Isabel de Castro

Reflexões sobre a gravura contemporânea

Isabel de Castro (Mestre) Curso de Artes Visuais - Universidade Tuiuti do Paraná Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 28, FCHLA 04, p. 173-186, Curitiba, mar. 2002

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Resumo Este artigo propõe uma reflexão sobre a gravura a partir da produção dos alunos graduandos do Curso de Artes Visuais – Computação, desta Universidade. Partindo de uma breve história da gravura, e da tradição desta linguagem artística, podemos perceber a inserção dos alunos nos caminhos dessa tradição. Por meio de uma descrição das atividades desenvolvidas no Ateliê de Gravura é feita uma pequena análise do processo de criação e do papel da tradição na atuação do artista contemporâneo. Palavras-chave: gravura, história da gravura, processo de criação, ateliê de criação, tradição, contemporaneidade.

Abstract Cet article propose une refléxion sur la gravure, en partant des travails produits par les élèves du Curso de Artes Visuais-Computação, de cet Université. Tout en partant d’un aperçu historique de la gravure et de la tradition de ce langage artistique, nous pouvons percevoir l’insertion de ces élèves dans les chemins de cette tradition. Par une description des activitées developpés dans l’ Atelier de Gravure, l’on fait une petite analyse du procès de créatif, du rôle de la tradition dans l’atuation de l’artiste contemporain. Key words: gravure, histoire de la gravure, procès de création, atelier de création, tradition et contemporaneité.

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O gravador se compromete mais: para ele, a matéria existe. A matéria existe imediatamente sob sua mão obrante. Ela é pedra, ardósia, madeira, cobre, zinco... A matéria é, assim, o primeiro adversário do poeta da mão.... O verdadeiro gravador começa sua obra num devaneio da vontade. Gaston Bachelard

Uma definição O ato de gravar é ferir, marcar e riscar um material. Pode se traduzir na sutileza de dobrar um papel por exemplo ou no arrancar pedaços de um material. A gravura, como linguagem artística, envolve a impressão também, isto é, a transferência da imagem da matriz para outro suporte por meio de pressão e entintamento.

Uma breve história No Ocidente, a xilogravura em que a matriz é feita em madeira e também é a mais antiga das técnicas, Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 28, FCHLA 04, p. 173-186, Curitiba, mar. 2002

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só se desenvolveu com a fabricação do papel, no início do séc. XIV. Na China, desde 800 a.C., tacos de madeira já eram empregados para estampagem de tecidos. Apenas por volta de 1450, com a invenção dos tipos móveis por Johannes Gutenberg, houve a grande proliferação de informações e idéias por toda a Europa. A demanda de material impresso rapidamente se tornou uma avalanche. Todo o material técnico-científico carecia de imagens explicativas, além do texto escrito que poderia sofrer múltiplas interpretações, nascendo assim os manuais, os guias e os catálogos. Alguns dos exemplos mais conhecidos são os seguintes: Valturius (1472), um manual de máquinas; Breydenbach (1486), livro de viagens ilustrado por Rewich; Weltkronik (1493), um texto de geografia ilustrado por Miguel Wolgenut e, surgidos neste mesmo ano, os primeiros catálogos de coleções de arte ilustrando os objetos preciosos de algumas catedrais alemãs. W. M. Ivins Jr. (1975) nos aponta em seu texto Imagen Impressa y Conocimiento: Análisis de la Imagen Prefotográfica, o que seria um certo condicionamento do olhar ocidental estabelecido pela produção destas imagens que visavam à reprodução de outras obras de arte. Durante muitos séculos, imperou, nas gráficas, a “gravura de tradução”, um ofício habilmente executado por excelentes técnicos, que através de fer-

ramentas cada vez mais precisas, mordentes e vernizes poderosos, criavam texturas cada vez mais próximas do real. Mais do que isso, houve ... la adopción de una sintaxis del trazado de lineas para propósitos de nivel medio. (Ivins Jr., 1975, p.103). O percurso da imagem era o seguinte: o pintor pintava, depois o desenhista do gravador copiava em branco e preto o que o pintor havia pintado, fosse uma paisagem ou um retrato. Passando a imagem para o gravador, que a traduzia para a matriz. Assim as gravuras não eram somente cópias de cópias e sim, traduções de traduções (Ivins Jr., 1975, p.102). Tudo isso mudou com a chegada da fotografia, no séc. XIX, porque havia um registro que prescindia da mão do gravador de tradução, fazendo com que este artesão, rapidamente desaparecesse. O fenômeno que se estabeleceu foi o que, ao entrar em contato com a reprodução, tomava-se esta como a própria obra. Raríssimas eram as pessoas que conheciam as obras em primeira mão. Walter Benjamin (1975) nos chama a atenção para o valor de culto e o valor de exibição, no famoso texto A Obra de Arte na Época de suas Técnicas de Reprodução, o fato de termos a informação visual da existência de uma obra de arte não quer dizer que tenhamos a oportunidade de sentir a emoção estética que a obra nos proporcionaria ao vivo, o que caracterizaria a “perda da aura” causando o empobrecimento do evento artístico (Benjamin, Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 28, FCHLA 04, p. 173-186, Curitiba, mar. 2002

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1975, p.14). Ao longo do séc. XX, houve uma busca de autonomia das linguagens artísticas. E, definitivamente, as técnicas de reprodução de imagem deixaram de ser apenas “traduções”. Não há dúvida de que, desde sempre houve grandes artistas que trabalharam com as mais diversas técnicas de reprodução e que tenham criado linguagens próprias nelas também, como Antonio Pollaiuollo (1431-1498), Andrea Mantegna (1431-1506), Albrech Dürer (1471-1528), Hercules Segers (1589-1635), Rembrandt (1609-1669), interessado nas tonalidades e grandes contrastes de luz, buscou superar o caráter linear das gravuras do século anterior; Francisco de Goya (1746-1828), com suas séries Caprichos e Desastres de Guerra, onde explorou os recursos da aguaforte e aguatinta; tivemos Paul Gauguin (1848-1903), que não só na pintura, mas na gravura também trouxe as suas figuras primitivas; Edvard Munch (1862-1944), o mestre expressionista; Henri de Toulouse-Lautec (18641901), que com seus cartazes em litografia contribuiu para a divulgação desta técnica; Ernst Ludwig Kirchner (1880-1938), que através da xilogravura mostrou sua temática de forte crítica social; Pablo Picasso (18811973), que produziu séries inesquecíveis em linoleogravuras e em gravura em metal e, mais recentemente, outra contribuição valiosa tenha sido a dos artistas da Pop Art, sendo Andy Warhol (1930-1987) o Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 28, FCHLA 04, p. 173-186, Curitiba, mar. 2002

seu maior expoente, Roy Lichtenstein (1932-1997) e Robert Rauscherberg (1925), deram credibilidade à serigrafia, como manifestação artística. No Brasil, tivemos Oswaldo Goeldi (1895-1961) artista maior da xilogravura, que ao criar a sua “noite moral” (Andrade, 1959), lançou mão de linhas de luz nas suas imagens noturnas; Lívio Abramo (1903-1992), que retomou a xilogravura de topo com maestria, Lasar Segall (1891-1957), artista expressionista que exaltou o conteúdo humano da sua obra através dos traços da gravura. É muito forte, para nós sulinos, a influência expressionista, não só pelos exemplos citados acima, como pela produção dos gravadores do Grupo de Bagé, Iberê Camargo (1914-1994), Guido Viaro (1897-1971) e Poty Lazzarotto (1924-1999), no Paraná. O Grupo de Bagé era constituído por vários artistas ligados à literatura, música e artes plásticas, como Pedro Wayne, Ernesto Dutra e Clóvis Assunção, que junto com seus membros mais constantes: Carlos Scliar (1920-2001), Danúbio Gonçalves (1925), Glauco Rodrigues (1929) e Glênio Bianchetti (1928), trouxeram o sopros modernistas para a cultura gaúcha. Nas palavras de Danúbio, ...grupo é uma espécie de apelido de uma iniciativa, união de esforços que tem mais de tempo que de espaço, catalisador de disposições comuns; apelido, quem sabe, para as formas que

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envolvessem, naquele momento, renovação. Ou uma espécie de sigla mutante, receptiva, a absorver gente e significados nas demandas variáveis do novo que começa a despontar daqui e dali para a sua formulação. (apud Pietá, 1998, p.36). A primeira etapa do Grupo tem a duração de 1945 a 1950, quando há a fundação do Clube de Gravura, em Porto Alegre, onde os quatro amigos se encontram reunidos, compartilhando espaço, tempo e ideais. Tendo como modelo o Taller de Gráfica Popular, fundado no México, em 1937, que pretendia ...o resgate de uma herança cultural na arrecadação da vontade coletiva e de uma tradição que deveriam remontar às bases dessa cultura, evidenciando-a a um olhar mais amplo para o povo. (Pietá, 1998, p. 36). Esta influência modela a atuação do Clube de Gravura de Porto Alegre, que partindo de peculiaridades locais, adota o realismo regionalista como característica. O episódio do Clube deve ser relido com conotações artísticas, culturais e contextuais, cujo mérito é singularizar a modernidade de então, de forma alternativa, e acrescentar elementos mais precisos ao seu léxico, para execução e observação das obras. Observação insistente do detalhe original pelo desenho e gravura, real do real, como instrumentos de aprimorada captação técnica e estética na formulação da diferença como qualidade: documentação da paisagem, de tipos, usos e costumes, cenas da vida, próximos ao cotidiano, à natureza e à origem. (Pietá, 1998, p. 38).

Esta segunda fase, dura de 50 até 1956. Para Carlos Scarinci, ...a tônica do movimento dos gravadores do sul era seu combate ao abstracionismo e às primeiras bienais de São Paulo... e, quando a estética produzida, ... não deixou de penetrar-se de aquisições mais recentes da linguagem plástica contemporânea, especialmente as do expressionismo e também certo gosto da simplificação ousada, muito própria das expressões gráficas oriundas da gravura oriental. (Scarinci, 1982, p. 87 e 91). Iberê Camargo, além de ter contribuído com uma produção reconhecida mundialmente, foi um grande articulador da gravura nacional, tendo fundado, em 1953, o curso de gravura no Instituto de Belas Artes do Rio de Janeiro, além de ministrar aulas de gravura em metal, na Universidade Federal de Santa Maria (1969) e na Escola de belas Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1960). Teve a generosidade de publicar A Gravura, em 1975, para compartilhar seu conhecimento com o maior número de pessoas. Em carta a Mario Carneiro, expõe o que entende sobre arte e técnica, ... preste atenção para o que há realmente de fundamental tanto na arte como numa técnica. É muito importante discernir isso. Caminha pela estrada principal, os atalhos cada um deve achá-los sozinho. É inteiramente inútil aprender os truques dos outros que só servem para eles. Usá-los seria o mesmo que imitar a maneira de andar de alguém, pensando que este alguém avança porque manca desta ou daquela Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 28, FCHLA 04, p. 173-186, Curitiba, mar. 2002

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perna. Ora, todos nós sabemos não ser por isso que ele avança e chega ao fim da meta. Em arte o importante é aprender a linguagem e formar um vocabulário próprio. Dono desta língua, pouco importa que a fala seja o óleo, o metal ou a pedra. A letra de fôrma não melhora o pensamento! Veja que os grandes artistas fizeram as melhores gravuras, os melhores afrescos e os melhores quadros de cavalete. Isto prova que o fundamental é o conhecimento da linguagem e a compreensão plástica, que é o dom do artista. A técnica, conjunto de experiências e conhecimentos peculiar a cada material, deve ser um vínculo simples e racional que nos permita expressar o grandioso ou o mesquinho segundo o nosso porte. (Camargo, 1999, p. 41-42). Guido Viaro chegou a Curitiba em 1930, onde se dedicou ao ensino de arte e a uma vasta produção instalada no Museu, que leva seu próprio nome, desde 1975. Ele foi responsável não só pela introdução da gravura na cidade, como também pela pesquisa incansável de materiais mais acessíveis para a fatura das matrizes, como o zinco. Sua atuação formou várias gerações de gravadores de Curitiba. Poty Lazzarotto é o nome de mais visibilidade no Paraná, tendo organizado o primeiro curso de gravura em Curitiba, em 1950. Foi um expoente de divulgação da gravura e também formou muitos gravadores. O Atelier de Gravura do Departamento de Cultura da SEC, criado em 1968, leva seu nome. Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 28, FCHLA 04, p. 173-186, Curitiba, mar. 2002

Em 1951, um grupo de artistas curitibanos funda o Centro de Gravura do Paraná, inspirado no exemplo do Clube de Gravura que já funcionava em Porto Alegre. Nos anos 80, com a criação da Mostra de Gravura da Cidade de Curitiba, a cidade toma a frente na produção artística desta linguagem.

Uma palavra Ao longo do séc. XX, houve a busca de autonomia das linguagens artísticas. A fotografia se encarregou do registro da obra, liberando os meios de reprodução artística como a gravura em relevo, e a serigrafia, que trataremos aqui, como terrenos ricos para a criação de poéticas visuais. Poética, segundo Paul Valéry, é tudo o que tem relação com a criação... de obras das quais a linguagem é ao mesmo tempo a substância e o meio”, compreendendo “...de um lado, o estudo da invenção e da composição, o papel do acaso, aquele da reflexão, aquele da imitação; aquele da cultura e do meio; de outro lado, o exame e análise das técnicas, procedimentos, instrumentos, materiais, meios e apoios de ação. (apud Pommier, 1946, p. 7-8). Evandro Carlos Jardim acrescenta, há muito reducionismo na questão técnica, e isso é um malentendido. Por isso defendo o meio. O meio é alguma coisa

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que você não conquista absolutamente só via o artesanato. Ele é fundamentado em subjetividades, que talvez possam ser traduzidas pela intuição criadora. Se você não cria com o meio, ele não existe, não tem razão de ser. A criação é produto de uma disponibilidade sua e é produto também do conhecimento. Ë preciso valorizar o conhecimento, ele acontece em escalas. ... (apud Macambira, 1998, p. 106).

Um ateliê Para um artista criar sua linguagem pessoal, ele tem que ter domínio de seu meio, ele tem que criar novos significados para este meio, isso é muito além da escolha do tema e do uso da técnica empregada. Os ateliês de criação do Curso de Artes Visuais – Computação são ministrados visando a experimentação dos alunos, além de suporte teórico de acordo com as técnicas desenvolvidas ao longo de um ano do período de graduação, para dar condição ao aluno de optar pela criação de uma poética para a sua diplomação. No Ateliê de Gravura, ministrado por mim, a medida que as impressões são feitas pelos alunos, elas são fixadas no painel para apreciação em conjunto, ao término de cada aula, agilizando o processo de conhecimento não só entre a orientadora e seus alunos, como também entre colegas. Ao final de cada bimestre, o aluno deve apresentar a sua produção artística acompanhada de sua proposta pessoal,

fundamentada em texto escrito, onde são colocadas as suas intenções e a sua própria análise do trabalho desenvolvido, contemplando, assim, um momento de reflexão. Dado ao elevado número de alunos em cada turma (em torno de 20) e o tempo de encontro ser de curta duração (3 horas/aula por semana), dificultando a orientação individual necessária, criei uma ficha de avaliação, onde são expostas as propostas de cada bimestre, cada item a ser avaliado em cada uma e as porcentagens de nota correspondentes, bem como a freqüência da cada aluno. Assim, comento cada etapa de trabalho de cada aluno, podendo ele, no final do ano, avaliar a sua produção com esse registro ou, discuti-la comigo a qualquer momento que julgar necessário. No Curso de Artes Visuais – Computação, da Faculdade de Ciências Humanas, Letras e Artes, desta Universidade, os alunos formandos podem optar por produzir uma poética visual a ser submetida por uma banca de professores como trabalho de conclusão de curso. O aluno deve escolher um professor orientador da área de criação e terá um ano para desenvolver a sua Pesquisa em Artes Visuais. Aqui serão expostas três produções de alunos que estão concluindo o curso neste ano de 2001: Mareli da Conceição Pereira dos Santos, Irinéa Geller e Eduardo da Costa Ballão, sob a minha orientação. Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 28, FCHLA 04, p. 173-186, Curitiba, mar. 2002

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A aluna Mareli Santos apresentou a poética intitulada Retratos em Xilogravura, composta por cinco retratos de sua família, tendo como referência, fotos de um deter minado período de sua infância que, nas suas próprias palavras: ...um tempo muito marcante em minha vida. Éramos e somos “pobres”, só que naquela época era muito difícil, só meu pai trabalhava, éramos crianças, meus irmãos e eu. ...Mas, sem dúvida nenhuma, foi a época mais marcante em termos de felicidade, como era bom, nós éramos inocentes e sem muitas responsabilidades. Tínhamos como dever estudar, brincar e sermos felizes..... (Santos, 2001, p.13). As xilogravuras têm os seguintes títulos: Força (retrato do pai), Amor (retrato da mãe), Amizade I (r etrato do ir mão),

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Amizade II (retrato da irmã), Amizade III (autoretrato). O que pode-se destacar na sua produção é a unidade for mal das figuras, através de um desenho maduro, onde a solução gráfica mostra um equilíbrio e uma harmonia entre as áreas pretas e os contornos que limitam os espaços brancos. Seu corte é seguro e houve muita sensibilidade não só na escolha das texturas das madeiras, como na própria gravação “arranhada” dos cabelos, denotando uma modelagem sofisticada por um meio muito simples. Na sua pesquisa teórica, Mareli nos aponta como referência primeira, os retratos de Fayum, dos séc. I e III d. C., feitos em encáustica, que se destacam pela sua simplicidade e naturalismo, ao captar a fisionomia do morto, para a preservação da sua memória. Com muita propriedade, a aluna evoca a memória como

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motivação para a criação das imagens, produzindo rostos em linhas sintéticas, buscando a essência de cada ente querido. Irinéa Geller nos apresenta Construção X Desconstrução. Um álbum composto de quarenta impressões feitas de uma só matriz em xilogravura. A imagem partiu de uma proposta feita no Ateliê de Desenho do ano anterior, ministrado pela Profª. Carla Vendrami Malucelli, em que foi desenvolvido o tema onde você gostaria de morar. Para a poética, foi retomado o tema, tetizado na imagem da concha, concha esta ...que teria de ser tão perfeita quanto a minha praia, linhas limpas, completas, indispensável preencher tranqüilamente muitos detalhes, volumes, definindo a forma, cada corte dava mais vibração, sensibilidade, sensação de que esta praia estava mais próxima de tornar-se real. (Geller, 2001, p. 5). No seu fazer, Irinéa percebeu o movimento circular da criação e fez seu álbum no intuito de que a obra se mostrasse sem princípio nem fim, po-

dendo-se abordá-la por qualquer registro da concha que nada seria perdido da sua totalidade. O gravar e o imprimir são contemplados com a mesma generosidade e rigor. Construção ao gravar a imagem, desconstrução ao imprimi-la com áreas da matriz arbitrariamente escolhidas para serem ocultas e, construção, novamente, ao serem montadas unidas em álbum para serem vistas ao longo de um momento. Assim, os olhos percorrem as conchas, ora peixe, ora estrela, ora olho, ora pedra, ora boca, ora tantas outras imagens possíveis. Sua poética é o registro de sua intimidade com o meio, e mais, o seu pensar o meio escolhido. Eduardo Ballão partiu da sua experiência profissional como artista gráfico, intitulando a sua poética como “Serigrafia”. Foram criadas quatro matrizes com registros diferentes de capim seco jogados aleatoriamente como máscaras para a sensibilização das telas, gerando grafismos que foram impressos nas cores da escala CYMK (cyan, amarelo, magenta e preto). Como suporte, Eduardo utilizou algodão cru de aproximadamente 200 cm X 200cm. A impressão se deu pela justaposição das cores Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 28, FCHLA 04, p. 173-186, Curitiba, mar. 2002

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transparentes, que geraram outras misturas de cores ao acaso, sem a preocupação de um registro perfeito, sendo produzidas três imagens de cores vibrantes, que muito se aproximam do expressionismo abstrato de Pollock. Em cada um percebe-se como a tradição expressionista se revela seja nos retratos expressivos de Mareli Santos, nas linhas nervosas que compõem a concha de Irinéa Geller ou nos grafismos de Eduardo Ballão.

Uma palavra final Trabalhar com criação, para muitos, pode parecer um terreno movediço, o que para mim é justamente o seu encanto, porque mais do que respostas, buscase o questionamento. Em arte, não há fórmulas, há subversão de todas elas; todo o trabalho apresentado é o registro de uma etapa, produto de uma reflexão incansável do artista, pois o artista cria problemas para Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 28, FCHLA 04, p. 173-186, Curitiba, mar. 2002

ele mesmo. Mas tudo isso só terá significado uma vez que haja uma boa bagagem referencial, este é o papel da tradição. T. S. Eliot, nos fala do processo de formação e criação do poeta, que podemos ler como sendo do artista em geral, ...é ter o poeta de desenvolver ou procurar o conhecimento do passado e dever continuar a desenvolver esse conhecimento ao longo da sua carreira..., sendo que, ...o progresso de um artista reside num contínuo auto-sacrifício, numa extinção contínua da personalidade..., para ...nesta despersonalização que se pode dizer aproximar-se a arte da condição de ciência. (Eliot, 1997, p.26) Mais adiante ele sugere uma relação dialética entre o artista e o grande acervo da história da arte: ...é o que torna um escritor tradicional. E ao mesmo tempo, o que torna um escritor mais agudamente consciente do seu lugar no tempo, da sua contemporaneidade. ... nenhum artista de qualquer arte, detém, sozinho, o seu completo significado. O seu significado, a sua avaliação, é a avaliação da sua relação com os poetas e os artistas mortos. Não se pode avaliá-lo sozinho; é preciso situá-lo, para contraste e comparação, entre os mortos. Entendo isso como um princípio de crítica estética e não apenas histórica...não é unilateral; o que acontece quando da criação de uma obra de arte é algo que acontece simultaneamente a todas as obras de arte que a precederam.... A ordem existente está completa antes da

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chegada da nova obra; para que ela persista após o acréscimo da novidade, deve a sua totalidade ser alterada, embora ligeiramente e, assim, se reajustam a esta as relações, as proporções, os valores de cada obra de arte; e isto é a concordância entre o velho e o novo. (Eliot, 1997, p.23) Evandro Carlos Jardim nos diz também que, ...a arte, para se materializar, precisa de um meio. A fidelidade ao meio é uma constante em toda a história da arte. Não há trabalho que tenha significação, sentido, que não reverta também ao meio, porque este meio é história. O conhecimento profundo dos seus procedimentos se faz necessário porque o conhecimento do meio pressupõe o conhecimento da história, e o meio é a própria história. (apud Macambira, 1998, p.104).

Para finalizar, o Prof. José Alberto Nemer (1986) aponta-nos quatro características para um ateliê dentro de princípios contemporâneos, que são os seguintes: o questionamento dos paradigmas, onde a experiência individual contribui diretamente para a mudança coletiva e viceversa; o rompimento da relação passiva de professor aluno; as pesquisas de material e suas aplicações são feitas segundo a necessidade específica de cada participante e, por fim, as avaliações coletivas. Sendo assim, penso que se pode realizar um trabalho produtivo e de troca com os alunos e, conseqüentemente, com a comunidade em geral, balizado mais no questionamento, que nas respostas prontas.

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