Bebida, Embriaguez e Identidades Étnicas no Brasil Holandês.

A Contenção e o Excesso: Bebida, Embriaguez e Identidades Étnicas no Brasil Holandês. (1630-1654) João Azevedo Fernandes Departamento de História, Un...
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A Contenção e o Excesso: Bebida, Embriaguez e Identidades Étnicas no Brasil Holandês. (1630-1654)

João Azevedo Fernandes Departamento de História, Universidade Federal da Paraíba

ick was een rijck, wel wel Begoet; Dry maeckten my een kaelen Bloet: De Wijn, de Hoer, de Dobbelsteen; Hier met ging al mijn Goetjen heen 1. Durante a segunda de suas atribuladas missões diplomáticas à Holanda (1647-8), o padre Antônio Vieira teve a oportunidade de observar, a partir de um privilegiado ponto de vista, o cotidiano e as instituições do povo que havia arrancado a Portugal algumas de suas maiores jóias, como era o caso de Pernambuco e seu açúcar. Em suas muitas cartas ao Marquês de Nisa, embaixador português em Paris, Vieira demonstrou um olhar curioso, e mesmo de discreta aprovação, a alguns aspectos da vida citadina daquela “terra de hereges” 2, como a imparcialidade de sua justiça 3, e o clima de liberdade de expressão vigente nas Províncias Unidas 4. O austero jesuíta também parecia gostar de alguns dos prazeres urbanos de Haia: durante o inverno de 1647, Viera foi, mais de uma vez, assistir os burgueses da cidade patinando nas águas congeladas 5. É claro que esta relativa admiração tinha muitos limites, seja quanto à “inconstância” de caráter dos holandeses 6, seja quanto à entusiástica adesão destes às lides comerciais, “em que consiste toda a sua razão e toda a sua fé” 7. Vieira também não perdeu a chance de apontar a venalidade dos políticos neerlandeses, ao afirmar que seria mais fácil

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“Eu era rico, afluente; três vícios me arruinaram; o vinho, a puta, o dado; este é o lugar onde minha riqueza se encontra agora”, Ministro Jacobus Sceperus de GOUDA, 1665, Bacchus. Den Ouden, en Huydendaegschen Dronkemans, citado por Benjamin ROBERTS, «Drinking Like a Man: The Paradox of Excessive Drinking for Seventeenth-Century Dutch Youths», Journal of Family History, 29 (3), 237-252, 2004,p. 247. 2 “Carta ao Marquês de Nisa, Haia, 22/06/1648”, in Antônio Vieira, 2003, Cartas do Brasil, João Adolfo HANSEN (org. e int.), São Paulo, Hedna, p. 402. 3 “(...) porque a justiça destes países é inexorável a qualquer respeito, e o do mesmo príncipe de Orange lhe não valeu para os Estados lhe concederem um seguro que pediu, e lhe foi negado” (Haia, 23/12/1647), Cartas… cit., p. 338. 4 “A Confissão do Imprimor, como tinha nome de confissão, foi proibida pelos Estados, cousa desusada na liberdade destes países (...)” (Haia, 22/06/1648), Cartas… cit., p. 403. 5 “(...) as águas desta nossa vizinhança estão já tão geladas que, ontem e anteontem, fomos ver correr sobre elas a burguesia...” (Haia, 30/12/1647), Cartas… cit., p. 340. 6 Haia, 19/05/1648, Cartas… cit., p. 391. 7 Haia, 15/06/1648, Cartas… cit., p. 399.

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negociar a partir do Reino, “enviando com que adoçar vontades”, do que tentando persuadi-los com argumentos 8. No seio destas observações, gostaria de assinalar duas curtas menções, feitas pelo inaciano, à cultura etílica do país, menções que revelam uma profunda divergência entre as práticas sociais e visões de mundo de portugueses e holandeses. Em carta de janeiro de 1648, Vieira fazia uma crítica ao comportamento do Padre Ponthelier, jesuíta (e espião) francês, que o acompanhava na viagem às Províncias Unidas: O padre Pontilier não escreve por não estar para isso, e não está para isso porque vem amanhã comer cá Mr. de La Thuillerie (embaixador da França em Haia); e, porque se queixa que lhe dão bem de comer e mal de beber, se encomendou a prova dos vinhos ao padre de Bordéus, o qual mostrou nela não ser de prova. Mas, porque se não escandalize o reverendo padre frei Antônio (capelão do Marquês de Nisa), advirto que nesta terra não é pecado nem desonra9. Ainda em janeiro de 1648, Vieira avaliava, com corrosiva ironia, as aventuras inebriadas dos embaixadores Francisco de Andrada (plenipotenciário junto ao congresso de Münster) e Francisco de Souza Coutinho (embaixador português em Haia): Saberá V. Ex.ª que não só em Münster foi rei o embaixador Francisco de Andrada, senão também que o Sr. Francisco de Souza Coutinho representou menos gravemente o cargo, porque pôde vir por seu pé ao coche, o que não aconteceu a S. M. de Münster, que, segundo dizem, foi em braços de quatro, com que não é muito que lhe parecesse o reinado breve. Mas, com a vida destes países ser tão ocasionada a semelhantes alegrias, bem me pode V. Ex.ª crer que eu a trocara pela de Paris, ainda que V. Ex.ª não seja rei nem roque (...) 10. Para além de sua insatisfação com a falta de temperança do padre francês e dos embaixadores, é notável a naturalidade com que Vieira relacionava o beber em excesso a uma prática habitual dos holandeses. Ao fazer isso, Vieira repetia uma avaliação que era comum a todos os europeus, que, de forma bastante generalizada, consideravam os povos dos Países Baixos como os maiores beberrões da Europa. A própria fúria advinda do consumo excessivo do álcool era chamada, pelos ingleses (também famosos por seu amor aos prazeres etílicos), de “coragem holandesa” (dutch courage). A par desta constatação, as menções de Vieira também fazem referência a uma distinção cultural profunda, que vinha desde a antiguidade européia, e que opunha os povos mediterrânicos, consumidores habituais e moderados do vinho, aos povos do centro e do norte da Europa, tradicionais bebedores de cerveja e grandes adeptos dos excessos etílicos. É bem verdade que esta distinção estava muito baseada em uma percepção hierárquica do ato de beber, e que opunha a bebida da civilização (o vinho), que era consumida por gregos e romanos, à bárbara cerveja de cereais consumida por celtas e germânicos. Não obstante, é um fato que os regimes etílicos destes conjuntos culturais se diferenciavam em muitos aspectos, diferenças que se tornaram ainda mais evidentes quando os dois mundos se separaram, de forma radical, nos primórdios da era moderna, com a Reforma Protestante 11. 8

Haia, 04/05/1648, Cartas… cit., p. 388. Haia, 12/01/1648, Cartas… cit., p. 343. 10 Haia, 27/01/1648, Cartas… cit., p. 356. 11 Existe uma farta bibliografia acerca dos diferentes padrões de consumo etílico na Europa. Citaria, dentro de uma perspectiva histórica, Ruth C. ENGS, «Do Traditional Western European Practices Have Origins In Antiquity?», Addiction 9

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Ora, portugueses e holandeses representavam exemplos clássicos destes dois regimes etílicos, e de suas contradições. Em nenhum outro lugar, e em nenhum outro momento, estas contradições culturais tornaram-se tão claras quanto no Nordeste do Brasil, entre 1630 e 1654. Naquele contexto histórico específico, no qual os povos do norte da Europa12 tiveram um papel de proa na vida da América portuguesa, os conflitos políticos e militares revestiram-se, muitas vezes, de um discurso da diferença, frequentemente vazado em termos de contraposições nas práticas alimentares e etílicas. Estas distinções serviram aos atores envolvidos como um meio de afirmar e reforçar suas identidades étnicas e religiosas: enquanto portugueses e holandeses envolviam-se naquilo que já foi chamado de “primeira guerra global” 13, os luso-brasileiros esforçavam-se para expulsar da Nova Lusitânia (Pernambuco) os hereges holandeses, através de uma luta que combinava um novo tipo de guerra não-convencional (a chamada “guerra brasílica”), e uma renhida batalha religiosa e cultural. Nesta batalha, as diferenças de comportamento entre luso-brasileiros e holandeses assumiram uma extraordinária importância: quando um dos comandantes da resistência lusobrasileira (André Vidal de Negreiros) execrava a dipsomania dos conquistadores holandeses de Pernambuco, chamando-os, depreciativamente, de “bebedores de cerveja” 14, não estava apenas verbalizando o ódio ao inimigo herético, mas também trazendo à tona um conflito que se inscrevia em uma temporalidade profunda, e em um também profundo processo de aproximações e separações, as quais se construíram, em grande medida, em torno de um copo (ou vários) de bebidas inebriantes. Nesta comunicação, na qual apresento um resultado parcial de minha pesquisa acerca dos regimes etílicos no Brasil Colonial 15, analisarei alguns aspectos deste choque de culturas, notadamente o papel dos soldados holandeses, e de seus hábitos ao beber, durante a conquista de Pernambuco; a participação das mulheres holandesas (e de outras nacionalidades) nos banquetes e “beberetes”; e o papel das bebidas alcoólicas durante as cerimônias promovidas pelo Príncipe Conde Maurício de Nassau.

Uma Europa dividida pelas bebidas. Comer e beber são duas das necessidades mais básicas dos seres humanos. Este imperativo biológico, porém, não torna estes atos menos “culturais” e, portanto, dependentes de Research, 2 (3), 1995, pp. 227-239, e Kim BLOOMFIELD, Tim STOCKWELL, Gerhard GMEL e Nina REHN, «International Comparisons of Alcohol Consumption», Alcohol Research & Health, 27 (1), 2003, pp. 95-109. 12 Neste texto farei referência aos “holandeses”, e ao “Brasil Holandês”, como uma conveniência consagrada pela prática historiográfica e pelo uso comum. Não obstante, deve-se recordar que, naquele momento, o que existia eram as Províncias Unidas, das quais a Holanda era, por certo, a parcela mais importante, econômica e politicamente. Já no século XVII era comum chamar os habitantes das Províncias Unidas de holandeses: cf. Paul ZUMTHOR, A Vida Quotidiana na Holanda no Tempo de Rembrandt, Lisboa, Livros do Brasil, s.d., pp. 9-15. A grande interessada na conquista de Pernambuco era, contudo, a província da Zelândia, de onde vinha uma boa parte dos capitais investidos na Companhia das Índias Ocidentais, cuja sede alternava-se entre Middelburg (Zelândia) e Amsterdã (Holanda). Além disso, muitos flamengos, alemães, franceses, ingleses, poloneses, entre outros, migraram para o Brasil, especialmente como soldados pagos. 13 Peter C. EMMER, «The First Global War: The Dutch versus Iberia in Asia, Africa and the New World, 1590-1609», eJournal of Portuguese History, 1 (1), 2003, pp. 1-14; cf. Charles R. BOXER, O Império Colonial Português (1415-1825), Lisboa, Ed. 70, 1981, p. 117. 14 Pierre Moreau, 1979 (1ª edição: 1651), História das últimas lutas no Brasil entre Holandeses e Portugueses, Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/Edusp; cf. Evaldo Cabral de Mello, 2001, A Ferida de Narciso: ensaio de história regional, São Paulo, Ed. SENAC, p. 36. 15 Esta pesquisa prossegue o trabalho que realizei em minha tese de doutoramento, Selvagens Bebedeiras: Álcool, Embriaguez e Contatos Culturais no Brasil Colonial, defendida em 2004, no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, sob a orientação de Ronaldo Vainfas. A Contenção e o Excesso: Bebida, Embriaguez e Identidades Étnicas no Brasil Holandês. (1630-1654)

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um contexto histórico e social. Alimentos e bebidas são objetos culturais extremamente ricos em termos simbólicos, na medida em que, ao serem ingeridos, tornam-se uma forma de “cultura material corporificada”. Desta forma, aquilo que se come (ou se bebe), com quem, em que lugar, em que quantidade, tudo isto representa uma série de atos de cultura que jamais são neutros ou desprovidos de significado. Isto é tanto mais verdadeiro quando se trata das bebidas alcoólicas. Além de serem, elas próprias, fontes de energia e de nutrientes, as bebidas possuem uma característica que as torna uma forma de alimentação única: suas propriedades psicoativas. A possibilidade da embriaguez faz das bebidas objetos culturais corporificados que interferem agudamente no próprio comportamento dos indivíduos. Todas as culturas que permitem o consumo das bebidas alcoólicas possuem uma série de regras de consumo e de comportamento etílico, que devem ser aprendidas e reproduzidas, e que, frequentemente, funcionam como mecanismos para a construção de categorias de identidade e de diferença 16. O caso da Holanda de princípios da era moderna é exemplar quanto ao papel crucial desempenhado pelas bebidas e pela embriaguez na formação das personalidades individuais e das identidades étnicas. É claro que devemos nos acautelar quanto à existência de estereótipos, extremamente comuns em uma época de formação das identidades nacionais européias, e nos quais se combinavam preconceitos étnicos e religiosos. Uma peça teatral espanhola anônima de princípios do século XVII, El Brasil, mostrava os habitantes das Províncias Unidas como bêbados, inclusive por conta de sua religião herética: “vinistas no son sólo por el vino, que añadiendo tres letras, son calvinistas” 17. Mesmo outros povos bem conhecidos por seu amor às proezas etílicas, como os ingleses, viam os holandeses como grandes concorrentes ao título de campeões nesta área. Para o viajante Fynes Moryson, escrevendo em 1617, quase todos os outros povos europeus se caracterizavam pelos excessos etílicos, mas ninguém se comparava aos saxões e holandeses: “os holandeses se excedem menos na bebida que os saxões, mas mais do que os outros alemães.... Mas devo dizer, a bem da verdade, que no dia-a-dia eles se excedem tanto quanto os saxões” 18. Costumava-se debitar os hábitos etílicos dos holandeses à dureza das condições climáticas vigentes em seu país: em princípios do século XVI, o italiano Lodovico Giucciardini afirmou que os holandeses bebiam muito pela necessidade de se proteger dos vapores gelados que subiam dos pântanos e valas sobre os quais se situava a Holanda, diagnóstico com o qual concordava o já citado Fynes Moryson 19. William Temple, embaixador inglês em Haia na segunda metade do século XVII, dizia que a bebida era indispensável aos holandeses, para que o espírito pudesse ser despertado sob um “clima tão pesado”, e que as condições climáticas impediam que os efeitos da bebida fossem mais “calamitosos”. Para Temple, não existia holandês que não houvesse se embebedado pelo menos uma vez na vida, já que sua vida austera só conhecia uma alegria e um luxo: o álcool 20. Como afirmei há pouco, estas descrições dos hábitos holandeses carregam uma boa dose de preconceitos étnicos e religiosos, os quais afetavam também outros povos, como os 16

Michael DIETLER, «Theorizing the Feast: Rituals of Consumption, Commensal Politics, and Power in African Contexts», in Michael DIETLER e Brian HAYDEN (ed.), Feasts: archaeological and ethnographic perspectives on food, politics, and power, Washington, Smithsonian Institution Press, 2001, pp. 65-114; cf. Sidney W. MINTZ, «Comida e Antropologia: Uma breve revisão», Revista Brasileira de Ciências Sociais, 16 (47), 2001, pp. 31-41. 17 Citado por Benjamin ROBERTS, «Drinking Like a Man…» cit., p. 238. 18 Citado por George E. LIGHT, «Beer, Cultivated National Identity, and Anglo-Dutch Relations, 1524-1625» Journal x, 2 (2), 1998, http://www.olemiss.edu/depts/english/pubs/jx/2_2/light.html, 03/10/2005. 19 Simon SCHAMA, O Desconforto da Riqueza: a cultura holandesa na Época de Ouro, uma interpretação, São Paulo, Cia. Das Letras, 1992, p. 193. 20 Paul ZUMTHOR, A Vida Quotidiana... cit., pp. 211-212. 4

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alemães. Afinal, não foi o próprio Martinho Lutero que afirmou, a respeito de seus compatriotas, e de si mesmo, que “os alemães bebem como mercenários; sendo assim (...) como queres exibir um alemão, tratando-se especialmente de um que não ama nem a música nem as mulheres, se não for com a embriaguez?” 21. Não obstante os preconceitos, este tipo de avaliação estava bastante relacionado às diferenças nos regimes etílicos entre o “sul” e o “norte” da Europa, distinções mais culturais do que geográficas. As bebidas destiladas, por exemplo, tornaram-se populares a partir de sua utilização recreativa por parte dos povos do norte europeu. Como mostrou Fernand Braudel, o álcool destilado de vinho, a acqua vitae, sempre foi visto como um remédio, pelo menos até os fins do século XV. A transformação se deu na passagem do século XV para o XVI: em 1496 a cidade de Nuremberg era forçada a proibir a venda de álcool em dias de festa; três anos antes um médico local alertava que, “já que agora toda a gente tomou o hábito de beber acqua vitae, será necessário lembrar a quantidade que se pode beber e aprender a beber conforme a capacidade de cada um, para quem quiser comportar-se como um fidalgo”. Ainda segundo Braudel, os países nórdicos foram mais avançados no uso das aguardentes que os latinos: Veneza só cobrou impostos de importação sobre a acquavitae em 1596, e em Barcelona só se falou nisto no século XVII 22. Foram os holandeses os grandes popularizadores do “vinho queimado” entre os latinos, a partir do século XVII. Os holandeses já haviam desenvolvido ao máximo o comércio de vinhos para o norte europeu, levando a bebida da Borgonha para o Báltico, de Bordeaux para a Alemanha e Suécia, de Málaga e do Douro para a Inglaterra, e do Reno para a própria Holanda, entre outras rotas comerciais 23. Seu maior sucesso etílico, porém, foi com as bebidas destiladas, podendo-se afirmar que foram os holandeses que criaram este fabuloso mercado: aliás, os nomes de dois dos destilados mais populares no norte europeu eram derivados da língua holandesa, o brandy (de brandewijn, “vinho queimado”) e o gim, de jenever ou genever (tradução holandesa do latim juniperu, ou zimbro, com o qual se temperava a aguardente de cereais fabricada na própria Holanda) 24. Foram também os holandeses que desenvolveram a produção de aguardentes de vinho na França, especialmente na região de Cognac, financiando os produtores (trazendo cobre da Suécia para a fabricação de alambiques, por exemplo) e comprando sua produção, que era exportada para a Inglaterra e Irlanda, além da própria Holanda 25. E isso para não falar em seus próprios destilados, como a genebra, que não se tornariam realmente populares até o século XVIII26. Nos séculos XVI e XVII explodiu uma verdadeira moda da bebedeira entre os povos nórdicos, no que não foram seguidos pelos latinos: um italiano, escrevendo nesta época, agradecia a Deus, já que “entre as muitas pestes que nos vêm de além das montanhas, a pior de todas ainda não nos alcançou, que é a de se considerar a embriaguez não como um assunto para gargalhadas, mas como um mérito” 27. Outro italiano, Tomaso Garzoni, escreveu em 1626 uma 21

Citado por Massimo MONTANARI, A Fome e a Abundância: História da Alimentação na Europa, Bauru, Edusc, 2003, p. 141. 22 Fernand BRAUDEL, Civilização Material, Economia e Capitalismo (v. I: As Estruturas do Cotidiano), São Paulo, Martins Fontes, 1995, pp. 215-216; a expressão acqua vitae permaneceu no nome de várias bebidas alcoólicas: eau de vie, akvavit, vodka, e na expressão gaélica uisge beatha, ou uisge, que a corruptela inglesa transformou em whisky: cf. Reay TANNAHILL, Food in History, London, Penguin Books, 1988, p. 244. 23 SCHAMA, O Desconforto da Riqueza... cit., p. 196. 24 David T. COURTWRIGHT, Forces of Habit: Drugs and the Making of the Modern World, Cambridge, Harvard University Press, 2002, p. 12. 25 Hugh JOHNSON, A História do Vinho, São Paulo, Cia. das Letras, 1999, pp. 206-207; cf. ZUMTHOR, A Vida Quotidiana... cit., p. 213; cf. BRAUDEL, As Estruturas do Cotidiano… cit., p. 216. 26 ZUMTHOR, A Vida Quotidiana... cit., p. 213. 27 TANNAHILL, Food in History cit., p. 243. A Contenção e o Excesso: Bebida, Embriaguez e Identidades Étnicas no Brasil Holandês. (1630-1654)

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obra, Piazza Universale, na qual descrevia hábitos e vícios de vários povos, e na qual afirmava que os holandeses e os alemães eram “copiosos bebedores”, sendo péssimos exemplos de comportamento para italianos e espanhóis, assim como os hilotas eram maus exemplos para os espartanos na antiga Grécia 28. Os próprios holandeses reconheciam seu pendor para o uso recreativo do álcool, pelo menos no que diz respeito aos sermões dos predicantes da Religião Reformada. Em uma sociedade afluente, como era a Holanda da Época de Ouro, um dos maiores argumentos dos predicantes era quanto ao fato de que o vício da embriaguez levava à ruína econômica e social. Ruína que também poderia ser estética, argumento dos mais sonantes em um mundo no qual os jovens dedicavam muito do seu tempo ao espelho e aos adornos pessoais. O ministro Bernardus Wallenkamp, em seu livro de catecismo Inleydinghe in Zions-schole (Introdução à Escola de Sião, 1661), dizia que os excessos etílicos poderiam tornar os jovens carecas, entre outros males da velhice. E o pior: ao se tornar um bêbado, o jovem perderia o respeito dos outros e se tornaria um “degenerado social”, ao ignorar as “boas maneiras” e agir como um tolo. Em suas próprias palavras: “o bêbado grasna como um pato, seu bico está sempre se movendo, quer dominar toda conversação, fala sobre tudo, fala antes de pensar, jura, mente e ameaça. No fim, suas palavras transformam-se em ações. Ele começará a gritar e iniciará uma luta, e eventualmente causará uma morte” 29. Outras advertências eram ainda mais catastróficas, como aquela feita por Dirck Pers (Bacchus wonder-wercken, 1628), que lançou a responsabilidade pelas grandes inundações (com destruição de diques), ocorridas em 1624 e 1626, aos beberrões holandeses: “o vinho e bebidas fortes / jorram como mares / sobre barragens e diques e grandes palácios, / sobre tesouros e fortunas, / e todas as grandes casas de nossa Pátria” 30. As admoestações dos predicantes tinham um efeito mínimo sobre o comportamento etílico de seus ouvintes, o que não é de se espantar, dado o papel social crucial exercido pelas bebidas alcoólicas na Holanda moderna. Além disso, a própria Reforma Protestante representou uma abertura para os excessos alimentares e etílicos, em sua crítica às rígidas normas dietéticas do Catolicismo Romano. Como disse Martinho Lutero, “como o pai diz à sua família: - Sejam solícitos à minha vontade; quanto ao resto comam, bebam, vistam-se como quiserem -, assim Deus não se preocupa com o que comemos ou vestimos” 31. A contradição entre o rigor ascético de boa parte da vida holandesa, e a volúpia com a qual os neerlandeses se atiravam à bebida e ao tabaco saltavam aos olhos dos observadores coevos. Todas as ocasiões especiais eram marcadas por banquetes pantagruélicos, e se, no caso dos mais pobres, faltava a comida em abundância, isto era compensado por oceânicas doses de cerveja, vinho, conhaque ou genebra 32. É claro que a bebida era uma parte integrante da rotina diária, até mesmo por conta dos enormes riscos corridos por quem se aventurasse a consumir a água disponível antes do advento dos sistemas de tratamento. Os lavradores costumavam sair para trabalhar após fazer uma refeição de ovos, açúcar, cerveja quente e boa dose de conhaque. Funcionários públicos, comerciantes, mestres-escolas, burgomestres, e mesmo predicantes eram freqüentemente encontrados caídos pelas ruas, quando não morriam ao caírem nos canais durante as noites escuras. Muitos destes eram punidos por se entregarem à embriaguez escancarada, como ocorreu, em 1634, com o pregador Jan Swartenius, expulso de seu ministério por estar constantemente bêbado, e por brigar nas ruas e tabernas 33. 28

Cf. ROBERTS, «Drinking like a Man...» cit., p. 242. Citado por ROBERTS, «Drinking like a Man...» cit., p. 244. 30 Citado por SCHAMA, O Desconforto da Riqueza... cit., p. 220. 31 Citado por MONTANARI, A Fome e a Abundância... cit., p. 145. 32 ZUMTHOR, A Vida Quotidiana... cit., p. 209. 33 SCHAMA, O Desconforto da Riqueza... cit., pp. 202-205. 29

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Mas era mesmo nos banquetes que os pendores etílicos atingiam o paroxismo. A instituição do banquete era essencial à vida coletiva dos holandeses. Banqueteava-se nos casamentos, quando as mulheres ficavam grávidas, nos nascimentos, funerais, ou quaisquer outros momentos importantes do ciclo de vida. Elaboradas cerimônias eram realizadas nestas ocasiões, com uma pletora de brindes realizados com copos e taças especialmente fabricadas para cada momento específico. Quando um casal anunciava a gravidez da esposa, por exemplo, uma taça especial, chamada Hansje in de kelder (“pequeno Hans na barriga”) era apresentada aos convidados, que bebiam à saúde da criança por nascer. Quando a taça estava cheia, uma pequena criança era visível no fundo, mas conforme se bebia a criança desaparecia, o que exigia que a taça fosse novamente preenchida 34. Este tipo de jogo, no qual o objetivo era beber à farta, combinado à enorme quantidade de brindes que eram feitos pelos circunstantes, levava naturalmente a constantes episódios de embriaguez, por parte de homens e também das mulheres. Um viajante francês, Theófhile de Viau, escreveu que “todos estes senhores dos Países-Baixos têm tantas regras e cerimônias para se embebedarem que a disciplina deles me aflige tanto como o excesso”35. Como é óbvio, não eram apenas os holandeses que bebiam tanto na Europa moderna. Uma sociedade de temperança, fundada na cidade alemã de Hesse em 1600, impunha a seus sócios um limite de sete taças de vinho por refeição, o que nos permite especular a respeito da quantidade de bebida consumida pelos não-sócios 36. Fynes Moryson atacava não apenas a embriaguez dos holandeses, mas também a de alemães, dinamarqueses, suíços e poloneses, somente elogiando a temperança dos franceses, para os quais a embriaguez era “reprovável”, e que geralmente bebiam vinho diluído com água 37. De todo modo, é um fato que as proezas etílicas acompanharam as proezas econômicas dos holandeses da Era de Ouro, os quais não apenas criaram o moderno mercado de bebidas, mas também desenvolveram ao máximo o seu consumo. Não beber significava a recusa em compartilhar de algo vital para a constituição de uma identidade nacional em um período crítico da vida dos holandeses, envolvidos em guerras - abertas ou não - com rivais perigosos e tenazes. Tomar “um copinho” (een borreltje) era considerado um verdadeiro ato patriótico. É também curioso perceber que as hierarquias sociais da Holanda eram especialmente permeáveis ao poder e à sedução das bebidas. No quadro Prinjesdag (1660), do pintor Jan Steen, que se especializou em representações do quotidiano holandês, nas quais não faltam cenas de bebedeiras, aparece um papel, em primeiro plano, no qual está transcrito um brinde ao aniversário do príncipe Guilherme III (o assunto da obra), o qual diz o seguinte: Op de gesontheyt van het nassaus basie / in de eene hanthet rapier in de andere hant het glaesie (“À saúde do pequeno chefe de Nassau, / Numa das mãos a espada, na outra o copo”) 38. Ora, observando como os holandeses tratavam sua nobreza de sangue, ainda mais claras, e radicais, se tornam suas diferenças com os portugueses. Afinal, ao falarmos dos lusos estamos tratando de um povo que elogiava um de seus nobres mais importantes, o Infante D. Henrique, nos seguintes termos: “viveu sempre tão virtuosa e castamente que nunca conheceu mulher nem bebeu vinho nem foi achado em outro vício que de repreender fosse, trazendo continuadamente cilício a redor de suas carnes (...)” 39. 34

ROBERTS, «Drinking like a Man...» cit., p. 239. ZUMTHOR, A Vida Quotidiana... cit., p. 212. 36 A. Lynn MARTIN, «How much did they drink? The consumption of alcohol in traditional Europe», 1998, http://www.arts.adelaide.edu.au/centrefooddrink/articles/howmuchdrink.html, 03/10/2005. 37 George E. LIGHT, «Beer, Cultivated National Identity…» cit. 38 SCHAMA, O Desconforto da Riqueza... cit., p. 202. 39 Duarte Pacheco PEREIRA, Esmeraldo de Situ Orbis, 1504 (I, 22), in Antônio BRÁSIO (col.), Monumenta Missionaria Africana (2ª serie, v. I, África Ocidental, 1342-1499), Lisboa, Agência Central do Ultramar, pp. 254-255. 35

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Desta forma, estava configurada, no contexto da luta luso-neerlandesa pelo controle do Brasil (e, por extensão, de todo o Atlântico Sul), uma profunda clivagem cultural, que contrapunha dois modos muito distintos de relação com a experiência etílica. Porém, por mais que esta cisão já se colocasse na própria Europa, a forma como ela se efetivou no Brasil estava sujeita às determinações próprias daquela situação colonial. Ao atacarem Salvador, em 1624, e ao conquistarem Olinda, em 1630, os holandeses viram-se em meio a um novo mundo, no qual outras etnias, e outros modos de beber, se relacionavam e se chocavam. A Cidade dos Beberrões Gilberto Freyre, em seu clássico sobre a história cultural do Recife, afirmou que a Cidade Maurícia dos holandeses era “(...) um burgo de beberrões. Pessoas da melhor posição social eram encontradas bêbadas pelas ruas. Os próprios observadores holandeses da época se espantavam do contraste entre sua gente e a luso-brasileira”. Além da farta documentação produzida por portugueses e outros europeus, Freyre apóia sua opinião em um relato de dois frades capuchinhos italianos, que estiveram no Recife em 1667, e que “ficaram admirados de ver os habitantes avessos ao uso do vinho: quase todo mundo bebia água pura” 40. É certo que não se pode ver a “gente luso-brasileira” como um bloco homogêneo, desconsiderando-se especificidades étnicas e sociais. Sabemos, por exemplo, que a Olinda préholandesa importava uma grande quantidade de vinho da Europa: o padre jesuíta Fernão Cardim, viajando pela costa brasileira entre 1583 e 1590, afirmou que os “homens grossos” da terra faziam “grandes excessos” na importação de artigos de luxo, além de serem “mui dados a festas” e banquetes, por conta das quais “bebem a cada ano 50 mil cruzados de vinho de Portugal; e alguns anos beberam oitenta mil cruzados (...)” 41. O próprio Gilberto Freyre não deixa de apontar o consumo conspícuo e suntuário, por parte das elites de Pernambuco, do vinho europeu, que “corria à toa, pela toalha, pelo chão, só por luxo”42. Havia, portanto, um espaço social reservado pelos luso-brasileiros aos excessos etílicos; não obstante, este espaço era ocupado pelos homens da elite. No Brasil anterior à invenção da aguardente de cana – que, aparentemente, só passou a ser fabricada em princípios do século XVII – os excessos etílicos eram algo raro, somente disponíveis àqueles que podiam pagar pelo caro vinho importado. Desta forma, fica claro que aquilo que transparece nos textos e documentos acerca do período do domínio holandês no Brasil - o choque entre dois regimes etílicos distintos – era bem mais do que um conjunto de estereótipos acerca dos “hereges holandeses”. O conflito entre lusobrasileiros e holandeses assumiu, de fato, uma faceta etílica, que deve ser compreendida a partir das características específicas que se desenvolveram no contexto brasileiro da primeira metade do século XVII. Não obstante seu caráter originalmente comercial, a conquista holandesa do Brasil acabou por se tornar uma empresa marcadamente militar, seja pela própria necessidade de ocupação do território e das fortificações, seja por conta da tenaz resistência (militar sim, mas principalmente cultural) por parte dos luso-brasileiros. Tal resistência jamais permitiu que a produção e o comércio do açúcar se estabilizassem e remunerassem os pesados investimentos da Companhia das Índias Ocidentais (West-Indische Compaignie, ou WIC) 43. 40

Gilberto FREYRE, Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano, São Paulo, Global, 2003 (1936), p. 280. 41 Fernão CARDIM, Tratados da Terra e Gente do Brasil, São Paulo / Brasília, Cia. Ed. Nacional / INL, 1978, pp. 201202. 42 FREYRE, Sobrados e Mucambos... cit., p. 281. 43 Evaldo Cabral de MELLO, Olinda Restaurada: Guerra e Açúcar no Nordeste, 1630-1654, Rio de Janeiro, Topbooks, 1998. 8

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Este caráter militar torna o soldado uma figura chave para a realização de qualquer análise da presença holandesa no Brasil construída com base na perspectiva da história cultural. Jovens e pobres, em sua grande maioria, e oriundos de vários países europeus, os soldados representaram a linha de frente no “choque etílico” ocorrido no Brasil, entre uma sociedade marcada pela relativa frugalidade etílica e outra na qual o álcool representava um sinal distintivo da nacionalidade. É bem verdade que se deve evitar qualquer forma de “reducionismo militar”, na análise deste período. Na própria expedição de conquista de Pernambuco, comandada (em terra) pelo coronel Theodoor Van Waerdenburgh, podemos observar o olhar de um holandês francamente abstêmio, o ministro calvinista João Baers. Em vários trechos, Baers elogia o coronel Waerdenburgh por sua aversão aos excessos no comer e beber, tomando-o como um modelo de comandante calvinista. Descontadas as louvaminhas ao chefe, o texto de Baers é extraordinário como exemplo do pensamento antialcoólico da Igreja Reformada: (...) é ele (Waerdenburgh) muito sisudo, de grande sobriedade e temperança, usando a bordo de muita moderação na comida e bebida, e não só abstendo-se de excessos, mas, por meio de jejuns e preces, preparando-se com antecedência para, com uma boa consciência, em tempo e hora cometer virilmente a execução da empresa 44. Aproveitava o predicante para, com o virtuoso exemplo do coronel, aconselhar os grandes do mundo a seguir-lhe o exemplo: “é uma bela e não menos necessária virtude em um Príncipe ou General (útil à conservação de sua posição, terra e povo) que seja sempre sóbrio e moderado no uso e gozo de alimentos e bebidas”. Conselho bastante útil, pelo menos na ótica do ministro, já que o repete logo em seguida: (...) os príncipes e generais que desejam obter vitórias sobre seus inimigos, ou conservar vitórias ganhas, devem cuidar de viver frugalmente, porque com uma cabeça ébria e um ventre repleto, não pode-se cuidar, nem velar, nem rezar, mas, fica-se sonolento e negligente, e incapaz de realizar qualquer empresa, baldo de prudência e atividade 45. Aos soldados e marinheiros, contudo, tais pregações deviam parecer bastante deslocadas. O próprio Waerdenburgh não deixava de fazer uso da bebida em seu trato com os comandados: durante a preparação do assalto a Pernambuco, “o Senhor Coronel fez ir à câmara todos os soldados que se achavam no navio (...), e escançou a cada um um trago de vinho de Hespanha, exortando-os à coragem e ao valor” 46. O gesto do comandante é esclarecedor quanto ao significado das bebidas alcoólicas na vida dos homens que manejavam os barcos e lutavam contra os inimigos. Para além do simbolismo do gesto, aguardentes, vinhos e cervejas eram gêneros de primeira necessidade, tanto pela justificada desconfiança em relação à água de beber, quanto pela percepção de que as bebidas alcoólicas eram fundamentais para a manutenção da boa saúde dos viajantes. Ambrosius Richshoffer, soldado que participou da conquista de Olinda, conta-nos que, durante a viagem, cruzaram com um navio mercante que levava vinho das Canárias. Presenteados com um barrilete do vinho, o mesmo foi imediatamente distribuído aos doentes 47. A perspectiva de ficar sem bebidas nos navios era apavorante para todos (e mais ainda para os 44

João BAERS, Olinda Conquistada, Recife, Secretaria de Educação e Cultura, 1977 (1630), pp. 7-8. Idem, Ibidem, pp. 11-13. 46 Idem, Ibidem, p. 16. 47 Ambrosius RICHSHOFFER, Diário de um soldado da Companhia das Índias Ocidentais (1629-1632), São Paulo / Brasília, IBRASA / INL, 1978 (1677), p. 33. 45

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doentes), pois teriam que se haver com a água infecta: uma frota que veio ao Brasil em 1648 passou por este problema. Demorando-se em demasia, devido ao mau tempo, os homens “(...) tinham consumido toda a cerveja. Eram obrigados neste frio extremo a beber água e desde que os navios não estavam providos de vinho ou aguardente, já se pode prever qual será o resultado”48. A falta de bebida poderia também ser um motivo para motins por parte dos soldados e marinheiros. Em 1646, na atribulada viagem que trouxe ao Brasil os últimos Altos Conselheiros que governaram o Recife, os soldados alemães se sublevaram, dizendo que não recebiam queijo, aguardente ou fumo. Armados, roubaram as chaves da dispensa do navio e beberam e comeram durante dois dias, ameaçando lançar todos os oficiais ao mar. Somente quando saciados o motim foi vencido, e sendo os soldados necessários, não foram punidos, recebendo ademais “uma libra de fumo, aguardente e um queijo da Holanda” 49. Os motins e episódios de indisciplina de soldados e marinheiros, causados pela falta ou pelo excesso de bebidas, representam um capítulo à parte na história da conquista holandesa do Brasil. Muito embora o hábito de consumir bebidas em excesso fosse bastante espalhado pela sociedade holandesa, era entre os soldados e marinheiros que a dutch courage mais se fazia presente. No evento citado há pouco, narrado pelo soldado Richshoffer, os mesmos marinheiros que trouxeram o vinho para os doentes aproveitaram para se embriagar “por tal forma que foi preciso içá-los a bordo com cordas, e o vinho forte quase lhes paralisou o coração” 50. Era necessária uma vigilância permanente sobre as bebidas dentro dos navios, como veio a descobrir o Alto Comissário Hendrick Haecx, em sua primeira viagem ao Brasil (1646). Com seu navio fundeado em Itamaracá, por causa da maré baixa, Haecx e outros passageiros tomaram um barco menor em direção ao Recife, e por pouco não naufragaram, porque o barqueiro “estando embriagado, foi, por imprudência, bater num rochedo do lado da terra”. Os outros marinheiros pouco ajudaram “pois durante a noite haviam mexido no nosso vinho, fartando-se dele”, e mesmo Haecx e seus companheiros pareciam ter tido uma noite bastante animada, pois todos estavam “bastante indispostos” 51. Joan Nieuhof, alto funcionário da WIC que esteve no Brasil entre 1640 e 1649, também descreveu cenas de bebedeiras entre os marinheiros, com conseqüências bastante funestas. Diz o autor da Memorável Viagem que, tendo os navios holandeses apresado uma barcaça portuguesa carregada de vinho, “os marinheiros se embriagaram a tal ponto que, ao procederem ao descarregamento, no Recife, mal podendo fazer o seu trabalho, deixaram cair um barril de vinho, do que resultou a morte de um homem, ficando vários outros feridos” 52. As fontes são copiosas quanto às proezas etílicas dos soldados da WIC no Brasil Holandês. Na verdade, as descrições das bebedeiras dos soldados holandeses (e de outras nacionalidades) representam um tópos importante nos relatos sobre a conquista dos holandeses, de um lado ou de outro. Nas fontes holandesas, a indisciplina etílica dos soldados sempre aparece como um grave problema militar e de segurança pública, servindo, muitas vezes para exemplificar as virtudes disciplinadoras dos comandantes militares e civis. No caso das fontes portuguesas, a descrição do comportamento dos soldados servia à farta para a demonstração do caráter irremediavelmente herético e diabólico dos adeptos da religião reformada. Já na conquista de Pernambuco os soldados demonstraram que não estavam ali apenas para se arriscarem a morrer a seco, se pudessem fazê-lo na companhia de um bom vinho. A 48

Hendrick HAECX, «Diário de Henrique Haecx, Membro do Alto Conselho do Brasil (1645-1654)», Anais da Biblioteca Nacional, 69, 18-159, 1950,p. 122. 49 MOREAU, História das últimas lutas... cit., pp. 57-58. 50 RICHSHOFFER, Diário de um soldado... cit., p. 34. 51 HAECX, «Diário...» cit., p. 66. 52 Joan NIEUHOF, Memorável Viagem Marítima e Terrestre ao Brasil, Belo Horizonte / São Paulo, Itatiaia / Edusp, 1981 (1682), p. 292. 10

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chegada em Olinda, depois de uma longa caminhada e de vários combates sob o sol tropical, foi comemorada com o “delicioso vinho de Espanha”, encontrado em grande quantidade nas casas e armazéns da capital da Nova Lusitânia. A primeira noite dos soldados foi bem atribulada, já que alguns deles, bastante embriagados, “ficaram deitados nas ruas e casas como brutos irracionais, dando motivos a contínuos rebates falsos, de modo que até o romper do dia pouco pudemos descansar” 53. Um dos comandantes das tropas da Companhia, o polonês Crestofle Arciszewski, ficou furioso com o comportamento dos soldados, assim como de alguns oficiais, que os acompanharam nos saques e borracheiras: “(...) e eles beberam o vinho que lá estava em abundância e não voltaram para seus estandartes por três dias, tempo no qual os oficiais fizeram o mesmo, assim que se o inimigo, que estava próximo à cidade, tivesse atacado com apenas 300 homens, seríamos todos abatidos...” 54. Durante todo o período do domínio holandês, os governantes manifestaram uma aguda preocupação com o problema da soldadesca. Além da inclinação cultural pelas proezas etílicas (compartilhada pela maioria dos holandeses no Brasil, vale salientar), os soldados buscavam nas bebidas um alívio para sua difícil situação no Brasil. Recrutados com inúmeras promessas na Europa, quando chegavam ao Brasil os soldados da WIC encontravam uma dura realidade, e não apenas por conta dos combates com os inimigos luso-brasileiros, mas também pelas arbitrariedades cometidas por seus próprios superiores. Em um texto altamente crítico à ação dos agentes da WIC em Pernambuco, o comerciante francês Auguste de Quelen denunciou as constantes torturas a que eram submetidos os soldados (“as torturas e mais tormentos ordinários e extraordinários lá são aplicados no meio de risadas e por entre o fumo do tabaco e do vinho”), e o fato de que fossem condenados à morte por motivos fúteis, pois o Conselho de Guerra (que julgava os casos de indisciplina) “tinha tão pouco escrúpulo de condenar um soldado à morte quanto uma galinha” 55. A par disso, o abastecimento das tropas deixava muito a desejar 56, o que impelia os soldados a beberem tudo o que pudessem, quando qualquer bebida estava disponível, incluindo as bebidas da terra. Sendo o vinho e a aguardente vendidos a preços exorbitantes na Cidade Maurícia, os soldados, ao receberem seus soldos (geralmente com atraso), tratavam de gastar a maior parte na compra da garapa (bebida fermentada, feita de açúcar e água) 57. 53

RICHSHOFFER, Diário de um soldado... cit., p. 60. Citado por Harald S. van de STRAATEN, Brasil: Um Destino, Brasília, Linha Gráfica, 1998, p. 64; compare-se este trecho com uma descrição portuguesa anônima da tomada de Salvador, em 1624, pelos holandeses, que afirma que os soldados da Companhia estavam tão ocupados no saque e “entregues ao vinho”, que poderiam ter sido facilmente dominados, “com duzentos arcabuzeiros”, o que acabou não ocorrendo, por falta de quem os atacasse: «Manuscrito Português sobre a Conquista Neerlandesa de Salvador da Bahia (1624)», in B. N. TEENSMA (org.), Brasil Holandês: Dois Manuscritos Portugueses sobre a Conquista Neerlandesa – 1624 e Reconquista Luso-Espanhola – 1625 de Salvador da Bahia no Brasil, Rio de Janeiro, Index, 1999, p. 56. 55 Auguste de QUELEN, 1640, “Breve Relação do Estado de Pernambuco. Dedicada à Assembléia dos XIX da nobilíssima Companhia das Índias Ocidentais”, in José Antônio Gonsalves de MELLO (ed.), Fontes para a História do Brasil Holandês (v. II – Administração da Conquista), Recife, CEPE, 2004, p. 440. 56 “Visitei o armazém (...), mas não encontrei ali toucinho novo, vinho e aguardente e por isto os soldados estão muito ressentidos...”, Adriaen van Bullestrate, “Notas do que se passou na minha viagem, desde 15 [sic] de Dezembro de 1641 até 24 de Janeiro do ano seguinte de 1642”, in Gonsalves de MELLO, Administração da Conquista... cit., p. 164. É bem verdade que as tropas holandesas estavam entre as mais bem abastecidas da Europa, o que os fazia ainda mais vulneráveis às dificuldades da conquista no Brasil: “(...) os soldados holandeses, habituados a comer à saciedade, não toleram os jejuns que facilmente suportam os soldados vindos de lugares confragosos e de terras pobres” (Gaspar BARLAEUS, História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil, Recife, Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1980 (1647), p. 35. 57 Adriaen van der DUSSEN, «Relatório sobre o Estado das Capitanias conquistadas no Brasil, apresentado pelo Senhor Adriaen van der Dussen ao Conselho dos XIX na Câmara de Amsterdã, em 4 de abril de 1640», in José Antônio Gonsalves de MELLO (ed.), Fontes para a História do Brasil Holandês (v. I – A Economia Açucareira), Recife, CEPE, 2004, p. 210. 54

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Era esta uma prática acerbamente criticada pelo médico Willem Piso, que dizia ser a garapa consumida “pela turba dos soldados e dos africanos” uma bebida “mal defecada”, e fabricada por “taverneiros gananciosos” que acrescentavam “folhas da árvore acaju” para “embriagar mais depressa” 58. A necessidade das bebidas fazia com que os soldados experimentassem também as bebidas indígenas do Brasil, a exemplo do vinho de caju, como ocorreu com um grupo de soldados que, em 1650, foi atacado pelos inimigos, “ao entrar na floresta para fazer vinho de caju e apanhar goiabas” 59. As agruras da vida dos soldados não tornavam seus superiores mais compassivos, por vezes com toda a razão. Era freqüente que “soldados indisciplinados” fossem às casas dos moradores luso-brasileiros e, “a pretexto de pedir de comer”, os roubassem. Como diz a ata de uma assembléia convocada para tratar deste e de outros problemas entre holandeses e lusobrasileiros, “é certo que, onde há soldados, não obstante todos os castigos, sempre ocorrem esses abusos e transtornos e podem estar certos os moradores de que eles fazem muito pior nos Países Baixos e na Alemanha do que aqui” 60. Tais atos de indisciplina eram combatidos com extrema dureza pelos comandantes holandeses. O próprio Conde Maurício de Nassau, nas instruções que deixou a seus sucessores no governo da Nova Holanda, afirmou que “quanto aos delitos dos soldados convém que Vossas Nobrezas não sejam compassivos, pois somente com rigor se pode manter a subordinação dessa gente” 61. O rigor era especialmente feroz quando os delitos estavam associados aos excessos etílicos. Os oficiais sempre tentavam evitar o acesso dos soldados às bebidas, quebrando, por exemplo, os fundos dos barris de vinho, encontrados em igrejas e nas casas dos moradores 62, o que nem sempre era suficiente. Um episódio, ocorrido logo após a conquista de Pernambuco, demonstra bem este ponto, revelando, ademais, os riscos assumidos pelos soldados sequiosos por um trago depois de viagens marítimas e batalhas sob o sol tropical: (...) postaram-se sentinelas e pintaram-se forcas nas casas e adegas, em que ainda havia vinho de Espanha. Apesar disto, três soldados ousaram penetrar em uma adega, donde retiraram alguns potes com vinho; a sentinela calou-se e bebeu com eles. Sendo descobertos foram submetidos a Conselho de Guerra e, no dia seguinte, todos os quatro, dentro de um círculo de soldados, tiveram que jogar a sorte sobre um tambor, a fim de ver-se qual seria enforcado. Como a sorte caísse sobre o que estivera de sentinela, não obstante ser ele um belo mancebo (...), e que todo o Regimento intercedesse em seu favor, nada lhe aproveitou. Foi então condenado à morte e, para escarmento de outros demasiadamente amantes do vinho de Espanha, enforcado; os outros três foram violentamente açoitados sobre um alto poste de pedra 63. As fontes portuguesas abordam o comportamento da soldadesca da WIC a partir de uma perspectiva bastante diferente. Em suas descrições, os escritores lusos se utilizam bastante da 58

Guilherme PISO, História Natural do Brasil, São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1948 (1648), p. 13. HAECX, «Diário...» cit., p. 158. 60 «Atas da Assembléia Geral, 27 de Agosto a 4 de Setembro de 1640», in Gonsalves de MELLO, Administração da Conquista... cit., p. 329. 61 «Memória e Instrução de João Maurício, Conde de Nassau, acerca do seu governo do Brasil (1644)», in Gonsalves de MELLO, Administração da Conquista... cit., p. 396. 62 Johannes de LAET, «História ou Annaes dos Feitos da Companhia Privilegiada das Indias Occidentaes desde o seu começo até o fim do anno de 1636 por Joannes de Laet, Diretor da mesma Companhia», Anais da Biblioteca Nacional, (volumes XXX, XXXIII, XXXVIII e XLI-II), v. XLI-II, 1912-19/20 (1644), p. 106. 63 RICHSHOFFER, Diário de um soldado... cit., pp. 66-67. 59

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crítica aos excessos dos combatentes inimigos, mas aproveitam para marcar as diferenças étnicas, a partir de um registro que privilegia a esfera religiosa. Este é o caso do livro do Frei Manoel Calado, O Valeroso Lucideno (1648). Calado faz uma descrição da invasão e conquista de Olinda que, por um lado, se aproxima das fontes holandesas, ao apontar os problemas de indisciplina. Diz o frade que, ao se assenhorearem de Pernambuco, os holandeses “começaram a saquear tudo com grande desaforo, e cobiça”. Encontrando as casas dos mercadores repletas de pipas de vinho, “bebiam tanto que as ruas estavam alastradas de bêbados”, que “esquentados, e azougados, punham fogo nos conventos, e edifícios suntuosos, dando com eles em terra”. Andavam com as varas dos vereadores, dizendo “Por mim grandes cavalheiros”, fazendo tanta “barafunda e alarido” que “com a muita mosquetaria, que disparavam, parecia um dia de juízo”. Ainda mais chocante, para Calado, era o comportamento dos soldados com relação aos símbolos religiosos católicos, comportamento que só poderia estar associado à depravação advinda da aceitação da heresia reformada. Afinal, porque precisavam eles cair de bêbados a cada passo, vestindo “as opas das confrarias, e balandraus dos irmãos da Misericórdia”, ou quebrar “em pedaços as imagens de Cristo, e da Virgem Maria, e dos outros santos”, pisando-as com tanta fúria, que pareciam querer extinguir “a Fé Católica Romana”? 64. Algum tempo mais tarde, durante a conquista de Porto Calvo (para onde muitos lusobrasileiros haviam fugido), Calado foi recebido, em jantar, pelo almirante Jan Cornelisz Lichthart, “com três cargas de mosquetaria, em modo de festa”. Entre manjares da Holanda, e da terra, e promessas de amizade e bom tratamento aos vencidos, os invasores fizeram “muitos brindes, e tocar de trombetas, e caixas ao beber do vinho, que tão pouco dinheiro lhe havia custado”. Neste momento, Lichthart 65 cometeu um ato absolutamente sacrílego aos olhos do frade: mandou vir um cálice, tomado de uma igreja no Recife, encheu-o de vinho e fez um brinde a Calado, fazendo o religioso levantar-se de supetão e se dirigir à porta, dizendo que “aquilo era notável agravo e maior injúria e afronta que podia fazer aos católicos romanos, o profanar-lhe e, e consentir que lhe profanassem os vasos sagrados, nos quais se consagra o sangue de Cristo no sacrifício da missa (...)” 66. O tema da profanação dos cálices sagrados também aparece com força na História da Guerra de Pernambuco (escrita entre 1661 e 1675), de Diogo Lopes Santiago. Diz o autor que os hereges calvinistas “roubaram as igrejas, fazendo de seus ricos ornamentos caprazões de seus cavalos, bebendo pelos cálices sagrados, fazendo em pedaços as imagens de Nossa Senhora e dos Santos que tanto veneramos (...)” 67. A descrição que Santiago faz da conquista de Olinda é riquíssima em imagens de impiedade e dipsomania por parte dos holandeses, marcando de maneira radical a diferença entre os católicos morigerados e os hereges beberrões: (...) como acharam (os soldados holandeses) muita cópia de vinhos da Canária e doutras partes, que é o seu néctar suave, e o paraíso de seus deleites, se brindaram e emborracharem de tal sorte, que não ficou nenhum do maior até o 64

Frei Manoel CALADO, O Valeroso Lucideno e o Triunfo da Liberdade, Recife, CEPE, v. I, 2004 (1648), p. 44. Que morreria em 1646, na foz do São Francisco; segundo Nieuhof, “por ter bebido grande quantidade de água fresca quando estava com o corpo muito quente (Memorável Viagem... cit., p. 304), mas, para Moreau, sua morte foi “muito apressada por Baco, do qual era valente campeão” (História das Últimas Lutas... cit., p. 69). 66 CALADO, O Valeroso Lucideno... cit., v. I, pp. 54-55; Calado se apresenta, em vários momentos de seu livro, como um “milagreiro”, possuído pela santidade da fé católica. Neste trecho, por exemplo, afirma que Lichthart, antes de presenteá-lo com o cálice, “mandou deitar o vinho fora, e tomando o cálice por o pé, o beijou, e o deu ao Padre Fr. Manuel, com grande cortesia” (p. 55). 67 Diogo Lopes SANTIAGO, História da Guerra de Pernambuco e feitos memoráveis do mestre de campo João Fernandes Vieira herói digno de eterna memória, primeiro aclamador da guerra, Recife, FUNDARPE, 1984 (escrito entre 1661 e 1675), p. 107. 65

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mais pequeno, que se não engolfasse no vinho, e ficasse privado de seu juízo; e com armarem forcas para os delinqüentes que com a borracheira se esqueciam de vigiar o que lhe era necessário: não havia quem os reprimisse e apartasse da grande abundância e afluência do licor que tanto os regala, ou para melhor dizer emborracha (...) 68. Realizada a conquista, abriu-se o espaço para que, no Brasil, várias etnias, e vários modos de beber e de encarar a embriaguez entrassem em contato. Este contato se deu, geralmente, de forma involuntária, pelo menos no que diz respeito aos luso-brasileiros (como seria de se esperar), a despeito da simpatia com que o Conde Maurício de Nassau seria olhado, mais tarde, pelos habitantes da terra. Como afirmou, a este respeito, Evaldo Cabral de Mello, “os luso-brasileiros encararam invariavelmente suas relações com os neerlandeses sob as lentes de uma incompatibilidade radical”, em um verdadeiro “auto-aparteísmo”. Para os homens da terra, seus conquistadores não passavam de um povo herege, sem rei, governado por comerciantes sovinas, que dava excessiva liberdade às mulheres e que, para completar, se entregava de forma entusiasmada à bebida, tudo concorria para o afastamento entre os colonizadores e os adventícios 69. Gaspar Barlaeus exprimiu a preocupação dos holandeses com o ódio que lhes nutriam os luso-brasileiros, que se mantinham quietos “só pelo terror”, mas que sempre, quando possível, mostravam-se “desaforados e descomedidos em palavras” contra os invasores. Para o cronista dos feitos de Nassau, o pior da conquista era ter “esses inimigos dentro das nossas muralhas, no próprio coração das cidades e dos povoados”, e ocultando “suas cobiças e seus ódios” contra os holandeses 70. No que se refere aos costumes etílicos, sabiam os próprios holandeses que, na raiz desta apartação cultural, estava a moderação, e mesmo a abstinência de muitos luso-brasileiros, embora não de todos. No primeiro relatório geral do governo de Nassau, redigido em 1638, foi observado que “a bebida dos portugueses é principalmente água da fonte, que é muito boa e agradável; nela ensopam um pedaço de pão de açúcar e vão chupando, o que é muito são e refrescante”. O relatório também apontava a abstinência de muitos dos moradores da terra, e especialmente das mulheres (“poucas são as que bebem vinho, e há muitas que em sua vida nunca provaram dele”), embora também revele que muitos dos colonizadores originais bebiam bastante, importando, somente no Recife, cinco mil pipas anuais de vinho do Reino 71. Outro relatório, feito em 1643 acerca da situação da conquista em Alagoas, ia além da constatação da frugalidade portuguesa. Os funcionários da WIC que o redigiram - Johannes van Walbeeck e Hendrick de Moucheron - procuraram apresentar os costumes portugueses como um ideal a ser seguido por aqueles que desejassem prosperar no Brasil, atacando, por outro lado, a dissipação de seus compatriotas: “onde um pode subsistir, o outro se arruína”. Enquanto os neerlandeses não se contentavam “com tomar à mesa um trago de cerveja ou de vinho”, mas também se reuniam com os amigos, fazendo muitas despesas, os luso-brasileiros viviam “de água, farinha, um pouco de bacalhau ou qualquer comida vulgar, de modo que em alguns engenhos não há vinho por muito tempo”. Terminavam a comparação de forma melancólica, afirmando que, embora fosse “muito desejável que os da nação holandesa se aproximassem um pouco mais da sobriedade dos moradores portugueses do Brasil”, isto 68

SANTIAGO, História da Guerra de Pernambuco... cit., p. 33. Cabral de MELLO, A Ferida de Narciso... cit., pp. 25-40. 70 BARLAEUS, História dos feitos... cit., pp. 131-132. 71 «Breve discurso sobre o Estado das quatro capitanias conquistadas, de Pernambuco, Itamaracá, Paraíba e Rio Grande, situadas na parte setentrional do Brasil» (14/01/1638), in Gonsalves de MELLO, A Economia Açucareira... cit., p. 109. 69

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provavelmente não aconteceria, pois “dificilmente se pode alterar as qualidades naturais, e só a necessidade os força muitas vezes a essa abstinência, de que a não ser assim não querem saber”72. É sempre importante fugir dos estereótipos, mesmo quando estes revelam muito acerca das diferenças culturais, e de que como tais diferenças foram utilizadas na construção de identidades étnicas e sociais. Deve-se lembrar, por exemplo, (como já apontei anteriormente) que muitos portugueses bebiam bastante, especialmente no Pernambuco pré-holandês, quando “tudo eram delícias” nos banquetes quotidianos, e quando a terra parecia “um retrato do terreal paraíso”73. De fato, os holandeses tudo fizeram para manter suas recepções, seus banquetes e seus jogos etílicos, tal como se fazia na própria Holanda. Tentaram manter seu “ordinário costume”, como dizia Frei Manuel Calado, que, por sinal, é grande fonte para o estudo dos costumes neerlandeses, por ter vivido no Recife ao tempo do governo nassoviano e ter freqüentado amiúde a mesa do Conde, chocando-se, por vezes, com a facilidade com que os homens (e mulheres) do norte esvaziavam garrafas e copos. Ia o padre, costumeiramente, à casa de campo de Nassau, aonde “as damas e seus afeiçoados” reuniam-se para “ter seus regalos, e fazer suas merendas, e beberetes, como se usa em Holanda”74. O próprio Conde reconhecia que, entre seus compatriotas (“flamengos”, no texto de Calado) “a matéria de mulheres, e o embebedarem-se era moeda corrente”75. Aliás, quando Nassau se despediu do Recife, em 1643, ofereceu um grande banquete “às damas, e a quantas taverneiras havia no Recife, e as mais delas emborrachou, e com isto se deu por despedido de Pernambuco”76. O papel das mulheres das mulheres nos “beberetes” era um dos principais motivos da repulsa luso-brasileira aos costumes neerlandeses77. É bem verdade que, em toda a Europa, e mesmo na própria Holanda78, existia uma resistência à participação feminina nos jogos etílicos: afinal, era difícil imaginar “a presença de Baco sem a de Vênus”, como afirmou o missionário francês Yves d’Evreux (referindo-se às festas dos índios do Maranhão) em princípios do século XVII79. Para além desta resistência geral ao uso do álcool por parte das mulheres (e às possíveis conseqüências sexuais deste uso) havia uma diferença marcante no papel social exercido pelas mulheres naquelas sociedades postas em conflito pela conquista holandesa. Enquanto que as mulheres dos Países Baixos tinham uma ativa presença no mundo extra-doméstico, participando de festas de rua, indo a tavernas e recebendo convidados em casa, as portuguesas eram bastante segregadas e colocadas à parte dos assuntos públicos. Mesmo uma comparação com as mulheres da Espanha mostra este segregacionismo dirigido às mulheres no mundo luso. Para frei Manuel Calado, as mulheres de Portugal eram “um exemplo de honestidade a todas as outras nações”, pois não “sabiam sair fora de suas casas, senão quando iam à igreja ouvir missa”, e nem aparecer na janela, senão fossem casadas e

72 «Relatório sobre a situação das Alagoas em outubro de 1643», in Gonsalves de MELLO, Administração da Conquista... cit., pp. 133-134. 73 CALADO, O Valeroso Lucideno... cit., v. I, p. 38. 74 Idem, Ibidem, v. I, p. 111. 75 Idem, Ibidem, v. I, p. 135. 76 Idem, Ibidem, v. I, p. 243. 77 Cabral de MELLO, A Ferida de Narciso..., p. 35. 78 ROBERTS, «Drinking Like a Man...», p. 238. 79 Yves d’ EVREUX, Viagem ao norte do Brasil feita nos anos de 1613 a 1614, São Paulo, Siciliano, 2002 (1615), p. 276.

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somente em companhia dos maridos, enquanto que as espanholas eram “acostumadas a andar por as ruas, em lugares públicos em mais número que os homens” 80. Quando o Conde Maurício convidou algumas mulheres portuguesas a banquetear consigo, recebeu a pronta resposta que “não era uso, nem costume entre os portugueses comerem as mulheres, senão com seus maridos, e ainda com estes era quando não havia hóspedes em casa (...) porque nestes casos não se vinham assentar à mesa” 81. Era uma distinção marcante em relação a uma sociedade urbana como a holandesa, onde a vida em sociedade era assaz desenvolvida, tanto nos lugares públicos quanto nos espaços privados. A profusão de “regras e cerimônias para se embebedarem” dos holandeses, evocava, aliás, justamente este grande desenvolvimento da sociabilidade pública, bem ao contrário do que ocorria no mundo lusobrasileiro. Duas cerimônias promovidas pelo Conde Maurício, e descritas com riqueza de detalhes por Calado, revelam bem a importância que o “ordinário costume” assumia nos eventos públicos dos neerlandeses. A primeira foi o funeral do irmão do Conde Maurício, João Ernesto, em 1639, o qual, tendo morrido no mar, na costa brasileira, foi enterrado no Recife. Calado descreve a procissão comandada pelo Conde, “vestido de veludo negro ao ligeiro, com luvas negras nas mãos, e uma plumagem branca no chapéu”, acompanhado pelos oficiais e soldados, pelos criados de sua casa, e os homens mais importantes da cidade, de todas as nações, incluindo uma tropa de brasilianos (tupis) com suas armas. Impressionou ao frade a “diabólica cerimônia” calvinista, “sem música, nem lágrimas, nem outras demonstrações de preces, e sufrágios”. Mais impressionado ficou com o fato de que, na casa do Príncipe, estava a mesa posta com pratos variados (embora sem toalhas) e “muitos frascos de vinho de Espanha, e França, cerveja, e aguardente, aonde cada um ia tomar sua refeição, e fazer seus brindes, segundo levava gosto, e estes eram os Pater Nostre, e responsos, que rezavam pelo defunto” 82. Outro evento foi a festa oferecida pelo Príncipe em comemoração à Aclamação de D. João IV como rei de Portugal, em 1640. Depois de muitos jogos de cavalaria (nos quais os lusobrasileiros se destacaram, para admiração das damas inglesas e francesas), foi oferecido um banquete à moda holandesa, com “muitos brindes, como é costume de sua terra”. Vários jogos etílicos foram realizados ali; “cerimônias a modo de jogo”, como diz Calado, “e quem as errava lhe faziam beber três vezes em castigo de seu erro”. Ao brindar o novo rei (e novo aliado na luta contra a Espanha, imaginavam os holandeses), “tinham a obrigação de levantarem todos os circunstantes com os chapéus nas mãos, e não se tornavam a cobrir, nem assentar, até que o brinde não dava volta a toda a mesa”. E, mais uma vez, os portugueses eram surpreendidos pelas minúcias das cerimônias, e pela entusiasmada adesão das mulheres aos jogos etílicos: (...) enquanto o brinde durava, não se calavam as trombetas, que eram muitas nem parava o estrondo das caixas de guerra; e se o banquete era jantar durava a beberronia até à noite, e se era ceia até a madrugada; e nestes convites se acharam as mais lindas damas, e as mais graves mulheres, holandesas, francesas, e inglesas, que em Pernambuco havia, e bebiam alegremente melhor que os homens, e arrimavam-se no bordão de que aquele era o costume de suas terras 83.

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CALADO, O Valeroso Lucideno... cit., v. I, p. 171. Idem, Ibidem, v. I, p. 128. 82 Idem, Ibidem, v. I, pp. 151-152. 83 CALADO, O Valeroso Lucideno... cit., v. I, pp. 206-108. 81

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“Aquele era o costume de suas terras”. As palavras de Manuel Calado deixavam patente o reconhecimento da irremediável cisão existente entre os dois modos de vida. Não sendo um relativista avant la lettre, muito pelo contrário, a abordagem “cultural” do frade revela as raízes do segregacionismo praticado pelos luso-brasileiros (com várias exceções, por certo): tratava-se de uma luta entre dois mundos irreversivelmente separados, pela religião certamente, mas também pelas diferenças em torno do que se deveria fazer em uma mesa, e do que se deveria fazer com uma garrafa.

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