Entre a Ditadura e a “Ditabranda”: Mídia, memória e esquecimento - a atuação do jornal Folha de S. Paulo no golpe de 1964. Sônia Meneses Doutoranda em História-UFF Docente de História-URCA Bolsista FUNCAP Resumo Esse artigo pretende analisar alguns aspectos da atuação do jornal Folha de S. Paulo no golpe de 1964. A imagem do Jornal Folha de São Paulo como um jornal “crítico, democrático, apartidário e plural” é o que podemos definir como um bem articulado projeto de re-significação da memória e uma engenhosa operação de esquecimento programado sobre suas ações naquele momento da história do país. Além disso, identifica-se ainda o agenciamento de significados e a produção de narrativas de caráter histórico, principalmente, em uma sofisticada engenharia de sistematização de conceitos e metodologias que ajudam na composição de narrativas nas quais, passado, presente e futuro que são constantemente mobilizados numa atitude de reflexão sobre o passado que se situa fora do campo da história e que se elabora em um tipo particular de escrita. Palavras-chave: Ditabranda, Memória, Golpe de 1964 “O rolo compressor do bonapartismo chavista destruiu mais um pilar do sistema de pesos e contrapesos que caracteriza a democracia. Na Venezuela, os governantes, a começar do presidente da República, estão autorizados a concorrer a quantas reeleições seguidas desejarem. (…) As chamadas "ditabrandas" – caso do Brasil entre 1964 e 1985 – partiam de uma ruptura institucional e depois preservavam ou instituíam formas controladas de disputa política e acesso à Justiça o novo autoritarismo latino-americano, inaugurado por Alberto Fujimori no Peru, faz o caminho inverso. O líder eleito mina as instituições e os controles democráticos por dentro, paulatinamente.” (Jornal Folha de São Paulo, 17/02/2009: Editorial.)
Na véspera de serem lembrados os 45 anos do golpe que instituiu a ditadura militar de 21 anos no Brasil, o jornal Folha de São Paulo, apresentava em seu editorial do dia 17 de fevereiro de 2009, uma contundente crítica ao governo de Hugo Chaves da Venezuela.
Suas altercações giravam em torno do referendo realizado naquele país que, dias antes, havia dado direito aos seus governantes de concorrerem a eleições seguidas sem intervalos. Entretanto, as críticas realizadas ao presidente venezuelano não se constituíam exatamente uma novidade em suas páginas e, muito provavelmente, não tivessem causado grande efeito se não fosse por um detalhe inconveniente: a menção ao regime ditatorial brasileiro qualificado pelo jornal de “Ditabranda”. O breve trecho do editorial trouxe à tona, entretanto, muito mais do que a postura combativa do jornal aos governos de esquerda da América Latina, demonstrou uma fresta pela qual se pode vislumbrar a atuação do jornal na própria constituição de um dos mais polêmicos e emblemáticos eventos da história recente do Brasil: o Golpe de 1964. Por sua vez, o próprio editorial foi desencadeador de outro evento: a aguerrida reação de grupos político-sociais, sobretudo, vítimas e intelectuais, que trouxeram a baila uma acalorada discussão sobre a construção da memória e atuação dos grandes veículos de comunicação no episódio; debates que chamaram atenção ainda para os usos do passado no presente. Nas últimas décadas do século XX e princípios do XXI, poucos eventos são tão recorrentes nos meios de comunicação quanto o Golpe de 1964, sendo bastante significativa a produção intelectual sobre o tema nas últimas décadas, não somente em termos bibliográficos, mas também, em filmes, documentários, revistas, romances, fazendo de 1964, um evento insistentemente apropriado pelas mais variadas mídias. Porém, as reflexões sobre o período ditatorial não são uma exclusividade do Brasil. Notadamente na América Latina, onde nos deparamos com a implantação de várias ditaduras, a temática se tornou um elemento preponderante no debate político, bem como, na organização de diversos grupos sociais, que reivindicam para si, um lugar nas disputas pelas memórias de tais eventos. As discussões em torno da memória e do esquecimento em tais episódios se tornaram uma questão visceral para estes países, especialmente, na organização das democracias que se seguiram aos períodos ditatoriais. Mas, além de uma questão de governabilidade, as altercações giraram em torno da legitimidade na construção das versões sobre esses acontecimentos.
Nos países do Cone Sul a transição para regimes democráticos colocou em cena usos do passado como componente fundamental no estabelecimento dos governos pósditaduras. Contudo, é necessário percebermos que tais utilizações obedeceram a dinâmicas específicas em cada um desses países, posto que, os próprios processos de organização política assumiram caminhos bastante diversos na história de cada um deles. Entretanto, mesmo considerando tais divergências, destaca-se que a ordenação e a sistematização de memórias coletivas recentes tiveram como ponto capital a ênfase sobre a memória das vítimas em tais regimes, agora alçadas a um lugar central na constituição dos novos governos. Dessa maneira o golpe é visto dentro de um universo de significação complexo e variado que o inscreve entre a condição de acontecência e representância. Nesse caso se estabelece uma diferença fundamental entre evento ocorrido e evento significado numa complexa rede de relações na sua ocorrência social, lingüística, política e ideológica. Necessário ressaltar que, embora seja possível escolhermos algum desses elementos para figurar dentro de uma hierarquia valorativa de nossas interpretações, não podemos deixar de considerá-los a partir desse complexo mosaico de constituição. Embora a Folha pretenda construir para si uma idéia de veiculo isento, plural e objetivo no tratamento dos eventos que narra, o jornal é traído pela própria dialética entre seu lugar social e sua atuação como veículo de mediação. Um problema central em sua formulação é defender a idéia de que em suas páginas estão separados opinião e informação, como se ao delimitar espaço rigidamente separado para ambos, a leitura de um não influenciasse no outro. Naqueles anos a Folha se limita a referendar o Golpe, tal como foi formulado pelos grupos que o almejaram: ‘a revolução’, ‘revolução de março’, ou a ‘revolução de 64’, definições nunca aspeadas, vejamos:
(…) os ânimos, na área da Revolução de março, ainda estavam exaltados (FSP: 29/12/1964) O Sr. Carlos Lacerda foi a Montevidéu procurar o Sr. João Goulart, para obter apoio do ex-presidente da república,
deposto pela Revolução de Março, para Frente Ampla. (FSP: 26/09/1967) “O Sr. Kubitschek já anunciou que voltará ao Brasil em princípios de 1965, ainda não se sabendo se embarcará antes ou depois do primeiro aniversario da Revolução” (FSP: 29/12/1964) Às 10h03, prestou o compromisso de praxe (Prometo manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral e sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil), tornando-se o 5º presidente da Revolução. (FSP: 16/03/1979)
Certamente, deve-se levar em consideração a interferência de órgãos da censura em muitos veículos de comunicação, o que em relação à Folha, não pode ser sentido como tanta força, uma vez que a postura do próprio jornal é de se manter ao lado do regime. Nesse caso, percebe-se como o próprio sentido de revolução se transforma ao perder sua pecha de artifício comunista, como no editorial de 1º de abril, para o de movimento em defesa da ordem. Vejamos na matéria publicada em 04 de julho de 1965:
O marechal Castelo Branco, após manifestar sua satisfação por poder entregar ao país maior produção de energia elétrica, frisou que a Revolução buscou, no campo político, preservar a democracia e assegurar o equilíbrio entre os poderes da República […]. Para isso e com objetivo de mudar a fisionomia da sociedade, não vê caminho melhor senão modificando as leis que a orientam, ‘sob pena de mergulharmos no arbítrio e na prepotência’. (FSP: 04/06/1965)
Na narrativa, a revolução com ‘R’ maiúsculo é formulada a partir da conotação de acontecimento emblemático e agregador naquela ordem. Entre os anos 60 até a segunda metade dos 70 o jornal se contenta em divulgar notícias que, aparentemente, acentuam um teor meramente informativo sobre as ocorrências ligadas ao golpe.
A primeira etapa a construção do acontecimento elaborado pela Folha é marcada pelo conservadorismo e conivência do veículo com os militares. Não se pode negar que, dessa forma, “fazia a história” em ações cotidianas que construíam argumentos favoráveis ao regime. Por outro lado na escrita do evento, partilham de uma consciência histórica ordinária que, apesar de apresentar elementos que podem ser dotados de certa obviedade, efetivam um determinado modo de pensar a construção dos acontecimentos. No dia seguinte ao golpe civil-militar, a Folha apresenta um editorial bastante contundente em defesa das ações dos militares, intitulado “Em defesa da Lei” (FSP; 1C-p. 3: 02/04/164) O editorial é longo e traça uma linha seqüencial dos eventos que culminaram com o acontecimento e pretendia conceder os motivos para aquelas ações. A análise que irei proceder sobre ele tentará mostrar o processo de agenciamento ao qual a ocorrência foi submetida, evidenciando como o editorial corrobora para a fundação do golpe como ocorrência agregadora, tanto em termos de temporalidades como de significados, levando a crer em sua irremediabilidade. Embora ressalte o momento de tensão vivido, a Folha o apresenta como acontecimento histórico positivo, necessário e continuador do processo de desenvolvimento da própria história do país.
Não foi por falta de advertências que a situação nacional chegou ao estado em que hoje se encontra de profunda crise militar e política (…). Ninguém por certo desejou tal situação, excluídos certamente os elementos comunistas para os quais a situação do país estará tanto melhor quanto pior em verdade for.
Logo de saída, dois elementos ficam evidentes no texto: o caráter retrospectivo e a atuação do próprio jornal no trabalho de articulação das ocorrências que culminaram com o 31 de março. Constrói dessa maneira, uma autoridade para si e para os demais grupos colocando-se como um veículo que “registrou numerosas vezes sua estranheza ante a cada vez maior ilegalidade em que ia mergulhando o governo federal, apelando ao patriotismo dos responsáveis pela coisa pública”. Tal recurso funciona na narrativa como o “antes” a informar
o acontecimento principal, numa pretensão de construir os indícios, postos em cena, que conduziriam ao golpe, mas, para o jornal, a despeitos de seus esforços:
[…] os clamores foram vãos. […] E a sementeira vermelha se tornou cada dia mais abundante, não demorando a produzir os seus amargos e venenosos frutos.
Toda a justificativa para episódio passa a ser centralizada em uma luta contra o “comunismo” e uma oposição radical entre aqueles que defendiam a ordem e a “sementeira vermelha” que na tessitura jornalística é metaforicamente apresentada como erva daninha, de frutos “amargos e venenosos”, daí a urgência de cortá-la pela raiz, não por acaso, logo que assumem o poder, os militares, aliados a líderes políticos como Ademar de Barros, Carlos Lacerda e Magalhães Pinto, dentre outros, iniciaram a operação “limpeza”.
Enquanto ganhava corpo, no governo, a tendência para o abuso de poder e o desrespeito aos outros Poderes da Republica, submetiam-se as Forças Armadas ao duro vexame de assistir ao apoio que a tais atos era dado por alguns oficiais colocados em postos de direção. (…) As sucessivas paralisações do país mediante greves que não nasciam dos trabalhadores, mas de uma cúpula política bem engordada em cômodas posições de falsa liderança, falsa porque armada à custa do governo, ensombreciam ainda mais o ambiente nacional. (…) Finalmente, no lamentável comício do dia 13, na Guanabara, o que se viu e ouviu foi, diante dos chefes militares, a pregação aberta da revolução e do descumprimento da Constituição (…).
Nesse trecho podemos perceber uma síntese das principais ocorrências do mês de março que justificam o que se vivia naquele momento. Nesse caso, embora em um tempo bastante curto, os eventos mencionados perderam sua condição de notícia e já figuram como elemento explicativo em uma dada ordem de ocorrências. Até aqui podemos ainda
compreender como a tessitura obedece a uma ordem lógica de significação, um bom exemplo que nos ajuda a perceber o trabalho de mediação efetivado pelo veículo. A partir do texto, tivemos a instauração de um problema inicial, ou seja, a ampliação dos chamados grupos de esquerda no país, em segundo lugar, as conseqüências desse fato, que podemos constatar com os momentos de tensão e irrupção naquela ordem, peripécias que instauravam incerteza naquele cotidiano e por fim, a ação para combatê-las:
São claros os termos do manifesto do comandante do II Exercito. Não houve rebelião contra a lei, mas uma tomada de posição em favor da lei. […] Ora, a pátria estava ameaçada pelo comunismo, que o povo brasileiro repele. Os poderes constitucionais haviam sido feridos de morte, tantos os desrespeitos à Constituição, à lei, ao regime federativo. E a ordem periclitava com a quebra de disciplina e de hierarquia nas Forças Armadas […].
Nesse caso, percebe-se que o editorial se esforça para reunir um conjunto de justificativas que enquadram o acontecimento em uma cadeia explicativa: “a ilegalidade do governo federal”, a “sementeira vermelha”, “o comício da Guanabara” “a pregação aberta da revolução”, etc. É o momento da ação no qual se misturam as ansiedades daqueles grupos sociais, suas posições ideológicas divergentes e as formulações semânticas do acontecimento. A atuação do jornal na efetivação daquelas ocorrências é percebida, principalmente, quando constrói, através do discurso, significados que ressaltavam a positividade e necessidade daquelas ações. Para ele, a tomadas de poder pelos militares não deveria ser vista como “descumprimento legal”, mas, sim como a “defesa da legalidade” num “movimento que empolgou” o país. Sob o caráter ideológico o evento é narrado como conseqüência natural e até previsível dentro do conjunto de outras ocorrências. O foco das explicações, que se situa em regressos a momentos imediatamente anteriores a ele, nos sugere um desmoronamento progressivo da ordem estabelecida o que, ainda segundo o jornal, abonaria qualquer ação em defesa da ordem:
Assim se deve enxergar o movimento que empolgou o país. Representa, fora de duvida, um momento dramático de nossa vida, que felizmente termina sem derramamento de sangue. E termina com a vitória do espírito da legalidade, restabelecido o primado da Constituição e do Direito.
Como objeto de mediação o jornal coloca em cena outra série de questões que operam com dimensões temporais numa ordenação de significados que situa as ocorrências em um campo de compreensão marcada pelos pressupostos de historicidade daquele momento, construindo assim, uma ordenação lógica de maneira a fazer da narrativa mais que um simples encadeamento de eventos. Embora aqueles acontecimentos sejam novos em relação à ordem já estabelecida, aspira-se colocá-los como parte de outra ordem, que tanto pode agregar elementos de continuidade como de descontinuidade, dessa forma pretende-se ainda retirar-lhes o caráter de irracionalidade e imprevisibilidade e, sobretudo, destituir-lhe do status de novidade e, é dessa maneira, que começam a ser inseridos em uma ordenação temporal circundado por outros eventos, apresentados entre uma cadeia que o precede – como demonstrada no editorial – e outra que lhe será ulterior. Durante as duas décadas em que os militares permaneceram no poder, a atuação do jornal foi quase sempre de apoio aberto às suas ações, mudando de postura somente em fins dos anos 701 quando outros acontecimentos marcam uma ruptura naquele cenário, como veremos adiante. Vejamos o editorial do dia 04/12/66:
Aposte no Brasil - esta é uma das frases que este jornal vem publicando em sua campanha de confiança no Brasil. (…) As dificuldades são grandes, ninguém ignora. Mas não surgem da incapacidade do brasileiro nem da falta de recursos materiais e intelectuais do país. Surgem, como é sabido, de uma serie de contingências, tantas delas oriundas de um passado de dissipação. (…) Os derrotistas gostariam de derrotar o Brasil. 1
O texto, Contando a História da Ditadura Militar: Grande imprensa e a construção da democracia no Brasil Democrático, demonstra como alguns meios da grande imprensa no Brasil tentaram construir para si uma memória sobre sua ação, muitas vezes de vítima ou de resistência ao regime ditatorial que nem sempre correspondia à sua atuação durante todo o período.
Não o conseguirão, é claro, porque contra o desejo deles há a vontade de cada um de nós que confiamos, há a nossa vontade - a vontade de todos aqueles que sabem que a força de vontade constrói e que o ódio, o ressentimento, o desânimo são o pior dos cimentos para a unidade e o progresso de uma nação. Diga conosco: Confiamos no Brasil “2.
Após dois anos da tomada de poder pelos militares, o jornal ainda mantém sua postura ressaltando os mesmos ideais da união da pátria, da nação e do progresso. Certamente a escritura da Folha de São Paulo sobre as ocorrências desencadeadas naqueles dias ajudou a corroborar com os argumentos do militares sobre as necessidades da instauração do regime. O evento foi apresentado como o caminho natural e necessário tomado diante da situação de um país com governo “desgarrado”, segundo editorial do dia 22 de março de 1964. No dia primeiro de abril, Ademar de Barros, um dos principais articuladores do evento já oferecia no jornal uma extensa proclamação na qual explicava os motivos que justificavam aquelas ações. Embora o jornal já naquela época se dissesse plural, não há a preocupação em apresentar outras reflexões que relativizassem aquelas ocorrências. Com satisfação o jornal narrava à nação a instauração da “revolução democrática” como chamei atenção, termo cunhado tanto pelos militares como pelos grupos políticos que apoiaram o golpe e, com qual, a Folha passa a se referia ao episódio durante quase todo o regime ditatorial, dessa maneira, nas palavras do então governador de São Paulo, Ademar de Barros, em sua proclamação:
Foi esse o sentido, o querer de nossas gloriosas Forças Armadas (…) comungando com o povo paulista na sua heróica decisão de restituir o Brasil à autenticidade de seu destino histórico. Essas gloriosas forças do II Exército e ainda de toda sua oficialidade e soldados, se unem ao povo brasileiro para a luta final contra a bolchevização do país. (…) vimos, nesta hora sacrossanta de nacionalidade conclamar as forças de mar e ar de todo o país, os outros exércitos, para que irmanados, possamos defender a legitimidade democrática da nação (…) à união 2
(FOLHA DE S.PAULO: 04 de dezembro de 1966)
santa nesse momento histórico. (FSP; 1C-p. 03: 01/04/1964) (grifos nossos).
Todas as projeções e retrospectivas postas em ação, naquele mês de março, são arregimentadas em torno da construção simbólica daquele acontecimento. Não porque fosse o único destino possível naquela conjuntura, mas porque a narrativa desencadeada sobre aquele dia o construiu como tal. Dessa forma a ocorrência do dia 31 de março passa a ser explicada tanto pelas projeções realizadas no passado, mesmo as que não lograram êxito, como pela rápida escritura de retrospecção que queria dar à tomada de poder pelos militares status de “momento histórico” quando não de “destino” irrevogável. O acontecimento começava ali ser construído como histórico a partir do potencial de ocorrência agregadora que apresentava. Por isso, mesmo sendo nomeado por Ademar de Barros como ocorrência histórica, por motivos totalmente diferentes daqueles dos grupos ligados à resistência - posto que para o primeiro é narrado como continuidade, e para os últimos como ruptura do processo histórico – ele mantém o estatuto porque conseguiu se configurar naquele momento como instante de inflexão que marca a história do país. A partir do momento em que o Golpe deixa de ser uma notícia, ou seja, perde a condição de uma novidade cotidiana apresentada a partir de acontecimentos que se encadeiam, e deixa de ser tomando em primeiro plano como objeto de escritura, passa se apresentar como objeto de matérias produzidas e veiculadas principalmente nas chamadas datas convocantes; é quando os meios de comunicação buscam analisar, refletir e apresentar versões e a instituir lugares de lembrança sobre ele. O evento passa a ser assumido na categoria de histórico e a figurar dentro de um quadro de disputas de memórias emblemáticas, sendo inscrito no rol dos grandes acontecimentos históricos. Desta forma, organiza-se uma ação que forja e sistematiza os rastros de 1964 sujeitos a uma narrativa que os torna memoráveis. Monumentaliza-se o evento que agora é oferecido como acontecimento exemplar, submetido a uma dinâmica de esforços múltiplos e conflitantes que competem para dar um sentido ao passado, tempo que assume o lugar de grandes experiências humanas que produz lições para o presente.
Passado 45 anos de 1964, a imagem do Jornal Folha de São Paulo como um jornal “crítico, democrático, apartidário e plural” é o que podemos definir como um bem articulado projeto de re-significação da memória e uma engenhosa operação de esquecimento programado sobre sua conduta de apoio e alinhamento com os governantes militares durante quase todo o período em que esses permaneceram no poder. Para a grande maioria dos leitores do jornal, ele é lembrando por seu engajamento na campanha da anistia, sendo sua imagem imediatamente associada a grandes campanhas em defesa da democracia como as Diretas em 1985, ou o movimento pelo impeachment do presidente Collor de Melo, em 1992, marcos estabelecidos pelo próprio jornal para destacar sua atuação política. Entretanto, além da atuação social e política exercida por esse grupo de mídia, frente às ocorrências daquele ano de 1964, destaco outra questão que considero igualmente importante para compreendermos as formulações de sentidos sobre o passado e os acontecimentos emblemáticos em nossos dias: o agenciamento de significados e a produção de narrativas de caráter histórico pelos meios de comunicação. Refiro-me, principalmente, a uma sofisticada engenharia de sistematização de conceitos e metodologias que ajudam na composição de poderosas tessituras nas quais, passado, presente e futuro são constantemente mobilizados. Uma atitude de reflexão sobre o passado que se situa fora do campo da história e que se elabora em um tipo particular de escrita. Esta, por sua vez, congrega tanto elementos do campo historiográfico tradicional, como do próprio lugar da produção midiática. FONTES E BIBLIOGRAFIA História da Folha – documento online - História da Folha de São Paulo, retirado do Site Folha On-lineCirculo Folha no endereço: http://www1.folha.uol.com.br/folha/circulo/historia_folha.htm em 27/09/2007. Folha 80 anos – documento online - retirado do site Folha On-line no endereço http://www1.folha.uol.com.br/folha/80anos/ em 27/09/2007. Projetos Editoriais: 1981, 1985, 1985-86, 1986-7, 1988-89, 1997 – documentos online - retirados de site Folha On-Line – Círculo Folha – Projeto Editorial http://www1.folha.uol.com.br/folha/circulo/projeto_editorial.htm em 26/09/2007. 1964 – 2004: 40 anos do Golpe – Caderno Especial da Folha – retirado do site da Folha – Almanaque Folha Online no endereço: http://almanaque.folha.uol.com.br/ditadura.htm em 26/09/2007. Jornal Folha de São Paulo. São Paulo parou ontem para defender o regime - Caderno Brasil, 20/03/ 1964, no endereço: http://almanaque.folha.uol.com.br/brasil_20mar1964.htm Jornal
Folha de São Paulo. Aposte no Brasil http://almanaque.folha.uol.com.br/brasil_04dez1966.htm
Editorial;
4/
12/1966.
no
endereço:
BIBLIOGRAFIA CANCLINI, Néstor Garcia. Cidades e cidadãos imaginados pelos meios de comunicação. Campinas, Revista Opinião Pública, vol VIII, no. 1, 2002.pp. 40-53. ________. Diferente, desiguais e desconectados. Rio de Janeiro, Ed. UFRJ, 2007. ________.Leitores, Espectadores e internautas. São Paulo. Ed. Iluminuras, 2008. CERTEAU, Michel. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. RÜSEN, Jörn. Razão Histórica – Teoria da história: os fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora UNB, 2001. RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. Tomos I, II, III, São Paulo: Papirus Editora, 1997. ________. História e Verdade. Rio de Janeiro: Forense, 1968. RICOEUR, Paul. Événement et sens, in Raisons Pratiques, No. 02 l’événement en perspective, Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris. 1991. ________. A Memória, a história, o esquecimento. São Paulo. Ed.Unicamp. 2007.