência dos movimentos de ocupação dos edifícios vazios no centro da cidade, já foi personagem de filme e atua em diversas frentes na luta pelo direito à moradia. Conheci a Neti quando ela coordenava o MSTC, Movimento do Sem Teto do Centro, e era uma das lideranças da Ocupação Mauá, edifício localizado em frente à Estação da Luz que ficou anos vazio sem cumprir a função social da propriedade e foi ocupado pelos movimentos de moradia.

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A ocupação Mauá se tornou um dos símbolos das ocupações, foi declarada de interesse social e estava para ser desapropriada, reformada e transformada em habitação social na gestão Haddad. Hoje, enfrenta novamente ameaças de reintegração de posse e, da mesma forma que foi sede das ações de resistência da sociedade civil contra o projeto Nova Luz na gestão Serra- Kassab, está novamente sendo palco da formação de luta pela permanência da população residente da ZEIS alvo de demolições e remoções na área dos Campos Elíseos, onde se concentrava o fluxo dos usuários de crack. Neti, juntamente com dezenas de outras mulheres ativistas, continua à frente da articulação dos movimentos de ocupações, no enfrentamento da permanência da Mauá como habitação de interesse social e na luta contra as demolições e despejos na revisão dos Campos Elíseos. Dona Olga e o morador mais idoso da Vila dos Idosos, em 2013 [Foto da autora] A importância da atuação dessas mulheres na militância dos movimentos de ocupações se materializa não só como exemplo de empoderamento para outras mulheres, mas nas próprias características físicas destes espaços, à medida que crianças, gestantes, mães sem a presença dos cônjuges e idosos recebem uma atenção especial de proteção diante da fragilidade de suas condições. A instalação de creches, o direcionamento para as crianças freqüentarem escolas e regras de convívio condominial são conquistas importantes da presença das mulheres nos edifícios ocupados pelos movimentos organizados. O papel dessas mulheres militantes no contexto da aquisição de direitos e estratégias de enfrentamento se faz ainda mais pertinente em momentos de crise política e possibilidades de rupturas de conquistas históricas e programas sociais, tais quais o Brasil vem enfrentando desde 2016. Os cortes sociais têm um alcance independente do gênero, mas as mulheres são atingidas duplamente, em função dos encargos acumulados entre trabalho, afazeres domésticos e maternidade, bem como são vítimas em índices ascendentes da violência doméstica.

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Ivaneti Araújo nos bastidores do filme Estamos Juntos, de Toni Venturi, 2011. Conquistas recentes, como as citadas no âmbito do Programa Minha Casa Minha Vida, contribuíram para o país subir, nos anos de 2014 a 2015, de 97 para 75 no ranking global de igualdade de gênero. O processo para o alcance da igualdade de gênero está em curso, mas ainda enfrenta importantes desafios e ameaças constantes. Neste contexto, as batalhas cotidianas e articuladas entre os campos formais e informais e a militância sempre presente das nossas Olgas, Ivanetis e Paulas não são apenas necessárias, mas indispensáveis.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS GATTI, Simone Ferreira. Entre a permanência e o deslocamento: ZEIS 3 como instrumento para a manutenção da população de baixa renda em áreas centrais. Tese de doutorado. FAU USP, São Paulo, 2015. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/16/16133/tde-29102015-143015/pt-br.php SPECIE, Priscila e JACOB, Miguel. A propriedade imobiliária das mulheres na cida-

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de de São Paulo. CEPESP-FGV, 2016. ZARIAS, Alexandre; FERREIRA, Suzy L. N. G. e QUEIROZ, Felipe R. Mulheres e o direito à moradia: a função social da propriedade na perspectiva de gênero. In: 17º Encontro Nacional da rede Feminista Norte e Nordeste de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher e Relações de Gênero, 2012.

Fernanda Azevedo - Mestranda em Artes Cênicas no Instituto de Artes da Unesp. Atriz e integrante da Kiwi Companhia de Teatro desde 2006. Militante feminista/socialista e ativista dos Movimentos de Arte e Cultura da cidade de São Paulo.  

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CIDADE, SERÁS FEMINISTA!

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SOBRE CIDADE, NÃO-LUGAR E SEXUALIDADE DAS MULHERES

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LUGAR DE MULHER É NO ESPAÇO PÚBLICO! E QUE O TEATRO TEM A VER COM ISSO? Fernanda Azevedo “(...) Rua Te quero das mulheres Ensinadas desde cedo que só podem brincar dentro de casa Porque a rua é perigosa, porque a rua é violenta Porque a rua é dos meninos que não sabem respeitar Rua eu te conheço, quem ameaça as meninas e mulheres É a mesma opressão que torna as casas inseguras Muito mais do que as ruas A rua é de todos os amores Todo discurso moralista que se opõe à igualdade Que se opõe à autonomia sobre o corpo É um pouco tribunal da Inquisição A rua não comporta privilégios Não tem dono nem tem preço É como o vento, o sol, a chuva Por isso hoje eu vim pra rua!” (Hino à rua - Coletivo Baderna Midiática)

Arte e realidade – Irmãs siamesas Diversos (a)s autores(as) e artistas discutem, na teoria e na prática, a relação entre arte e sociedade. A arte não está fora do mundo e, nesse sentido, responde aos perigos de sua época, como disse o dramaturgo e diretor britânico Edward Bond. Bertolt Brecht insiste na necessidade de o teatro estar conectado ao contexto histórico e investigar os mecanismos sociais a fim de transformá-los. Frida Kahlo e Diego Rivera estiveram ligados ao Partido Comunista Mexicano, aos camponeses zapatistas e participaram ativamente da vida política de seu país. Júlio Cortázar dedicou esforços e os direitos de alguns de seus livros à Revolução Sandinista na Nicarágua. O coletivo feminista argentino de arte e ativismo Mujeres Creando se utiliza do humor, da ironia, do jogo e inversões de significados na criação de seus cartazes e colagens para tratar das questões referentes às opressões de sexo e gênero. Nos anos 1960 e 70, cineastas, artistas de teatro e música resistiram bravamente ao autoritarismo da ditadura civil-militar no Brasil (muitos foram perseguidos e exilados e, alguns, assassinados). Os exemplos são muitos e, graças à inquietude e recusa ao apaziguamento que a experimentação artística pode

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causar, se multiplicam até nossos dias. Se, como diz Walter Benjamin, “todo documento de cultura é também um documento de barbárie”, o exercício de uma arte revolucionária seria trabalhar na chave da contracultura. Ainda sob a influência de Benjamin, arrisco dizer que caberia também aos artistas a função de escrever a História a contrapelo. As artistas mulheres, mesmo sendo constantemente caladas e jogadas para debaixo do tapete da História, não se eximiram da tarefa de ocupar, de forma crítica, o espaço público.

Algumas palavras sobre a participação das mulheres na cena teatral brasileira A pesquisadora Heloísa Pontes sinaliza as décadas de 1940 e 1950 como um momento de convergência entre o pensamento universitário, a produção teatral e o contexto social na cidade de São Paulo. A presença de intelectuais, professore(a)s e diretores(a)s teatrais vindos dos países europeus para o Brasil no período da segunda guerra mundial marcou profundamente as vidas e as carreiras artísticas de quem sofreu suas influências, além de todo um sistema intelectual e cultural da cidade que se transformava em metrópole. É neste período também que algumas mulheres irão assumir um papel de protagonismo não só como atrizes respeitadas, mas também como “donas” de companhias teatrais importantes, mesmo que ainda em parceria com seus companheiros de vida e trabalho. Ainda que não rompessem totalmente com a visão masculina e o domínio dos homens no ambiente cultural, mulheres como Maria Della Costa, Tônia Carrero, Nydia Lícia, Fernanda Montenegro e Cacilda Becker, conseguiram se firmar como figuras incontornáveis da historiografia teatral do país. Vale lembrar que, em 1958, Patrícia Galvão, a Pagu, será uma das criadoras do Festival Santista de Teatro Amador – FESTA. Festival que existe até hoje, como forma de resistência do teatro numa cidade tão maltratada pelo descaso público no campo da arte e da cultura. Elza Cunha de Vincenso, no livro Um teatro da mulher – dramaturgia no palco contemporâneo, procura compreender a presença da escrita dramatúrgica feminina no cenário teatral brasileiro, até então prioritariamente espaço masculino, e analisa especialmente o período da ditadura civil-militar (1964 - 1985). Segundo a autora, é nos momentos de ebulição política e social, quando todas as forças são necessárias no combate ao inimigo autoritário, que se abrem brechas para a participação das mulheres na vida política e nos espaços socialmente importantes. Não é diferente com as mulheres dramaturgas que, neste momento conseguem sair da relação de intimidade com seu público – característica da literatura, atividade a qual algumas destas escritoras se dedicavam – e experimentar sua voz e suas ideias no embate público e coletivo através do teatro. Era preciso ir às ruas, ocupar os palcos, criar assembleias de discussão para falar contra o regime. Num momento em que o teatro se colocava como espaço de transformação social e se propunha a pensar criticamente o país, a produção de mulheres como Hilda Hilst, Renata Pallottini, Leilah Assumpção, Consuelo de Castro, Isabel Câmara e Maria Adelaide Amaral estavam presentes no front de batalha. Estas mulheres fizeram parte de um grupo amplo de

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dramaturgos estreantes que, em 1969, recebe o nome de “nova dramaturgia”. Mesmo que muitas delas não se considerassem feministas, Elza reconhece que o fenômeno da “eclosão da dramaturgia feminina brasileira” destes anos está, em parte, vinculado ao renascimento do movimento feminista europeu e norte-americano do final da década de 1960. Movimento este que reformulou não só as escolhas dramatúrgicas, mas também a forma cênica e o modo de produção teatral. Em diversos textos das dramaturgas brasileiras, mesmo que não reproduzissem diretamente o pensamento feminista da época, era patente a reivindicação de uma sexualidade liberada, de uma recusa da família tradicional e a discussão sobre o poder dos homens sobre as mulheres. Muitas são as tentativas de exercitar a imaginação política e pensar outras formas de vida e ocupação da cidade. Em razão do contexto atual, de violência concreta em diversos níveis e do atraso da sociedade brasileira em relação a direitos essenciais das mulheres, novas Companhias Teatrais e Coletivos Artísticos irão centrar forças nesta discussão. Os exemplos são muitos. As Loucas de Pedra Lilás são militantes feministas pernambucanas que resolvem usar a linguagem do teatro de rua para desmistificar o feminismo, desconstruindo estereótipos perpetuados pelos meios de comunicação de massa. O Grupo As Marias das Graça, promovem há mais de uma década um festival internacional de mulheres palhaças no Rio de Janeiro. Quebrando o machismo que circunda o mundo do circo e da palhaçaria. Também no Rio de Janeiro, o Grupo As Madalenas, utiliza os métodos do teatro fórum, de Augusto Boal, para exercitar o protagonismo feminino. Depois de alguns anos surgem também As Madalenas Anastácias, grupo dedicado especialmente às questões das mulheres negras. (Em) Companhia de mulheres, de Florianópolis, formado inicialmente por 3 atrizes/ pesquisadoras, surge no desdobramento do grupo de estudos Teatro e Gênero coordenado pela Prof.ª. Drª. Miranda, em 2010. Em São Paulo, fruto movimento de teatro de grupo que renasceu na cidade a partir da década de 1990, formaram-se alguns coletivos de mulheres preocupadas em avançar no debate a respeito do lugar ocupado pelas artistas mulheres na produção teatral, além das discussões sobre sexo e gênero e das diversas opressões sofridas pelas mulheres. Rubro Obsceno, Capulanas – Cia de arte negra, Madeirite Rosa, Coletivo Vulva da Vovó, Mãe da Rua, Companhia das Atrizes, são alguns exemplos desta nova safra de grupos. As temáticas feministas estão presentes também em trabalhos de Companhias de formação mista: como Carne – Patriarcado e capitalismo, da Kiwi Companhia de Teatro; Cassandra – na calada da voz, do Núcleo Bartolomeu; Ida, do Coletivo Negro; Naturaleza Muerta, de Las Desdenhosas, entre outros.

Finalmente... Segundo Virgínia Woolf “todo treino literário de que a mulher dispunha no início do século XIX resumia-se a um treino de observação de personalidade e análise de emoções. (...) quando começou a escrever, no século XVIII, a mulher dedicou-se, naturalmente, ao

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romance...”. Se a literatura se apresentou como uma forma inicial de expandir as experiências femininas para além do espaço privado, no século XX estas vozes femininas não se contentam mais em permanecer como objeto de consumo individual. O clamor das ruas atinge as artistas de diversas linguagens e a fala feminina se faz presente e passa a ser dita em voz alta. As mulheres entram na discussão política e ampliam o debate público através de uma produção artística com características específicas. A radicalidade social do trabalho de artistas como Marcia X, Ana Mendieta, Regina Galindo, Cindy Sherman, Valie Export e Orlan, trazem à tona o mote da segunda onda feminista (no Ocidente): “todo pessoal é político”, através de performances que incluem as experiências de vida e os próprios corpos das artistas como base dos trabalhos. Inspiração e braços fortes não nos faltam: Violeta Parra, Clara Schumann, Chiquinha Gonzaga, Dolores Duran, Maria Eliza (primeira palhaça negra brasileira!), Lucinha Turnbull (nossa primeira guitarrista), Inezita Barroso, Frida Kahlo, Tina Modotti, Pagu, Lygia Clarck, a palestina Mona Hatoum, Jesusa Rodrigues e Liliana Felipe, Maria Galindo e as Mujeres Creando, a escritora marxista Elfriede Jelinek, Raquel de Queiroz, entre tantas outras que tiveram ousadia e coragem e abriram o caminho para as novas gerações de mulheres insurgentes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Trad. Sergio Paulo Rouanet. In Magia e técnica, arte e política. Obras escolhidas I, São Paulo: Brasiliense, 1985. MIRANDA, Maria Brígida de. Teatro feminista: da pesquisa à sala de aula. In Revista de Investigação em Artes, Florianópolis, v.3, n.1, ago.2007/ jul.2008. Disponível em: http:// docplayer.com.br/16931973-Teatro-feminista-da-pesquisa-a-sala-de-aula-1-2-3.html. Acesso em: 18 dez. 2016. PONTES, Heloisa. Teatro, gênero e sociedade (1940-1968). In Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 22, n. 1: 29-46. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ts/v22n1/ v22n1a02.pdf . Acesso em 15 dez. 2016 WOOLF, Virgínia. Um teto todo seu. São Paulo: Círculo do Livro, 1994. VINCENZO, Elza Cunha de. Um teatro da mulher – dramaturgia no palco contemporâneo. Edusp. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1992.

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12 Grazielle Albuquerque - Jornalista, doutoranda em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e fellow research no German Institute of Global and Area Studies (Giga).

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A VISIBILIDADE EM OUTROS ESPAÇOS: OS PAPÉIS SOCIAIS MUDAM O MODO COMO UMA MULHER SE COLOCA COMO CIDADÃ? Grazielle Albuquerque Falar sobre mulheres, direito e cidade é colocar-nos diante do que não é dito, daquilo que existe, mas que precisa ser dissimulado por uma estratégia de sobrevivência. Alguns dados históricos sobre Fortaleza ilustram bem esse fenômeno. Na década de 1930, o centro da cidade passava por um processo de verticalização e, em paralelo, casas de taipa e telha eram comercializadas em outras áreas. Na época, a elite estava em bairros como Jacarecanga e Benfica e a cidade vivia um período de intensa transformação. Com a urbanização, diversos lugares foram sendo ocupados por vilas, sobretudo o bairro da Aldeota, onde há um esquadriamento do terreno para essas construções. Essa parece ser uma história trivial do crescimento urbano, mas o que pouca gente sabe é que, nesse período, 33% dos imóveis e terrenos que estavam sendo comprados e vendidos eram negociados por mulheres. O número – descoberto na pesquisa de mestrado do professor de História da Universidade Federal do Ceará (UFC), Mário Martins - impressiona. O espanto é maior, sobretudo, se lembrarmos que tanto a Constituição quanto o Código Civil vigentes à época reservavam o lar e, não o mundo dos negócios, como o espaço primordialmente destinado à ação feminina. À mulher cabia um papel secundário, era a consorte do marido, ou estava guardada pela família. Dito isso, diante dos postulados da lei, as mulheres desenvolveram, como sempre, estratégias de sobrevivência. Se desde o século XIX, as viúvas já negociavam, comprando e vendendo imóveis e terrenos, depois, nas décadas de 20 e 30, solteiras e casadas passam a aparecer mais nos registros. No final dos anos 30, as solteiras dominavam. A pesquisa de Mário Martins mostra algumas táticas. Como, obviamente, as propriedades pertenciam à classe alta, ao preço de uma boa assessoria jurídica, as mulheres conseguiam garantir o manuseio dos bens e, em consequência, sua independência financeira. Em muitos casos, a tática estava nos testamentos deixados por mães ricas às suas filhas. No documento existiam cláusulas que retiravam os bens das filhas que casassem (numa vertente contrária ao dote) ou excluíam o marido do manuseio do espólio. Os testamentos compõem uma das hipóteses para os dados encontrados, podem haver outras explicações. Mas o fato é que em plena década de 30, sem alarde, um terço dos negócios imobiliários de Fortaleza estavam em mãos femininas1.

Por mais instigantes que sejam os números da presença feminina nessas transações imobiliárias, se aprofundarmos uma análise crítica da questão, o que se destaca é o mecanismo, a estratégia de fazer sem dizer, um drible à impossibilidade de se construir um papel de autonomia diante da cidade e da lei. Esta questão se atualiza se pensarmos que, há muito, as mulheres constroem formas de sobreviver e se apropriar do espaço em que vivem, diante do Sistema de Justiça. Mas talvez a marca singular dos tempos contemporâneos seja a reivindicação de visibilidade para múltiplas identidades. As reflexões sobre o constrangimento feminino no transporte público, o medo da violência, o “cuidado” com o uso da indumentária e a gramática de “alertas” que toda menina aprende como forma de proteção para o convívio social urbano têm vindo à tona em abordagens cada vez mais eloquentes e necessárias. É preciso tirar o véu sobre a mítica de que homens e mulheres vivem a mesma cidade com igualdade de condições no seu uso. Esse movimento é tão importante que a expressão “tirar o véu” não é apenas retórica, já que, em muitos aspectos, as pautas feministas servem mesmo para desnaturalizar discursos, fazer ver o que sequer antes era percebido. Contudo, há ainda outras camadas a serem observadas, como a da cidadã que se mobiliza, através da lei, por ser mulher. Os papéis sociais mudam o modo como uma mulher se coloca como cidadã? Uma pergunta prática pode clarear a questão: será que o número de mulheres que ingressam com uma ação movida por conflito social urbano tem alguma proporcionalidade com o de mulheres que entram com uma ação de alimentos? Eis o ponto: na esfera institucional, na minha posição de cidadã e mulher, que lugar eu ocupo? Vê-se que a cidade e seu uso estão em um plano mais amplo do que o estritamente físico. Na atualidade, alguns exemplos ligados a essa inquietação podem ser vistos. As políticas de moradia e regularização fundiária, que passaram a priorizar a titulação em nome das mulheres, garantiram segurança aos núcleos familiares majoritariamente chefiados por elas e também asseguraram maior eficiência aos programas sociais com esse recorte. Ou seja, é uma política pública perpassada pela questão de gênero que, ao atentar para a realidade, mudou seu mecanismo-chave e se tornou mais efetiva. O que estava sendo visto é que, sim, são as mulheres que permanecem nas famílias. Elas ficam, responsabilizam-se e isso muda as coisas. De forma mais ampla vemos que, ainda que tateando os caminhos, o Direito contemporâneo tem como grande desafio atentar às questões das identidades. Se pensarmos nas pautas dos diversos movimentos dos anos 60 e das contestações que tiveram seu marco nas bandeiras progressistas da segunda metade do século XX, sem dúvida são as questões relativas aos papéis sociais e, sobretudo, ao nome e a imagem que se dá a eles, que despontam hoje. Ser negra, ser lésbica, ser gay, ser travesti, ser transgênero.... As demandas pelo reconhecimento de identidades destacam-se com uma força que transpassa até mesmo as tradicionais demandas da esquerda. Não à toa, a parte o sectarismo que se ensaia hoje com seus apelos a um estado policial, são áreas como o Direito de Família e o Direito Urbanístico que conseguem trazer questões novas e plurais aos tribunais, ser um eixo inovador dentro da normativa dos “doutores da lei”. das quais 2581 envolviam homens e 1287 envolviam mulheres. Somadas as duas décadas, o resultado final é de 67,4% de escrituras com participação masculina e 32,6% com participação feminina. Mais detalhes em: “As mulheres na expansão material de Fortaleza nos anos de 1920 e 1930”, de Mário Martins Viana Júnior, dissertação de mestrado, Departamento de História, UFC. 1

Na década de 20 foram registradas 1009 escrituras, sendo destas 706 envolvendo homens e 303 envolvendo mulheres. Na década de 30, com a expansão da cidade, aumentou-se também o número de escrituras registradas. No total, foram 3868 escrituras registradas, 1

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Sendo direta, em um sistema erguido sobre o dever-ser, como lidar com uma lógica não binária? Ao se falar sobre as capacidades civis (quem pode o que sobre quais condições), é possível atentar à fluidez da vida moderna? A centralidade das aglomerações urbanas e o uso dos seus espaços alcança a diversidade de identidades que são reivindicadas hoje? São tantos os dilemas entre o dever-ser e o ser que exemplos e digressões não caberiam em um artigo. Há, contudo, um ponto central a ser colocado aqui: a possibilidade de fazer uma relação entre a gama de direitos (e portanto a capacidade de se acessar o Sistema de Justiça, de ser sujeito de direitos), o espaço em que se vive e as identidades pessoais. Essa tríade argumentativa pode ser voltada para a questão feminina, mas vai além dela. O desafio identitário é amplo e ele não se contenta mais com o reconhecimento restrito à informalidade. O grande pulsar da contemporaneidade está em ter um nome, uma voz, um corpo e uma imagem com legitimidade e reconhecimento públicos. Esse é o desafio das democracias modernas com imigrantes, refugiados, grupos de diversas etnias e, vejam só, nós mulheres que, a parte todos esses outros signos, sempre tivemos identidades femininas negociadas às condições de sobrevivência de uma época, dos costumes, das culturas, das esferas política e econômica. É difícil achar respostas nas quais as identidades não suplantem as questões de alteridade, tão fundantes de sociedades igualitárias e justas, humanas em sua essência. O desafio permanece. As democracias contemporâneas têm que dar conta não mais apenas das clássicas demandas dos direitos civis, políticos e sociais. E, no que concerne a nós mulheres, o que me parece fundamental é perceber isso: a luta por ir e vir, pelo espaço físico, está intimamente ligada a ocupar ou não este ou aquele papel, com nome, voz, corpo e reconhecimento.

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a. A moral social e a cultura do estupro

CIDADE, SUBSTANTIVO FEMININO Amanda Marcatti Isadora Penna Era uma vez, uma cidade em que as mulheres eram tão gente quanto os homens. As mulheres dessa cidade tinham tempo de frequentar as praças, as reuniões dos conselhos municipais, os shows e as igrejas. É que nessa cidade, havia restaurantes, lavanderias públicas e creches por período integral. Além do tempo que as mulheres tinham, nessa cidade também não havia o medo. Nenhuma mulher, antes de sair de casa, olhava-se no espelho e pensava se aquela roupa iria suscitar qualquer tipo de violência ou assédio contra ela. De madrugada, as ruas iluminadas estavam cheias de mulheres que riam e dançavam sem medo de terem seus corpos violados. Nessa cidade a política era feita também por mulheres. Conselheiras, lideranças de bairros, agentes comunitárias, políticas em todos os âmbitos. Essas mulheres tinham voz, e o conteúdo que verbalizavam era respeitado e tratado como prioridade, porque a vida das mulheres dessa cidade valia o mesmo que a de um homem. ***** A realidade das cidades brasileiras está longe desse cenário traçado, mas é com esse objetivo que precisamos, cada vez mais, pensar um programa concreto para que o espaço urbano deixe de ser intimidador às mulheres e, passe a pertencê-las, assim como pertence aos homens. Neste sentido, o presente artigo busca provocar reflexões sobre este tema e, para tanto, irá se basear no processo de construção da Audiência Pública sobre a rede de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher da Cidade de São Paulo - ocorrida em 31.03.2017 - em que foram realizadas visitas a alguns aparelhos públicos componentes das Redes de Enfrentamento à Violência contra Mulher, a fim de partir da análise do real e do concreto do cotidiano das mulheres para, assim, provocar as devidas reflexões teóricas. Entendemos esse como um dos primeiros temas de abordagem necessária do tema mulheres e o direito à cidade: nada pode vir antes do que a garantia da integridade física da mulher quando ela acessa o espaço público.

I. O Combate À Violência Contra a Mulher

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É comum que o problema da violência contra a mulher seja atribuído quase que, exclusivamente, às condições de desigualdade econômica e social da mulher, o que certamente se verifica. Contudo, observa-se que a desigualdade histórica da condição da mulher no acesso a direitos produz não somente uma relação de desigualdade econômica. Em verdade, produz uma consciência social coletiva que reduz a mulher da condição de sujeito e coloca sua vida e seu corpo como propriedade pública e, se essa for casada, do próprio homem. É necessário fazer essa provocação porque as situações cotidianas de violência pelas quais as mulheres passam todos os dias, não se explicam unicamente pela reprodução do machismo nas relações privadas. É preciso reconhecer esse nível de reprodução do machismo na subjetividade geral das massas, já que todos os dias quando as mulheres saem as ruas são assediadas por homens com os quais não mantém nenhuma relação. É que, ao terem menos acesso a direitos, as mulheres têm também a sua identidade humana e social retiradas de si mesmas; ou seja, há um pacto consciente coletivo, ainda que não explicitado, que diz que somos menos gente do que os homens. E isto se aplica em diferentes proporções, já que além da reprodução patriarcal, também existe o racismo, que também compõe, no Brasil, em especial, essa subjetividade geral das massas. Dessa consciência produzida por meio de mecanismos ideológicos é que se consolida o que denominamos de cultura do estupro - que terminologicamente está correto, inclusive, pela constatação que se fez quanto ao caráter estrutural, objetivo e subjetivo da reprodução do machismo enquanto ideologia. Por essa razão, é que a definição das formas de violência contra a mulher e, principalmente, as propostas de combate a esse fenômeno social, político e antropológico não podem se resumir a reivindicações econômicas. É necessário ir além, é urgente e imprescindível construir uma identidade contra-hegemônica, cultural e social, feminista e antirracista. Aliás, é preciso observar que, existem diversas formas de violência contra a mulher que sequer passam pela agressão física, a exemplo, o próprio assédio sexual, tão comum nos mais diversos tipos de ambiente de trabalho, mas não só... A quantidade de casos de mulheres que tem vídeos de suas relações sexuais ou fotos de sua intimidade disseminados nos meios virtuais é um exemplo que comprova a necessidade de ampliar o conceito que, em regra, se tem sobre o que consiste em a violência contra a mulher.

b. Protagonismo da mulher no processo de rompimento do ciclo de violência Como se sabe, infelizmente, é comum que a mulher em situação de violência sofra novas formas de violência no processo de rompimento deste ciclo; já que esse rompimento, em muitos casos, significa uma profunda alteração no seu convívio social e, muito frequentemente, rompimento com o seu círculo social, profissional, familiar e afetivo.

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A mulher que se encontra nessa situação é, em regra, socialmente (ainda que de forma silenciosa) responsabilizada pela existência da violência, inclusive, de forma a convencê-la que a violência que a ela é desferida é expressão do seu próprio fracasso enquanto mulher. Para ilustrar, nos casos de violência em âmbito doméstico, quando se culpabiliza a mulher/vítima pelo “fim” da família, em decorrência da mesma ter apresentado denúncia contra seu marido/agressor. De outro lado, nos demais casos, a principal reação é buscar justificativas para o comportamento do agressor nas condutas individuais da mulher, tais como, a sua roupa, a “postura sexual” ou a “ingenuidade”. Como romper o ciclo de violência envolve, com frequência, a busca de um terceiro para ajudar a mulher/vítima e, inevitavelmente, também envolve dar ciência do fato aos familiares, amigos, conhecidos, etc., todos esses prés julgamentos/condenações sociais tornam ainda mais difícil que a mulher/vítima se encoraje a fazer a denúncia. É preciso romper com a ideia de uma mulher que, no processo de superação do ciclo de violência, seja um sujeito passivo e não ativo desse. Nesse sentido, é que políticas públicas voltadas ao que se chama de “empoderamento individual da mulher” que está em situação de violência são, de fato, importantes, ainda que tenham limitações do ponto de vista de combater a reprodução do machismo enquanto ideologia porque são políticas de recuperação individual. A situação de uma mulher negra e periférica, a fim de exemplificar, que por anos foi proibida por seu marido de trabalhar ou em outra situação comum na qual a mulher tem que abandonar o trabalho para despistar seu agressor, necessariamente precisa de canais/políticas públicas para se reinserir no mercado de trabalho. Nessas funções, vale mencionar as iniciativas de coletivos e organizações do terceiro setor, quanto à elaboração de oficinas para buscar alternativas para aquela mulher que, em situação de violência, precisa encontrar formas de subsistir. É preciso, inclusive, defender que tais iniciativas sejam geridas pelo poder público, inclusive, para que garanta a qualidade do serviço.

c. Pré-Violência No sentido do quanto exposto, defende-se que, para de fato acumular um programa de combate à violência contra a mulher, é preciso refletir não apenas sobre o tratamento adequado e humano àquela que foi agredida, mas na desconstrução dessa consciência coletiva e ideológica, a qual, denominamos de cultura do estupro. Por essa razão, é que o combate à violência contra a mulher não pode ser tratado exclusivamente como uma questão de segurança pública, mas sim como política de estado, no sentido de que a erradicação desse fenômeno social só será possível quando houver um programa coeso, totalizante e multidisciplinar para atender à demanda.

d. Publicidade e construção da identidade feminina A publicidade tem como fim principal, não apenas vender produtos, mas criar demanda por este ou aquele bem de consumo. Para tanto, o mecanismo de formulação de propagandas precisa que seu público-alvo se identifique com a fórmula publicitária e com a narrativa apresentada. É daí que se extrai a importância desse tema para o combate à violência contra a mulher, porque a publicidade, como existe, serve apenas para reproduzir e consolidar a cultura do estupro. As propagandas de alguns bens de consumo são exemplos até clichês disso, cujo público principal é o masculino, tais como automóveis e bebidas alcoólicas, nelas, o papel da mulher é o de “brinde”, ou seja, vende-se o produto e a mulher como um objeto sexual. Ao mesmo tempo, há, também, as propagandas que reduzem a identidade da mulher, exclusivamente, enquanto mães ou esposas, ou seja, no papel de subserviência subjetiva e objetiva aos homens. Ainda, é preciso fazer referência ao padrão de beleza reproduzido que contribui para a inferiorização de mulheres que não se adequam a ele. A empresa de comunicação Heads Propaganda, em pesquisa realizada, constatou que somente 15% dos posts na rede social do Facebook publicados pelas 127 marcas analisadas contribuíam para a igualdade entre homens e mulheres, enquanto outros 14%, reforçavam os estereótipos. A reprodução de narrativas na televisão também confirma a teoria, dos 33% de homens protagonistas, 83% são brancos, enquanto que das 26% de mulheres protagonistas, 84% são brancas. Nesse sentido, por entender a publicidade como parte do processo de construção e desconstrução da consciência social e coletiva, é que se conclui o papel essencial que essa tem no presente tema. É preciso ter medidas duras e pedagógicas (a exemplo das multas) às empresas que reproduzem conteúdo machista e depreciativo. De outro lado, é importante também, medidas que incentivem empresas que se comprometam com a desconstrução desse papel social. Para tanto, os mecanismos que existem são absolutamente ineficazes. Veja-se que, em 2014, a CONAR - Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária, recebeu apenas 18 denúncias de publicidade com conteúdo machista depreciativo, dessas, 17 foram arquivadas. Conclui-se que, a publicidade deve ter mecanismos de controle público e que não se diga que tal é cerceamento de liberdade expressão. Ao contrário, trata-se da promoção de valores de liberdade e humanidade por meio da publicidade.

e. O papel da educação no combate à violência contra a mulher Em pesquisa realizada pela agência Énóis Inteligência Jovem, em parceria com o Ins-

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tituto Vladimir Herzog e o Instituto Patrícia Galvão, revelou-se que 39% das jovens mulheres brasileiras já sofreram algum tipo de preconceito na escola ou faculdade relacionado ao seu gênero. Por si só, esse dado já demonstra a importância da educação no combate à violência contra a mulher, enquanto violência de gênero. Em 2015, na cidade de São Paulo, por exemplo, o debate sobre o Plano Municipal de Educação causou alvoroço, quando dividiram-se os vereadores da Câmara Municipal, entre aqueles que defendiam a inclusão do debate de gênero no texto do projeto de lei e aqueles contrários. A inclusão sobre o debate de gênero tem o intuito de garantir que nenhuma criança será discriminada e nem sofrerá violência de gênero por apresentar comportamento que a diferencie dos padrões heteronormativos - não é nenhuma novidade que a discriminação e a violência ocorra com frequência no ambiente escolar. Ademais, o debate de gênero que se quer incluir é também no sentido de impulsionar discussões acerca do debate de violência contra a mulher e para combater a reprodução da consciência social que é responsável direta pelas formas de violência aqui debatidas. Acredita-se que não é necessário discorrer sobre a importância que a vivência escolar exerce na construção da identidade dos jovens, já que é o primeiro e principal espaço de formação coletiva e social da juventude. Neste sentido, é importante que o ambiente escolar, inclusive, envolva os pais das crianças nesse processo, em especial, porque muitas delas vivenciam situações de violência no ambiente familiar e, assim, a educação tem enorme potencial para desconstruir a própria violência doméstica.

14 DI CAMPANA - Estar atento. Estar de olho, cauteloso. Esperto a todo movimento, registrando tudo que acontece: DiCampana. Há centenas de periferias espalhadas pelo mundo. São milhares de pessoas residindo nesses locais que, em muitos casos, abrigam a contradição econômica e cultural de uma grande metrópole, como mansões e favelas dividindo praticamente o mesmo espaço mais a violência que é colocada na conta da periferia. O cotidiano destas regiões, que abrigam milhões de pessoas, ultrapassa o estereótipo midiático reforçado por clichês e estigmas que cativam o povo. No entanto, a cultura, o lazer, a rotina, a vida do nosso povo é diferente. Entendendo que a narrativa do nosso povo, vem sendo registrada praticamente pelos mesmos meios há décadas, a proposta do DiCampana é fazer uma cobertura introspectiva e continua do cotidiano das periferias através da fotografia realizada por periféricos, favelados. A construção de outro imaginário na perspectiva cultural e a denúncia de violações de direitos humanos conduzirão a nossa produção, visando contribuir para construção de um imaginário que contemple os múltiplos recortes da periferia. Fotógrafos: gSé Silva José Cícero da Silva Léu Brito Naná Prudêncio Zalika Weslley Tadeu

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Samara Takashiro 110 DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO.

AS MULHERES E O DIREITO À CIDADE: UM GRANDE DESAFIO DO SÉCULO XXI

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15 REALIZAÇÃO

Formada em Cinema e Fotografia a paulistana Samara Takashiro gosta de registrar o urbano, as contradições do cotidiano e detalhes que passariam despercebidos pelos olhares menos atentos, sendo assim, tem estado na rua para registrar a nossa sociedade, seus acontecimentos e mudanças. Com alguns desses registros teve a oportunidade de participar de algumas exposições coletivas, concursos e livros. APOIO

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