XLI Congresso Nacional dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal

TESE: CRISE HÍDRICA: LIÇÕES PRELIMINARES. Fagner Vilas Boas Souza1

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Procurador do Estado de São Paulo. Mestre em Direito Urbanístico pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Especialista em Direito Público e Direito Municipal. Email: [email protected]

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CRISE HÍDRICA2: LIÇÕES PRELIMINARES.

SUMÁRIO: 1. Introdução - 2. Cenário e desafio. – 3. Evolução da legislação hídrica. – 4. Apropriação pelos ramos específicos do Direito – 4.1. Apropriação pelo Direito Urbanístico. –

4.2 Apropriação pelo Direito Ambiental – 4.3 Apropriação pelo Direito de Águas. – 4.3.1 Planos de Recursos Hídricos – 5. Proposição. – 6. Conclusões. – 7. Referências bibliográficas.

A busca por soluções para a escassez hídrica nunca esteve tão presente na pauta dos administradores públicos. Ao procurador do estado, mais do que agir de ofício, cumpre compreender as múltiplas facetas de uma vulnerabilidade ambiental cada vez mais presente na vida dos cidadãos. A ele é fundamental conhecer a evolução legislativa do trato da água, entender a necessidade de interação dos diversos ramos do direito e saber identificar instrumentos que possam lidar de forma preventiva com a escassez hídrica.

1. INTRODUÇÃO.

A recente diminuição do volume de chuvas nas cabeceiras dos rios e represas que abastecem a Grande São Paulo e muitas outras regiões do país levou os Poderes Públicos, comunidade científica e sociedade a antecipar uma série de discussões a respeito da vulnerabilidade hídrica do Brasil. Ocorre que a segurança hídrica dos centros urbanos está relacionada com o tratamento dispensado aos elementos ambientais que os cercam e que muitas vezes deram razão de ser a cada um deles. A ausência de um correto planejamento urbano em algum momento da história pode trazer prejuízos significativos para os cidadãos de uma determinada região. Por isso, a adoção de instrumentos e políticas destinadas à racionalização do uso da água deve estar na rotina do administrador público, que assessorado por advogados públicos não pode apostar no caos ambiental, mas na utilização de instrumentos e mecanismos que lhe permita gerenciar esse recurso com suas políticas públicas.

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Neste trabalho, deve ser compreendida como o evento crítico iniciado em 2014 em várias partes do país, sobretudo no Estado de São Paulo, no qual os níveis de seca e redução de oferta de água atingiram níveis preocupantes e poucas vezes vistos na história.

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Portanto, para entender e saber lidar com a escassez hídrica deve-se estudar a gerência dos recursos hídricos em todos os seus aspectos, considerando sobremaneira que “a água, bem essencial ao desenvolvimento da vida em qualquer de suas espécies, sofre severas restrições em seu uso, representadas por causas de degradação de sua qualidade, em especial por poluição de diversas ordens, com destaque à poluição dos esgotos domésticos e por efluentes industriais”. A água é um bem a ser gerido, um bem de gestão. A gestão dos recursos hídricos e seus conflitos assumem, nesse contexto, vital importância para a realização das políticas públicas da urbe. E, embora o Brasil possua mais de 10% da água doce superficial do planeta, sua distribuição é desigual em relação à concentração de população, fazendo de algumas cidades verdadeiras áreas de intenso estresse hídrico.3 De fato, a garantia de água para os moradores das grandes cidades é um dos principais desafios desse século. Não é só, segundo relatos4 da secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo, dados da Organização Mundial da Saúde mostram que melhorias no sistema de fornecimento de água potável, saneamento, higiene e gerenciamento de recursos hídricos poderiam evitar 10% das mortes causadas por doenças e 6,3% de todas as mortes do mundo. Não por outra razão, “identificados os transtornos do tratamento jurídico diferenciado dado à água, alguns países, na década de 1990, editaram leis que buscaram dar tratamento jurídico unitário, sistematizando a política hídrica”. 5 O regime legal atribuído à água passou, então, “a ser pautado em política de gestão provida de fundamentos, diretrizes e instrumentos basilares”.6 Logo, para o caso brasileiro, resta a indagação: quais as noções básicas para se evitar conflitos em torno da crise hídrica?

2. CENÁRIO E DESAFIO.

Com mais de 8,5 milhões de quilômetros quadrados, o Brasil possui mais de 55 mil quilômetros quadrados de água. A topografia brasileira também é diversificada e inclui morros, montanhas, planícies, planaltos e cerrados. Quanto ao seu sistema hídrico, o Brasil 3

WHATELY, Marussia; DINIZ, Lilia Toledo. Água e esgoto na grande São Paulo: situação atual, nova lei de saneamento e programas governamentais propostos. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2009, p.17. 4

SÃO PAULO. Secretaria do Meio Ambiente / Coordenadoria de Educação Ambiental. Billings. São Paulo: SMA/CA, 2010, p. 15. 5

D’ISEP, Clarissa Ferreira Macedo. Água Juridicamente Sustentável. São Paulo: RT, 2010, p.61.

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Ibidem.

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tem oito grandes bacias hidrográficas7 que drenam para o Atlântico e seus rios mais importantes são o Amazonas (o maior rio do mundo); o Paraná e seu maior afluente, o Iguaçu; o Negro; o São Francisco; o Xingu; o Madeira e o Tapajós.8 Ocorre que nas últimas décadas o país experimentou uma intensa densificação e verticalização do assentamento urbano, com aumento da impermeabilização dos solos. Esse processo causou a impermeabilidade da terra dentro das bacias hidrográficas, fazendo das áreas urbanas as principais vítimas da escassez hídrica. Um exemplo marcante é o caso da bacia hidrográfica do Alto Tietê, “onde a urbanização causou a impermeabilidade de 37% da terra dentro do rio”. 9 Veja, ainda que o homem disponha de tecnologia para conquistar e dominar as suas ações, ele ainda não consegue o domínio sobre tudo; em especial quanto às mudanças climáticas e aos fenômenos naturais, seu poder ainda é limitado.10 As águas revestem-se de variadas formas de contato com outros elementos, recebendo a cada momento influência de normas jurídicas subsidiárias, ou seja, um elemento a princípio unitário, mas alvo de muitos outros regimes jurídicos, em especial das normas ambientais e urbanísticas.11

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Uma bacia hidrográfica ou bacia de drenagem de um curso de água é o conjunto de terras que fazem a drenagem da água das precipitações para esse curso de água e seus afluentes. A formação da bacia hidrográfica dá-se através dos desníveis dos terrenos que orientam os cursos da água, sempre das áreas mais altas para as mais baixas. Essa área é limitada por um divisor de águas que a separa das bacias adjacentes e que pode ser determinado nas cartas topográficas. 8

BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas – IBGE. Sitio eletrônico: http://www.ibge.gov. br/home. Acessado em 01 de maio de 2015. 9

JOHNSSON, Rosa Maria Formiga, KEMPER, Karin Erika. Intitucional and Policy Analysis Of River Basin Management. The Alto-Tietê River Basin, São Paulo, Brazil. Disponível em http://www-wds. worldbank.org/external/default/WDSContentServer/IW3P/IB/2005/06/16/000016406_20050616092016/Rendere d/PDF/wps3650.pdf. Acessado em 21 de abril de 2015. 10

As mudanças das estações obedecem a uma simetria do movimento de translação da Terra, que alteram o clima: frio acima da linha do Equador e calor na linha abaixo; outrora, frio na linha abaixo do Equador e calor na linha acima. Nesta mutação, as calotas geladas dos Polos Norte e Sul proporcionam o deslocamento de ventos, influenciando o aparecimento de grandes correntes marítimas, que se interligam nos oceanos, até chegar aos continentes. A partir daí, essas correntes marítimas, os ventos e a temperatura irão definir em cada ponto do planeta, o período e a intensidade das chuvas, bem como o volume dos estoques hidrológicos de cada bacia hidrográfica. In: DELLAGNEZZE, René. Artigo: Política Nacional de Recursos Hídricos – Fundamentos – Competência de outorga de concessão entre agências reguladoras e fiscalizadoras - Análise de caso in concreto. Disponibilizado em http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_ artigos_ leitura&artigo_id=2576. Acessado em 22 de abril de 2015. 11

A questão não é simples, a propósito, como pondera Clarissa D’Isep ao desenvolver sua tese sobre o diálogo das fontes jurídicas em relação ao microssistema hidronormativo, “não só pela complexidade inerente ao elemento água, que faz com que igual complexidade de normas se aglutinem (normas da água, ambientais, de saneamento etc), mas também a complexa dinâmica do cenário socioeconômico em que vivemos”. D’ISEP. Clarissa Ferreira Macedo. Op. cit., p. 71.

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Por isso, combater a escassez hídrica nunca foi fácil, ao estudar as várias formas como a água foi tratada é possível verificar a dificuldade de sintetizar a realidade multiforme dela que, além de agregar dados científicos, históricos e sociais, deve interagir com as ciências jurídicas e com a administração pública. No plano constitucional, é possível conferir que a Constituição Federal de 1988 atribuiu à União a competência para instituir o sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga de direitos de seu uso e, em conjunto com os Estados e Municípios, a competência para registrar, acompanhar e fiscalizar as concessões de direitos de pesquisa e exploração de recursos hídricos e minerais em seus territórios (inciso XIX, do art. 21 e inciso, XI, do art. 23). No âmbito infraconstitucional, a Lei Federal nº. 9433/9712 criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos e disciplinou, para tanto, seus: i) fundamento, ii) objetivos, iii) diretrizes gerais de ação e, iv) instrumentos. A Política de Recursos Hídricos tem por objetivo assegurar que a água, recurso natural essencial à vida, ao desenvolvimento econômico e ao bem-estar social, possa ser controlada e utilizada, em padrões de qualidade satisfatórios, por seus usuários atuais e pelas gerações futuras. Com isso, cabe ao Poder Público assegurar a efetividade desse direito intergeracional de acesso à água, em padrões de qualidade adequados aos respectivos usos, bem como a utilização racional e integrada dos recursos hídricos, além da prevenção e a defesa contra eventos hidrológicos críticos de origem natural ou decorrentes do uso inadequado dos recursos naturais. Já na perspectiva de recurso necessário a toda cidade ou núcleo urbano, cabe aos Municípios o fornecimento da água nas melhores condições técnicas e econômicas para os usuários, podendo ser fornecida diretamente pela Prefeitura ou por terceiros; mas com a certeza de que seja posto à disposição de todos os habitantes da área urbana, em quantidade e qualidade adequadas de utilização.

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BRASIL. Lei Federal nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997. Institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, regulamenta o inciso XIX do art. 21 da Constituição Federal, e altera o art. 1º da Lei nº 8.001, de 13 de março de 1990, que modificou a Lei nº 7.990, de 28 de dezembro de 1989. Disponível em . Acessado em 28 de abril de 2015.

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Na verdade, a política de recursos hídricos indica medidas conjuntas e articuladas da União, dos Estados-membros e dos Municípios, sobremaneira entre Estados-membros e Municípios. Trata-se do federalismo cooperativo, no qual há uma mudança dos poderes de decisão nos níveis de governo, em benefício de um mecanismo, mais ou menos complexo e formalizado, de negociação e acordo intergovernamental, havendo uma interdependência e coordenação das atividades governamentais13. Contudo, para assimilar esse nível de responsabilidades atribuído a cada ente, é necessário também compreender a evolução legislativa do tema.

3. EVOLUÇÃO DA LEGISLAÇÃO HÍDRICA.

A legislação nacional foi inicialmente organizada pelo Código Civil de 1916, que imaginava a água infinita e abundante, recaindo sua regulamentação sobre conflitos de vizinhança que delas pudessem decorrer, propriedade das nascentes e propriedade das águas das chuvas, sempre com a tônica do direito privado.14 Aquele Código regulamentava os recursos hídricos como bens particulares ou públicos de acordo com o terreno onde se encontravam. Assim, os proprietários podiam dispor deles conforme a sua vontade, desde que não causassem prejuízos à vizinhança.15 No entanto, a partir da Constituição Federal de 1988 houve uma grande mudança na questão do domínio das águas, pois sob a influência da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar de 1982,16 o constituinte internalizou importantes institutos, transferindo o domínio dos recursos hídricos à União ou aos entes federados. Em homenagem ao sistema federativo, foi dada competência privativa à União para legislar sobre águas (inciso IV, do art. 22), bem como conferido à União, aos Estados e ao Distrito Federal, competências concorrentes para legislar sobre as matérias intrinsicamente relacionadas com as águas (incisos VI, VII, VIII e XII, do art. 24). Quanto aos Municípios,

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BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O princípio da subsidiariedade: conceito e evolução. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 26-28. 14

D’ISEP. Clarissa Ferreira Macedo. Op. cit., p. 116.

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VIEGAS, Eduardo Coral. Visão jurídica da água. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 76.

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Convenção assinada em 10 de dezembro de 1982 em Montego Bay – Jamaica entrou em vigor em âmbito internacional em 16 de novembro de e no Brasil, em 1995, com o Decreto n. 1.530, datado de 22 de junho de 1995. Trata-se de positivação de costume, que há muito já vinha sendo praticado pelos países, fato este, que pode explicar o êxito no respeito a suas normas. In: ZANIN, Renata Baptista. O direito do mar e a legislação brasileira: influência da Convenção de Montego Bay na Constituição Federal. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC. São Paulo: ESDC, n.16–jul./dez.2010, p. 83-97.

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coube-lhes legislar sobre assuntos de interesse local e suplementar a legislação federal e a estadual no que couber (incisos I e II, do art. 30). Já em relação às competências exclusivas, restou à União instituir o sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga de direitos de uso; explorar, direta ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos d’água, em articulação com os Estados nos quais se situam os potenciais hidroenergéticos; articular sua ação em um mesmo complexo geoeconômico e social, visando o desenvolvimento e a redução das desigualdades regionais, dando prioridade para o aproveitamento econômico e social dos rios e das massas de água represadas ou reparáveis nas regiões de baixa renda, sujeitas às secas periódicas e; destinar recursos à irrigação (incisos XII e XIX, do art. 21; §2º, inciso IV, do art.43 e; art. 42). Quanto às competências comuns, atribui-se aos entes federados os deveres de: proteger o meio ambiente, combater a poluição em qualquer de suas formas, preservar as florestas, a fauna e a flora; promover a melhoria das condições de saneamento básico e; registrar, acompanhar e fiscalizar as concessões de pesquisa e exploração de recursos hídricos e minerais em seus territórios (incisos II, VI, VII, IX e XI, do art. 23). Não distante, o art. 225, dedicado à proteção ambiental, bem como o art. 170, que traz o rol dos princípios da ordem econômica, tocaram diretamente no trato dos bens ambientais17, como as águas. Especificamente quanto ao domínio dos recursos hídricos, a Constituição Federal atribuiu à União os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais (inciso III, do art. 20) e aos Estados-membros sobraram as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União (inciso I, do art. 26). Em outras palavras, a nova ordem constitucional alterou substancialmente o domínio das águas, extinguindo as águas particulares, ao mesmo tempo em que atribuiu à União, Estados e Municípios uma série de competências exercíveis exclusivamente em relação aos recursos hídricos. 17

A Constituição Federal de 1988 representa um marco na legislação ambiental brasileira, delimitando áreas consideradas como patrimônio nacional e dedicando um capítulo inteiro à proteção ambiental (art. 225), estabelecendo o direito ao ambiente sadio como um direito fundamental do indivíduo. De forma inovadora, estabelece a proteção do meio ambiente como princípio da ordem econômica, no artigo 170. In: LEMOS. Patrícia Fraga Iglecias. Direito Ambiental, 2 Ed., São Paulo: Atlas, 2008, p. 47.

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Mais tarde, com o reconhecimento da importância da gestão da água, o ordenamento avançou com a edição da Lei de Recursos Hídricos que incorporou uma concepção da água como direito humano, notadamente em função da leitura do art. 225 da Constituição Federal combinado com o art. 2º da Lei 6.938/8118, que juntos justificam a qualificação da água como um direito fundamental no ordenamento pátrio, tendo em vista sua correlação com o direito à vida digna. A bem da verdade, essa leitura humana faz parte de um contexto muito maior, com grande expressão nos idos de 2010, no episódio conhecido por Guerra da Água, 19 caso paradigmático de tentativa de privatização do sistema de abastecimento ocorrido em Cochabamba na Bolívia, em que a água foi considerada – de forma expressa – um direito humano, através da Resolução nº 64/292, de 28 de julho de 2010, editada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas20, recentemente ratificada com a declaração do Ano Internacional pela Cooperação da Água pela Organização das Nações Unidas – ONU, em 2013.

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BRASILIA. Lei Federal nº. 6.938, de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências. Casa Civil da Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6938.htm. Acessado em 22 DE ABRIL DE 2015. 19

Conflito civil ocorrido em Cochabamba (Bolívia), entre 4 e 11 de abril de 2000, opondo milhares de camponeses e trabalhadores das áreas urbanas ao governo do departamento de Cochabamba e à multinacional Bechtel, dos Estados Unidos - que assumira no início de 1999 o serviço de água e esgoto do departamento. No dia 11 de abril de 2000, após uma semana de uma verdadeira guerra pela água, o governo de Cochabamba cancelou o contrato de concessão com a Bechtel e baixou a tarifa ao patamar anterior à privatização. Outra conquista do movimento social na guerra da água foi a revogação da Lei federal 2.029, promulgada em setembro de 1999, que conferia respaldo legal à privatização dos serviços de água no país e estabelecia reajustes tarifários vinculados à variação do dólar e pagamento pelo direito de uso dos recursos hídricos concedidos às companhias privadas. Além da revogação da Lei 2.029, os campesinos conseguiram aprovar a Lei 2.066, elaborada a partir das propostas dos movimentos sociais, definindo o uso da água segundo os usos e costumes das comunidades, valorizando o manejo tradicional dos recursos hídricos. In: FIORI, Mylena. GONÇALVES, José Alberto. Exportação pode gerar 2º guerra de água. Revista Carta Maior. Disponível em http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Movimentos-Sociais/Exportacao-pode-gerar-2%AA-%27Guerra-daagua%27/2/466. Acessado em 23 de abril de 2015. 20

Enquanto a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas declara a obrigatoriedade e a necessidade da resolução ser seguida na prática pelos Estados sob o fundamento da opinio juris, há quem defenda que, por se tratar de soft law, a mesma seria regra não vinculante e sem execução imediata. Assim, para esclarecer e aprofundar essa questão, o Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas aprovou duas Resoluções: n.º 15/9 (A/HRC/RES/15/9), em 30 de setembro de 2010, e n.º 16/2 (A/HRC/RES/16/2), de 24 de março de 2011, as quais atrelam o acesso à água potável e ao saneamento básico a outro conjunto de direitos relacionados a esta categoria – como o direito à saúde física e mental, bem como com o direito à vida e à dignidade humana, entre outros – existentes em tratados e convenções já ratificados pelos países membros, buscando garantir cumprimento imediato por parte dos signatários dos mesmos. In: ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS – ONU. A ONU e a água. Disponível em . Acesso em 23 de abril de 2015.

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Com isso, ainda que por vezes o ordenamento experimente pequenos retrocessos jurídicos21, hoje o acesso à água não apenas é reconhecido como um direito humano, bem como essa concepção deve nortear as demais legislações afetas ao tratamento da gestão das águas.22

4. APROPRIAÇÃO PELOS RAMOS ESPECÍFICOS DO DIREITO.

Da mesma maneira que reconhecer a água como direito humano, entender a apreensão do tema pelas disciplinas jurídicas é igualmente fundamental.

4.1. APROPRIAÇÃO PELO DIREITO URBANÍSTICO. No ordenamento pátrio, o urbanismo foi disciplinado pela Lei nº 10.257/0123, autointitulada Estatuto da Cidade, que trouxe a imposição do plano diretor, instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana. Trata-se de parte integrante do processo de planejamento municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, integrantes de região metropolitana ou aglomeração urbana, sob pena de responsabilidade do prefeito. Logo, a urbanização por meio da execução do plano diretor, sobretudo nas grandes cidades, passa irremediavelmente pela questão das águas, na medida em que os administradores públicos e demais responsáveis pelo bem-estar da população e integridade dos equipamentos públicos urbanos não podem apostar no caos ambiental, mas na utilização

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O novo Código Florestal trazido pela Lei Federal nº 12.651, de 25 de maio de 2012, em algumas situações, fixou condições mais brandas para a recomposição da mata ciliar, permitiu a redução de áreas de reserva legal e a diminuição da cobertura vegetal em áreas naturais; alterações que atingem mesmo que indiretamente a qualidade da água. 22

Em relação às enchentes, a recente Lei Federal nº. 12.608/12, legislação antienchentes, atende ao direito humano, pois oferece uma resposta aos desastres naturais que nos últimos anos atingiram diversas cidades brasileiras e causaram incontáveis prejuízos materiais e milhares de vítimas, buscando superar a fragilidade e o atraso institucional na constituição de uma plataforma nacional de redução de riscos ao incorporar componentes de planejamento e gestão voltadas para a prevenção e mitigação de impacto. In: ROSSATO, Luciano Alves (coord.). Temas atuais da Advocacia Pública. 1 Ed. São Paulo: Jus Podivm, 2015, p 423/440. 23

BRASÍLIA. Legislação. Lei Federal nº. 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Casa Civil da Presidência da República. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_ 2001/l10257.htm. Acessado em 01 de maio de 2015.

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de instrumentos e mecanismos que lhes permitam prevenir e mitigar as consequências adversas decorrentes da escassez hídrica. A essencialidade das águas guarda relação direta com o trato que é dispensado a elas, revelando-se um elemento de suma importância na vida de uma cidade e, portanto, um bem que exige ser sistematicamente cuidado, gerido. Desta forma, o tema é apropriado pelo Direito Urbanístico que orientado pelo Estatuto da Cidade tem a aptidão de trazer ao administrador público uma visão adequada de tutela do espaço urbano, proporcionando boa qualidade de vida e segurança aos habitantes da cidade.

4.2.APROPRIAÇÃO PELO DIREITO AMBIENTAL. A Conferência de Meio Ambiente do Rio – ECO-92 trouxe uma mudança significativa na abordagem das questões ambientais, já que o conceito de sustentabilidade permitiu a reorientação da abordagem de problemas como os da contaminação, dos desastres ambientais e da pobreza. Segundo a orientação naquela oportunidade fixada, os riscos passaram a ser vinculados às questões do crescimento econômico e do desenvolvimento, como forma de tentar reverter a deterioração dos recursos naturais e a perda de biodiversidade. Tal orientação deve-se à nova filosofia incorporada pela comunidade internacional no sentido de esbouçar o seu sentimento de mudança dos padrões do crescimento global, com o compromisso de incorporação do conceito do desenvolvimento sustentável nas políticas nacionais e nos processos de cooperação internacional. Foi ainda no ano de 1992 que ficou definida para a década, entre outras metas, a de fortalecer a capacidade resiliente dos países.24 Registrou-se àquela época que em relação ao abastecimento de água, as principais vítimas em potencial são aquelas localizadas nas grandes cidades, em especial naquelas que conjuguem alta densidade populacional, comunidades com limiares elevados de pobreza e péssimas condições de infraestrutura sanitária. Não foi ignorado, ainda, que os reflexos e consequências ambientais provocadas pelos centros urbanos não se limitam a sua circunscrição, sendo notados em todo o seu entorno,

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Os “masters of disaster” (mestres do desastre), que há pelo menos três décadas estudam as mudanças climáticas pelas quais passa o Planeta afirmam que “até o fim deste século, a temperatura média da Terra deverá subir cerca de 1,5°C. Isso significa que o Planeta experimentará temperaturas tão altas como nunca, aliadas, obviamente, a um aumento sensível das temperaturas extremas”

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podendo atingir florestas, rios e outros aspectos do meio ambiente natural existente nos arredores. Assim, com o objetivo de defender e proteger a população urbana, forçoso atribuir também ao administrador público o dever de aplicar o direito ambiental ao tratamento da escassez hídrica.

4.3.APROPRIAÇÃO PELO DIREITO DE ÁGUAS.

Por fim, o enfrentamento da escassez hídrica é submetido ao Direito de Águas, especialmente com o tratamento legal estabelecido a partir da Lei Federal nº. 9433/97 – Lei de Recursos Hídricos (Lei de Águas), que determinou a política de gestão daqueles recursos e reforçou a concepção das águas como verdadeiro bem econômico, um recurso hídrico .25-26-2728

Sob a definição de água como “um bem de domínio público” e “um recurso natural limitado, dotado de valor econômico” (incisos I e II, do art. 1º), fixou-se toda uma legislação em torno do valor econômico da água. A Lei consolidou o atributo do valor econômico das águas, compreensão também extraída da Carta Europeia da Água:

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As águas constituem um elemento natural do planeta, assim como o petróleo. Como elemento natural não são um recurso, nem possuem qualquer valor econômico, “somente a partir do momento em que se torna necessário a uma destinação específica, de interesse para as atividades exercidas pelo homem, é que esse elemento pode ser considerado recurso”. O termo águas concerne à substância natural, descomprometido com qualquer uso ou utilização, é apenas o gênero; enquanto recurso hídrico é a água entendida como bem econômico, passível de utilização para tal fim. In: GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Direito Ambiental. 2. Ed., São Paulo: Atlas, 2011, p. 260. 26

O Código de Águas não menciona a expressão recursos hídricos quando se refere aos usos das águas, não distinguiu águas e recursos hídricos e tampouco estabeleceu o entendimento de que o termo águas aplica-se a hipótese de não haver aproveitamento econômico e a expressão recursos hídricos refere-se ao caso de haver esse tipo de aproveitamento. In: POMPEU, Cid Tomanik. Águas doces no direito brasileiro. In: REBOUÇAS, Aldo de Cunha; BRAGA, Benedito; TUNDISI, José Galisia. Águas doces no Brasil: capital ecológico, uso e conservação. São Paulo: Escrituras, 1999, p. 602. 27

A Lei nº 9.433/97, igualmente, não distingue o termo águas da expressão recursos hídricos. Pelo contrário, ao estabelecer no art. 1º os fundamentos da política nacional de recursos hídricos, dispõe que as águas são um bem, consigna o uso prioritário e a gestão dos recursos hídricos, e com muita clareza determina que as águas são um recurso natural limitado, dotadas de valor econômico. 28

“Ainda que sob o prisma da lógica ou da semântica caiba distinguir água de recurso hídrico, os textos legais não seguiram essa sistemática”. In: GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Direito Ambiental. 2. Ed., São Paulo: Atlas, 2011, p. 261.

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A água é um patrimônio comum, cujo valor deve ser reconhecido por todos; cada um tem o dever de economizar e de utilizar com cuidado e a gestão dos recursos hídricos deve inserir-se no âmbito da bacia hidrográfica natural e não das fronteiras administrativas e políticas.29

Ou ainda, da Declaração de Dublin:

A água tem valor econômico em todos os usos competitivos e deve ser reconhecida como um bem econômico. No contexto deste princípio, é vital reconhecer inicialmente o direito básico de todos os seres humanos do acesso ao abastecimento e saneamento a custos razoáveis. O erro no passado de não reconhecer o valor econômico da água tem levado ao desperdício e usos deste recurso de forma destrutiva ao meio ambiente. O gerenciamento da água como bem de valor econômico é um meio importante para atingir o uso eficiente e equitativo, e o incentivo à conservação e proteção dos recursos hídricos.30

Nessa medida, o administrador público não pode ignorar que enquanto recurso natural em franca demanda, haverá consideráveis pressões para o aproveitamento das águas que não para o abastecimento da população. Na verdade, grandes companhias e empresas geradoras de energia elétrica reclamarão por esse bem, ainda que em situações de escassez a Lei priorize o consumo humano e a dessedentação dos animais (inciso III, do art. 1º). No entanto, não basta dizer que as águas são objeto suscetível de valoração, impondo normas que pretendam simplesmente gerir e controlar a demanda e oferta de um produto. Isso não é suficiente. O Direito deve ir além, deve igualmente tutelar com a mesma preocupação o uso e a gestão das águas enquanto direito humano. Aliás, a escassez dos recursos naturais, dentre eles, das águas, foi tema das reuniões de Estocolmo em 1972, da Rio/92 e da Rio+10 em Durban, sob o enfoque do desenvolvimento sustentável e uso racional dos recursos naturais. Logo, embora a Lei de Águas tenha priorizado o potencial econômico da água, a Lei não se esqueceu da prevenção e da defesa contra eventos hidrológicos críticos de origem natural ou decorrentes do uso inadequado dos recursos naturais (art. 2º).

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Carta Europeia da Água. Disponibilizado em http://www.infopedia.pt/$carta-europeia-da-agua. Acessado em 02 de maio de 2015. 30

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEITO. Biblioteca Virtual. Declaração de Dublin. Disponibilizada em http://www.meioambiente.uerj.br/emrevista/documentos/dublin.htm. Acessada em 26 de abril de 2015.

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Ademais, a Lei de Águas tem fins e propósitos que também se adequam a resguardar a integridade das pessoas, protegendo suas vidas, na medida em que oferece importante instrumento de combate à escassez hídrica: os planos de recursos hídricos (arts. 6º, 7º e 8º), que serão a seguir examinados.

4.3.1 Planos de Recursos Hídricos

Os planos de recursos hídricos, diretores e de longo prazo, objetivam orientar a implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e do gerenciamento dos recursos hídricos, com horizonte de planejamento compatível com o período de implantação de seus programas e projetos. De maneira geral, os planos hídricos são o meio pelo qual se consolidam as metas e as estratégias de gerenciamento dos recursos hídricos. O Plano Nacional de Recursos Hídricos é um dos instrumentos que orienta a gestão das águas no Brasil. O conjunto de diretrizes, metas e programas que constituem o referido Plano decorre de documento aprovado pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH) em 30 de janeiro de 2006. O objetivo geral do Plano é estabelecer um pacto nacional para a definição de diretrizes e políticas públicas voltadas para a melhoria da oferta de água, em quantidade e qualidade, gerenciando as demandas e considerando ser a água “um elemento estruturante para a implementação das políticas setoriais, sob a ótica do desenvolvimento sustentável e da inclusão social".31 Tem, ainda, como objetivos específicos assegurar a melhoria das disponibilidades hídricas, superficiais e subterrâneas, em qualidade e quantidade, e a redução dos conflitos reais e potenciais de uso da água, bem como dos eventos hidrológicos críticos e a percepção da conservação da água como valor socioambiental relevante”.32 Quanto aos planos estaduais, caberá às respectivas leis estaduais de recursos hídricos a definição dos entes responsáveis por sua execução e implementação. Os planos de recursos hídricos de bacias hidrográficas serão elaborados pelas agências de água e aprovados pelos respectivos comitês. Enquanto não houver agências de água ou entidade delegatária das funções de agência, os planos de bacia poderão ser elaborados pelas entidades gestoras, detentoras do poder 31

BRASIL. Agência Nacional de Águas – ANA. Disponibilizado em http://www2.ana.gov.br/Paginas /institucional/SobreaAna/legislacao.aspx. Acessado em 28 de abril de 2015. 32

Ibidem.

13

outorgante, sob supervisão e aprovação dos respectivos comitês. No caso de não existir comitê de bacia, as entidades ou os órgãos gestores de recursos hídricos serão responsáveis, com a participação dos usuários de água e das entidades civis de recursos hídricos, pela elaboração da proposta de Plano de Bacia e pela implementação de ações necessárias à criação do respectivo comitê, que deverá aprovar o Plano. Nesse sentido, a norma que impõe a existência de um plano de recursos hídricos deve ser admitida pelo menos na forma como precisada por Tercio Sampaio que ao discorrer sobre a validade, vigência e eficácia das normas jurídicas ensina que a eficácia da norma pode ser atestada de diferentes formas, sendo uma delas seu efeito ideológico simbólico.33 Especialmente quanto aos recursos hídricos, o argumento segundo o qual “ainda que não haja cumprimento da norma, existe um efeito ideológico simbólico”, 34 permite defender que tanto a quantidade como a qualidade dos recursos hídricos são fatores tecnicamente mensuráveis e objetivos, servindo para determinar a consecução de um plano que seja capaz de enfrentar a escassez hídrica, sem que o cálculo econômico preceda necessariamente à tomada de decisão. A ideia de um plano de recursos hídricos deverá ser pensada considerando os problemas urbanos, como a escassez hídrica, a partir de uma inspiração que concilie o plano urbanístico da cidade, bem como a proteção do meio ambiente e dos cidadãos. Não se ignora que de acordo com a Lei há competências previamente atribuídas a determinados órgãos da administração pública, como à Agência Nacional de Águas – ANA, para elaborar estudos e diagnósticos para subsidiar a aplicação de recursos financeiros da União nas obras e serviços de regularização de cursos de água, alocação, distribuição e controle de poluição hídrica. Contudo, o que se defende aqui é que além de previsões preocupadas com o valor a ser cobrado pelo uso da água e outras tantas situações relativas ao valor econômico da água, os 33

“Uma norma válida pode já ser vigente e, no entanto, não ter eficácia. Vigência e eficácia são qualidades distintas. A primeira refere-se ao tempo de validade. A segunda, à produção de efeitos. A capacidade de produzir efeitos depende de certos requisitos. Alguns são de natureza fática, outros de natureza técnico-normativa. A presença de requisitos fáticos torna a norma efetiva ou socialmente eficaz. Uma norma se diz socialmente eficaz quando encontra na realidade condições adequadas para produzir seus efeitos. (...) Efetividade ou eficácia social é uma forma de eficácia. Assim, se uma norma prescreve a obrigatoriedade do uso de determinado aparelho para a proteção do trabalhador, mas este aparelho não existe no mercado nem há previsão para sua produção em quantidade adequada, a norma será ineficaz nesse sentido. Se a efetividade ou eficácia social depende de requisitos inexistentes de fato, a ausência deles pode afetar não a validade da norma, mas a produção dos efeitos, conforme conhecida regra de calibração (ad impossibilita nemo tenetur: ninguém é obrigado a coisas impossíveis)”. In FERRAZ JR. Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 2. Ed., São Paulo: Atlas, 1994, p.202. 34

Ibidem.

14

planos de recursos hídricos são um instrumento fundamental na construção de um modelo de gestão de recursos hídricos a ser adotado pelo administrador público no enfrentamento da escassez hídrica.

5. PROPOSIÇÃO. Marise Duarte foi muito feliz ao notar que a partir da “realidade de nossas cidades e a completa falta de eficácia social das normas constitucionais destinadas a garantir a dignidade da pessoa humana”

35

é possível deduzir que “os novos direitos sociais e difusos (...) exigem

mudanças de paradigmas e de instrumentos de ação por parte do Estado (Poder Público), do Direito, da sociedade”.36 A percepção da autora é precisa, pois para o enfrentamento do problema urbano em questão não é suficiente uma simples análise dos textos legais, é preciso mais. É imprescindível compreender que a escassez hídrica representa um ônus coletivo, gerando graves problemas e conflitos no ambiente urbano. É essencial deixar de enxergar as cidades apenas como união de equipamentos públicos e privados e lugar de implementação de políticas públicas, para compreendê-las dentro de um conjunto de normas que as protejam também das grandes crises. É fundamental convergir regras e diretrizes que atenuem a questão da territorialização e permita patrocinar uma articulação das medidas e decisões a serem tomadas que, além de se traduzir em ações, situação que se acresce à comum ausência de planejamento e desenvolvimento urbano e de capacidade de gestão por parte dos órgãos responsáveis, demandam um olhar próprio. De fato a tarefa não é fácil, não basta simplesmente encontrar princípios e regras hipoteticamente aplicáveis à crise hídrica e com isso supostamente fixar seus contornos jurídicos. É preciso especializar a pesquisa sem afastar nem dividir as áreas do conhecimento; é preciso ter um olhar multidisciplinar.

35

DUARTE. Marise Costa de Souza. Os conflitos socioambientais urbanos no Brasil e a Constituição Federal de 1988: dilemas e desafios. In: BUZAGLO, Marcelo; SÉGUIN, Eida; AHMED Flávio (coords). O Direito Ambiental na atualidade: Estudos em homenagem a Guilherme José Purvin de Figueiredo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 379. 36

Ibidem.

15

Por isso, é necessário exigir o máximo empenho do procurador do estado que, sem titubear, deve valer-se dos ramos do Direito apresentados e dos planos de recursos hídricos para auxiliar o administrador público na composição de um conjunto de ações que possibilite combater a crise hídrica e solucionar seus conflitos.

CONCLUSÕES.

I.

As transformações experimentadas pelo ordenamento pátrio com a

redistribuição de competências pela Constituição Federal de 1988 trouxeram importantes mudanças à discussão do domínio das águas e da gestão dos recursos hídricos. II.

No plano infraconstitucional, o legislador atendeu aos preceitos da Carta

Maior instituindo uma política nacional de gestão de recursos hídricos com a edição da Lei Federal nº. 9.433/97 – Lei de Águas, pretendendo assegurar a disponibilidade de água, a utilização racional e integrada dos recursos hídricos, além de prevenir contra eventos hidrológicos críticos. III.

O Direito não pode apenas dizer que as águas são objeto suscetível de

valoração, com normas que pretendam simplesmente gerir e controlar a demanda e oferta do produto. É preciso ir além, tutelando com a mesma preocupação os fenômenos críticos das águas, como a atual crise hídrica. IV.

O tema da escassez hídrica é apropriado pelo Direito Urbanístico, que tem por

objeto tutelar o espaço urbano, proporcionando boa qualidade de vida aos habitantes da cidade. V.

O tema é igualmente apropriado pelo Direito Ambiental, que tem profunda

preocupação com os elementos e fenômenos típicos do meio ambiente urbano e que de alguma forma interferem na qualidade de vida do ser humano. VI.

A partir da leitura trazida pela Lei de Águas e pelo art. 225, da Constituição

Federal, deve ser dispensado um tratamento de direito humano à gestão das águas. VII.

Embora a Lei de Águas tenha priorizado o potencial econômico da água, ela

não se esqueceu da prevenção e da defesa contra eventos hidrológicos críticos de origem natural ou decorrentes do uso inadequado dos recursos naturais, oferecendo importante instrumento de combate à escassez hídrica: os planos de recursos hídricos.

16

VIII.

Enquanto instrumento fundamental na construção de um modelo de gestão de

recursos hídricos a ser adotado pelo administrador público, os planos de recursos hídricos deverão considerar os problemas urbanos a partir de uma inspiração que concilie o plano urbanístico da cidade, a proteção do meio ambiente e dos cidadãos. IX.

Finalmente, é possível afirmar e propor que o combate à crise hídrica passe

pelo adequado gerenciamento dos recursos hídricos, exigindo o máximo empenho do procurador do estado, que conta com os ramos do Direito apresentados e os planos de recursos hídricos para auxiliar o administrador público na composição de um conjunto de ações adequadas ao combate da crise hídrica e à solução dos conflitos dela decorrente.

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