AO CONSELHO SUPERIOR DA DEFENSORIA PÚBLICA DO

AO CONSELHO SUPERIOR DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO Processo CSDP nº 351/2013 Cotas étnicos-raciais na Defensoria Pública de São Paulo ...
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AO CONSELHO SUPERIOR DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Processo CSDP nº 351/2013 Cotas étnicos-raciais na Defensoria Pública de São Paulo

“[...] a história da civilização é a história da superação dos preconceitos e a cada momento histórico as pessoas têm de escolher de que lado vão ficar na História: se vão avançar o processo social e vão incluir a todos ou se vão parar o processo social e cultivar o preconceito. De modo que é possível decidir essa questão olhando para trás, onde se avistam milhões de judeus que foram massacrados em campos de concentração, milhões de negros que foram transportados à força em navios negreiros, mulheres que atravessaram os séculos oprimidas moral e fisicamente pelas sociedades patriarcais, deficientes que foram sacrificados, índios que foram dizimados. Em cada fase da vida, em cada fase da História existe sempre uma racionalização para justificar o preconceito”1.

CONECTAS DIREITOS HUMANOS, ARTICULAÇÃO JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS – JUSDH2 e CENTRO DE ESTUDO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO E DESIGUALDADE – CEERT vêm a presença de V. Sas. apresentar manifestação no Processo CSDP nº 351/2013 que discute a implementação de Luís Roberto Barroso. Sustentação oral na ADPF 132. A Articulação Justiça e Direitos Humanos – JUSDH é composta por movimentos sociais e organizações de direitos humanos (Terra de Direitos – Organização de Direitos Humanos, Ação Educativa – Assessoria, Pesquisa e Informação, Geledés Instituto da Mulher Negra, AATR – Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia, Centro de Assessoria Popular Mariana Criola, SDDH – Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos e Dignitatis – Assessoria Técnica Popular) que atuam com litigância nos diferentes temas de direitos humanos e vêm trabalhando com uma agenda de democratização da justiça por meio do monitoramento e incidência política junto aos órgãos do Sistema de Justiça, Poder Executivo e Legislativo. Mais informações em: http://www.jusdh.org.br/. 1

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políticas de ações afirmativas para ingresso na carreira da Defensoria Pública de São Paulo, nos termos que seguem. 1.

Retratos de uma Desigualdade Racial Brasileira O Brasil ainda enfrenta uma realidade de profunda desigualdade entre grupos

étnico-raciais, na qual negros estão excluídos de todas as esferas de poder, tanto social quanto econômico. Dados demonstram que, a despeito dos avanços democráticos vividos pelo país, a desigualdade que desfavorece certos grupos vulneráveis ainda persiste. De acordo com o último relatório censitário do IBGE, a população brasileira é composta em sua maioria, 50,7%, por pretos e pardos. Além de ser de maioria negra, a população brasileira também é formada em sua maioria por mulheres – são quase 4 milhões a mais de mulheres do que homens no Brasil. Essa população distribui-se em uma pirâmide social e racial em que a população branca está no topo da concentração de renda, ao passo que a população negra está na base da pobreza e, portanto, da exclusão social. Os dados mostram que os negros são mais de 82% entre os mais pobres e somente 16% entre os mais ricos3. Em se tratando de oportunidades de educação, os negros são a grande maioria dos brasileiros apenas com ensino fundamental e com ensino médio. De acordo com o Síntese de Indicadores Sociais do IBGE, dos brasileiros com ensino superior quase 65% brancos e 35% são negros4. Mesmo ainda sendo desigual, essa porcentagem mostra avanço na redução da discriminação e desigualdade. A realidade atual é explicitamente diferente do Brasil de 2002, anterior a inserção de políticas educacionais afirmativas, onde os negros correspondiam à apenas 7,6% dos universitários5.

Síntese de Indicadores Sociais, IBGE, 2012. Ibidem. 5 Síntese de Indicadores Sociais, IBGE, 2002. 3 4

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2.

Ausência de Representatividade Plurirracial nos Espaços de Poder Em nossa sociedade, o acesso ao ensino superior é uma forma importante de

ascensão social. Há dez anos o país adota políticas de ações afirmativas para o ingresso em universidades com fins de reparar desigualdades históricas e reduzir a marginalização social. Ainda que o processo tenha se iniciado de forma tímida, hoje presenciamos mais diversidade e pluralidade nas instituições de ensino brasileiras, no entanto essas mudanças ainda não alcançaram as carreiras socialmente representativas. Em país de maioria negra, o que causa perplexidade é não haver estranhamento na ausência de representação da diversidade brasileira nos espaços de poder. O Relatório de Desenvolvimento da ONU aponta que no Brasil “quanto mais se avança rumo ao topo das hierarquias de poder, mais a sociedade brasileira se torna branca”6. Há estudos que mostram que os negros estão sobrerrepresentados nos nichos profissionais menos valorizados (construção civil, comércio ambulante e setor de serviços), ao passo que estão sub-representados em ocupações mais valorizadas pela sociedade (comércio não-ambulante, profissões liberais, ramo de serviços auxiliares de atividades econômicas). Essa desigualdade tem também uma dimensão política e está presente nos espaços de poder onde são tomadas decisões sobre os bens coletivos. No Congresso Nacional, por exemplo, em 2006, os negros eram 8,9% do total de deputados federais, e nenhum deputado foi identificado como indígena. Em 2007, 6,2% dos senadores eram negros e não havia a senadora negra7. Hoje, 2014, a eleição para composição do Congresso Nacional elegeu uma formação da Câmara dos Deputados ainda mais branca.

Com efeito, entre os 513

Relatório de Desenvolvimento Humano - Brasil 2005. Racismo, pobreza e violência. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, p. 52. 7 Relatório Anual das Desigualdades Raciais 2007-2008. Org: Marcelo Paixão e Luiz M. Carvano. Rio de Janeiro: Garamond, 2008, p.148. 6

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deputados recém eleitos, 410 deles (79,9%) se declararam brancos, outros 81 deputados (15,8%) se disseram pardos e somente 22 (4,2%), pretos. Os candidatos que se declararam pretos e pardos também tiveram mais dificuldades de serem eleitos que os brancos: a cada dez brancos foram eleitos, enquanto, no caso de pretos e pardos, somente um a cada 30 conseguiu uma vaga8. Essa nefasta sub-representação também é presente nas instituições essenciais para o sistema de justiça, já que “todos os dados utilizados [...] para traçar um perfil das profissões jurídicas no Brasil indicam que, em termos de cor da pele, os juristas compõem uma parcela da população “desconcertantemente branca”9. Pesquisa do Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (LAESER), do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) mostra que os pardos e pretos correspondem a apenas 22,7% dos juristas e advogados do funcionalismo público10. Isso acontece, em grande parte, por conta do modelo de processo seletivo dessas carreiras. Ainda que feito de uma maneira a evitar privilégios e escolhas pessoais, a forma como hoje se realiza o processo de ingresso nas carreiras para as instituições do sistema de justiça tem produzido o resultado perverso de favorecer um mesmo perfil de candidatos que, em geral, são aqueles que não pertencem e nunca pertenceram aos grupos sociais excluídos e marginalizados por sua desigualdade social e/ou econômica. A dedicação necessária para aprovação nesses concursos exige um tempo do qual as pessoas que precisam garantir sua renda, muitas vezes, não dispõem. Além disso, o estudo depende quase sempre do acompanhamento de um curso preparatório, o qual

Revista Carta Capital. “Brancos serão quase 80% da Câmara dos Deputados”. Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/politica/brancos-serao-quase-80-da-camara-dos-deputados-3603.html 9 Frederico Normanha Ribeiro de Almeida. A nobreza togada: as elites jurídicas e a política de justiça no Brasil. Tese de doutorado apresentada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 211. 10 Disponível em: http://arquivo.geledes.org.br/areas-de-atuacao/mercado-de-trabalho/24483-negros-sao30-do-funcionalismo-diz-pesquisa 8

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notoriamente de tem um alto custo financeiro.

Deste modo, acaba medindo mais

investimento financeiro do que acúmulo de conhecimento. 3.

Ações Afirmativas como Forma de Democratização do Sistema de Justiça A realização das ações afirmativas almeja o reconhecimento da existência de

injustiças e desigualdades históricas, implementando condicionantes que possam garantir um acesso igualitário, democrático e plural às oportunidades de acesso para uma das carreiras mais socialmente prestigiadas. A existência de uma política de ação afirmativa decorre da necessidade de reparação e da implementação de uma adequada aplicação da justiça redistributiva. As políticas de ações afirmativas no contexto étnico-racial têm sido interpretadas como medidas que visam reverter a discriminação histórica sofrida por negros, assim, a utilização de tais políticas positivas de discriminação serve para “remedia[r] as desvantagens infligidas às minorias pelo preconceito racial do passado”11, herança que permanece surtindo efeitos na sociedade contemporânea: “[...] o reduzido número de negros e pardos que exercem cargos ou funções de relevo em nossa sociedade, seja na esfera pública, seja na esfera privada, resulta da discriminação histórica que as sucessivas gerações pertencentes a esses grupos têm sofrido, ainda que na maior parte das vezes de forma camuflada ou implícita”12.

No mais, as ações afirmativas também se justificam pelo argumento da diversidade. Partindo do pressuposto que todas as etnias, raças, culturas e formas de vida possuem um caráter valorativo equivalente, a criação de políticas pelas instituições do Poder Público que visem a integração da diversidade existente na sociedade, além de trazer

Brennan, Thomas E. Ministro da Suprema Corte Estadunidense. Voto no caso Regents of the University of California vs. Blake. 12 Ministro Ricardo Lewandowski, voto do julgamento da ADPF nº 186. STF 11

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benefícios sociais básicos como um maior entendimento intercultural e inter-racial e a destituição de preconceitos e estereótipos, possibilitará ao Estado atingir o princípio fundamental do pluralismo. Tais fatores, portanto, corroboram para a implementação de uma diversidade intelectual que possa modificar, a longo prazo, as formas negativas de concepções sociais e culturais da sociedade: “[...] a diversidade racial exercerá um papel para estímulo da inteligência prática. E exercerá esse papel na medida em que facilitar a aproximação de pessoas que foram inseridas em posições diversas dessas hierarquias convencionais e que podem explicitar um ponto de vista diversificado e provocador de críticas para a construção de novas hierarquias convencionais e que podem explicitar um ponto de vista diversificado e provocador de críticas para a construção de novas hierarquias morais intersubjetivamente. Nessa linha, a aproximação de experiências diversas frente à discriminação, no caso frente à discriminação racial, pode estimular aquela inteligência prática”13.

Esses pressupostos já foram utilizados e aplicados para a concretização de políticas afirmativas nas universidades, mas a mesma lógica pode ser estendida às carreiras públicas, em especial as carreiras jurídicas. Inegável que as instituições essenciais para a Justiça se constituem em espaço ainda muito homogêneo e as ações afirmativas são medidas necessárias para pluralizá-las. A introdução de ações afirmativas para ingresso na carreira da Defensoria Pública almeja duas propostas de democratização do sistema de justiça. Além de tornar o próprio processo seletivo para a carreira mais democrático, a adoção de tais medidas possibilita um recrutamento plural de profissionais detentores de experiências diversificadas, o que se apresenta como solução para diversificar a carreira e com isso IKAWA, Daniela. Direito às Ações Afirmativas em Universidades Brasileiras. In. Igualdade, Diferença e Direitos Humanos. Coordenadores: SARMENTO, Daniel. PIOVESAN, Flavia. IKAWA, Daniela. Lumen Juris Editora. 2010. Pg. 282 13

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ampliar o horizonte interpretativo social daqueles que tem como missão a defesa de uma população marginalizada socioeconomicamente. A Defensoria Pública é entidade do sistema de justiça que tem por essência a defesa dos excluídos, a luta diária da instituição é almejar decisões e interpretações judiciais mais favoráveis aos direitos dos mais vulneráveis. Por combater de forma massiva e sistemática inúmeras injustiças sociais, é justamente da Defensoria que se espera uma postura mais ativa e efetiva na transformação social dentre todas as instituições de justiça. Diante de tal conjectura, considerando o papel externo realizado pela instituição, entende-se que a Defensoria também deveria estar na vanguarda de modificações das condições estruturais de sua própria composição. Para tanto é essencial que a Defensoria realize uma autocrítica do perfil que hoje adentra os quadros de defensores públicos da instituição, adotando uma postura de também contemplar os que não foram socialmente privilegiados, tendo sempre como norte a redução de desigualdades sociais. Assim como outras instituições essenciais para o funcionamento da justiça, a composição atual da Defensoria Pública não reflete em termos de raça o que a sociedade brasileira representa. A compreensão e atendimento adequado das necessidades de uma sociedade tão diversa e heterogênea como a nossa, exige do Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública uma composição equivalente. 4.

Constitucionalidade, Obrigatoriedade e Inexigibilidade do Princípio da Reserva de Lei para a Implementação de Políticas de Ação Afirmativa A Constituição Federal de 1988 ampara uma discriminação positiva com base

no princípio da igualdade. 7

É possível extrair essa possibilidade do dever incumbido ao Estado pela Constituição de abolir a marginalização e as desigualdades, conforme previstos nos art. 3º, III, art. 23, x e art. 170, VIII, bem como das regras que expressamente obrigam o Poder Público a estabelecer políticas positivas visando à promoção e integração de segmentos desfavorecidos, como elencado nas disposições do art. 3º, IV, art. 23, X e art. 227, II: Art. 3º, III – erradicar a (....) marginalização e reduzir as desigualdades sociais...”; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação; Art. 23, X – combater (...) os fatores de marginalização [...] as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos;” Art. 170, VII – redução das desigualdades (...) sociais; Art. 227, II - criação de programas (...) de integração social dos adolescentes portadores de deficiência;”

O supracitado art. 3º, situado no rol dos Objetivos Fundamentais da República, consiste, por si só, em princípio que implica uma prestação positiva por parte do Estado. Esses novos elementos constitucionais estabelecem novos parâmetros acerca da interpretação do que se entende por igualdade: “[...] Pode-se dizer, sem receio de equivoco, que se passou de uma igualização estática, meramente negativa, no que se proibia a discriminação, para uma igualização eficaz, dinâmica, já que os verbos “construir”, “garantir”, “erradicar” e “promover” implicam mudança de óptica, ao denotar “ação” [...]”14.

No mais, existem normas constitucionais que já dispõem acerca de políticas específicas que objetivam a compensação e redução das desigualdades de oportunidades. São as disposições constitucionais de discriminação positiva:

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Ministro Marco Aurélio. Voto na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº186.

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Art. 7o, XX – proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei”; Art. 37, VIII – a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão;” Art. 145, § 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte...;” Art. 170, IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País;” Art. 179. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei”.

Assim, a Carta Magna vigente traz em seu corpo a modalidade da discriminação justa, o que resulta em um alargamento substantivo do conteúdo semântico do princípio da igualdade, bem como a ampliação objetiva das obrigações estatais em face do tema. Nesse sentido, versa o Ex-Ministro Ayres Britto: “[...] nunca é demasiado lembrar que o preâmbulo da Constituição de 1988 exige a igualdade e a justiça, entre outros, ‘como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos’, sendo certo que reparar os compensar os fatores de desigualdade factual com medidas de superioridade jurídica é política de ação afirmativa que se inscreve, justamente, nos quadros da sociedade fraterna que a nossa Carta Republicana idealiza a partir de suas disposições preambulares”15.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 186, pacificou

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Ministro Ayres Britto. Voto do RMS 26.071. STF.

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entendimento acerca da constitucionalidade de políticas de ações afirmativas, ainda que tenham sido criadas através de deliberação administrativa. Referida ADPF, como se sabe, foi submetida pelo partido Democratas para apreciação da Suprema Corte pleiteava a declaração de inconstitucionalidade das cotas raciais para ingresso na Universidade de Brasília – UNB, medida de ação afirmativa estabelecida por meio de ato administrativo do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da
Universidade de Brasília (CEPE/UNB). A UNB se valeu da prerrogativa de autonomia universitária para a criação da medida que reserva 20% de suas vagas para negros e indígenas. Na ocasião do julgamento, a Suprema Corte, por unanimidade, declarou a constitucionalidade das políticas de ações afirmativas, por considerar que as cotas: (i) têm como objetivo estabelecer um ambiente acadêmico plural e diversificado, superando distorções sociais historicamente consolidadas, (ii) revelam proporcionalidade e a razoabilidade no concernente aos meios empregados e aos fins perseguidos, (iii) são transitórias e prevêem a revisão periódica de seus resultados, e (iv) empregam métodos seletivos eficazes e compatíveis com o princípio da dignidade humana16.

De acordo com o Ministro Marco Aurélio, “as normas proibitivas não são suficientes para afastar do cenário a discriminação”17. Ao julgar a ADPF 186, o Supremo Tribunal Federal consolidou um posicionamento de igualdade plena, e não a igualdade meramente formal estabelecida em lei: A ação afirmativa é um dos instrumentos possibilitadores da superação do problema do não cidadão, daquele que não participa política e democraticamente como lhe é na letra da lei fundamental assegurado, porque não se lhe reconhecem os meios efetivos para se igualar com os demais. Cidadania não combina com desigualdade. República não

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Dispositivo do voto do Ministro Ricardo Lewandwski na ADPF 186. Ministro Marco Aurélio. Voto na ADPF 186.

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combina com preconceito. Democracia não combina com discriminação. E, no entanto, no Brasil que se diz querer republicano e democrático, o cidadão ainda é uma elite, pela multiplicidade de preconceitos que subsistem, mesmo sob o manto fácil do silêncio branco com os negros, da palavra gentil com as mulheres, da esmola superior com os pobres, da frase lida para os analfabetos... Nesse cenário sócio-político e econômico, não seria verdadeiramente democrática a leitura superficial e preconceituosa da Constituição, nem seria verdadeiramente cidadão o leitor que não lhe rebuscasse a alma, apregoando o discurso fácil dos igualados superiormente em nossa história feita pelas mãos calejadas dos discriminados18.

Por poderem ser extraídas dos princípios e disposições constitucionais, a criação de políticas de ação afirmativa já é dotada de força normativa, não sendo necessário lei para que tais políticas sejam instituídas. A própria Constituição Federal faz imperativo a implementação de tais medidas. Esse foi o entendimento adotado pela Suprema Corte no julgamento da ADPF 186: “Revela-se, então, que a prática de ações afirmativas pelas universidades públicas brasileiras é uma possibilidade latente nos princípios e regras constitucionais aplicáveis a matéria. A implementação por deliberação administrativa decorre, portanto, do princípio da Carta Federal e também da previsão, presente no art. 207, cabeça dela constante, da autonomia universitária. Cabe lembrar que o Supremo, em visão evolutiva, já reconheceu a possibilidade de incidência direta do Diploma Maior nas relações calcadas pelo direito administrativo”19.

Assim como as universidades, a partir da Emenda Constitucional nº 45/2004, Defensoria Pública possui autonomia funcional e administrativa. Ora, se a própria Constituição diz claramente que as Defensorias Públicas devem ser autônomas funcional e administrativamente, não há como não incumbir à esta instituição a mesma possibilidade de pluralizar os seus quadros que foi conferida às universidades públicas. 18 19

Ministra Carmem Lucia. Citada em voto do Ministro Marco Aurélio na ADPF 186. Ibidem.

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Ainda no âmbito das normas constitucionais, convém relembrar o dispositivo dos parágrafos segundo e terceiro do art. 5o, os quais asseguraram proteção constitucional aos direitos emanados dos tratados internacionais

e a Convenção Internacional sobre a

Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial – promulgada pelo Brasil há décadas –, estabelece que os Estados tomarão, se as circunstâncias o exigirem, nos campos social, econômico, cultural e outros, as medidas especiais e concretos para assegurar como convier o desenvolvimento ou a proteção de certos grupos raciais de indivíduos pertencentes a estes grupos com o objetivo de garantirlhes, em condições de igualdade, o pleno exercício dos direitos do homem e das liberdades fundamentais. Cumpre ressaltar que esses tratados não são o “teto máximo” de proteção, mas o “piso mínimo” para garantir a dignidade humana, constituindo o “mínimo ético irredutível”20. Em outras palavras, os Estados podem e devem ir além, jamais aquém destes parâmetros. 5.

Conclusão Ilustres Conselheiros e Conselheiras. Ainda que não adote oficialmente política

de segregação racial, percebe-se que o Brasil ainda mantém índices alarmantes de desigualdade étnica-racial. Verdade que muito foi avançado e conquistado na implementação de políticas educacionais de ações afirmativas, com dez anos de medidas inclusivas perfis sociais e étnico-raciais diversos de universitários estão concluindo o ensino superior e saindo para o mercado de trabalho. Tais mudanças, todavia, ainda não alcançaram as carreiras mais socialmente representativas da sociedade, em especial naquelas inerentes às instituições do sistema de justiça. Portanto, é necessário a adoção de medidas que visem reverter o perfil padrão vigente, pondo fim “a reprodução e perpetuação de uma mesma elite dirigente”21, medidas que

PIOVESAN, Flavia. Implementação das obrigações, standards e parâmetros internacionais de direitos humanos no âmbito intra-governamental e federativo. Disponível em http://www.internationaljusticeproject.org/pdfs/piovesan-speech.pdf 21 Ministro Ricardo Lewandowski. Voto na ADPF 186. 20

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possibilitem “a construção de um espaço público aberto à inclusão do outro, do outsider social, um espaço que contemple a alteridade”22. Propõe-se aqui a consolidação de uma Defensoria Pública mais plural e democrática. Uma defensoria que possibilite repensar e reinventar a representação social nas instituições do sistema de justiça, para deixarem de ser espaços essencialmente brancos/masculinos. A exemplo de outras Defensorias Públicas pelo Brasil que já implementaram essas medidas – como as do Rio de Janeiro e Mato Grosso – faz-se fundamental, portanto, à Defensoria Pública de São Paulo implementar tal política pública imediatamente, como uma forma de garantir a pluralidade e representatividade da instituição, garantindo o compromisso com a efetivação dos Direitos Humanos e a efetivação dos objetivos fundamentais da República trazidos pela Constituição Federal.

São Paulo, 17 de outubro de 2014. CONECTAS DIREITOS HUMANOS ARTICULAÇÃO JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS – JUSDH CENTRO DE ESTUDO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO E DESIGUALDADE – CEERT

22

Ibidem.

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