Ditaduras​ ​na​ ​América​ ​Latina:​ ​História,​ ​Literatura​ ​e ...

  ​ ​Ditaduras​ ​na​ ​América​ ​Latina:​ ​História,​ ​Literatura​ ​e​ ​Ditadura     Professores   Tiago​ ​Martins​ ​e​ ​Vicente​ ​Schneider     ●   ...
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​ ​Ditaduras​ ​na​ ​América​ ​Latina:​ ​História,​ ​Literatura​ ​e​ ​Ditadura  

  Professores   Tiago​ ​Martins​ ​e​ ​Vicente​ ​Schneider     ●   “A​ ​história​ ​é​ ​complexa​ ​e​ ​por​ ​isso​ ​mesmo​ ​requer​ ​reflexão,​ ​uma​ ​boa​ ​pesquisa,​ ​leitura”.   (Pérsio​ ​Árida,​ ​economista,​ ​preso​ ​e​ ​torturado​ ​aos​ ​18​ ​anos)     “Se​ ​até​ ​pessoas​ ​que​ ​participaram​ ​do​ ​período​ ​têm​ ​essa​ ​confusão,​ ​imagina​ ​os​ ​garotos​ ​que​ ​moram  na​ ​periferia​ ​de​ ​grandes​ ​cidade,​ ​que​ ​não​ ​têm​ ​acesso​ ​a​ ​essa​ ​história​ ​nas​ ​escolas”.   (Marcelo​ ​Rubens​ ​Paiva,​ ​escritor​ ​cujo​ ​pai​ ​foi​ ​preso,​ ​torturado​ ​e​ ​morto​ ​pelos​ ​militares​ ​em​ ​1971).    “As​ ​novas​ ​gerações​ ​têm​ ​muitos​ ​poucos​ ​pontos​ ​de​ ​contato​ ​com​ ​as​ ​outras​ ​gerações,​ ​não​ ​têm  continuidade.​ ​Para​ ​eles​ ​a​ ​ditadura​ ​é​ ​um​ ​capítulo​ ​remoto​ ​da​ ​história​ ​do​ ​Brasil.​ ​O​ ​nível​ ​de  desconhecimento​ ​é​ ​impressionante”.   (Bernardo​ ​Kucinski,​ ​escritor,​ ​teve​ ​a​ ​irmã​ ​e​ ​o​ ​cunhado​ ​presos​ ​e​ ​mortos​ ​na​ ​Ditadura.​ ​Seus​ ​corpos  continuam​ ​desaparecidos).          ●   ●      

 

 

Em  1974,  a  irmã  de  Bernardo  Kucinski,  professora  de  Química  na  Universidade  de  São Paulo,  é  presa  pelos  militares  ao  lado  do  marido  e  desaparece  sem  deixar  rastros.  O  pai  dela,  dono  de  uma  loja  no  Bom  Retiro  e  judeu  imigrante  que  na  juventude  fora  preso  por  suas  atividades  políticas,  inicia  então  uma  busca  incansável  pela  filha  e depara  com  a  muralha  de  silêncio  em  torno  do  desaparecimento  dos  presos  políticos.  K.  narra  a  história​ ​dessa​ ​busca.             Livros​ ​de​ ​Bernardo​ ​Kucinski​ ​mostram​ ​dores​ ​da​ ​ditadura  José​ ​Castello 

  A  literatura  como  um  exercício  de  libertação:  eis  como  a  pratica  o  escritor Bernardo Kucinski, de quem a Cosac Naify lança a coletânea de contos “Você vai  voltar  pra  mim”,  além  de  relançar  o  premiado  romance  “K”.  Sua  escrita  é  um  exorcismo  dos  dolorosos  anos  da  ditadura  militar  originada  pelo  golpe  de  1964.  Não  é,  porém  —  como  se  pode  temer  em  um  primeiro  instante  —,  uma  “literatura  engajada”,  ou  panfletária.  Kucinski  não  escreve  panfletos,  mas  ficção  da  mais  alta  qualidade.  Nela  incluída  improváveis  histórias  pessoais,  pequenos​ ​sentimentos,​ ​dores​ ​secretas​ ​e​ ​toda​ ​a​ ​miudeza​ ​atroz​ ​de​ ​aflições​ ​que​ ​definem​ ​o​ ​humano.    É  uma  escrita  objetiva,  seca,  substantiva,  como  observamos  no  conto  “O  garoto  de  Liverpool”,  história  de  um  rapaz  “magro,  de  rosto  chupado  e  miúdo,  do  qual  só  se  viam  o  nariz,  a  boca e parte dos olhos”, que vem para o Brasil fazer uma reportagem sobre os índios da Amazônia  e  a  construção  da  Transamazônica  e  acaba  preso,  confundido  com  um  guerrilheiro.  Depois  da  tortura,  é  jogado  em  um  buraco  de  quatro  metros  onde  passa  longos  dias  de  horror.  Só  é  salvo  porque  aparece  um  oficial  que morou na Inglaterra, lhe dá ouvidos e consegue, assim, entendendo  sua  verdadeira  história,  libertá-lo.  A  história  é  feita  não  só  de  grandes  atos,  mas  também  de  pequenos  mal-entendidos.  A  ação  do  acaso  —  a  chegada  inesperada  do  militar  —  tem,  tantas  vezes,​ ​a​ ​mesma​ ​força​ ​que​ ​a​ ​mais​ ​terrível​ ​barbaridade.    Kucinski  nos  mostra,  em  seus  relatos,  os  interiores  da  ditadura.  Não  só  o  grande  sofrimento  —  repressão,  brutalidade,  torturas,  ódio  —  mas  as pequenas dores que quase ninguém  viu.  É  o  caso  do  conto  “A  suspeita”  no  qual  um  grupo  de  amigos  discute,  tempos  depois,  sua  responsabilidade  ou  não  sobre  a  loucura  de  um  homem  considerado,  por  engano,  um  informante  da  repressão.  Admitem  o  erro,  carregam  agora  o  peso  de  um  homem  ter enlouquecido por causa 

 

 

deles.  Mas,  para  se  salvarem,  se  apegam  a  uma  explicação  racional:  “É  como  diz  o  filósofo:  o  homem e suas circunstâncias. O sorriso era do homem, o DNA da loucura também já estava nele e  as  circunstâncias  foram  da  ditadura.  E  ponto  final”.  Kucinscki  não  passa  a  mão  nas  cabeças,  tampouco  nas  consciências,  daqueles  que  tiveram  a  coragem  de  se  engajar  na  luta  clandestina  contra  o  regime  ditatorial.  Reconhece  sua  coragem  e a grandeza de seu esforço, mas os vê, antes  de​ ​tudo,​ ​como​ ​homens​ ​comuns,​ ​que​ ​cometem​ ​enganos​ ​e​ ​deslizes​ ​também.     O  livro  traz  alguns  retratos  preciosos  como  em  “Um  homem  muito  alto”,  a  história  de  um  bravo  militante  que  não  precisou  de  delatores:  sua  própria  altura  incomum  o  denunciou.  Pernalonga,  King  Kong,  Golias  —  teve  muitos  apelidos,  até  passar  a  ser  chamado  de  Jamanta,  codinome  dado  pelos  serviços  secretos.  Escreve  Kucinski:  “Antes  mesmo  de  cair  prisioneiro  da  repressão,  tornou-se  prisioneiro  do  próprio  corpo”.  No  fim,  ao  sair  para  comprar  cigarros,  é  preso  em  um  subúrbio  do  Rio  de  Janeiro.  Condenado  a  dezessete  anos  de  cadeia, uma das penas mais  longas  para  casos  como  o  dele.  “Uma  pena  tão  descomunal  quanto  sua  altura”,  resume,  sem  se  negar​ ​uma​ ​dose​ ​de​ ​humor.    Alguns  contos,  como  “Terapia  de  família”,  passam  apenas  nas  bordas  da  história  política.  Depois  da  Lei  da  Anistia,  um  pai  anistiado  é  tratado  como  o  centro  da  família,  enquanto  o  filho  passa  seus  dias  trancado  no  quarto,  em  fuga  do  mundo.  A  família  —  esgotada  —  decide  submeter-se  a  uma  terapia  familiar.  Surge  então  o  ressentimento  do  rapaz, abatido porque a mãe  só  dava  atenção  ao  pai  herói.  Durante  os  seis  anos  de  cadeia,  embora  enviasse  cartas  para  a  mulher  e  para  a  filha, só lhe destinou o silêncio. As sessões de terapia em família se revezam com  sessões  individuais.  O  rapaz  diz  que  não  procura  emprego  porque  precisa  “arrumar  o  quarto  antes”.  Mas,  ao  terapeuta,  admite:  “A  arrumação  do  quarto  é  uma  desculpa;  eu  passo  as  vinte  e  quatro  horas  do  dia  pensando  em  maneiras  de  destruir  meu  pai”.  A  terapia  fracassa,  o  impasse  afetivo​ ​—​ ​efeito​ ​secreto​ ​da​ ​ditadura​ ​—​ ​derrota​ ​a​ ​família.    Outras  vezes  não,  como  constatamos  na  leitura  de  “Pais  e  filhos”.  Quando  soube  que  o  filho  Augusto  é  suspeito  de  ter  participado  de  um  atentado,  o  dr.  Nicolau  Junqueira,  médico-cirurgião,  fica  possesso.  Depois  de  muito  buscá-lo,  encontra  o filho escondido na casa de  uma  tia.  O  pai  é  um  defensor  intransigente  do  regime  militar.  Um  dia,  o  rapaz  é  intimado  a  entrar  para  o  comando  da  organização  clandestina  a que pertence. Prefere fugir para o Chile. Só um ano  depois,  através  da  mãe,  entrega  ao  pai  seu  endereço em Santiago. Os pais viajam para visitá-lo. O  encontro  é tenso, parece desastroso, até que o doutor convida o rapaz para uma caminhada a dois  pela  cidade.  O  fecho  do  conto  é  especialmente  forte:  “Já  na  rua,  o  velho  médico  colocou  o  braço  em  torno  do  ombro  do  filho,  e  assim  caminharam,  lado  a  lado,  abraçados,  por  muitos  e  muitos  quarteirões”.  Sem  trocar  uma  única  palavra.  O  afeto  mais  profundo  e  difícil,  muitas  vezes,  não  encontra palavras que a ele correspondam. Só se diz em silêncio. Sentimentos paradoxais, como a  ironia,  o  desconcerto,  o  amor  e  o  humor,  Kucinski  nos mostra, também fazem parte da história da  ditadura​ ​militar.