Agatha Christie sob o pseudônimo de
Mary Westmacott
Ausência na primavera Tradução de JORGE RITTER
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L&PM POCKET 3
Capítulo 1
Joan Scudamore apertou os olhos para enxergar melhor em meio à penumbra da sala de jantar da pousada. Ela era um pouco míope. “Certamente aquela é... não, não é... creio que seja... Blanche Haggard.” Que extraordinário encontrar, no meio do nada, uma velha amiga de escola que ela não via há uns bons quinze anos. No início, Joan ficou encantada com a descoberta. Era uma mulher sociável por natureza, sempre contente em encontrar ao acaso amigos e conhecidos. Ela pensou consigo mesma: “Como a pobrezinha mudou para pior! Parece anos mais velha. Literalmente anos. Afinal de contas, ela não pode ter mais de... quantos? Quarenta e oito anos?” Depois disso, era natural que ela olhasse a própria aparência refletida em um espelho que, por acaso e extrema conveniência, estava pendurado na parede bem ao lado da mesa. O que ela viu ali a deixou com o humor ainda melhor. “Realmente”, pensou Joan Scudamore, “resisti melhor à passagem do tempo.” Ela viu uma mulher esbelta de meia-idade, com o rosto singularmente livre de rugas, cabelo castanho mal salpicado de grisalho, olhos azuis aprazíveis e uma boca alegre e sorridente. Vestia um conjunto elegante e fresco de casaco de viagem e saia e trazia uma bolsa bastante grande, contendo os itens necessários para viajar. Joan Scudamore estava voltando de Bagdá para Londres pela rota terrestre. Ela havia chegado de Bagdá de trem, na noite anterior. Passaria aquela noite na 9
pousada da estação ferroviária e partiria de carro na manhã seguinte. O que a fizera deixar a Inglaterra apressadamente fora a doença repentina de sua filha mais jovem, sua compreensão de quanto William (seu genro) era desorganizado e o caos que ocorreria em um lar sem um controle eficiente. Bem, estava tudo certo agora. Ela havia assumido o controle, tomado as medidas necessárias. O bebê, William, Barbara convalescente, tudo havia sido planejado e colocado nos trilhos. “Graças a Deus”, pensou Joan, “sempre tive uma boa cabeça sobre meus ombros.” William e Barbara estavam cheios de gratidão. Eles haviam insistido para que ela ficasse, não tivesse pressa, mas ela havia se recusado, sorridente, ainda que com um suspiro contido. Pois não podia desconsiderar Rodney – pobre e velho Rodney, preso em Crayminster, afundado até o pescoço em trabalho e sem ninguém em casa para cuidar de seu conforto, exceto os criados. – E, afinal de contas – disse Joan –, o que são criados? Barbara respondeu: – Seus criados, mãe, são sempre perfeitos. Você faz com que sejam! Ela sorriu, mas mesmo assim ficou satisfeita. Porque, afinal de contas, todos gostam de reconhecimento. Ela imaginava às vezes que sua família não dava o devido valor à sua administração doméstica serena e eficiente e ao seu cuidado e à sua devoção. Não que tivesse qualquer queixa verdadeira. Tony, Averil e Barbara eram filhos adoráveis, e ela e Rodney tinham todas as razões para ter orgulho da educação que lhes deram e do sucesso deles na vida. Tony cultivava laranjas na Rodésia. Averil, após ter sido motivo de preocupação para os pais durante 10
pouco tempo, havia sossegado e se casado com um rico e encantador corretor da bolsa de valores. O marido de Barbara tinha um bom emprego no Ministério de Obras Públicas do Iraque. Eram todos saudáveis, bonitos e bem-educados. Joan achava que ela e Rodney eram, de fato, pessoas de sorte, e sua opinião particular era de que parte do crédito deveria ser atribuído a eles como pais. Afinal, eles haviam criado os filhos com muito cuidado, selecionando as melhores babás, governantas e, mais tarde, escolas, sempre colocando a felicidade e o bem-estar dos filhos em primeiro lugar. Joan sentiu um ligeiro rubor ao desviar o olhar de sua imagem no espelho. Ela pensou: “Bem, é ótimo saber que se fez um bom trabalho. Nunca quis uma carreira ou algo assim. Estou bastante satisfeita em ser esposa e mãe. Casei-me com o homem que amava, e ele tem uma carreira de sucesso que talvez se deva, em parte, a mim também. Pode-se realizar tanto por influência! Querido Rodney!” E seu coração aqueceu-se com o pensamento de que em breve, muito breve, ela veria Rodney outra vez. Joan nunca antes estivera longe dele por muito tempo. Que vida feliz e tranquila eles tinham juntos! Bem, talvez tranquila fosse exagero. A vida familiar nunca era muito tranquila. Feriados, doenças infecciosas, canos rompidos no inverno. A vida era mesmo uma série de pequenos dramas. E Rodney sempre trabalhou duro, muito mais talvez do que o recomendável para a saúde dele. Ele sofreu um terrível revés naquela ocasião, seis anos atrás. Ele não havia, pensou Joan com remorso, envelhecido tão bem quanto ela. Estava bastante curvado e tinha muitos cabelos brancos. Rodney tinha também um ar cansado em torno dos olhos. 11
Assim era a vida, de qualquer modo. E agora, com os filhos casados, a firma indo tão bem e o novo sócio trazendo mais dinheiro, Rodney poderia descansar mais. Ele e ela teriam mais tempo para se divertir. Eles tinham de receber mais visitas, quem sabe passar uma semana ou duas em Londres, de vez em quando. Talvez Rodney quisesse jogar golfe. Sim, ela não conseguia imaginar por que ainda não o havia persuadido a jogar golfe. Era tão saudável, em especial para ele, que tinha tanto trabalho no escritório. Tendo resolvido essa questão em sua mente, a sra. Scudamore olhou mais uma vez para o outro lado da sala de jantar, onde estava a mulher que ela acreditava ser sua antiga amiga de escola. Blanche Haggard. Como ela havia adorado Blanche Haggard quando estudavam juntas em St. Anne! Todos eram loucos por Blanche. Ela era tão corajosa, tão divertida e, sim, tão absolutamente adorável. Engraçado pensar nisso agora, olhando para aquela mulher idosa, magra, agitada e desarrumada. Que roupas insólitas! E ela parecia, parecia de verdade, ter pelo menos sessenta... “É claro”, pensou Joan, “ela teve uma vida muito infeliz.” Uma impaciência momentânea tomou conta dela. A coisa toda parecia um desperdício tão gratuito. Lá estava Blanche, aos 21 anos, com o mundo aos seus pés: beleza, posição, tudo; e ela fez questão de se envolver com aquele homem execrável. Um veterinário – isso mesmo, um veterinário. Um veterinário com uma esposa, além de tudo, o que era pior. A família dela agiu com firmeza elogiável, mandando-a em uma volta ao mundo em um desses cruzeiros marítimos. E Blanche, apesar disso, havia desembarcado em algum lugar – Argel ou Nápoles – e retornado à Inglaterra, para seu veterinário. 12
E, como era de se esperar, ele perdeu a clínica, começou a beber, e sua esposa não quis divorciar-se dele. Logo eles deixaram Crayminster e, depois disso, Joan não teve notícias de Blanche por anos, até o dia em que se deparou com ela no departamento de calçados da Harrods em Londres. Depois de uma breve conversa discreta (discreta da parte de Joan, Blanche nunca se importara com discrição), ela descobriu que Blanche estava então casada com um homem chamado Holliday, que trabalhava em uma seguradora, mas Blanche achava que ele pediria demissão em breve, pois queria escrever um livro sobre Warren Hastings e dedicar a ele todo o seu tempo, não apenas escrever trechos sempre que voltava do escritório. Joan murmurou que nesse caso imaginava que ele tivesse recursos próprios. E Blanche respondeu com entusiasmo que ele não tinha um centavo! Joan disse que talvez abrir mão do trabalho fosse pouco recomendável, a não ser que ele tivesse certeza de que o livro seria um sucesso. Foi encomendado? “Oh, querida, não”, respondeu Blanche animadamente e, de fato, ela não acreditava no sucesso do livro, porque, apesar de Tom ser bastante esforçado, não escrevia muito bem. Então Joan disse com alguma firmeza que Blanche deveria colocar os pés no chão, ao que Blanche respondeu encarando-a e dizendo: “Mas ele quer escrever, pobrezinho. Quer mais do que tudo.” “Às vezes”, respondeu Joan, “deve-se ter cautela por dois.” Blanche riu e observou que ela mesma nunca tivera cautela suficiente para um! Pensando no assunto, Joan concluiu que, infelizmente, isso era bem verdade. Um ano depois ela viu Blanche em um restaurante com uma mulher peculiar e extravagante e dois artistas em trajes vistosos. Depois disso, o único evento que a fez lembrar-se da existência de Blanche aconteceu cinco anos mais tarde, quando esta 13
escreveu pedindo um empréstimo de cinquenta libras. Seu garotinho, ela disse, precisava de uma cirurgia. Joan enviou-lhe 25 e uma carta gentil pedindo detalhes. A resposta foi alguns rabiscos sobre um cartão-postal: Que bom, Joan. Eu sabia que você não me desapontaria, o que era gratificante de certa maneira, mas não explicava nada. Depois disso, silêncio. E agora ali, na pousada de uma estação ferroviária no Oriente Médio, com lamparinas de querosene tremeluzindo e crepitando em meio aos odores de gordura de carneiro rançosa, parafina e inseticida, estava a amiga de tantos anos, incrivelmente envelhecida, endurecida e maltratada pelo tempo. Blanche terminou primeiro seu jantar e estava saindo quando viu a outra. Ela estacou. – Deus do céu, é Joan! Alguns momentos depois, ela trouxe sua cadeira para a mesa de Joan, e as duas conversaram. Em seguida, Blanche disse: – Bem, você está com uma aparência ótima, querida. Parece ter trinta anos. Onde você esteve nesses anos todos? Em um congelador? – Nem perto. Estive em Crayminster. – Nascida, criada, casada e sepultada em Crayminster – disse Blanche. Joan disse com uma risada: – É um destino tão ruim assim? Blanche balançou a cabeça. – Não – ela respondeu com seriedade. – Eu diria que é um destino muito bom. O que aconteceu com seus filhos? Você teve filhos, não é? – Sim, três. Um garoto e duas garotas. O garoto vive na Rodésia. As garotas estão casadas. Uma vive em Londres. Há pouco estive visitando a outra em Bagdá. Seu nome é Wray, Barbara Wray. 14