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A nova república

LIONEL SHRIVER A nova república TRADUÇÃO DE Vera Ribeiro Copyright © 2012 Lionel Shriver TÍTULO ORIGINAL The New Republic REVISÃO Taís Monteiro...
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LIONEL SHRIVER

A nova república TRADUÇÃO DE

Vera Ribeiro

Copyright © 2012 Lionel Shriver TÍTULO ORIGINAL

The New Republic REVISÃO

Taís Monteiro Tamara Sender ARTE DE CAPA

Jarrod Taylor FOTOGRAFIA DE CAPA

© Christopher Jones ADAPTAÇÃO DE CAPA

Julio Moreira REVISÃO DE EPUB

Camila Dias da Cruz GERAÇÃO DE EPUB

Intrínseca E-ISBN

978-85-8057-632-0 Edição digital: 2015 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA INTRÍNSECA LTDA. Rua Marquês de São Vicente, 99, 3o andar 22451-041 Gávea Rio de Janeiro – RJ Tel./Fax: (21) 3206-7400 www.intrinseca.com.br

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Para Sarowitz, é claro — a quem devo há muito uma dedicatória exclusiva

Minha experiência com jornalistas me autoriza a registrar que inúmeros dentre eles são ignorantes, preguiçosos, dogmáticos em suas opiniões, intelectualmente desonestos e insuficientemente supervisionados (...). Eles têm imenso poder, e muitos são extremamente irresponsáveis. — Conrad Black A linguagem política (...) foi concebida para fazer as mentiras soarem verdadeiras e o assassinato, respeitável, e para dar uma aparência de solidez a puras bolhas de ar. — George Orwell

NOTA DA AUTORA Escrito entre Dupla falta e Precisamos falar sobre o Kevin, A nova república foi concluído em 1998. Naquela época, meu histórico de vendas era um horror. E, o que talvez seja mais importante, meus compatriotas norte-americanos, em sua maioria, descartavam o terrorismo como um Problema Chato dos Estrangeiros. Não consegui despertar interesse pelo manuscrito em nenhuma editora dos Estados Unidos. Em pouco tempo, essas duas fontes de desincentivo desapareceram. Minhas vendas melhoraram. Depois do 11 de Setembro, os norte-americanos ficaram muito interessados no terrorismo, para dizer o mínimo. Por isso, durante anos após a calamidade em Nova York, fui obrigada a manter o romance na gaveta, porque um livro que tratasse dessa questão com um toque de leveza seria considerado de mau gosto. Mas o tabu parece haver chegado ao fim. As sensibilidades se robusteceram. Tenho esperança de que este romance — cujos temas só se tornaram mais contundentes desde que ele foi escrito — possa agora ser lançado sem causar melindres. Apesar de revisado com o olhar frio da distância, o livro está sendo publicado mais ou menos como o escrevi originalmente, com um pequenino e irresistível acréscimo no epílogo, que os leitores reconhecerão de imediato.

CAPÍTULO 1

Menção honrosa Chispando para seu apartamento na Rua 89 Oeste, Edgar Kellogg esquivou-se, querendo evitar o contato visual com um porteiro que ao menos recebia um pagamento regularmente. Caminhava com passos rápidos e tensos, os ombros recurvados. Sem ter como pagar o aluguel do mês seguinte, deu uma espiada ansiosa na luz indicadora do elevador que estava parada no doze, como se pudesse ser preso a qualquer momento. A etapa seguinte seria estourar o limite dos cartões de crédito. Aquele lugar costumava lhe dar um tremendo barato. Agora que não podia bancar o aluguel, o barato vinha saindo caro e, batendo o pé com o sapato de couro de cabra que já vira dias melhores, ele calculou, abatido, que cada dia naquele endereço idiota lhe tirava noventa paus. Esperar um cheque de cento e setenta e cinco dólares da Amoco Traveler era como tentar tirar água de um barco com um conta-gotas, enquanto o mar frio jorrava por um rombo do tamanho de uma galocha. Já no décimo nono andar, Edgar lançou um olhar para o que era, em essência, um quarto e sala de mobiliário chique, mas cujo serviço de limpeza fornecido pela administração fora um dos primeiros luxos a serem cortados. Mal tinha dado dez da manhã e Edgar já estava de olho comprido nos Doritos na bancada. Uma coisa que não previra no tocante ao “home office” havia sido a Síndrome do Petisco; nos últimos tempos, sua energia mental se dividia igualmente entre sua nova carreira (preocupar-se com dinheiro, o que era um substituto perfeito de ganhá-lo) e o propósito de não se empanturrar. Caramba, estava virando uma garotinha, e logo, logo, estaria inventando sanduíches abertos de bolachas integrais Ryvita com tomate-cereja (só vinte e cinco calorias!). Esse pensamento lhe veio como um baque: Isto não está dando certo. Logo em seguida: Cometi um erro terrível. E, já que ele nunca fora chegado a rodeios: Eu sou um babaca. Não era o tipo de pensamento positivo que os manuais recomendavam para quem estava quase chegando a uma entrevista de emprego, em cuja preparação Edgar tinha se mantido longe das latas de cerveja e aberto o National Record. Com horas de antecedência, sua concentração já vacilava. Captando lampejos estroboscópicos de palavras soltas, seus olhos correram por um artigo sobre terrorismo: nos últimos tempos, era novidade não haver nenhum caso. Mais abaixo: um correspondente havia sumido fazia três meses. Em suma: continuava desaparecido. Se o sumido não fosse um repórter, essa “matéria” nunca teria saído, muito menos na primeira página. Afinal, se Edgar Kellogg desaparecesse amanhã, era pouco provável que o Record divulgasse atualizações frenéticas sobre a busca contínua por um advogado em aposentadoria precoce, transformado em um freelance zé-ninguém. Na gíria da sua nova carreira, “freelance” parecia ser o jargão dos entendidos para designar “desempregado” e, quando ele resmungava a palavra diante de seus conhecidos, eles davam risinhos de chacota. Mesmo assim, em vez de se informar sobre os acontecimentos atuais, Edgar estava, mais uma vez, buscando compulsivamente uma reportagem de Tobias Falconer. O engraçado era que, quando encontrava alguma, não a lia. E isso era típico. Fazia anos que ele pegava aquele jornal opressivamente sério, de letrinha miúda — um dos últimos baluartes de austeridade que se recusava a adotar cores —, apenas para localizar as matérias de Falconer, embora raras vezes conseguisse submeter-se a lê-las. Ele nunca tentara identificar o que temia.

Desabando no sofá acolchoado de veludo cotelê, Edgar rendeu-se à reflexão sem compromisso que, por sorte, dez anos frenéticos de Wall Street haviam evitado. Durante todo aquele tempo, a eletrizante assinatura de Toby Falconer provocara choques em Edgar, com correntes alternadas de inveja e saudade que confundiam, mas viciavam. Esses pequenos picos de energia lhe davam arrepios no couro cabeludo, mas ler matérias inteiras seria como enfiar os dedos na tomada. Sendo assim, por que comprar o jornal? Por que monitorar a carreira de um homem que ele não via havia vinte anos e que era um traidor, cujo próprio sobrenome o fazia se encolher? Por outro lado, as venturas de Falconer tinham sido fáceis de acompanhar. Primeiro como correspondente do U.S. News and World Report, depois, seminalmente, do National Record, ele enviava suas reportagens peripatéticas de Beirute, Belfast ou Sarajevo. Em mais de uma ocasião havia conquistado prêmios por matérias especialmente arriscadas ou negligenciadas até aquele momento, e esses prêmios enchiam Edgar de uma intrigante mistura de irritação e orgulho. Edgar, é claro, havia escolhido a ocupação mais lucrativa. Para seu desespero, no entanto, tinha descoberto como era pequeno o valor do dinheiro, quando não servia para livrar o sujeito de se esfalfar desde as sete da manhã em um escritório de advocacia que ele execrava. “Bem-remunerado” era um termo oportuno, embora, no final, ele não conseguisse imaginar nenhuma quantia tão vultosa que pudesse realmente compensar as doze ou treze horas de cada dia da semana jogadas no lixo. Ao se livrar de sua carreira “promissora” no direito corporativo (se bem que o que ela prometia, é claro, era mais direito corporativo), a fim de arriscar a sorte no jornalismo, seis meses antes, Edgar havia relutado em examinar até que ponto essa reinvenção impetuosa e financeiramente suicida teria sido influenciada por seu velho parceiro inseparável do ensino médio — ele que, tendo sempre conseguido os amigos mais divertidos, as garotas mais bonitas e os empregos mais legais nas férias de verão, naturalmente havia garantido a vocação mais descolada. Se, com o tempo, Toby Falconer e Edgar Kellogg tinham se sentido atraídos pelo jornalismo, talvez essa convergência indicasse apenas que os dois garotos haviam tido mais em comum no ensino médio do Colégio Yardley do que Edgar jamais se atrevera a acreditar quando garoto. Nem sonhando. Imaginar que ele tivera alguma semelhança com Falconer na adolescência era tão presunçoso que chegava a ser utópico. Toby Falconer era um exemplo único. Sem dúvida, toda escola tinha um, embora o singular fosse incongruente como exemplar típico; presumivelmente, não haveria ninguém igual a ele. Um Falconer era o tipo de sujeito de quem os outros não conseguiam parar de falar. Tinha o dom de ser o centro das atenções quando nem estava presente. Sempre ficava com as garotas, porém, mais importante, com a garota. Fosse quem fosse a gata imaginada por você com a porta do banheiro fechada, ela se encantaria com o nosso herói. Sempre dava para herdar um pouco do prestígio, é claro, mas, se você andasse muito com um Falconer, passaria a maior parte dos seus encontros respondendo a perguntas das garotas sobre a infância problemática dele. A liberdade de um Falconer era quase perfeitamente irrestrita, porque ele nunca era punido por seus pecados. E, de qualquer modo, os pecados de um Falconer não pareceriam depravados, mas meramente travessos, gozadores ou até encantadores, na verdade — parte do pacote sem o qual um Falconer não seria aquele malandro cativante que a gente conhece, ama e perdoa indefinidamente. E, além disso, quem se arriscaria a desagradá-lo, cobrando-lhe satisfações? Ele fazia tudo com estilo, não só por ter desenvoltura social, mas porque a definição de estilo,

em seu círculo, era o jeito de Falconer fazer o que quer que Falconer fizesse. Era impossível determinar até que ponto o magnetismo de um Falconer podia ser atribuído à beleza física. Boa aparência não faria mal, mas, se um Falconer tivesse qualquer traço desviante — um nariz encaroçado ou sobrancelha contínua —, esse traço simplesmente serviria para reconfigurar o arquétipo do belo. Falconer ditava o padrão, de modo que, por sua própria natureza, não podia parecer feio, nem tecer comentários francamente idiotas, nem fazer alguma coisa desajeitada de que os outros rissem, a não ser com um espírito fervoroso, cúmplice ou bajulador. Até então, Edgar tinha sido o homólogo de Falconer, aquela criatura simbiótica sem a qual um Falconer não poderia existir. Os muito admirados precisam dos admiradores e, para desalento próprio, Edgar tinha se candidatado mais de uma vez a esse posto. Embora preferisse o papel de grande astro do campus se o cargo estivesse dando sopa, vivia preso num eterno impasse: na ânsia de ser admirado, estava fadado a admirar outras pessoas que fossem admiráveis. O que fazia dele, necessariamente, um tiete. Até aquele dia, a única arma que havia derrubado a tirania de um Falconer fora a desilusão cruel e disciplinada. Por vezes, um Falconer se revelava uma fraude. Eis que podia mostrar-se desajeitado, se você permanecesse atento. No fim, caso se esforçasse, era inteiramente possível rir dos defeitos dele, de um modo que não chegava a ser lisonjeiro. Abrir o olho era doloroso no começo, embora também fosse um alívio, e, no final das contas, Edgar ficaria sozinho, mas livre. No entanto, abaixar um pouco a bola do ungido era um exercício intrigante, até mesmo deprimente, e em razão disso Edgar reservava suas denúncias mais virulentas justamente para as pessoas com quem mais havia se extasiado um dia. A conduta pública de Edgar — brusco, durão, desconfiado e de ar impassível — era tremendamente discrepante de sua queda secreta por se deixar cativar pelos Falconers que passassem, e, no íntimo, ele tinha medo de que todo o propósito dessa carapaça fosse conter um interior totalmente meloso. Ele não suportava pensar em si mesmo como um coadjuvante. Ter se encantado servilmente com qualquer tipo de ídolo envergonhava-o quase tanto quanto já ter sido gordo. Por isso, dentre suas várias ambições, aos trinta e sete anos, a mais dominante era nunca voltar a sucumbir ao feitiço de um Falconer. Fora exatamente no bojo dessa resolução que Edgar Kellogg saíra marchando do escritório de advocacia Lee & Thole, seis meses antes, decidido a despir o Burberry insípido do zé-ninguém excessivamente bem pago. Vestiria enfim o manto mais grandioso do líder, do criador de tendências, do ícone cultural. E foi tomado por essa mesma determinação que partiu para sua entrevista de emprego às quatro da tarde no National Record. Estava farto de ser O Tiete. Queria ser O Cara.

CAPÍTULO 2

Na sela do Saddler — Win, é você? Guy Wallasek, do Record. Sei que faz três meses, então isso é só uma formalidade... Já passei de vez da fase de mamãe coruja. Mas o Saddler não teve a dignidade de dar as caras em Barba, não foi? ... Aqui? A esta altura, ele não se atreveria... Obrigado pela correção. O que quer que falte em consideração no Saddler, ele compensa com o desplante. — O editor balofo cobriu o bocal do telefone e murmurou para seu entrevistado das quatro horas: — Já falo com o senhor. Edgar estreitou os olhos para os certificados emoldurados do Pulitzer, meneando a cabeça e fingindo estar impressionado. Esgotados esses adereços, avistou na mesinha do abajur um descanso retangular para copos, plastificado com uma miniatura da primeira página do National Record: EXÉRCITO VERMELHO DERRUBA GOVERNO DE GORBACHEV. A assinatura, difícil de identificar, começava com B. Edgar trocaria de lugar com esse repórter num piscar de olhos. Perseguir tanques com um microcassete dava de dez a zero em preencher mais um formulário de abertura de capital. A janela atrás de Guy Wallasek proporcionava uma visão pouco inspiradora de um sólido vidro verde; Edgar não tardaria a esgotar as fontes visíveis de fascinação. Não queria parecer perdido no exemplar do Record daquele dia, deixando implícito que não o tinha lido. A cadeira da escrivaninha rangeu quando Wallasek se inclinou para trás. — Pode apostar que eu gostaria de lhe dizer poucas e... — O gorducho deu um risinho. — É, estou brincando. Provavelmente eu prepararia uma xícara de chá para nosso filho pródigo. Sou apenas o chefe dele, certo? ... Eu? No começo, achei que era uma gracinha. Mais uma. Mas o que o Saddler faria com mais atenção? Guardaria em potes? E essa sua península é um tremendo ninho de cobras... O rosto de Edgar estava rígido, por manter durante dez minutos uma expressão falsamente agradável de não-tenho-pressa-alguma. Wallasek podia muito bem ter dado esse telefonema antes da hora marcada para a entrevista. E para que se dar o trabalho de fazer aquela encenação de poder? Edgar seria capaz de ficar de cueca e dançar chá-chá-chá por uma chance de escrever para a editoria de assuntos internacionais de Wallasek. O editor deu uma gargalhada e olhou para Edgar de relance, para ter certeza de que ele se sentia excluído da piada. — Se estiver com ele — continuou Wallasek —, diga ao Barrington que, da próxima vez que ele tirar férias, quem sabe poderia me mandar um cartão-postal. A sorte do Record é essa história ter ficado na gaveta. Desde o sumiço do Saddler, o SOB não assumiu nem mesmo a autoria de uma falha num fogo de artifício chinês, certo? ... É uma piada, não é? Aquele sacana provocou baldes de adulação boquiaberta, para não falar em ataques apopléticos de raiva. Mas preocupação é novidade. Devem estar erguendo taças de champanhe na ausência dele, hein? ... Cer-ve-ja de pera puda? — pronunciou Wallasek, com dificuldade. — Parece repugnante. Graças a Deus por vocês, bravos correspondentes estrangeiros, e pelo seu sacrifício em prol da sedenta necessidade de informação do mundo... Sarcástico, moi? — Risinhos. — É, já não fazem nêmeses como antigamente, Win. Tchau. O sorriso amável de Edgar, como ele temia, tinha virado uma careta. Angela, sua namorada, sempre o

espinafrava por estar curvado, e sua postura ereta na cadeira do diretor, que fazia o gênero “sou exatamente o homem que você procura”, dava-lhe dor nas costas. Enquanto isso, Wallasek revirava papéis numa escrivaninha que era o pesadelo de qualquer candidato a emprego: pilhas amassadas, que sem dúvida remontavam a dois governos federais anteriores, com manchas engorduradas de pão doce. Ninguém ficaria impune com uma mesa daquelas no escritório Lee & Thole. — Então! — suspirou Wallasek, localizando os recortes e o currículo de Edgar. A pasta que os guardava havia sumido e as fotocópias estavam desarrumadas. Um olhar sem compreensão deixou transparecer que Wallasek não lera um único parágrafo das matérias de Edgar. Da próxima vez, ele não se incomodaria com cópias coloridas, que eram chiques mas custavam um dólar por página. Edgar encolheu-se. Talvez os jornalistas que estavam por dentro das coisas nunca mandassem anexos coloridos. As bordas brilhantes que reluziam nas mãos do editor pareciam um excesso de empenho. Edgar acolhia de bom grado a acusação comum de ser metido a sabichão — rude, intratável e insubordinado —, mas a perspectiva de parecer um novato era mortificante. Relaxou os ombros. — Sr... Kellogg! — exclamou Wallasek, com o mesmo ar de descoberta com que erguera o olhar e constatara que havia um estranho sentado em seu escritório fazia quinze minutos. — Não teve dificuldade para chegar aqui? — O edifício Equitable é maior que um porta-pão — zombou Edgar no bate-papo pré-entrevista, com seu artifício de “relaxe, ainda não começamos”, quando o papo furado, na verdade, era mais um teste no qual deveria ser aprovado. Teve de se segurar para não se adiantar, acrescentando um “este verão tem sido quente mesmo”, e “belíssima a sua esposa, aí na foto da escrivaninha”, e “não precisa perguntar onde eu moro, porque o endereço está aí no meu currículo”, e “não, não quero um cafezinho”. — Posso lhe oferecer um...? — Nada, obrigado. Para estimular uma ida direto ao ponto, deu uma olhadela expressiva no seu pesado relógio de mergulho, folheado a ouro. No contexto de sua renda média mensal de trezentos dólares, os mostradores desnecessários giravam com uma exorbitância estonteante, que Edgar havia subestimado até esta última primavera. — Segundo colocado da turma — resmungou Wallasek, passando o dedo pelo currículo. — Vicepresidente... Menção honrosa... Orador... Prêmio de segundo lugar... Advogado assistente... Nossa, o senhor quase abocanhou uma porção de coisas. — Sou um dos segundos lugares da vida. — Sem ter conseguido evitar o toque de rispidez na voz, Edgar moderou o tom, amável: — Nós nos esforçamos mais. Wallasek abriu um cortador de unhas e enfiou a ponta da lixa no ouvido, cavoucando atrás de cera. — Resenha de um livro para o Newsday — ruminou, espalhando as fotocópias. — O Village Voice... Agora ele é gratuito, não é? — Sim, senhor — disse Edgar, rígido. — Washington Times... O jornal do Moon. Desde o começo dos anos oitenta, o Washington Times pertencia a um evangelista coreano gordo. — A direção mantém o controle independente da parte editorial.

— Sim... ou é o que eles dizem. Mesmo assim, não é o Post, certo? — Não, senhor — concordou Edgar, rangendo os caninos —, não é o Washington Post. — Columbia Alumni Magazine, Amtrak Express. Examinando a haste do cortador de unhas, o editor tirou uma bolota sulfurosa da ponta e voltou ao jornalismo incipiente de Edgar; nenhuma das matérias parecia gerar o intenso fascínio exercido pela cera do ouvido de Wallasek. — E o New Republic — assinalou Edgar. — Os outros aqui parecem ser resenhas de direito. O que senhor sabe sobre o National Record? — Sou um leitor habitual — mentiu Edgar; depois de procurar a coluna de Falconer, em geral ele jogava o jornaleco fora, pois a seção de esportes era uma porcaria. — Reconheço que o Record preencheu uma lacuna. Seria um escândalo se o único jornal nacional deste país continuasse a ser o USA Today. Wallasek manteve o ar expectante; Edgar ainda não tinha caprichado o suficiente. — O Record também abraça a liderança global dos Estados Unidos depois da Guerra Fria. Sua cobertura internacional é pelo menos tão minuciosa quanto a do New York Times. Supondo que os leitores se importem com o resto do mundo, vocês não são complacentes com seus assinantes. Edgar teve que parar; sua entonação havia assumido aquela cadência de entusiasmo implausível usada para vender absorventes. — É claro que somos complacentes com nossos assinantes — disse Wallasek, descartando a ideia com um aceno de mão. — A cobertura internacional é um agrado para a vaidade deles. Só um punhado de pessoas lê aquele troço. Com uma exceção: quando um americano comum enfia o Record embaixo do braço, embarca num 747 e um desses estrangeirinhos nojentos explode o avião. Aí essas reportagens são lidas, meu amigo. Cada pedacinho das colunas. Edgar achava que esbravejar contra terroristas era o suprassumo do tédio. O assunto induzia a uma moralização mais do que óbvia, pois quem é que ia dizer que matar aqueles dois garotos com uma bomba na lata de lixo, num shopping de Washington, em abril, tinha sido uma profunda afirmação política? Nesse momento, a suposição era que Edgar fosse obrigado a entrar com uma fala ardorosamente indignada contra os Soldatsies Oozhatsies, ou qualquer que fosse o nome que aqueles malucos infelizes se davam, e a cerrar os punhos em sinal de inflexível solidariedade com seus compatriotas, que jamais se renderão ao terrorismo. Ou talvez ele devesse entrar numa conversa mole sobre como era incrível que o FBI não tivesse pegado nenhum daqueles asquerosos, para demonstrar que estava por dentro do assunto. Mas aquela entrevista não estava indo bem, candidatar-se tinha sido um belo tiro no escuro, então Edgar deixou para lá. — O senhor está ciente de como o Record conseguiu estabelecer uma reputação de jornalismo de alta qualidade em tão poucos anos? — perguntou Wallasek. — Trabalho astuto de edição, definição clara da área de es... — Papo furado — interrompeu Wallasek. — Pagando melhor do que qualquer outro jornal do país. Edgar sorriu, sem conseguir evitar. — Eu sei. — O que estou querendo dizer é que, bem, o senhor tem algumas matérias boas... — São só amostras, é claro. Os dois sabiam que Edgar havia fornecido recortes de cada ponto e vírgula que já tinha publicado.

— Mesmo assim, Sr. Kellogg, não acha que está sendo um pouco ambicioso demais? — Expliquei na minha carta que... — Sim, o senhor “deixou o direito para se tornar jornalista freelance”. Isso me chamou a atenção. — Deixei um dos melhores escritórios de advocacia em Wall Street, do qual estava prestes a me tornar um dos sócios. Até uns meses atrás, eu ganhava duzentos mil por ano e com perspectiva de aumentos. O Record pode pagar bem, mas será que paga tão bem assim? Parece-me que, não importa por que ângulo se olhe, não estou “sendo ambicioso demais”, mas buscando um corte colossal no salário. — Quer dizer que devo contratá-lo porque o senhor é maluco? Edgar riu. — Ou então, como é mesmo a última expressão afetada da moda? Portador de dificuldades de aprendizagem. Wallasek estreitou os olhos. — O que deu em você? Edgar fez uma pausa. Havia ensaiado sua explicação no táxi, a caminho dali, táxi este que tinha sido um resto de extravagância dos tempos do Lee & Thole — um hábito que ele teria que abandonar. Apesar de sua planejada pose descontraída, devia estar nervoso; a lógica fluente tinha sumido. Só lhe ocorreram tiradas mais do que batidas, vindas das aulas da faculdade sobre D. H. Lawrence, do tipo “anseio nascente”. Sua possibilidade de fazer uma encenação sobre o “anseio nascente” diante de um jornalista estúpido era tão pequena quanto a de ele asseverar ao próprio chefe de Toby que se sentia impelido a se tornar “um Falconer”. Ultimamente, começara a se perguntar: será que era maluco? Voltara a almoçar mamão papaia quando, seis meses antes, poderia jantar no Cub Room e mandar pendurar o valor na sua conta. Se lhe pedissem para fazer uma viagem de última hora a Syracuse, poderia pôr na conta da firma uma camisa nova e mandar um contínuo buscá-la. Se ficasse trabalhando depois das sete e meia (digamos, até sete e trinta e um), um automóvel da Dial Car o levaria para casa. Como ele poderia explicar a Guy Wallasek que os privilégios podiam tê-lo atraído nos tempos de assistente jurídico, sobrecarregado de trabalho, mas que, quando enfim pudera, ele mesmo, cobrar honorários extorsivos dos clientes, o exercício da profissão de repente lhe parecera degradante? Ou que, sem nenhuma razão evidente, ele se sentia fadado a algo mais refinado do que redigir sumários pomposos? Ou que queria “dizer alguma coisa”, quando a própria ânsia de dizer “alguma coisa”, e não algo em particular, provavelmente o colocava no mesmo barco que qualquer outro idiota agitado do país? — Fiquei entediado — condensou, numa resposta esfarrapada. — Acha mais divertido escrever para o Amtrak Express? — Tenho que começar em algum lugar. E o direito, sei lá, me parecia passivo. Somos parasitas. — Os jornalistas são parasitas dos acontecimentos da vida de todo mundo — contrapôs Wallasek. — Um monte de escrevinhadores passa seus dias de trabalho meramente registrando isso de que o senhor acabou de sair: fusões e aquisições, transferências de valores e poder. O pior que pode acontecer a um correspondente é começar a se ver como um participante do jogo. O jornalistazinho que se imagina cheio de poder e influência fica desleixado, acha que está cobrindo a própria história. Escrever reportagens é um ofício humilde, Sr. Kellogg. Os jornalistas — Wallasek deu de ombros — são secretários da História.

— É melhor ser secretário da História do que advogado da Philip Morris — arriscou Edgar. — Pelo menos, os jornalistas têm o crédito autoral. O direito é uma profissão anônima, de bastidores. Os advogados são tão bem pagos porque seu trabalho é monótono e ingrato. Uma vocação previsível para quem sempre fica em segundo lugar. Só que não quero outras menções honrosas, Sr. Wallasek. Eu gostaria de me distinguir. — Quer ver o seu nome impresso — completou Wallasek, em tom cético. — Quero ver impressa qualquer coisa que não seja escrita unicamente para ajudar algum colarinhobranco que já tem mais dinheiro do que sabe usar a ganhar um pouco mais. — Edgar prosseguiu, numa chatice voluntariosa que era gratificantemente diferente dele: — Quero chegar à verdade. — A “verdade” que a maioria dos repórteres obtém é bem prosaica: o secretário de Estado saiu da Casa Branca às cinco e quarenta da tarde, e não às seis. Quanto à verdade do tipo panorama completo... — Wallasek pareceu refletir por um instante, deslizando uma unha suja pela costura do paletó. — Antigamente, eu não acampava atrás de uma escrivaninha, Sr. Kellogg. Engraçado, não sinto tanta falta de gastar a sola do sapato quanto poderia esperar. Estreei no Vietnã e pendurei o chapéu depois de Granada. Não sei dizer ao certo se tenho uma compreensão melhor de alguma coisa do que o pessoal que não saiu da cama. É um negócio infernal, mas o sujeito pode estar bem ali no meio, entre dois exércitos que estão se dilacerando, e depois não ter nada para dizer a respeito. Nadica de nada. E é assim que deve ser. O repórter não está ali para contribuir com seus palpites. Mas isso, essa incapacidade de chegar a uma perspectiva... isso pode ser desanimador, em termos pessoais. Não existe nenhuma “verdade” global lá fora. Só um punhado de pequenos fatos banais, dissociados. E os fatos fazem muito sentido. Uma porção de árvores, mas não muita floresta. Ah, de vez em quando, o sujeito tropeça num Todos os homens do presidente, e aí banca o herói. Mas, na maioria das vezes, a gente apenas descobre o que aconteceu, e o que aconteceu é deprimente. — Não mais deprimente que o escritório Lee & Thole. — Eu só me pergunto se as suas expectativas não são um pouquinho altas. Não só de conseguir um emprego permanente neste jornal, mas do que implicaria esse emprego, se eu me precipitasse a ponto de oferecer um cargo a um foca de meia-idade. Edgar podia dispensar o conselho paternal, além da classificação de homem “de meia-idade” aos meros trinta e sete anos. Antes que pudesse detê-la, passou a mão pela testa, como se as entradas do seu cabelo pudessem ter recuado mais um centímetro desde que ele as verificara de manhã. Na volta para o colo, as pontas dos dedos deslizaram por aqueles sulcos fundos na testa, em forma de V: uma marca tão habitual que Angela afirmava que ele franzia a testa dormindo. — Foi o senhor que me chamou para uma entrevista — resmungou. — Podia ter jogado meu currículo no lixo — acrescentou, estendendo a mão para sua maleta. Wallasek levantou a palma da mão. — Calma aí. Toby Falconer recomendou o senhor, e ele é o membro mais sólido e equilibrado daqui. Ele o descreveu como “perseverante, minucioso e obstinado”, quando visa a um objetivo. Edgar sentiu um silencioso constrangimento. Ter dado o trêmulo telefonema no mês anterior para Falconer (a quem os adjetivos “sólido” e “equilibrado” nunca teriam sido aplicados no Colégio Yardley) fora tão difícil que o deixara fisicamente doente. Apesar de Falconer ter sido espantosamente gente boa, Edgar ficara com a incômoda sensação de que, pelo seu lado, a ligação não havia corrido bem. Ele se

sentira envergonhado — procurar Toby para lhe pedir contatos, depois de tantos anos sem ao menos um “como vai?”. O constrangimento o deixara ressentido, talvez até belicoso. Aquela estava longe de ser a situação em que ele fantasiara entrar em contato com o sujeito, e ele nunca teria abusado da sorte daquela maneira, se o seu nível de desespero já não houvesse chegado aos píncaros. Mas, àquela altura, os suores noturnos haviam começado. Em seus sonhos, Edgar implorava a Richard Stokes Thole para aceitá-lo de volta, sem a cobertura do plano de saúde, e vestindo nada além de meias verde-limão; o imponente sócio majoritário o repreendia, dizendo que a empresa tinha adotado o traje informal às sextas-feiras, mas era quinta, e as meias dele realmente deveriam ser marrons ou pretas. E a tal história do “obstinado”? O fato de Edgar ter perdido quarenta e cinco quilos no penúltimo ano do Yardley devia ter causado uma impressão duradoura. — Toby avaliou que as suas habilidades no direito se transfeririam para o jornalismo: entrevistas, pesquisas em bibliotecas, redação de processos. Além disso — Wallasek finalmente chegou ao ponto —, estou com um problema. Edgar ergueu as sobrancelhas, e então conseguiu baixá-las para um cenho carregado mais agradável. Uma vez retomada, sua má postura assumiu uma inclinação mais elegante. — Está a par do conflito barbense? — perguntou Wallasek. Embora Edgar houvesse percorrido sua cota de manchetes (quem poderia não vê-las, quando tinham três centímetros de altura?), a causa do SOB lhe parecera tão cansativa, por ocasião do surgimento desse grupo radical, alguns anos antes, que ele tivera prazer em acrescentar Barba à lista crescente de cus do mundo complicados demais e com os quais ninguém se importava, sobre o que ele se recusava a ler — junto com Bósnia, Angola, Argélia e Azerbaijão. Antes do estudo intensivo de assuntos atuais, na preparação para a entrevista, Edgar não teria sabido apontar esse fim de mundo num mapa num raio de mil e quinhentos quilômetros. — Nunca estive lá, mas é claro que tenho acompanhado a história. — E o senhor, por acaso, não fala português, fala? — Fiz o ensino médio em Stonington, Connecticut, que foi colonizado por imigrantes portugueses. Não sou fluente, mas me viro. Na verdade, todo o seu vocabulário de português se reduzia a três palavras — filho da puta —, que eram de aplicação limitada. Mesmo assim, havia uma oportunidade por lá, e Edgar não queria voltar para casa e redigir uma carta de apresentação para a revista de bordo da American Airlines. Wallasek se levantou e se espreguiçou; sua coxa esparramou-se na escrivaninha quando ele se empoleirou em cima dela, com ar de camaradagem. — O SOB tem andado na encolha, e pode ser que a história tenha se esgotado. Mas há uns caras convencidos de que essa é uma trégua não declarada, não porque estejam desistindo, mas porque estão armando alguma coisa grande. O Thomas Friedman escreveu no Times, na semana passada, que os terroristas astutos variam o ritmo das campanhas. Durante algum tempo, os Sobs andaram explodindo estações de metrô ou aviões com a regularidade de um relógio, a cada seis semanas, aproximadamente. Mas as pessoas se acostumam com qualquer coisa. Em pouco tempo, lá estão esses canalhas se dando todo o trabalho de mandar uns troços pelos ares, apenas para manter a impressão de que não há nada de novo. Aparentemente, o Tom estava nos exortando a não descuidar da segurança, mas eu mesmo não fiquei seguro com aquela matéria. Foi quase como se o Friedman desse uma boa orientação tática a esses

maníacos. Era pavloviano: bastou Wallasek mencionar Barba para a cabeça de Edgar começar a divagar. Na verdade, estava pensando em como, na primeira vez que o “SOB” tinha aparecido no noticiário, todos haviam pensado que o nome do grupo era uma piada. Atualmente, até sujeitos da direção, como Wallasek, citavam a sigla com uma expressão séria. Era preciso lembrar a si mesmo que, nos velhos tempos, ela queria dizer son of a bitch, filho da puta em inglês. — A questão — continuou Wallasek — é que agora, a qualquer momento, podemos ter outro circo dos horrores estampado na primeira página, e o Record seria apanhado com as calças na mão. — Como assim? Wallasek sugou as bochechas entre os molares e mordeu-as. Levantou-se. Enfiou as mãos nos bolsos e sacudiu as chaves. Lançou um olhar penetrante e ameaçador para os dedos dos pés, como se tentasse fazer mais furinhos na gáspea dos sapatos. — Barrington Saddler. Não perguntou “Já ouviu falar de...?”, nem apresentou: “Há um cara chamado...” O editor simplesmente soltou o nome na sala com um baque, como se fosse um objeto pesado que ele vinha carregando e estava aliviado por tê-lo largado no chão. Ele mesmo olhou para um ponto no meio do escritório, como se uma grande presença física fosse se manifestar ali. Claro que Edgar tinha captado referências a um palhaço de nome bombástico enquanto esperava Wallasek desligar o telefone. Mas isso não explicava inteiramente a sua incômoda impressão de já ter ouvido aquele nome. De qualquer forma, o nome o desagradou de cara. “Barrington” era empolado e pesadão, e qualquer sujeito que não tivesse a inteligência de abreviar essa denominação pretensiosa para “Barry” seria um panaca pomposo. O nome evocava adjetivos como “prepotente” e “insuportável”, e os nativos da Nova Inglaterra teriam um impulso irritante de fazê-lo ser precedido pela palavra “grande”.* — Barrington Saddler veio à terra para atormentar minha paciência — resumiu Wallasek. — Talvez seja por eu ainda estar tentando, valentemente, ser aprovado no teste de Deus sobre o meu caráter que ainda não demiti esse cara. Por isso e porque o Saddler é considerado um dos nossos astros do jornalismo. Vou poupá-lo dos detalhes, a não ser que um dia você pareça precisar de uma história cautelar, mas o Barrington foi mandado para a Rússia e se comportou mal lá. Eu podia tê-lo dispensado naquela época, mas os fãs dele fariam um estardalhaço, e eu tenho uma afeição indefensável pelo idiota. “Assim”, continuou, “resolvi exilá-lo. Abri um mapa da Europa e localizei o canto mais longínquo, mais pobre e mais chato do continente. Fazia duzentos anos que essa ponta de Portugal não conseguia nem uma menção passageira na imprensa norte-americana. Calculei que seria o lugar perfeito para Saddler pensar na sua conduta incorreta. Ali estava o único local em que ele nunca atrairia multidões, outra panelinha fuxiqueira e protetora para instigá-lo a criar confusão. Porque ninguém ia lá. Nem turistas nem expatriados, muito menos qualquer um dos amiguinhos dele da imprensa, em alguma missão, porque não havia nada para cobrir: só um bando de branquelos ibéricos, matraqueando uma língua que ele seria preguiçoso demais para aprender, e boas moças católicas que manteriam as blusas abotoadas. Eu continuaria pagando seu salário até ele aprender a lição, e ele voltaria daquele tanque de areia sem ter publicado nada no jornal durante um ano inteiro, adequadamente castigado e disposto a cumprir as regras, como mais um estenógrafo na equipe de secretários da História.

“E onde era esse buraco no fim de mundo?”, perguntou Wallasek, em tom feroz. — Em Barba — chutou Edgar. — BARBA! Onde, poucos meses depois da chegada do Saddler, surgiu a organização terrorista mais letal do século XX. De todos os tempos, acho. E lá estava o Saddler, feliz feito pinto no lixo, bem no centro da história, disparando matérias de primeira página sobre os ultimatos do SOB. Baixou um núcleo previsível naquela pocilga: o Times, o Post e o Guardian passaram a ter correspondentes permanentes na capital da província, Cinzeiro. Até o Independent de Londres, em estado financeiro terminal, mandou alguém para lá. Num instante, lá estava o Saddler de novo, liderando um bando de jornalistas. Eu diria que o homem é encantado, mas, nos últimos tempos, tenho me perguntado se esse gato finalmente está na sétima vida. — Saddler está encrencado? — indagou Edgar, voltando a sentir uma estranha familiaridade com aquele personagem ridículo, uma exasperação compartilhada. — Talvez ele tenha se engraçado demais com aqueles babacas, não sei. Ele é temerário, acha graça do perigo. Enfim, faz três meses que desapareceu. Sumiu, puf, se foi. Praticamente deixou o café esfriando e o Camel queimando. E é aí que você entra. — Eu era advogado, não detetive. — Não espero que o procure. Isso é trabalho dos policiais, que eles já fizeram, aliás, e mal, se quer saber. O chefe de polícia de Cinzeiro, o tenente Car-ho-ho, ou seja lá que nome for, diz ter procurado em tudo quanto foi canto. É um desses caipiras tacanhos, doidos por um poderzinho, muito possessivos com sua jurisdição. Falei com ele. Tentei sugerir que talvez ele não houvesse tentado todos os ângulos, e o homem veio para cima de mim todo malcriado e defensivo e patriótico. Sabe, todos os barbenses são assim. Irritadiços. E todos os caminhos levam à política de trevo rodoviário que eles adotam. É só mencionar o clima instável, que é um horror, pelo que entendo, para insultar o precioso orgulho nacional deles. Mas, enfim, o cara não descobriu porra nenhuma. Pista nenhuma. Não me deixou escolha a não ser acreditar que o Saddler deve ter sido abduzido por alienígenas, ou coisa assim. — E qual é o trabalho? — pressionou Edgar, forçando a perna a parar de sacudir. Wallasek bateu palmas uma vez. — Preciso de um correspondente em Barba. Desisti de esperar que o Saddler mande flores. Por isso, estou lhe oferecendo um trabalho de freelance. Há uma comissão pelos seus serviços, o que, tecnicamente, faz de você um superfreelance, mas não deixe esse título heroico lhe subir à cabeça; nossa gratificação mensal vai manter o seu gravador com pilhas novas, e é mais ou menos só isso. Há um valor fixo de quatrocentas pilas por artigo, além das despesas, mas só nas matérias que publicarmos. Pagaremos o seu transporte inicial. Sem benefícios adicionais. Você pode se instalar na casa do Barrington; acho que ele deixou até o carro. Mas esse arranjo seria provisório — Wallasek foi atropelando, antes que Edgar tivesse chance de dizer sim ou não. — O Barrington está neste jornal desde que foi fundado. Ele é uma instituição, se você preferir. Se ele aparecer com uma explicação que eu possa ao menos fingir que engulo, o cargo volta a ser dele. Ele conhece essa história, está nela desde o começo. Portanto, se o Saddler ressurgir na semana que vem, o seu freelance dura uma semana. — A comissão, de quanto é...? — Você está me deixando constrangido — cortou Wallasek. — Trezentos e cinquenta por mês, o que é tão chocante quanto inegociável. Além disso, você tem que estar preparado para muito jogo de

paciência no computador. É possível que o SOB tenha encerrado as atividades, ou que os membros tenham arrancado os olhos uns dos outros; é comum essas organizações paramilitares sangrentas destruírem a si mesmas. Nesse caso, acabou-se a história e você fica por conta própria. Também não posso garantir outra missão. Esta é uma oferta única. Por outro lado, se a história esquentar e o Saddler ainda estiver desaparecido, você pode transformar isso numa grande oportunidade. Acha que consegue? Enquanto brandia as ressalvas, o editor claramente via Edgar como alguém tão ferrado que não poderia se dar ao luxo de ser exigente. Ele tinha razão. Era mesmo uma grande oportunidade, de modo que a hesitação de Edgar era absurda. A oferta superava em muito as suas expectativas, as mesmas expectativas de que Wallasek tinha zombado, por serem altas demais. Edgar pensara que, na melhor das hipóteses, receberia sinal verde para apresentar uma ou outra matéria ao acaso, ou a promessa de ficar com seu currículo “no arquivo” — isto é, incinerado só depois que ele saísse, não diante dos seus olhos. Esse trabalho de “superfreelance” pagava uma miséria, mas tinha um toque interessante e representava um pé dentro da porta. Talvez, em pouco tempo, uns duzentos e quarenta e cinco civis fizessem dele um homem de sorte: MORTES CHEGAM ÀS CENTENAS ENQUANTO SOB ASSUME SABOTAGEM DO VOO 169 DA UNITED, de Edgar Kellogg, correspondente em Barba. No entanto, alguma coisa nesse arranjo o oprimia. Quem quer que fosse Saddler, assim, no escuro, estava claro que o sujeito fazia parte da elite do Clube da Exceção a Todas as Regras, cujos membros projetavam o tipo de sombra sob a qual Edgar tinha vivido a vida inteira: o epônimo Falconer, é claro, mas também o próprio irmão mais velho de Edgar, o superesportista; e Richard Stokes Thole, sufocantemente augusto; e o afetado ex-namorado de Angela, por quem ela ainda era secretamente apaixonada — todos esses foram oradores de turma, primeiros colocados, vencedores de prêmios e presidentes. Além disso, Edgar ressabiava-se com a ideia de substituir uma celebridade de segunda, que poderia aparecer a qualquer momento, sem avisar, para reivindicar sua casa, seu carro, seu pedaço, seu Camel fumado até a metade e seu café frio. O próprio sobrenome, “Saddler”, que significa “seleiro”, acabava soando opressivo. Edgar se imaginou arrastando-se por uma paisagem lúgubre, sobrecarregado com a bagagem do seu antecessor, como um jumento solto que fosse estúpido e manso demais para tirar o fardo das costas. — Acho que topo — disse, inseguro. — Quando eu teria que ir? — O mais rápido possível. E tome... — Wallasek rabiscou um endereço, que parecia saber de cor. — O alojamento do Saddler. — Estendeu a folha de papel e acrescentou, obscuramente: — Você não vai sofrer. Edgar aceitou o papel. — E como é que eu...? — Reserve a passagem de avião, apresente o recibo, nós faremos o reembolso — tagarelou Wallasek. — Ah, mais uma coisa. — O editor folheou um caderno de endereços de couro felpudo na escrivaninha, depois pegou o papel de volta para rabiscar um número. — Pode pegar a chave da casa com Nicola. — Devolvendo a página com uma falsa tremedeira, de gozação, deu uma olhadela de esguelha. — Uma das amigas do Saddler. A melhor amiga dele, segundo todos os depoimentos. Nunca a encontrei, mas é engraçada a frequência com que as numerosas amigas do Saddler acabam sendo mulheres bonitas. Subiu uma bandeira vermelha: depois de passar dez segundos discutindo a logística de toda uma vida

nova para Edgar e quarenta e cinco minutos falando do sacana irresponsável que vinha vadiando, Wallasek ainda não conseguia parar de falar do Saddler. Edgar dobrou o papel, ganhando tempo. Tinha certeza de que havia dezenas de perguntas que devia estar fazendo, e sentia-se igualmente certo de que elas só lhe ocorreriam quando ele estivesse no avião. — Então, hum. Qual é minha primeira tarefa? — Descobrir o estranho e terrível destino de Barrington Saddler, qual mais poderia ser?

* Os adjetivos citados — overbearing (prepotente) e unbearable (insuportável) — têm uma sílaba quase homônima da primeira parte do prenome Barrington; quanto ao “grande”, ele é uma referência ao urso norte-americano (great bear). (N. da T.)

CAPÍTULO 3

Há quanto tempo Podia ser que fizesse quase vinte anos desde que eles haviam trocado um aceno rígido de cabeça, em lados opostos de uma multidão de pais, na formatura do Colégio Yardley, mas Edgar não esperava ter nenhuma dificuldade de reconhecer Toby Falconer quando os dois se encontrassem para um drinque depois da entrevista. Toby era um desses garotos dourados. De tão louro, seu cabelo era quase branco, o que para Edgar, cuja cabeleira era castanho-camundongo, era uma confirmação de que os escolhidos não se faziam por si, mas eram geneticamente marcados. Vertical como um mastro, a estrutura nórdica de Toby e seus olhos verde-mar clamavam por peles de urso e lanças. Era improvável que ele tivesse conservado aquele peito liso e malhado até a idade adulta, mas Falconer tinha sido tão vaidoso aos dezesseis anos que devia ter se tornado um desses obsessivos dos aparelhos de ginástica Nautilus, desses que põem leite de arroz no cereal com frutas secas. Além disso, os pífios esforços de Edgar para atualizar sua maquete mental de Toby Falconer — estufar as ondulações musculosas da barriga dele numa curva pançuda, embotar a sublime promessa adolescente daquele louro platinado num cinza-estanho — pareciam pueris, como desenhar espinhas com caneta esferográfica num modelo da revista GQ. Estava meio surpreso de Falconer não ter escolhido um lugar mais chamativo. O Red Shoe fora um ponto de encontro chique do Flatiron, em certa época, mas isso já fazia anos. Desde então, as almofadas de veludo carmesim tinham se desbotado num rosa doentio, e sua penugem felpuda parecia achatada feito pelo de gato molhado. O verniz das banquetas escuras se desgastara, deixando aparecer o pinho manchado. Os garçons tinham idade suficiente para não descreverem mais seus turnos como “meio expediente”. Até Wall Street sabia que o Red Shoe havia perdido a classe. Talvez estivesse fora de moda o bastante para uma recapitulação irônica, e Toby, como de praxe, ditaria o ritmo. Edgar parou no foyer do Red Shoe, preparando-se para o velho amigo — ou o que quer que Toby tivesse se tornado no último ano do colégio. Depois de bagunçar o cabelo, abrir o botão mais alto da camisa e puxar o nó da gravata para o lado, como costumava fazer com a gravata da escola nos velhos tempos, ele pendurou o paletó no cabideiro. Sua imagem no Yardley tinha sido hostil, desmazelada e rebelde; um terno escuro de risca de giz poderia ser um choque para Falconer. Virou-se e ouviu um ploft. O braço do cabideiro tinha virado de cabeça para baixo e deixado seu paletó cair no chão. Parafuso frouxo. Alvoroçado, Edgar pegou o paletó e sacudiu às pressas as lapelas. Droga. Especialmente nesses interlúdios — jogar um paletó num cabideiro, levantar-se de um assento reclinável —, Toby Falconer costumava ser tão gracioso a ponto de dar raiva. Respirando fundo, Edgar cruzou a porta dupla, com o paletó pendurado em um ombro. Envaideceuse imaginando o velho camarada aguardando num canto, expectante e sozinho. Falconer vivia cercado de gente. Nem era preciso traçar uma reta até o chamariz da cabeleira. Bastava localizar o caos social bem no centro daquele boteco, na maior mesa de todas, a que estaria abarrotada de cadeiras extras — mais uma das quais Edgar seria obrigado a pegar e imprensar em algum espacinho. Falconer estaria dando gargalhadas altas, direcionando aqueles poderosos dentes fluorados para o teto enfumaçado de metal, de braços abertos e palmas viradas para cima, feito Jesus, com o resto da ralé resfolegando, arriando o corpo, enxugando as lágrimas.

Mas o bar estava calmo. Edgar examinou as grandes mesas redondas no centro: um grupo discreto de colegas de trabalho, dando espiadas nos relógios, à procura de um pretexto para dar o fora. Dois ou três solitários afundados nos bancos de seus compartimentos reservados — uma mulher que era um trapo arrasado, chorando baixinho (o que resultava em três mulheres em prantos com as quais ele havia cruzado naquele dia; a média diária em Nova York era de cinco ou seis), e um tipo meio careca, sem grande destaque. Mas, pensando bem, por que Toby Falconer estaria à espera? Edgar ficaria mofando ali por uma hora, enchendo a cara de cerveja e renovando um ressentimento que duas décadas não haviam conseguido revestir de indiferença. No fim, quando ele estivesse pedindo a conta, Toby entraria flanando, as portas duplas num vaivém para seus doze discípulos, todos bêbados, barulhentos e chiquérrimos, infundindo nesse bar mais no estilo de um roupão velho o seu brilho original e afetado de robe de cetim. Recusando-se, naquele momento, a considerar a probabilidade mais alta de que Falconer houvesse esquecido totalmente o encontro dos dois, Edgar ocupou uma cadeira na mesa mais central e fez sinal para um garçom. — Edgar? Ele se virou na direção do dedo encostado em seu braço e vivenciou um daqueles momentos de branco que costumam ser induzidos por manchetes sobre Barba ou Montenegro. Era o sujeito meio careca, sem maior destaque. Tinha olhos mansos e diluídos, com as pálpebras inchadas; o rosto era largo e brando, o corpo, acolchoado. O homem tinha a tez pálida, em contraste com o brilho moreno e lustroso do louco por aventuras que desliza em manobras arriscadas pelas vertentes hibernais e veleja à frente das regatas. Mas entre os fiapos cinzentos que se dispersavam pelo seu couro cabeludo reluziam umas faixas nostálgicas de platina. — Falconer! — disse Edgar, apertando a mão do estranho. — Não sei qual é o time de futebol americano que você está esperando. Vamos nos sentar por aqui. Olhe, me desculpe pelo Red Shoe. Da última vez que vim aqui estava superbadalado, mas eu não saio muito. Caramba, você está igualzinho! Um pouquinho mais puto da vida, talvez... Se é que isso é possível. Mas com certeza conseguiu evitar o ganho de peso. — Você também, você está... ótimo! Falconer deu uma risada que era uma versão mais abafada do velho toque de clarim. Era reconhecível, porém mais harmoniosa, menos penetrante. — Nunca pensei ver o dia em que Edgar Kellogg seria gentil. Eu pareço um cocô de cachorro! Um cocô de cachorro com três filhos hiperativos e uma mulher deprimida. O que você vai querer? Edgar gostava de pensar em si mesmo como um bebedor de Wild Turkey. — Uma Amstel Light. — Nunca perdeu o medo, não é? Falconer sorriu, exibindo os dentes que já não ofuscavam mais, embora isso fosse injusto; os dentes de todo mundo amarelavam um pouco com a idade. Mas o sorriso dele também pareceu fisicamente menor, e isso era impossível. — Não muito — admitiu Edgar, dizendo a si mesmo para não ficar encarando. — Dentro deste tampinha há sempre um balofo lutando para sair. — Muito do que aconteceu no Yardley é um borrão para mim agora, mas uma coisa de que me

lembro com a mesma clareza de uma reprise do Dialing for Dollars é do nosso Incrível Homem que Encolheu: Edgar Kellogg, reduzindo um manequim por semana. Eu poderia acompanhar o calendário pelos furos feitos no seu cinto. Noite após noite, no refeitório, mastigando uma barricada de talos de aipo. Incrível. — Eu tinha lido em algum lugar que a gente queima mais energia do que ingere quando come aipo. Mesmo assim, não me lembro de ter inspirado muita admiração. Estava mais para hilaridade. — Só nos primeiros vinte e poucos quilos. — Vinte quilos de ridicularização podem durar a vida inteira. — Parece que sim. Olhe só para você. Ainda está irritado! Edgar bufou com desdém e desviou o olhar, fazendo mais um sinal inútil para o garçom. Abriu um meio sorriso e futucou uma cutícula. — Pode ser. Toby deu-lhe um leve tapa no braço. — Você me deixou embasbacado. Nunca vi tanta determinação, nem antes nem depois. — É, na época eu tive a sensação de que foi aquilo que me rendeu... — Rendeu o quê? — Admissão. No seu... — era difícil dizer aquilo com tato — círculo exigente. — Não me lembro de tê-lo admitido em nada — disse Toby, descartando a ideia. — Você é que, por algum tempo, deixou de ser tão fechado. Por pouco tempo, pensando bem. Nossa, o serviço aqui está uma porcaria. É melhor pegarmos nossas bebidas no bar. Edgar acolheu de bom grado a interrupção, porque a história reescrita por Falconer era completamente estapafúrdia. Ao aceitar a Amstel, ele tentou restabelecer o clima bem-humorado. — Eu vivo pedindo esta água suja, compulsivamente. Mas não faço ideia de como vou me tornar alguém imponente bebendo esta cerveja de veado. — Você é uma figuraça. — Falconer se reclinou no banco, mantendo algo da sua autoridade dos tempos do Yardley, e tomou um gole do seu chope da casa. — Mas isso basta. Não existe essa história de ser imponente, Kellogg. Existe apenas a normalidade, e qualquer ampliação é pura conversa fiada das outras pessoas. E então, como foi a entrevista? Meio zonzo com sua sorte, Edgar mal começava a se dar conta de que a entrevista tinha corrido espantosamente bem. Por mais que lhe agradasse concluir que ele havia causado uma boa impressão, o provável era que Falconer tivesse feito uma recomendação muito mais entusiástica sobre ele do que sua condição de alguém que era praticamente um estranho merecia, e também era quase certo que Falconer tivesse influência. — Muito bem, eu acho. Wallasek me deu um superfreelance. Em Barba. Toby fez uma careta. — Eu devia tê-lo avisado que era isso que ele tinha em mente. É melhor do que nada, espero. Mas já fiz umas duas matérias por lá. Não é o Club Med. — Você acha que é perigoso? — perguntou Edgar, cheio de esperança. — Bem, como você sabe, os Sobs nunca explodiram nada no território deles. Acho que a lógica é que não se caga na própria cama. Mas isso pode mudar. E o que torna um lugar perigoso é gente perigosa.

Ou era esse o argumento que o Saddler usava para arrancar do Wallasek um adicional de periculosidade. Não sei por que sua alteza se dava o trabalho de ser tão criativo. O Wallasek seria capaz de entregar o filho primogênito ao Saddler, embrulhado em notas de cem, sem fazer perguntas. Qualquer referência a Barrington Saddler já deixava Edgar oscilando de forma nauseante entre inclinações opostas, como se ele estivesse em um ônibus a toda velocidade por uma estrada em ziguezague. Queria discutir esse sujeito ridículo e, com o mesmo grau de premência, evitar qualquer menção ao homem. Quando entregou os pontos e levou o assunto adiante, arrependeu-se no mesmo instante, da mesma forma que a gente se xinga por ter arrancado a casquinha de uma ferida. — O que há de tão maravilhoso nesse sacaninha? — Não há nada diminutivo no Saddler. Só estive poucas vezes com ele. Dá certo medo, para ser franco. Mesmo nessa encarnação incrivelmente modesta de Tobias Falconer, Edgar não conseguia imaginá-lo com medo de alguém. — Esse nome, para começar. Quem é o pernóstico que usa o nome “Barrington”? — É óbvio que você não conheceu o cara. É esquisito, mas o nome lhe cai bem. Ele é inglês, sabe. E grande. Quase chega a exigir três sílabas. — Quer dizer que ele é gordo — lançou Edgar, vitorioso. Falconer franziu a testa. — Na-na-não. Só grande. Grande, grande, grande. Em todos os sentidos. — Por que ele mete medo? Estou com a impressão de que você não gosta muito do cara. — Aí é que está: eu não deveria gostar. Ele faz gato-sapato do meu editor. E se safa de tudo. Digo, por zero vírgula um por cento das merdas que ele já aprontou, qualquer simples mortal teria ido para o olho da rua. Ele tem aquele jeito tsc-tsc-tsc, aquele sotaque assustador que faz os americanos se sentirem broncos e vulgares, por comparação. Então, toda vez que penso no assunto, e eu pensei bastante nisso, o que já é assustador por si só, tudo nesse homem é irritante. Mas Saddler só me dá nos nervos quando não está presente. Nunca me irrita pessoalmente. Cara a cara, Barrington Saddler é indescritivelmente encantador, e eu fico o tempo todo tentando, freneticamente, fazer com que ele goste de mim. — Isso é assustador — disse Edgar, pensando: aposto que ninguém nunca descreveu Edgar Kellogg pelas costas como sendo “indescritivelmente encantador”. — O que achou do Wallasek? — perguntou Falconer. — Paternalista, para o meu gosto. — Na falta de qualquer incentivo na expressão de Toby, Edgar exerceu sua tendência a meter os pés pelas mãos. — E com um jeito terrível de quem está por dentro. Wallasek acha que tem uma janela para dentro do pensamento do SOB, por causa do Saddler, e qual é a probabilidade de que um deles saiba de qualquer merda? Além disso — prosseguiu, da maneira mais inconsequente —, Wallasek vem com uma conversa humilde, falando de “secretários da História”, mas dá para perceber que ele acha que o jornalismo é uma vocação altiva, repleta de intimidantes provas de fogo. Em contraste com uma carreira que tem a ver sobretudo com a capacidade de escrever uma frase. Capacidade que eu tenho, mas acho que ele não se impressionou com minhas matérias. Faz poucos meses que estou nesse ramo, mas Wallasek não se importou com o que os artigos diziam; típica mentalidade de quem só se interessa por nomes famosos. Não entrei lá com o New York Times e o Atlantic colados na testa... Do que você está rindo?

— Você não mudou mesmo, não é? — Como assim? — perguntou Edgar, arisco. — Guy Wallasek o recebeu para uma entrevista com base numa pasta bem fraquinha de matérias e, o que é mais importante, lhe deu um emprego. O que, embora Barba não seja o Havaí, eu imagino que você queira. Isso não o deixa grato? Edgar cruzou os braços e se encolheu no canto, com a cara mais amarrada do mundo. Era uma postura que ele havia adotado com frequência para se proteger nas horas difíceis, na época em que era gordo. — Wallasek me ofereceu um cargo temporário, que pode ser arrancado de mim pelo seu grande, grande, grande amigo no instante em que ele resolver dar as caras, o que seria um arranjo intolerável para um membro efetivo da equipe. O trabalho de freelance paga uma mixaria. Eu fui um advogado arguto e sei escrever. Vou fazer um trabalho de primeira por uma pechincha para ele. Por que eu deveria ficar grato? Falconer balançou a cabeça. — Muito severo com as pessoas, Kellogg. É severo assim com você mesmo? A resposta franca seria muito complicada: que ele metia o malho nos outros para não meter em si mesmo, e nem assim funcionava. Que se apressava a antipatizar com os outros, antes que pudessem antipatizar com ele; que sua antipatia precipitada era uma verdadeira garantia de que de fato não iriam gostar dele; e que, infelizmente, passar na frente dos conhecidos em matéria de antagonismo nunca o havia protegido da sensação posterior de insulto, que, ao que parecia, ele causava a si mesmo. Uma resposta mais simples — dizer que ele se percebia como uma ilha de promessas subestimadas num mar de incompetência sem mérito — soaria duvidosa, se dita em voz alta. — Dou nomes ao que vejo. Você mesmo disse que a relação do Wallasek com esse tal de Barrington é uma merda. — Eu não disse isso. O Wallasek é um bom editor e um sujeito decente. Ele diz que não, mas sente falta da batalha... de estar tão no meio da confusão quando algum canto do mundo arde em chamas, de forma que os pelos do braço saiam chamuscados. Quer dizer, ele tem um fraco por informações privilegiadas, como qualquer jornalista. E o Saddler? O Wallasek encara o batente das nove às cinco, fica entediado, sente-se excluído. O Saddler irrompe na cidade e os dois ficam fora até altas horas, tomam porres, conhecem gente maluca, são expulsos de bares, e o Wallasek se sente ligado de novo. É um pequeno defeito, se é que chega a ser um defeito. Por que não lhe dar uma chance? Não é uma má política. Você é um cara esperto, Kellogg, mas pode acabar sendo muito... selvagem. Edgar sentiu-se repreendido. Não gostava de se sentir repreendido. — Pelo amor de Deus, Falconer. Lá vem você cheio de sinceridade para cima de mim. Toby estava girando seu caneco vazio de cerveja em círculos contemplativos. — Na verdade, fiquei surpreso ao ter notícias suas. Não lamentei, veja bem. Mas foi uma surpresa. Edgar não estava disposto a admitir que havia ligado para ele passando por cima do próprio cadáver. — Fazia muito tempo — disse, em tom neutro. Falconer riu. — Foram dezenove anos! E, quando finalmente tive notícias suas, não foi por você querer me convidar para o seu casamento, ou conversar sobre os velhos tempos. Você queria um favor! Tem que ter colhão para isso, cara.

Para eterno alívio de Edgar, a aposta tinha sido extremamente compensatória, mas a probabilidade de Falconer recomendá-lo tinha sido de uma em cem. A maioria dos jornalistas o veria como um novato inexperiente, com intenções impertinentes a respeito da vocação deles. Aquela estranha cordialidade deveria ter feito soar um alerta: aquele não era o Toby Falconer de antigamente. — E também não ficou fazendo rodeios — lembrou Falconer, em tom irônico. — Nada de conversa mole. Edgar contraiu o corpo. — Não gosto desse troço de como vão as crianças. Sem querer ofender, mas por que eu deveria me importar se seu filho caçula está no coral? Você logo perceberia que eu o estava procurando para conseguir um contato. — Desde o Yardley, não estive nem na sua lista de cartões de Natal. Não teve medo de levar um fora? — Medo? Bem que eu queria. Mas pensei: o que eu tenho a perder? Um pouquinho de orgulho. Quando eu ainda estava enchendo os bolsos no Lee & Thole, sofrer humilhação podia parecer uma grande coisa. Na minha recente e influente carreira de comentarista de assuntos mundiais, vendi meu carro, deixei vencer a minha matrícula na academia e abri mão do camarote da empresa no Yankee Stadium. O que vem depois? Entre uma porção de outros luxos, a dignidade é dispensável. Falconer deu uma olhadela irônica para o pulso de Edgar. — Estou vendo que prefere vender a dignidade a pôr seu relógio no prego. A separação do relógio de mergulho de mil e quinhentos dólares equivaleria à suprema admissão de derrota. — Foi presente da minha mãe pela aprovação no exame da Ordem. Pode me chamar de trouxa. — Vindo de você, Kellogg, o sentimentalismo é um alívio. Forçando-se a falar, Edgar abriu a boca, que ficou escancarada antes que as palavras saíssem — palavras de suma importância, se bem que estranhamente difíceis de dizer, e ele ficou mortificado por quase tê-las deixado escapar por completo. — De qualquer modo, hum... Obrigado. Muito obrigado. — Eu nunca o teria apoiado com o Wallasek se não achasse que você fosse capaz — disse Falconer, com bom humor. — Se há uma coisa de que nunca duvidei no Yardley é que você era inteligente, embora eu nem sempre ficasse encantado com as coisas em que você empregava sua inteligência... Como descobrir os pontos fracos das pessoas. E, além disso, admito que tive segundas intenções. Tenho uma velha curiosidade a satisfazer. Se eu lhe arranjasse uma entrevista com meu editor, até mesmo o carrancudo Edgar Kellogg poderia sentir uma dívida de gratidão suficiente para aceitar este encontro. Edgar endireitou o corpo, surpreso. — Eu não sabia ao certo se você se lembraria de mim. — Como eu poderia esquecer? Umas coisas que você disse sobre mim no último ano do Yardley... Elas voltaram. Talvez fosse essa a intenção. Edgar sentia desprezo pelo confessionalismo da Nova Era, e não ia gostar disso. Deu de ombros. — A garotada sabe ser má. — Você não é criança. Ainda é... — Você acha que eu sou mau? Essa é boa. Os dois se olharam fixamente por um momento.

— Não entendi — disse Falconer. — De que modo você acha que eu era tratado, como um saco de pancada de quase cento e dez quilos? — Será que algum dia você vai deixar isso para lá? Eu achava que, pelo menos no penúltimo ano, nós havíamos tratado você direito. — E, assim como em relação ao Wallasek, a expectativa é que eu seja grato. Falconer ergueu as mãos. — É só que... O que aconteceu? Primeiro, você ficava conosco vinte e quatro horas por dia, todos os dias da semana, e de repente, bum: lados opostos no refeitório. Você passava por mim no corredor como se eu fosse invisível. E aí, começaram a pintar todas aquelas histórias: a de que eu vivia num “delírio de poder”, de que eu era bicha, de que mandava outros caras escreverem meus trabalhos... — Você mandava... — Todos faziam isso! E a história de que eu pintava o cabelo. — Eu nunca disse isso. — Foi como se tivesse dito. O que deu em você? — Eu gostava de você — respondeu Edgar, com dificuldade. — Fiquei desiludido. — Eu não... — Entreouvi o que você disse, está bem? — A voz alteada de Edgar propagou-se pelo bar morto e atraiu uma olhadela da chorosa Srta. Coração Solitário, que pareceu aliviada por outras pessoas também terem problemas. — Eu o entreouvi — prosseguiu Edgar, em voz baixa. — No vestiário, você e aquela patota; vocês não perceberam que eu estava no chuveiro. Fechei a torneira e fiquei atrás da parede. Até então eu não sabia que meu apelido era “K Especial”... — Ah, por favor, nós vivíamos debochando da cara de alguém... — Foi diferente! Você me imitou, dizendo “Ah, não, não posso comer essa gota de chocolate, ela tem onze calorias! É um instante na boca e o resto da vida nos quadris!”. — Edgar se remexeu na cadeira. — E você zombou das minhas estrias. — Edgar, um pouco de implicância só queria dizer, se muito, que você não era excluído. Era dos zeros à esquerda, daqueles de quem não falávamos, que você devia ter pena. Edgar levantou rapidamente os olhos: aquele era o Toby Falconer de quem se lembrava. — Foi pior. Você disse que eu vivia seguindo os seus passos, com olhares apaixonados. Que era como ter uma garota nas mãos, ou um cachorrinho perdido. Que toda vez que se virava lá estava eu, tagarelando atrás de você, querendo saber aonde ia, para eu ir também, ou em que agremiação estava se inscrevendo, para eu entrar também, e de que discos você gostava, para eu poder correr para comprá-los. Vocês todos riram de eu ter começado a usar uma jaqueta vermelha de beisebol igualzinha à sua, e de eu ter pedido para passar para a sua aula de inglês. Grudento. Você usou a palavra grudento. Então, eu saí de perto. Com os polegares pressionando as têmporas, Falconer massageou a testa com a ponta dos dedos, de olhos fechados. — Nossa, Kellogg, me desculpe. Juro que não era você, ou não só você. Eram todos eles. Eu estava cansado. Só tinha dezessete anos, e já estava cansado. Depois de segurar aquela história por duas décadas, como se prendesse a respiração, Edgar relaxou, agora que a havia exalado, e olhou para o companheiro com uma ternura atípica.

— Ei, são águas passadas. De qualquer modo, você mudou. Quer dizer, você cresceu e tudo o mais, e parece muito mais... clemente. — Edgar achou que esse era um modo mais gentil de expor o fato de que Falconer já não possuía nenhuma superioridade e tinha virado um frouxo com caras como Wallasek. — Mas há outra coisa. Uma coisa, sei lá, faltando. Falconer não se ofendeu, mas sorriu amarelo e deslizou as palmas das mãos pelo rosto, até descansá-las na mesa. — Você quer dizer que não estou cercado por fãs adoradores? Não estou chamando atenção suficiente? Edgar rasgou devagar um pedaço molhado do rótulo de sua Amstel. — Sei lá. — No último ano do Yardley. Você soube que meu pai morreu? — Ouvi dizer. — Você não estava falando comigo, na época. Enfim, aquilo me abalou profundamente. O pessoal me consolou, por uns cinco minutos. Talvez tenha sido sorte minha. Talvez os garotos menos, digamos, menos destacados só fossem consolados por dois ou três minutos, quando os pais morriam. Mas, terminados os meus cinco minutos, a expectativa era que eu voltasse a inventar peças para pregar no nosso professor de espanhol, liderar escapadas do campus depois do toque de recolher e inventar novos jeitos de atirar nosso bolo de cobertura de abacaxi na hora do almoço. Não consegui. Eu tinha mais “amigos” do que qualquer pessoa no Yardley e fiquei tão sozinho que dava vontade de gritar. Todos queriam de volta o mestre de cerimônias, mas, enquanto isso, quem iria aliviar as coisas para mim? “Minha mãe ficou arrasada sem o meu pai”, prosseguiu Falconer, “e eu me senti mal por estar longe, no colégio. Minha irmã tinha começado a dormir com uns e outros aos doze anos. Você andava espalhando boatos de que eu liderava masturbações coletivas, e eu era atormentado por voluntários interessados em participar. Fiquei deprimido e não consegui me concentrar nas provas. Tudo o que eu ouvia dos meus amigos era sai dessa, cara. Fiquei farto do telefone tocando no meu corredor, e era sempre para mim. Fiquei farto das pessoas cochichando e de todas as teoriazinhas delas sobre o que me movia a ser quem eu era. Fiquei farto dos puxa-sacos que gostavam muito mais de mim do que eu deles. “Isto vai soar meio maluco”, avisou Falconer, “portanto, me dê um tempo. Essa ‘coisa faltando’ que você mencionou: ela era tudo o que aquelas pessoas queriam, e não tinha nada a ver comigo. Era um poder esquisito, que não era mérito meu, porque não o inventei, e estava completamente além da minha compreensão. Eu não tinha ideia de por que, se eu mandasse vocês plantarem batatas, vocês iam plantar. Se vocês me mandassem plantar batatas, eu não iria. E quando eu me olhava, via um cara comum do último ano, com problemas, e vocês viam, sei lá... A verdade é que não faço ideia do que vocês viam. Esse dom era uma espécie de lanterna mágica. Mas também era uma praga. E por isso eu o joguei fora. Não me candidatei a Yale nem a Harvard, mas a Haverford. E, na faculdade, usei camisas em tons pastel, com botão no colarinho, e calças comuns. Não falava nas aulas e não ia a festas. Ficava estudando no meu quarto, no dormitório. Eu era um chato e ninguém nunca falava de mim pelas costas, do mesmo modo que ninguém comenta sobre o papel de parede. — E aí você perdeu o cabelo. Edgar tornou a não ser diplomático, mas estava quase se perguntando se as madeixas metálicas de Toby tinham sido arrancadas como castigo.

A ideia de abrir mão voluntariamente do que quer que Falconer possuísse no ensino médio era repreensível. — Como Sansão — disse Toby, sorrindo. — Fico pensando se não é melhor assim. Talvez, para começo de conversa, tudo se resumisse ao meu cabelo, não é? Minha irmã tem a mesma cor, e juro que metade dos admiradores dela só queria enfiar os dedos naquela seda, naquelas barbas de milho que iam até a cintura. A Deborah ficou tão irritada com um cara, certa vez, que cortou o cabelo e o deu para ele numa caixa. — Não era o cabelo. — Não estou nem aí. Qualquer que fosse a coisa de que vocês gostavam tanto, eu não a enxergava. Lamento tê-lo chamado de “grudento”. Não me lembro de ter dito isso, mas não fico surpreso. Sinceramente, Kellogg, você era um saco. Vivia atrás de mim, mas nunca queria conversar de verdade. Sabe essa parte sua que me atraía, a parte que perdeu quarenta e cinco quilos em seis meses? Essa parte nunca parecia se manifestar. E, por um lado, você era todo cê-dê-efe, mas, por outro, sei lá, parecia me idolatrar, ou algo assim. E me dava uma sensação sinistra, como se eu fosse uma farsa. Eu não fazia ideia do que você via em mim, do que havia de tão genial em mim. — Acho que eu tentava mesmo impressionar você — admitiu. — Talvez me esforçasse demais. Mas você tinha um tremendo estilo, Falconer. — Edgar não conseguiu evitar o pretérito. — Isso é raro. — Talvez eu esteja me enganando quando digo que abri mão dele — refletiu Toby. — Pode ser que ele tenha simplesmente escapado de mim. — Passei anos prestando atenção às suas reportagens: de Belfast, da Somália, da Guerra do Golfo. Sempre imaginei a sua vida como algo exótico, tenso. Foi uma das razões para eu largar o direito. Pensei em me juntar a você. A confidência saiu antes de Edgar perceber que ela soava como mais do mesmo: vasculhar uma dezena de lojas de roupas vintage à procura de uma jaqueta de beisebol dos anos cinquenta e descobrir que a que vestia melhor e tinha o logotipo mais legal nas costas era justamente aquela, vermelho-cardeal, igual à de Toby Falconer. A maior preocupação de Edgar em relação a seu caráter era não ser original. Nem sabia como se tornar original, a não ser imitando outras pessoas que eram. — Faço meu trabalho, e muito bem — disse Falconer. — Só que ele é mais comum do que parece. Como você disse, tem a ver com frases: repetitivo, rotineiro. É como eu sou, pelo menos. Sou sossegado. Cheguei ao ponto de não gostar muito de pegar a estrada, e incentivei o Guy a dar as missões de combate a repórteres mais jovens, que ainda estão cheios de gás. Gosto de voltar para a Linda, em casa, de comer pretzels e de assistir aos Mets na televisão. Você acertou na mosca: eu sou sincero. Não tenho muitos amigos, mas os que tenho são reais. Edgar ergueu a Amstel vazia e bateu a garrafa no caneco de Falconer. — Acabou de ganhar mais um, então. A incapacidade de Edgar em completar o brinde com um gole pareceu apropriada. Se a idolatria era uma base ruim para uma amizade, a piedade não era muito melhor. Falconer parecia um bom sujeito morto, e Edgar se sentiu roubado. — Quando você vai para Barba? — Assim que fizer as malas. — Boa sorte com o Saddler, de todo modo.

— Não espero ter sorte ou azar com o Saddler — protestou Edgar. — Ele desapareceu, lembra? Puf. Droga, é provável que o sujeito simplesmente tenha caído numa vala. — Gente como o Saddler não cai em valas. Ou, quando cai, há muito mais coisas na história e, nove entre dez vezes, ele torna a sair de lá. Tenho uma sensação intuitiva de que o lendário Barrington se encaixa bem na sua vida. Edgar sentiu-se obscuramente animado. Por mais que resistisse à perspectiva de um patife bombástico e inexplicavelmente adorado entrando pela porta da frente sem qualquer aviso, de repente lhe pareceu ter um futuro, e a vista se alargou para o grande, grande, grande — grande como a vida; maior, até. Enquanto Falconer pagava a conta no bar, depois de recusar uma nota de dez pratas timidamente oferecida, Edgar estudou aquele rosto comum e bondoso, examinando suas linhas prematuramente abatidas, marcadas por “três filhos hiperativos e uma mulher deprimida”, muitos voos noturnos partindo de Adis Abeba e sólidos contatos em Roma. Embora pensasse estar à procura de um lampejo do Adônis astucioso e gozador com quem havia se maravilhado no Yardley, ele reconheceu em sua incapacidade de enxergar qualquer semelhança que não queria ver semelhança alguma. Já na rua, trocaram um aperto de mão. De quebra, Edgar deu um tapinha no ombro de Toby. Nenhum dos dois fingiu querer marcar outro encontro. — Cuide-se, Falconer. — Sabe, antigamente não havia aeroporto em Cinzeiro, só um ônibus de Lisboa. Agora, há dois voos por dia. Presume-se que para facilitar ainda mais a explosão deles pelo SOB. Fique ligado, Kellogg. Em vez disso, Edgar ficou ligado em Toby Falconer. Em dois tempos, a camisa de malha bege e a calça cinza misturaram-se com a roupa insossa de outros pedestres, ajudando a formar o pano de fundo contra o qual os nova-iorquinos estranhos ou marcantes se destacavam.

CAPÍTULO 4

Inversão básica Pendurado numa alça do vagão de metrô, Edgar pensava em Toby Falconer, o Cidadão Comum. No último ano do Yardley, sem dúvida ele havia captado uma expressão atormentada nos olhos de Falconer, o pânico submerso do garoto que não sabia nadar e ia afundando sob a superfície. Na época, Edgar se empenhara muito em reduzir seu antigo ícone às proporções de mais um egoistinha insignificante. Com a distância, Edgar tinha descoberto que tudo o que o havia cativado em Falconer podia ser ardilosamente invertido: confiança transformada em arrogância, graça em efeminação, popularidade em superficialismo. Aquele famoso senso de humor podia inverter-se em frivolidade, e o poder de persuasão, num poder mais enojante de manipulação. Aparentemente, a mais esplêndida qualidade podia ser virada de cabeça para baixo, como um jogo americano dupla face. A coragem virava irresponsabilidade, a paixão, pieguice. Os abnegados eram idiotas, e os leais eram o quê? Grudentos. Agora, Falconer tinha invertido a si mesmo. O que deveria ser gratificante. Como a obesidade infantil havia colocado suas falhas pessoais em flagrante exposição, Edgar tinha desenvolvido, à guisa de defesa, um olho de águia para detectar as falhas dos outros. Embora essa facilidade lhe desse um cunho letal, não o deixava feliz, e era provável que não o tornasse atraente. E ela não o poupava de praticar a arte da inversão consigo mesmo. A demissão do escritório Lee & Thole, por exemplo: cara, era um gesto ousado. Velho demais? Uma idiotice. Temendo perder a coragem, Edgar ligara de um telefone público em frente ao Red Shoe para a TAP, empresa aérea portuguesa, e fizera uma reserva para Barba, via Lisboa, para dali a três dias. Isso lhe daria o tempo exato para resolver algumas pendências — como Angela —, mas não o bastante para voltar atrás. O processo de inversão de Angela estava quase completo. Ele ainda tinha que superar o desejo de transar com ela, mas todo o resto que o havia atraído inicialmente encontrava-se de pernas para o ar. A ampla cultura geral dela, por exemplo, traduzia-se perfeitamente em superficialidade: ela era capaz de discutir qualquer coisa por cinco minutos e nada por meia hora. Quando professava sólidas opiniões sobre novas biografias de Freud, nas festas, só tinha lido as resenhas. Assinava as revistas certas, mas só passava os olhos pelos excertos em destaque nos textos, e, nos filmes, concentrava-se sobretudo nos créditos. O fato de ela se lembrar de nomes e endereços exatos, e de saber quais restaurantes haviam trocado de dono, fizera suas tiradas parecerem cheias de vida em certa época, mas agora, ao imaginar a mente de Angela, tudo o que Edgar via eram as Páginas Amarelas. E, o que ficava mais no cerne da questão, aquele traço enigmático que ela exibia tinha se revelado, com o tempo, uma falsidade corriqueira. Para tudo o que Angela dizia, havia algo mais que era omitido. No começo, essas lacunas tinham sido cintilantes. Mas, depois de viver dois anos com ela, Edgar tinha feito bom uso de seu talento para a inversão, para variar, e havia concluído que Angela não era esquiva. Era mentirosa. Não era misteriosa nem complexa. Estava, e sempre estivera, apaixonada por outra pessoa. Quando Edgar enfiou a chave na porta do apartamento, ouviu Angela batendo papo ao telefone e, antes de entrar, soube que ela estaria em pé. E não deu outra: andando, remexendo nos móveis, Angela pegava e futucava faxes e canetas-tinteiro;

não conseguia ficar parada. A entrada de Edgar rendeu-lhe um aceno distraído com a cabeça. Como de praxe, ela segurava o fone entre o ouvido e o ombro, para poder usar as mãos enquanto falava. Em determinada época, Edgar costumava achar isso charmoso. Agora, só lhe restava imaginar como certamente seria a aparência de Angela ao falar com ele ao telefone. Talvez ficasse languidamente deitada no sofá, de olhos fechados, com o fio do telefone frouxo e um braço molengo meio levantado. De qualquer modo, decididamente não usaria essa voz — as consoantes explosivas estalando, as aspiradas se precipitando, as fricativas chiando com a efervescência de uma Perrier. — Você devia tê-lo visto... exato! E depois, claro... HAH! Ha-ha-ha-hahhhhh... Quanto ao conteúdo, não havia nada discernível desse lado da ligação. Edgar já a ouvira conversar assim por uma hora, sem encaixar um número suficiente de palavras-chave substanciais para que ele determinasse se a conversa era sobre fungos nas unhas dos pés ou sobre audiências no Senado a respeito do cerco a Waco. Edgar só podia ter certeza de uma coisa: ela estava falando com Jamesie — um afetuoso apelido íntimo que só nos últimos tempos ele começara a usar em voz alta. Fazia anos que esse cinquentão de fala mansa e têmporas grisalhas mantinha Angela na reserva. James era anterior a Edgar, que passara a suspeitar de não ter sido o primeiro a substituí-lo quando o velhote estava comendo outras pessoas. Angela fora franca a respeito de um dia ter sido vidrada nesse importador de sedas perdulário, mas agora estava tudo acabado e, oficialmente, James e Angela eram apenas “muitomuitomuitomuito bons amigos”. Após dois anos pacientes de observação, Edgar havia concluído que, provavelmente, os dois deveriam usar um muito a mais. Sua tolerância inicial em relação a essa “amizade” tinha lhe dado crédito junto a Angela, como um homem sofisticado que reconhecia que todo adulto na faixa dos trinta anos tinha um passado. Edgar não ficava estranho quando ela anunciava que ia encontrar com James para jantar, e não a esperava acordado. Não ouvia os recados deixados para ela, não vasculhava sua correspondência nem cheirava suas calcinhas; não fazia interrogatórios nem cenas. E tudo isso o transformava em um parceiro seguro, maduro e respeitoso, ou seja — numa inversão básica —, um palerma. — Tchau... agora não posso, você sabe por quê... depois! Tchau, tchau. — Ela desligou de modo meigo. — Você não imagina o que... Ah, esqueci. — A cadência efervescente da fala arrastou-se um pouco, até parar. — Chega de histórias sobre o James. Você ficou sensível. — Só entediado. — Chegaram mais umas respostas negativas para você. Estão na bancada. Os envelopes estavam fechados. — Como você pode ter certeza de que são respostas negativas? Angela sacudiu o cabelo, impaciente, e Edgar finalmente notou que ele era da mesma cor da cabeleira de Toby Falconer na adolescência. — Hoje em dia, só o que vem pelo correio são más notícias. É para isso que ele serve: para despachar a pessoa com o menor contato pessoal possível. As boas notícias vêm por telefone, ou, nos últimos um ou dois anos, por e-mail. Nossa, deviam começar a pintar todos os envelopes de preto. — Você parece mesmo dilacerada com as minhas decepções. — Não quero parecer insensível, Edgar, mas, se eu passasse a mão na sua cabeça toda vez que chega uma dessas cartas, você ficaria careca. Essa jogada de jornalismo pareceu uma boa ideia no começo,

porque achei que nós iríamos a algum lugar excitante. Até o James... — ela empertigou a coluna, na recusa a pedir desculpas — ...o James viaja por toda parte, como China, Hong Kong. Até agora, o seu trabalho de freelance nos deixou sobretudo neste apartamento. Noite após noite, eu poderia acrescentar. — Eu fico radiante por jantarmos fora — retrucou Edgar, em tom impiedoso. — É só você pagar. — Sou relações-públicas, pelo amor de Deus. A Garden me enche de cupons promocionais, mas paga uma ninharia, e não dá para bancar o Amex com ingressos de cortesia. Angela precipitou-se para a cozinha com gestos teatrais e voltou com uma solitária lata de peras em conserva. Edgar não estava interessado nessa briga e correu os olhos pela sala, com a generosidade da nostalgia. Até os locais cotidianos ganhavam um brilho de Edward Hopper ao serem deixados para sempre. As mulheres também. Contemplando a namorada — suas pernas ágeis, a impetuosa cabeleira dourada e os seios pequenos, que dispensavam sutiã, mas, ainda assim, tinham um tremor atraente —, Edgar afligiu-se por existir um atributo que ele nunca havia conseguido inverter com sucesso. O bom gosto virava esnobismo, o amor-próprio podia virar egoísmo interesseiro. Mas ele ficava perdido quando a questão era lançar contra uma mulher o fato de ela ser linda. — Você já pensou em como seria viver com o Jamesie? — perguntou. Jogar Angela no novo futuro dela era quase tão delicioso quanto abraçar o seu. — É claro que não, faz anos que não — resmungou ela, conseguindo dar a impressão de que abrir aquela lata era um trabalho árduo. — Somos apenas... — Amigos — completou Edgar, com um sorriso; engraçado, todo o velho azedume havia desaparecido. — Talvez você devesse repensar. Os personagens furtivos nem sempre funcionam em primeiro plano. E, como se não bastasse, o Jamesie precisa de mim por perto para ficar bem na foto. — Francamente, Edgar, você está se tornando impossível! Edgar desmoronou no sofá de veludo cotelê com os pés para cima, sentindo-se sonolento, relaxado. Não era possível dizer que ele não tinha avisado Angela. * * * Três dias depois, ele retirou a chave da mesma fechadura e, para completar, tirou-a do chaveiro, para inseri-la na caixa de correio. Não queria ser mal entendido. Pendurando a bagagem no ombro, virou as costas para o apartamento que Angela também não poderia pagar. No elevador, porém, sentiu uma pontada de perda. Não era por Angela. Eram as coisas. Todos os móveis eram dele, e Edgar não tinha sido sovina. Sua mala fora pequena demais para comportar a maioria de suas camisas favoritas, um closet cheio de ternos caros ou sua grande coleção de CDs de música grunge. Ele ia precisar de reposições, pensou, com ironia. Mas a alternativa, por outro lado, implicaria todas as cenas de recriminação que ele havia contornado com tanta elegância: uma separação vulgar entre a Alanis Morissette de Angela e seus Gin Blossoms, a contratação de uma empresa de mudanças, a locação de espaço num depósito para guardar os móveis e o rompimento do contrato de aluguel, tudo detestável, demorado e totalmente sem classe. Estilo exigia sacrifício. Assim, em vez de um bilhete apressado, ele deixara uma xícara de café esfriando e um Camel aceso. O que desconcertaria Angela, imaginou. Ele não fumava.

* * * Guardando a passagem de avião, Edgar se deixou cair numa cadeira no portão de embarque no aeroporto Kennedy e jogou fora o exemplar não lido do Wall Street Journal, que havia comprado por impulso. Embora fosse quase tão caro quanto uma passagem de ida e volta, o bilhete só de ida, enfiado em sua surrada jaqueta de couro de aviador, trazia uma sensação mais intrépida. O repúdio parecia lhe fazer bem. Ele até poderia tomar gosto por renunciar assim a vidas inteiras, e, por ora, encarou a aquisição de novas vidas — novos amigos, novos empregos, novas amantes — como um mero pré-requisito trabalhoso para abandonar tudo alegremente. O próprio aeroporto, com sua brancura de nenhum lugar específico e sua reprodução da zona franca de dezenas de não lugares semelhantes, oferecia uma visão sedutora de pura partida, de um passado perfeita e permanentemente apagado. No entanto, quando soou a chamada para o voo e o avião penetrou aquele envolvente vácuo negro, Edgar sentiu um nó no estômago, com a certeza pavorosa de que só existia uma experiência perfeitamente negativa na vida, e só se tirava esse número uma vez. A menos que ele fosse salvo por uma bomba do SOB no compartimento de carga, a emoção da partida seria inevitavelmente corrompida pela chegada a outro lugar. Pior, chegada a um país sobre o qual não sabia lhufas, cuja política era notoriamente tortuosa e onde se esperava que ele fosse repórter. Edgar não sabia ser repórter. Imaginava confusamente um jornalista ligando para seus “contatos”, porém não tinha ideia de para quem deveria telefonar nem de quais perguntas fazer. Num momento de fraqueza, sentiu um vago desejo de que o grande, grande, grande conversa mole aparecesse e retomasse seu posto. A comissária de bordo era uma besta, e não havia cerveja light no seu carrinho. Com ar de desafio, Edgar pediu um uísque e devorou suas amêndoas defumadas. Tateando na bagagem de mão, ele pegou sua biblioteca portátil. Na tarde da véspera, havia saqueado a crescente seção da Barnes & Noble sobre Barba, devorando análises acadêmicas (A presença moura em Barba após o cerco de Lisboa), um ou outro tratado político (Quando o protesto democrático falha: o recurso a incidentes internacionais como instrumento de conscientização), livros de história contemporânea (A evolução da estratégia do SOB e a ascensão do Creme de Barbear), títulos de interesse especial (Maus ventos: o papel do clima na rebeldia social) e brochuras sensacionalistas (Fui um SOB — uma autobiografia anônima de um “terrorista barbense regenerado” cuja autenticidade tinha sido acaloradamente contestada). As malas que tinham sido despachadas no check-in estavam forradas de textos gerais sobre o terrorismo, e a maioria deles dizia que ele era ruim. Entre goles de Jack Daniel’s, Edgar batalhava com o livro do alto da pilha, cuja primeira repetição do direito à autodeterminação nacional foi mais soporífica do que sua bebida. O autor fizera longas citações de Tomás Verdade, presidente da conceituada ala política do SOB, chamada Creme de Barbear. O fraseado de Verdade era árido e prolixo, carregado de referências a heróis barbenses mortos, como Duarte, o Estupendo, e Teodósio, o Terrível, e denso na insistência em “defender a integridade da cultura nativa predominante e os direitos da maioria atuante, no contexto de respeito às múltiplas tradições de uma península ricamente variada” — o que, quando Edgar se concentrou, reduziu-se a um palavrório xenofóbico.

Três páginas e dez autodeterminações nacionais depois, Edgar estava pronto para outra dose de JD. O que tinha feito? A narcolepsia que esse monte de lixo ibérico sempre induzira nele não estava diminuindo, mas se intensificando. Em comparação ao patriotismo prolixo de Tomás Verdade, os sumários que discutiam se as fusões de empresas fornecedoras de água violavam a legislação antitruste ficavam pau a pau com a edição da Sports Illustrated sobre roupas de banho. A única faceta suportável dessa história era a parte de violência, do tipo que meninos gostam. No jantar, Edgar deixou de lado A península de Barba: um caso paradigmático de saturação da imigração e devorou Pouso forçado!, um relato de tirar o fôlego sobre o infame Voo 321 da British Airways, abarrotado de fotografias sanguinolentas. Enquanto isso, a cabine zumbia com o murmúrio sussurrante do que Edgar só podia presumir que fosse português. Apesar de se tratar de um zumbido tranquilizante, provocou-lhe um leve suor na nuca. Zhjchaochjgoschdgechjye... Ele tivera esperança de que um ano de espanhol no ensino médio pudesse ajudar, mas essa miscelânea de consoantes mais parecia russo. — O senhor é um glutão em matéria de castigo. Edgar olhou de relance para o homem barbudo, de cinquenta e poucos anos, que ocupava o assento da janela. — Está falando de eu comer fettuccine de avião? O homem deu um risinho. — Os livros. O senhor não está, por acaso, indo para a linda Barba, está? — perguntou em tom sarcástico, como numa piada interna. — Estou fazendo a cobertura da província para o National Record. A afirmação soou convincente; pelo menos, o companheiro de assento de Edgar não riu. Em vez disso, seus olhos se iluminaram feito árvore de Natal. — Ora, eu estaria tendo o prazer da presença de Barrington Saddler? Eu tinha lido, para minha desolação, que o senhor andou desaparecido por uns tempos! Antes que Edgar pudesse corrigi-lo, o sujeito de ar antiquado havia limpado a mão num guardanapo e a estendeu por cima do assento vazio entre eles. — Dr. Ansel P. Henwood, prazer! Edgar não soube o que fazer senão apertar a mão de Henwood. — Edgar Kellogg. O aperto firme de Henwood afrouxou-se. — O Saddler ainda está na sua licença sabática improvisada — explicou Edgar. — O engano foi meu — disse Henwood, que recuou e tornou a limpar distraidamente a mão no guardanapo. — Presumi que um homem das letras tão proeminente devia ter reaparecido, senão o mistério de seu trágico desaparecimento dominaria o noticiário. Como esquecemos depressa! É verdade que não tenho visto a coluna dele há algum tempo, mas, por outro lado, Barba tem estado calma... Numa calma pouco auspiciosa, poderíamos dizer. Tenho certeza de que fará um bom trabalho... senhor. O Dr. Henwood parecia já ter esquecido o nome de Edgar. Entre os olhares fulminantes que lançava para o interlocutor, sua expressão passou de cabisbaixa a vitoriosa. Ele devia ter imaginado, dizia seu olhar desdenhoso. Com um metro e setenta e três e vestido com um desleixo festivo, Edgar por certo não se adequaria à preconcepção que Henwood tinha de seu imponente predecessor. — Missão fascinante, é claro — admitiu Henwood. — Já esteve lá?

— Primeira vez. Afastando a bandeja, o homem recuou em seu assento e ajeitou as lapelas de tweed. Na falta de cachimbo e taça de conhaque, Henwood contentou-se com brandy num copo de plástico. — Esta é minha terceira viagem. É muito difícil lidar com esse lugar. Osso duro de roer. Aparentemente, o silêncio pétreo de Edgar foi erroneamente interpretado como incentivo. — Sou diretor do Departamento de Estudos de Conflitos da Universidade do Texas — gabou-se Henwood. — Estamos criando um programa de doutorado que dá enfoque a Cinzeiro, entre outros lugares problemáticos. É claro que, em Austin, enfrentamos muitas das mesmas questões complexas, acarretadas pela maciça imigração mexicana, de modo que há, digamos — sorriso malicioso —, uma generosa disponibilidade de verbas. — Nos últimos cinco anos, o SOB matou mais de dois mil civis — contrapôs Edgar. — Portanto, são uns babacas. O que há de tão complexo? — É claro, ninguém endossa os métodos deles... — O senhor diz isso como se ser facínora fosse incidental. — Pode ser uma distração. Afinal, ao longo da história da humanidade, numerosas causas justificaram o recurso à violência... — Então, se o senhor não der mais espaço para as minhas pernas — Edgar gesticulou para um bebê que chorava nos assentos do meio —, eu mato o garoto. — Isso é supersimplificar... — É simplificar — divergiu Edgar, notando que Henwood havia retraído instintivamente os joelhos. — É um belo jeito de conduzir as coisas, não é? — O senhor terá que desenvolver um pouco mais de sofisticação para um jornal como o National Record — declarou com altivez o acadêmico. — O seu predecessor tinha uma sensibilidade ímpar para as nuances... — Nunca me avisaram, quando aceitei este emprego, que eu teria que escrever essas bostas. — Pode-se defender com lucidez a tese de que a distinção entre a violência do Estado e a de fora do Estado é artificial — prelecionou Henwood, desembrulhando a balinha de menta do jantar. — Especialmente na criação de novos Estados. A maioria das nações passou a existir através do que se poderia perceber, na época, do ponto de vista dos defensores do establishment, como “atrocidades”... inclusive os nossos próprios Estados Unidos. Uma vez fundada a nação, a violência da construção nacional é elevada a heroísmo. Os “terroristas” de hoje são os monumentos das praças de amanhã. Edgar havia acabado com duas miniaturas de garrafa de vinho no jantar, além das doses de JD. Sua fala não fora prejudicada, mas, em geral, ele era alertado sobre o pileque crescente pelo fato de se tornar desagradável. — Quer dizer que os babacas sempre venceram, os babacas continuam vencendo, e o senhor gostaria que os babacas continuassem a levar a melhor. — Esse é justamente o tipo de demonização reducionista de uma das partes, num conflito dividido, que só impede a reconciliação — repreendeu o professor. — A situação barbense está polarizada o suficiente, de modo que dificilmente é útil acumular mais ódio. Edgar apertou um botão para chamar a comissária de bordo. Aquela conversa ia exigir muito mais bebida.

— Não me recordo de ter tentado ser útil. — A fim de contribuir para o debate, um jornalista é obrigado a reconhecer a legitimidade de mais de um ponto de vista. O C-r-r-reme de Bar-r-rbear-r-r — Henwood carregou os erres — está alarmado, o que é justificável, com a possibilidade de que a cultura predominantemente católica de Barba seja tragada por cargueiros repletos de muçulmanos, emigrando do Norte da África. Agora, o orçamento de Lisboa para impor o cumprimento das leis de imigração é insignificante, e a postura do governo em relação a essa questão de grande peso étnico e religioso consiste em desviar os olhos. Por isso, o Verdade faz uma defesa crível da tese de que Barba só poderá obter o controle de suas fronteiras com a soberania. — Não diga — retrucou Edgar, azedo. Até para sua ínfima compreensão do assunto, esse resumo dos fatos era condescendente. — É claro, a lógica diz que, se o SOB tornar a vida suficientemente desagradável para os aliados e vizinhos de Lisboa, alguns amigos poderosos, como os Estados Unidos, que não têm nenhum investimento estratégico na integridade de Portugal, convencerão Lisboa a abrir mão da península barbense. Portanto, como é compreensível, Lisboa está dividida. Portugal é avesso a encorajar o terrorismo. Além disso, os imigrantes marroquinos e argelinos, quando não estão fugindo da perseguição, simplesmente buscam uma vida melhor, e há certa razão para se temerem expulsões em massa e violações generalizadas dos direitos humanos, caso se soltem as rédeas dos barbenses em seu Estado, o qual, a menos que pleiteasse separadamente a admissão, também ficaria fora da influência apaziguadora da União Europeia. Mas Portugal está sob enorme pressão internacional para deter a campanha do SOB, e a medida mais óbvia é conceder a independência a Barba... — Como é que se “contribui para o debate” ficando tão perdido na simpatia sentimentaloide por todos os lados, de modo que se sacrifica absolutamente qualquer perspectiva? — intrometeu-se Edgar, lembrando mais uma vez por que tinha o costume de ficar com a boca fechada em aviões. — Por sua vez — acelerou o professor, como quem se agarra a um púlpito —, as pesquisas de opinião em Barba não comprovam o apoio da maioria à independência... — Espere aí — interrompeu Edgar. — A autodeterminação nacional de Barba não só não tem apoio em Portugal como um todo, como é apoiada apenas pela minoria em Barba? Então, o SOB está bombardeando a porra do mundo inteiro para conquistar a independência para um povo que não a quer. — Mais uma vez, o senhor está supersimplificando. Entre os latinos barbenses natos há uma simpatia geral pela causa do SOB, porém o mal-estar com a luta armada dilui... — Quer dizer que o fato de os pobres coitados nem ao menos quererem a independência é outra distração, assim como o fato de que os guerrilheiros do SOB são uns calhordas assassinos? Outros passageiros, que tentavam dormir, lançaram olhares furiosos por cima dos cobertores. — O senhor tem muito o que ler antes de estar pronto para assumir o manto de alguém da estatura do Sr. Saddler. Talvez eu deva deixá-lo entregue a essa tarefa. — Henwood apontou para um livro. — Permita-me sugerir que comece por aquele. Eu o uso em meus cursos introdutórios. É apenas uma tosca visão geral. Mas, pensando bem, é possível que o tosco apele para a sua sensibilidade. Henwood levantou o livro que tinha no colo — Projeções demográficas comparativas da cidadania com e sem a Cláusula da Anterioridade em Barba —, de modo que a capa encobriu seu rosto. O professor tinha apontado para Saindo do impasse, de autoria, vejam só, do próprio Dr. Ansel P. Henwood. A foto da quarta capa era de uns vinte anos antes, no mínimo, e o queixo pequeno revelava

por que Henwood tinha deixado a barba crescer. O texto realmente se mostrou útil. Edgar estava desesperado por um sonífero, e só precisou de três ou quatro linhas para mergulhar num sono profundo.

CAPÍTULO 5

Encenação de segurança Graças às informações edificantes do Dr. Henwood, Edgar só conseguiu tirar uns cochilos breves. A vista embaçada minou qualquer curiosidade incipiente sobre Portugal. Exausto e zonzo, ele não conseguiu entender por que, em algum momento, alguém gostaria de ir para outro lugar que não a cama. Também não conseguiu explicar o propósito de submeter os passageiros a uma verificação de segurança logo na saída do avião, quando eles haviam passado pelo portão de segurança imediatamente antes do embarque. O que estariam procurando: fones de ouvido furtados? Na imigração, a mulher morena e miúda no guichê foi rápida mas educada, e concedeu a Edgar um lampejo de sorriso. No entanto, ao examinar o bilhete, sua cordialidade esfriou. — O senhor está indo para Bar-ba? — indagou em tom gélido, fincando um gancho na palavra. Edgar fez um débil aceno afirmativo com a cabeça. O serviço de imigração sempre o fazia se sentir uma pessoa sorrateira. A mulher atacou o computador, batendo nas teclas como se esmigalhasse uma invasão de formigas. — Qual é a finalidade da sua visita, por favor? — Vou fazer a cobertura de Barba para o National Record. Até então, Edgar tinha gostado de repetir essa afirmação, na esperança de que começasse a soar plausível para ele mesmo, porém, naquele momento, pareceu um disfarce transparente de uma maldade indizível. — Tem documentos que comprovem esse cargo? Edgar esfregou a testa úmida. — Eu... talvez tenha, fui designado de última hora, me deixe... me deixe verificar. Abaixando-se, vasculhou a bagagem de mão. Devia ter pedido a Wallasek uma carta de apresentação. Talvez Guy tivesse ao menos rabiscado o endereço de Saddler em um papel timbrado. Enquanto isso, no guichê ao lado, Henwood despejava tamanha tempestade de documentos que o funcionário da imigração levantou a mão para fazê-lo parar. — O que há de tão interessante para os norte-americanos em Bar-ba? — perguntou a inquisidora de Edgar, de modo ríspido, enquanto ele espalhava livros com títulos incriminatórios no chão. — Grande parte de Portugal é linda: Lisboa, Porto, Algarve. Os seus jornais nunca mandam repórteres para esses lugares. Bar-ba é feia e pobre, e o povo é ingrato... ressentido. Edgar achou o papel; não era timbrado. — O que posso dizer? Os americanos gostam de ler sobre gente que é... — na aflição de agradar, Edgar pegou o dicionário no chão e completou, em português — ...mau. Ela não pareceu se impressionar com o português dele. — O senhor não tem documentos? Espere um momento, por favor. A mulher marchou para trás de uma divisória, com os saltos martelando o piso polido como se disparassem rebites e a bunda fazendo a saia justa azul-marinho balançar. Quando ela voltou, Edgar havia ao menos catado uma cópia do seu precioso artigo da New Republic.

— Está vendo? — disse, apontando para a assinatura. — Este sou eu. Ela estreitou os olhos. — Isso não é sobre Bar-ba. — Nunca escrevi sobre Barba na vida. Ela se abrandou um pouco, mas retrucou: — E por que vai começar agora? — Foi o único emprego que consegui arranjar! Barba-como-ato-de-desespero rendeu-lhe mais um atenuante, porém o leve degelo só fez soltar uma banquisa de trêmula emoção: — Eu não colocaria os pés naquela fossa nem se fosse o último emprego do mundo! Os passageiros na fila resmungaram; só havia três guichês abertos. Recompondo-se, a funcionária interrogou Edgar sobre onde ele planejava morar, registrando no computador seu novo endereço na Rua da Evaporação, mas não fez qualquer gesto para carimbar seu passaporte. Tem amigos em Cinzeiro? Tem contatos entre os integrantes do SOB? Edgar não mediu esforços para negar qualquer desses vínculos impalatáveis e acrescentou, gratuitamente: — Canalhas. Asquerosos. Não tenho a menor simpatia. A moça o olhou com acrimônia; era provável que os terroristas dissessem essas merdas o tempo todo. — Quanto tempo planeja ficar, Sr... — verificou o passaporte — Kellogg? Ninguém nunca parecia se lembrar do nome dele. — Não sei dizer. Estou substituindo outra pessoa. Ela desapareceu. Talvez volte. Barrington Saddler. Touché. Até ali, Edgar estivera brandindo uma caneta Bic contra a postura glacial daquela mulher, mas finalmente a havia rompido com um maçarico. Os olhos dela ficaram melosos, a cabeça assumiu uma inclinação cativante e o sorriso foi decididamente humano. — O senhor conhece... o Barrington? — Sim — respondeu Edgar. — Conheço muito bem. O Bear e eu somos velhos amigos. Sempre que ele vai a Nova York, nós nos acabamos na cidade. Até as cinco da manhã, sendo expulsos dos bares. Somos unha e carne. Não poderíamos ser mais próximos. Está vendo? — disse, empurrando o pedaço de papel em que estava rabiscada a palavra Saddler. — É o endereço dele. A funcionária tocou no papel com uma expressão cleptomaníaca, como se tivesse de se conter para não anotar o número do telefone. — Desapareceu... É verdade, ouvi algo assim há uns meses. — A testa morena franziu-se, os lábios fizeram um beicinho de preocupação. A transformação da mulher lembrava uma solteirona dos seriados de comédia, que solta o cabelo, tira os óculos de armação de tartaruga e voilà: uma bela garota gostosa. — Eu fico preocupada. Barrington passa por aqui muitas vezes. De vez em quando — admitiu, timidamente —, ele deixa os outros irem na frente, para ser atendido no meu guichê. Sempre fazemos brincadeiras. Espero que não aconteça nada de ruim com ele, né? — Esta é a minha primeira missão: descobrir o que aconteceu com nosso amigo Barrington. Para ter certeza de que ele está bem. Pou. Carimbo. — Até logo. Se encontrar o Barrington, diga que a Isabel mandou lembranças. Tenha muito cuidado, senhor.

Ela até acenou. * * * Por se dirigir a Barba, Edgar não fora autorizado a despachar sua bagagem até o destino final, ao contrário dos passageiros que iam para qualquer outro lugar do continente europeu. A passagem pela imigração havia demorado tanto que sua mala, pelo menos, já estava rodando aos solavancos na esteira. Mas entrar de novo no aeroporto, depois da alfândega, exigiu outra passagem pelo controle de segurança, e mais outra na entrada do setor de embarque. Raios x, revista manual, verificação do bilhete, uma após a outra. No portão, ele ficou consternado ao enfrentar outra fila para outro controle de segurança. Dessa vez, vasculharam sua bagagem inteira — folhearam cada livro, puxaram três metros de fio dental, espremeram o tubo de pasta de dentes para cima e para baixo, insistindo que ele pusesse um pouco de Cool Mint Crest na língua. Apertaram o botão PLAY do microcassete, e a voz de Edgar, testando o aparelho, ecoou pelo corredor: “Aqui é Edgar Kellogg, seu correspondente peninsular na Grande e Perigosa Barba, entrevistando mais um combatente do SOB pela liberdade, que usa uns óculos escuros do cacete.” Que beleza. Depois disso, foi natural eles ficarem desconfiados quando sua impressora portátil não quis ligar, e tente explicar a trogloditas cujo vocabulário de inglês se resume a “abra, por favor”, ou “ligue”, que um aparelho não tem bateria e precisa de um conversor para funcionar na corrente europeia. Quando ele conseguiu ligar o conversor, depois de muitos sinais com as mãos, o pessoal da segurança havia futucado e remexido na sua Bubblejet até quebrar as presilhas da bandeja de alimentação de papel. Seu voo já estava chamando para o embarque, e todas as posses mundanas que lhe restavam encontravam-se espalhadas por três metros quadrados de mesa. Enquanto guardava suas coisas e resmungava, Edgar não teve tempo para todos os encaixes engenhosos que haviam lhe tomado uma hora na Rua 89 Oeste e precisou pedir uma sacola de plástico para guardar o que não cabia. Depois da segurança, outra entrevista: ele havia aceitado algum embrulho, perdido a bagagem de vista em algum momento, arrumado a mala pessoalmente? Edgar já tinha respondido às mesmas perguntas meia dúzia de vezes, e suas respostas começavam a soar irritadas. A qualquer momento, o embarque seria encerrado. Enquanto isso, advertências para que os passageiros cuidassem de sua bagagem estalavam sem parar no sistema de alto-falantes. Cartazes colados nas imediações do portão anunciavam alegremente o Telefone Confidencial, para o caso de, depois dos amendoins no trajeto para Cinzeiro, você ter o impulso de se divertir dedurando seus companheiros do SOB pelo telefone pré-pago. Mas, quando Edgar saiu de perto do balcão para embarcar, não pôde impedir-se de soltar um grito: — Vocês não podem estar falando sério! Logo antes da ponte de embarque, havia mais um controle de segurança. Edgar jogou a bagagem de mão, o laptop e a sacola de plástico na esteira. — Ligue-o, por favor. — Escute aqui! — gritou Edgar. — Já liguei meu computador dez vezes nesta viagem, e a droga da bateria está acabando! Agora, empurre essa porra dessa bagagem pelo controle, porque a porra do meu avião está decolando! Outro funcionário surgiu vagarosamente da sombra, e seu inglês melhor foi um mau presságio.

— Algum problema, senhor? — Sim, cacete, há um problema! — Edgar sabia que não devia dizer palavrões, mas a subserviência na imigração o deixara decidido a restaurar sua masculinidade. — Vocês acabaram de examinar minha bagagem até as manchas de cocô nas minhas cuecas. O que vem agora? Um separador de partículas? Como é que eu poderia ter enfiado um míssil Stinger na bagagem de mão nos últimos seis metros? — O senhor acabou de ameaçar a companhia aérea. Terá que vir por aqui, por favor. Fizeram uma busca em todas as cavidades corporais, e Edgar perdeu o voo. * * * Um dos contatos de Edgar na US Air, um cliente do escritório Lee & Thole, tinha confidenciado que boa parte da moderna segurança aérea era uma encenação, não raro uma fachada para uma negligência que deixava qualquer um de queixo caído nos bastidores. Eles faziam a pessoa provar sua pasta de dentes diante de todos, mas a mala postal era rotineiramente embarcada sem nenhuma revista. Apesar da apalpação chamativa dos absorventes Tampax e camisinhas Trojan dos passageiros, qualquer sacana com inteligência suficiente para usar um macacão marrom de técnico podia entrar e sair dos aviões como bem entendesse, e a maioria das violações de segurança era arranjada por meio de fornecedores corruptos de refeições e mantimentos, ou de agentes de bagagem subornáveis. Tentando raciocinar com o ágil oportunismo de sua nova ocupação, Edgar se perguntou se conseguiria extrair uma reportagem do fiasco daquele dia. Por enquanto, isso não era uma boa matéria, apenas uma vida ruim, embora comumente as duas parecessem andar juntas. Edgar tinha nove horas para matar antes do voo noturno, e ficar sentado era incômodo: seu cu estava dolorido. Torceu em vão para que fazer cenas em aeroportos fosse sinal de que sua fase de aprendizagem no mundo das coisas imponentes estava tendo um começo brilhante. Mas uma vozinha no fundo da mente de Edgar murmurou que Barrington Saddler nunca agiria de modo a deixar que um sacana sádico lhe enfiasse um indicador enluvado no traseiro. O mais provável era que aquela gente dobrasse de novo as calças de Saddler, alinhando bem o vinco, enquanto corria para providenciar sua transferência gratuita para a primeira classe. Aquela vozinha. Tinha sotaque britânico.

CAPÍTULO 6

Apenas Edgar Grato por ter uma tarefa quando havia tanto tempo para matar no aeroporto de Lisboa, Edgar descontou um cheque de viagem e arranjou dinheiro trocado para o telefone público. Para facilitar a logística, realmente deveria ter entrado em contato com aquela tal de Nicola quando ainda estava em Nova York, mas havia adiado o telefonema. Era um pouco constrangedor agir com base na suposição de Wallasek de que ela teria uma chave da casa de Saddler, por ser uma de suas vagabundas conhecidas. — Entendo — disse a mulher, depois de Edgar explicar com hesitação o motivo do telefonema; seu sotaque era vagamente britânico, mas pelo menos não era do tipo que se impõe na marra. — Então, você é o substituto do Barrington — comentou ela, soando ao mesmo tempo tristonha e intrigada. — É que tenho de me mudar para... — Edgar lutou para evitar o nome de Saddler, cuja menção, desde o princípio, parecera constituir um tormento — ...a casa na Rua da Evaporação. Ninguém do Record tinha a chave. É claro que hoje posso ficar num hotel e ir até lá com um chaveiro amanhã. Mas meu editor pensou que talvez... — Sim, eu tenho uma chave — admitiu ela, em tom grave. — Quando você vai chegar? — Hoje à noite, por volta das dez. — Ah, eu sinto muito mesmo — disse ela, e de fato pareceu incrivelmente desolada, embora talvez, acima de tudo, pelo fato de o telefone ter tocado e ser apenas mais um jornalista visitante. Nicola havia atendido, Alô?, com a voz ofegante de expectativa. A queda posterior no timbre fez lembrar a voz de Angela, quando ela se dava conta de que era apenas Edgar. — Eu gostaria de encontrá-lo no aeroporto, mas vou receber um grupinho aqui em casa, logo à noite, e deixar os meus convidados seria uma indelicadeza. Não que eu não me sinta tentada. — Um risinho em tom mais baixo. — Afinal, os membros do nosso grupo incestuoso esbarram todo dia uns com os outros... A ligação foi interrompida por uma gravação ininteligível. Edgar sentiu uma premência irracional de manter aquela voz melodiosa ao telefone, e enfiou mais escudos na abertura para moedas. — Por favor — insistiu. — O que estava dizendo? — São só os jornalistas locais. Mas é a primeira vez que nos reunimos socialmente desde que o Barrington partiu. — Ela pronunciou o nome com firmeza, como se desse permissão a Edgar para empregá-lo a seu gosto. Igualmente firme foi a palavra partiu; não sumiu, nem foi sequestrado, nem tampouco fugiu, muito menos foi assassinado. O verbo não foi meramente descritivo: foi um veredicto. — O senhor seria bem-vindo entre nós, Sr. Kellogg. Ela se lembrou do nome! — Edgar — corrigiu ele. — Eu nem pensaria em abusar... — Por favor, não seria abuso algum. Todos estarão tremendamente interessados em conhecê-lo. Nicola se absteve de afirmar que seus convidados teriam prazer em conhecê-lo, mas o interesse talvez fosse bem real. — Receio que eu mal terei saído do avião... — Tentaremos não prendê-lo. E darei todos os descontos pelo fato de você estar exausto.

Depois de ditar o endereço, Nicola baixou mais um pouquinho o tom da voz: — Só uma coisa, Edgar. O fato de eu ter essa chave, sabe? Seria um favor se você não chamasse a atenção de ninguém para isso. Diga apenas que está dando uma passada para conhecer seus novos colegas. Como estará, aliás. — Serei discreto — prometeu Edgar. — Deus sabe o que deve estar pensando de mim — sussurrou Nicola. — Ei, não é da minha conta — protestou Edgar. — Não pode pensar nada pior do que eu penso de mim mesma. Sem dizer até logo, ela desligou. * * * Inocentemente caiado e com uma iluminação viva, o pequenino prédio quadrado do Aeroporto Internacional de Cinzeiro era coberto por telhas de terracota arredondadas, como um centro comunitário do Arizona. Embora uma parede externa estivesse ousadamente pichada com os dizeres VOCÊ ESTÁ ENTRANDO EM BARBA OCUPADA!, as letras vermelhas do grafite tinham sido cuidadosamente contornadas de verde, o segundo B fora trabalhosamente esticado, para ficar da mesma altura do primeiro, e a exclamação fora pontuada com uma margarida. O lema parecia menos a desfiguração ameaçadora de uma insurgência terrorista do que um projeto de artes plásticas de colônia de férias. Descer do avião na pista de aterrissagem pareceu a Edgar ser algo de vaga elegância retrô, até ele sair da cabine e receber o impacto lateral de uma forte rajada de vento, uuuuf, que o jogou com tanta violência contra o corrimão da escada portátil que por pouco não despencou lá de cima. Enquanto outra rajada estapeava seu rosto, recriminando-o por haver um dia considerado que ar era o mesmo que nada, ele se agarrou ao corrimão até chegar à pista — a pele tensa, os olhos lacrimejando, os ouvidos rugindo. Ao sair do setor de retirada de bagagem pela porta giratória, cujas abas giravam e chiavam sem ajuda da eletricidade, tornou a ter a visão ofuscada por uma sólida parede atmosférica. Caminhou aos tropeços até o ponto de táxi, usando as malas como lastro, e se agarrou a um poste enquanto o motorista enchia o porta-malas do carro. Com os olhos escudados por grossos óculos de proteção, o taxista corpulento recurvou-se numa postura bem plantada, inclinando-se contra o vento e levantando os pés o mínimo possível. Parecia ter prática nessa manobra. Edgar afundou no banco do calhambeque, contente por ser impedido pela escuridão de olhar pela janela. Não tinha forças para se sentir fascinado e queria avaliar sua nova moradia com a visão revigorada. Já tinha desenvolvido uma afeição nascente por Barba, ainda que fosse apenas pelo fato de os lisboetas parecerem detestá-la tanto. Enxovalhado na infância, identificava-se mais com os párias do que a maioria de seus compatriotas, cuja reputação de solidariedade em relação aos oprimidos era, a seu ver, sumamente exagerada. Um silvo tão penetrante entrava pelas frestas das janelas que a dor de cabeça de Edgar foi imediata. Enquanto galopava pelas ruas, o sedã de para-lamas arredondados entrava e saía da pista, a despeito da luta viril do motorista com o volante. Por vezes, ouvia-se um baque numa das portas, como se um linebacker, jogador da defesa no futebol americano, atacasse o táxi com uma forte pancada. — Aqui sempre venta assim? — gritou Edgar, por cima do som de apito de chaleira.

— Ventar? Não está ventando muito — retrucou o taxista, com um grito animado. Lutando contra o enjoo, conforme o táxi o jogava de uma porta a outra no assento, Edgar se enfureceu consigo mesmo por ter prometido dar uma passada na festinha de Nicola naquela noite. Teria sido melhor procurar um hotel e pegar a chave no dia seguinte. Jurou entrar num pé e sair no outro. Até então, seus “colegas” jornalistas estavam longe de constituir uma confraria intelectual de apoio mútuo, e uma observação ignorante e descuidada sobre o SOB poderia levar meses para ser superada. Edgar admoestou-se: fique de boca fechada. A tal de Nicola parecia ser gente boa, mas, em seus melhores momentos, Edgar tinha uma predileção mínima por reuniões sociais. A verdade era que não gostava muito de gente, embora nunca soubesse ao certo se um misantropo podia subtrair a si mesmo, como quem se utiliza de uma dedução pessoal na declaração do imposto de renda. Acima de tudo, após meio dia em Portugal, ele já estava até o pescoço com o sacana do Barrington Saddler. Seria obrigado a escrever aquele artigo de finalização sobre o que teria acontecido com seu predecessor, para dar um desfecho à história para o jornal. Mas a última coisa sobre a qual planejava bater papo nas horas de folga era “Caramba, cara, o que vocês acham que pode ter acontecido com nosso querido Bear?”. Se Edgar provocasse mais alguma efusão de pieguice sobre Saddler, teriam de lhe pagar por isso. * * * O táxi parou diante de um casarão cuja parede lateral lisa, do lado esquerdo, tinha três andares e não era perfurada por uma única janela. Dessa construção inexpressiva projetava-se para a direita uma miscelânea frívola de torretas, pórticos e varandas com grades em arabescos. Por sua extravagante extremidade a sotavento, o casarão parecia um cenário de Carmen; pela extremidade a barlavento, lembrava uma usina nuclear. Vuuum. Edgar teve dificuldade para fechar a porta do táxi. Curvado, arrastou a bagagem em direção à entrada, com a pesada jaqueta de couro voando para a direita. Grãos de areia lhe espetavam o lado esquerdo do rosto feito acupuntura. Depois que ele se precipitou para a varanda e se encolheu atrás do paredão gigantesco, o barulho cessou, a jaqueta baixou e Edgar ficou trôpego, por já não ter de se inclinar contra o vento para se manter de pé. Lá de dentro vinha o som triste da música de Leonard Cohen. A porta se abriu apenas o bastante para Edgar ver, à luz da varanda, que o rosto do rapaz exibia a mesma fachada impenetrável do quebra-vento do casarão. — Barrington II, certo? — disse, sem alegria, o inglês de ar juvenil. — É uma surpresa terem mandado outra pessoa. Achei que passaríamos o resto da nossa vidinha ordinária nos lamentando e esperando os estigmas para provar que o Nosso Redentor está vivo. Era demais para duas horas de sono e uma diferença de seis horas no fuso horário. — Estou procurando a Nicola... — Naturalmente — disse o rapaz, em tom selvagem. — Henry, por favor — veio um sussurro do lado de dentro. — Se for indispensável, desconte em mim. Esse pobre sujeito nunca lhe fez nada. — Na sua versão, você não me fez porcaria nenhuma, lembra? Sou “paranoico”, então estou fazendo o meu papel.

Henry deu meia-volta e se retirou. — Edgar! Por favor, entre. Edgar arriou as malas com um baque no hall de entrada, iluminado à luz de velas. O táxi ainda estava ao alcance da voz; após a calorosa recepção de Henry, Edgar considerou pedir a chave rapidamente, para poder cair fora de imediato. Mas isso foi antes de dar uma boa olhada em Nicola. Ela era uma visão pré-rafaelita. Alta, esguia e delicada, tinha um corpo que fazia eco à precisão de sua fala, com pulsos, clavícula e ossos malares nitidamente articulados, talhados com a minúcia de um haicai. Descendo em pequenas ondas até a cintura, o cabelo refletia uma gama de nuances que iam do louro ao ruivo. Ela estava embrulhada num apinhado de lenços e xales que Edgar acharia ridículo na maioria das mulheres, mas Nicola podia usar todo o floreio que quisesse. Seu lugar era numa torre, fiando junto a um espelho partido, ou eternamente banida de Camelot, num barco vagando à deriva rio abaixo. Os tons carmim e cobalto de seus tecidos destacavam sua chocante palidez. A expressão sofrida de Nicola captava o próprio anseio nascente que Edgar ficara sem jeito demais para expressar diante de Wallasek e ecoava o ciclo destrutivo de desejo e decepção que tiranizava sua própria vida. Quantas vezes Edgar havia confrontado o globo de espelhos de uma cintilante nova conhecida, estendido a mão para suas facetas e se cortado, até concluir outra inversão desoladora, ao ver que, à fria luz do dia, o globo se revelava um truque barato de discoteca? Quantas vezes tinha conhecido mulheres como Nicola e jurado desmascarar a roupa espalhafatosa de cigana como uma dramaticidade cafona, e lembrar que por trás de todo rosto bonito espreitava mais uma megera voraz, mentirosa, enganadora, mesquinha e infiel? E quantas vezes essas advertências feitas a si mesmo o haviam protegido das mágoas do amor? Nem uma única vez. Pegando a mão alva e fina, Edgar teve de se impedir de beijá-la. — Nicola Tremaine. — Parece nome de estrela de cinema! — explodiu Edgar. Ela deve tê-lo tomado por um completo matuto. — Obrigada. Eu me senti egoísta por manter o Tremaine, mas Nicola Durham soava prosaico demais. Acho que o Henry ficou bem ofendido. — Você é uma esteta — disse Edgar, torcendo para que, à luz das velas, sua expressão desconcertada não ficasse muito óbvia. — Quase nada além disso — confessou ela, desenvolta, conduzindo-o por uma curva e pela descida de alguns degraus de pedra. — Eu me importo principalmente com nomes que tenham sonoridade, bagas de zimbro no arroz de jasmim, ou tigelas de sopa e pratos rasos de jogos diferentes que estranhamente combinem muito bem. Graça, bom gosto, aparência. Você logo descobrirá que sou uma pessoa vergonhosamente superficial. Edgar considerou que, se suas próprias superfícies fossem tão agradáveis quanto as de Nicola, ele mesmo não teria motivação para vasculhar abaixo delas, mas não soube dizer isso sem soar bajulador. Assim, com a boca aberta como um cachorro, seguiu atrás da cauda de franjas da moça, que ia tremulando pela escada. Puta merda. Nicola tinha que ser casada. * * *

No momento em que entrou na sala de estar de Nicola, Edgar sentiu com tanta força o ressentimento coletivo dos convidados que chegou a estancar fisicamente. Não foi como se entrasse de penetra no meio de um arrasta-pé autêntico; um simples murmúrio desconexo cessou à sua entrada. Mas a dúzia de pessoas espalhadas pela sala virou-se para cumprimentar o correspondente substituto do National Record com um longo e sincronizado sorriso de desdém. Enquanto isso, “Famous Blue Raincoat” entoava, monótona, o que tinha de mais deprimente e menos melodioso: Yes, and Jane came by with a lock of your hair... Verdadeira música de festa. Os olhos de Nicola percorreram a sala; se ela estava decidindo a quem seria mais seguro apresentá-lo, enfrentava dificuldades. Retido pela mesa de comes e bebes — intrincados sanduíches abertos, individualmente montados como Mirós singulares —, Edgar teve aguda consciência de que sua camisa estava amarrotada, os jeans tinham um cheiro rançoso, havia uma aspereza em seus dentes e a ventania remexera seu cabelo como uma salada. — Você sempre pode escolher o toque local — disse um sujeito esguio, apontando as garrafas, depois de descer de sua banqueta e ir mancando para junto de Edgar. — O que constitui o toque local? — perguntou Edgar, desconfiado. — Experimente — desafiou-o o americano de rosto curtido, abrindo uma garrafa marrom cujo rótulo dizia CHOQUE. Apesar de alertado por uma contração sádica no rosto do homem mais velho, Edgar sentiu os olhares pousados nele e bebeu um gole. Antes que a cerveja descesse pela garganta, sua membrana bucal tinha se contraído num franzido seco, feito um eczema. Baixando a garrafa com um baque, ele esfregou a boca com um guardanapo e devorou um sanduíche. Lembrou-se da ocasião em que entrara de fininho no banheiro dos pais, para se entupir do que supunha ser um xarope para tosse com codeína, e, em vez disso, tinha emborcado o anestésico receitado para o prurido anal de seu pai. — Cerveja de pera peluda — explicou o homem, em português. — Choque quer dizer o que parece, choque ou susto, mas você se acostuma. — Que diabo é uma pera pútrida? — arquejou Edgar, ainda esfregando a boca. — Pera peluda: a única fruta nativa que vinga em Barba — informou o novo conhecido. — Cresce com tamanha abundância que poderia servir de lavoura comercial, só que ninguém a quer... Então eles exportam terrorismo. Tem mais mercado. Enquanto isso, vão pondo peras peludas em tudo. A fruta fermenta que é uma desgraça. Alguns de nós, da velha guarda, adquirimos um vício doentio por cerveja de pera peluda. Por falar nisso... Durham! O Independent publicou a sua matéria promocional? — Cortaram — respondeu Henry. — Com Barba fora do noticiário e tudo o mais, a editoria internacional achou que a matéria não era oportuna. — É curioso como o Saddler levou a festa com ele — observou o velho tarimbado —, assim como o Grinch roubou o Natal. Não houve um único incidente desde que o nosso saudoso Barrington se foi. Não é nada atencioso. O restante de nós precisa ganhar a vida. A Reuters acabou de mandar um e-mail dizendo que vai fechar o escritório em três meses, se não explodir mais nada. — Achei que o artigo do Henry era mais do que matéria paga — interveio Nicola. — A predileção dos barbenses pela pera peluda formou uma metáfora contundente. Como a amargura que corre nas veias deles... — Nick, ninguém dá a mínima para as sutilezas culturais desta privada, se os Soldados Ousados não estiverem soltando gás asfixiante nas estações de metrô de Paris — interrompeu o homem da Reuters. —

Se os Sobs matarem um número suficiente de inocentes, o Henry poderá vender uma reportagem sobre como os barbenses depilam os pelos do nariz. — Achei que a reportagem oferecia uma visão pitoresca — sustentou Nicola, com obstinação. — Quer dizer que o seu marido não vai ganhar os cem paus dele — comentou o homem de pele curtida da Reuters, com uma cínica olhadela de esguelha. — Vão atrasar o aluguel? Nicola baixou a cabeça. O rosto de Henry permaneceu impassível. Fosse o que fosse essa provocação, Henry estava acostumado. — Win Pyre — disse o homem, estendendo a mão de palma calosa, com o metacarpo na coloração castanho-acinzentada daqueles bronzeados cancerígenos. — Onde foi sua última missão, Kellogg? — Nos Estados Unidos, como freelance. — Freelance provocou o risinho de praxe. Não querendo ser tomado por um completo fiasco, Edgar acrescentou: — Sou advogado. Ou era. Na verdade, ainda sou advogado. Tinha feito uma confusão com essa biografia. Mas é, era — esse negócio de tempos verbais era complicado. O fato de Edgar continuar como membro da Ordem em Nova York, com boa reputação, era de importância surpreendente para ele. — Direito penal? — Pyre jogou a isca. — Corporativo — retrucou Edgar, desafiador. — Entendo. — O risinho malicioso curvou-se num sorriso afetado de piedade. — Quer dizer que você está tirando uma folga dos chatos para conhecer o mundo. Se Edgar havia acabado de se tachar de robô sem imaginação, era exatamente desse jeito que havia percebido sua persona jurídica ao deixar o emprego. Ainda assim, a depreciação doeu, tal como qualquer pessoa de fora desperta raiva ao criticar um familiar que nós mesmos detestamos. Além disso, os executivos dos arranha-céus comandavam esse “mundo” que, aparentemente, Pyre achava que Edgar estava vislumbrando pela primeira vez; pagavam o salário desse caubói. A passada dos colossos financeiros fazia tremer o chão que os repórteres pisavam, e, se Pyre descartava o poder dos gigantes empresariais como chatice, então Pyre era incompetente, e era Pyre quem se mostrava digno de pena. — Muito empreendedor — acrescentou Pyre, com ar condescendente. Queria dizer: que insolência. Queria dizer: mal posso esperar para vê-lo dar com a cara no chão, seu palerma pretensioso. Queria dizer: você pode estar acostumado a soltar maços de notas por aí, com os seus comparsas sacais de negócios, mas aqui só importa o texto, e você acabou de se rebaixar para o campo de treinamento dos recrutas, cara. Edgar enterrou o punho direito na palma da mão esquerda e mudou de assunto. — E então, o vento sempre uiva assim por aqui? Em dez segundos, depois que saí do avião, ele me arreganhou as narinas, entrou rasgando pela garganta e saiu assobiando pelo meu rabo. Massagem Rolfing de graça. — Você está na sua missão de estreia, num notório berço do terrorismo internacional — disse Pyre, em tom incrédulo —, e quer falar do tempo? — Por que não? — disse Nicola. — Avaliar o vento insano é uma preocupação local. Há uma interface instável de alta para baixa pressão, entre o Mediterrâneo e o Atlântico, que cria um siroco quase permanente na península de Barba. E não, nem sempre fica ruim como está, Edgar; em geral, é muito pior. Há dias em que são emitidos alertas para que a população não saia de casa. A maioria dos habitantes nativos aprende a se proteger, mas outros se entregam. Há certa idiotia abestalhada que você vai

encontrar por aqui, como resultado da exposição maciça ao clima. Os cabeças de vento abrem os braços e deixam a ventania erguê-los no ar. Ficam com os olhos vidrados e secos. Às vezes, pegam no sono, já que o vento os escora. O vento insano pode perturbar a cabeça. Como um tinido. — Ou como a propaganda do Creme — disse Pyre. — Ela é incessante, nunca varia, a não ser no nível dos decibéis, e ficar sujeito a uma dose suficiente dela transforma o indivíduo num imbecil. — Querido? — chamou Nicola, olhando em volta rapidamente, o cabelo comprido balançando, até localizar o marido. Não era uma sala tão grande para que ela devesse ter medo de perdê-lo, ao menos não fisicamente. — Quer outra Diamond White? Henry a ignorou e desabou com indolência numa poltrona. Surpreendentemente, visto de perto, o marido de Nicola devia ter uns trinta e cinco anos. Esguio e desengonçado, com sardas e um tufo arrepiado no cabelo, se visto sob uma luz generosa, poderia passar por um garoto, a não ser por um revelador enrijecimento das feições de adolescente, como se um garoto de dezessete anos tivesse sido esculpido em cera. Se ele tinha um aspecto meio abatido, seu rosto do seriado Dias Felizes parecia cristalizado na perpétua aflição de não ter um par para o baile de formatura. Por sua vez, desde os tempos das guerras do aipo, a testa de Edgar era riscada por rugas maduras, e os sulcos que iam do nariz aos cantos da boca o marcavam com a gravidade de uma queda violenta da Bolsa de Valores. Havia um aspecto intrigante no adolescente do Madame Tussauds. Dinheiro fareja dinheiro, e, não fazia muito tempo, Edgar tivera muita grana. Aquele relógio no pulso de Henry era de ouro, não folheado. Linhas discretas, belo mostrador: classudo, e nem um centavo abaixo de três mil dólares. Alguém tinha bom gosto, e Edgar podia apostar que não era Henry. Mas o fecho estava preso de qualquer jeito, frouxo, e o mostrador caía por cima da mão. Do mesmo modo, aquela camisa de seda crua cor salmão era Yves Saint Laurent, e o colete de camurça clara, Gucci, mas as mangas da camisa estavam grosseiramente amarfanhadas acima dos cotovelos e a camurça estava imunda. Não importava quem tinha gastado uma grana alta naquelas roupas, agora elas só despertavam a indiferença de Henry. — Henry? Querido? Deixe-me pegar uma gelada para você — disse Nicola, correndo até a cozinha. Pyre estalou a língua às costas dela, tsc, tsc, tsc. — Coitados da Nick e do Henry. Eram de uma felicidade repulsiva. Agora é só aparência, como todo mundo. — O que aconteceu? — perguntou Edgar. — Nos casais, é mais comum ser quem. — Deixe-me adivinhar. — Você é rápido — admitiu Pyre. — Vai precisar disso. Não será fácil ocupar o lugar dele. — Outro fã dedicado? — perguntou Edgar, em tom seco. — Eu deploro aquele sujeito — disse Pyre, e pela primeira vez Edgar começou a se sentir receptivo em relação ao repórter veterano. — Ele é tudo o que dá má fama ao jornalismo: arrogante, irresponsável, sem precisão. Ele se acha maior que suas matérias. Barba, bom, ele acha que é dono de Barba, como se tivesse inventado o lugar. Não tem seriedade. Saddler rodou muito pelo mundo e viu o que ele tinha de pior. Mas eu também vi, vi o Líbano, a Somália, e é difícil para diabo a gente não se tornar simplesmente desagradável. Mas o Saddler, a reação do Saddler foi histérica. Digo, ele acha tudo engraçado. Eu não me divirto. O Saddler cobre os incidentes terroristas como se fossem peças pregadas por alguém. — Pyre deu um tapinha na perna ruim e prosseguiu: — Em 1983, eu estava fazendo uma entrevista perto daquele

quartel de fuzileiros navais que foi atingido por um carro-bomba, em Beirute. Embora eu tenha escapado sem ferimentos muito graves, nunca mais vou jogar tênis. Saddler acha isso uma bobagem. Mas eu gostava de jogar tênis. — Você ainda fala dele no presente. — Barrington Saddler nunca se submeteria a nada melodramático sem uma plateia. Duvido que faça cocô se não houver alguém olhando. — Até os babacas exibidos são atropelados por ônibus — contrapôs Edgar. — Seria mais provável Saddler atropelar o ônibus. — Ele é tão complicado assim? — Ele tem uma tremenda determinação de não deixar que nada atrapalhe o seu caminho. Agora, posso apresentá-lo a alguns dos seus colegas? Mas não espere grandes amizades da noite para o dia. — Como foi que consegui pisar nos calos de alguém, a cinco metros de distância? — Não sendo o Alegre Barry. Desde que o Saddler se mandou, a pulsação desta cidade baixou para níveis de hibernação. A verdade é que sinto certa falta de detestar o cara.

CAPÍTULO 7

Edgar conhece seus novos amiguinhos — Ainda estamos jogando ou não? — perguntou a loura, cujo rosto tinha aquela simetria de olhos claros e pele clara que se usa para vender creme hidratante, mas que nem por um decreto Edgar conseguiria achar sensual. Win Pyre bateu com a bengala no carpete e fez as apresentações. — Estou interrompendo alguma coisa? — perguntou Edgar. — Sim, graças a Deus. Jogos de salão — disse o repórter do Guardian londrino, Roland Ordway, soltando um fiozinho de fumaça. Cabelo preto eriçado, fixado com laquê nos ângulos habilmente equilibrados de um corte de grife à la Os sobrinhos do capitão. Jovem e de beleza cínica, Ordway mantinha as mangas do paletó esporte arregaçadas acima dos cotovelos, e a calça jeans tinha sido passada com vinco. Quanto às botas de caubói, ele era o tipo de inglês que achava chique a parafernália americana, desde que os americanos não viessem junto. — Qual é o jogo? — perguntou Edgar, balançando o corpo, literalmente na ponta dos pés. — Dar um nome ao jogo é perdê-lo — disse Ordway, com uma tragada no cigarro, segurando a bituca por baixo. — Então, deixe Trudy explicar — disse a mulher malvestida sentada no sofá de dois lugares, uma correspondente do Washington Post cujo nome era Martha Hulbert. — Ela adora perder. Martha era dessas mulheres que parecem horrorosas de propósito. O vestido amorfo era marcado na cintura por uma vagabunda corrente de plástico dourado, e o tecido tinha o tom verde estragado de flores de brócolis velhas; imaginar qualquer mulher entrando numa loja e escolhendo aquele saco cor de lixo era atordoante. Martha talvez ficasse apresentável se perdesse uns dez quilos, mas Edgar conhecia o tipo: durante a vida toda ela se agarrara a esses quilos extras como uma criança ao ursinho de pelúcia. — Estamos nos cronometrando — disse Ordway. — Para ver quanto tempo podemos passar sem mencionar Aquele Que Já Não Está Entre Nós. Pronto. Vou ficar marcado por isso. — É um jogo idiota — disse Trudy Sisson, a loura estilo capa de revista que Pyre havia apresentado, crispando a boca, como “fotógrafa freelance”. Nesse caso, “freelance” parecia significar “bancada pelo papai”, e, na cabeça de Pyre, as panturrilhas de pino de boliche e o sotaque sulista açucarado de Trudy Sisson deviam fazer o QI da moça despencar trinta pontos. Edgar havia ridicularizado sua cota de secretárias oportunistas no escritório de advocacia, mas, tal como o fedor de suor, o preconceito é menos execrável quando se trata do nosso, e, nesse momento, ele sentiu pena da moça. Teria oportunidade de superar isso. — Pelo menos, quando surge o nome do Barrington, é um pouco como se ele ainda estivesse aqui — prosseguiu Trudy. — Por alguns segundos, temos um pouco de energia. E eu queria saber das gêmeas. — Acho que elas continuam sem se falar — disse Martha. — Sorte nossa — comentou Ordway. — Lembram-se do que elas disseram? — Desculpe. — Martha lançou um olhar obsequioso para Edgar. — O Bear teve uma aventura...

Ordway começou a cantarolar: — O Bear teve um caso com duas irmãzinhas... — Que formaram uma equipe, em certa época — perseverou Martha. — E fez rebolarem as pernas todas torneadinhas... — Roland, se não se importa, estou tentando ser educada! — disse Martha, em tom áspero. — Elas escreviam e fotografavam para a Esquire. Uma dupla de muito sucesso... — Até que uma chiou: “Pô! Você está transando com a minha irmã! Confesse seus pecados, seu sacana!” — Eis o Bardo de Barba — disse Martha, revirando os olhos. — Enfim, uma descobriu sobre a outra, e como não descobririam? E nunca se viu briga igual. Faria mais sentido partir para cima do Barrington, mas uma se lançou contra a outra, calcadas na premissa ridícula de que aquela que arrancasse mais cabelos ganharia o troféu da infidelidade. — Nunca achei que ele desse a mínima para alguma das duas — comentou Ordway. — Ele só queria ver o circo pegar fogo. — Foi maldade — censurou Martha, em tom afetado. — Ele viu como as duas eram unidas. Igualzinho a... — deu uma olhadela furtiva pela sala e baixou a voz — vocês sabem. Enfim, elas usavam a roupa uma da outra, concluíam as frases uma da outra. Certa vez, a Erin me contou que às vezes elas tinham os mesmos sonhos. Agora se desprezam, e a Mary debandou para a Vanity Fair. Foi uma tragédia, e ele fez de propósito. Foi vandalismo afetivo, se querem a minha opinião. — Ora, não seja tão moralista — disse Trudy. — Barrington se entediava e, por isso, dormia com todo mundo. — Você deve saber — rebateu Ordway. Trudy empinou o queixo. — E você pode censurá-lo? Acordei um dia depois de ele desaparecer, ou seja lá o que aconteceu; sinto medo demais para pensar no assunto. Olhei em volta e pensei: estou vivendo numa pocilga; a comida é uma droga, a cerveja é uma droga, não se pode nem deitar na praia, porque faz muito frio, isso sem falar do vento. Acho que se bater mais uma rajada na minha saia, mais um fuuuu estragando o meu cabelo, eu volto para os Estados Unidos. Bom, antes não parecia ser assim. Com o Barrington, Barba era empolgante. Vocês todos pensam a mesma coisa, mas não querem admitir. — Outra cerveja, Kellogg? — indagou Pyre. — Você só está querendo me ver entrar noutro problema cabeludo — disse Edgar. O trocadilho infame instaurou o silêncio. — Barrington já fez essa piada — disse Trudy, fuzilando-o com o olhar. — Decididamente, vou precisar dessa cerveja — retrucou Edgar, virando-se para buscá-la. Caramba! Saddler o superava até nas piadas. Demorou-se junto às bebidas, para dar uma olhada em volta. Como se feito à mão, tudo na sala tinha uma imperfeição sutil. O bordado das almofadas tinha carocinhos de tufos de linha. O tapete sob os pés de Edgar incluía uma risca roxa incomum que, apesar de parecer um erro, também eletrizava o desenho e fora o único motivo de o tapete chamar sua atenção. Nenhuma moldura dos quadros era exatamente retangular, e as aquarelas originais dentro delas eram repletas de encantadores errinhos de perspectiva. Os ladrilhos de cerâmica em volta da lareira tinham sido fixados tortos. O jarro na mesa das bebidas estava meio inclinado para a esquerda. Ao espetar um pedaço de cebola em conserva, Edgar notou que os cabos

dos garfinhos de hors d’œuvre eram entalhados em forma de animais, e era impossível dizer se este era um leão ou um cão de pastoreio. A princípio, ele supôs que Nicola fosse uma dessas frequentadoras de butiques que compram em pontas de estoque de produtos importados, mas os objetos não exibiam a insipidez da produção em massa nem a má qualidade do trabalho de um terceiro-mundista artrítico, que produzisse garfos para coquetel a dez centavos por hora. Ao contrário, cada cortina, cada estofado e cada prato singular de sobremesa traziam a marca indelével da mesma sensibilidade delicadamente perversa. Como a deselegância de Martha Hulbert, os objetos decorativos da sala eram defeituosos de propósito. Quando Nicola rearrumou os sanduíches, Edgar a elogiou: — Você cozinha muito bem. Ela suspirou. — Acho que hoje ninguém está com muito apetite. — E então, você também é jornalista? — Não, Deus me livre. Sou dona de casa — admitiu, animada. Era tão raro Edgar conhecer mulheres em Nova York que confessassem não fazer nada que ele se atrapalhou, sem saber como prosseguir: — Para manter você, e sustentar esta casa, que é grande... — Não tanto quanto a sua. — Eu só ia dizer que o Henry deve estar bem de vida. — Eu não diria que o Henry está bem. — Financeiramente, quero dizer — retrucou Edgar. Em vez de bisbilhotar o extrato bancário do casal, devia ter perguntado se eles tinham filhos, mas queria muito que ela não tivesse nenhum. — Mesmo financeiramente — refletiu Nicola —, eu não descreveria o Henry como estando bem. Na verdade, a situação financeira dele é uma tristeza. Digo, cheia de tristezas. Edgar estava decidido a não soltar outra pérola do tipo Então você tece seus tapetes já que não pode pagar pelos que são vendidos nas lojas. Levantou o cabo de cabeça de cachorro-leão do seu garfo e perguntou: — Há alguma coisa nesta casa que você não tenha feito? Nicola examinou a sala. — Claro. As taças de vinho. Ainda não aprendi a soprar cristais, mas adoraria... E não fiz quase nenhum dos móveis, porque o Henry bateu o pé. Demora demais, e ele não queria comer no chão. — Esses trabalhos manuais, eles são um tipo de política, então? — Não tenho políticas. Tenho caprichos. Sou uma perfeita criança, Edgar. Tudo o que faço é brincar. Em termos adultos, sou uma diletante. Não sei explicar, mas há qualquer coisa em servir alface numa saladeira que a gente mesma entalhou. De preferência, alface da própria horta, mas nada cresce nesta província infeliz, a não ser a pera peluda. “No nosso caso”, prosseguiu Nicola, “estes meus caprichos se revelaram um antídoto engraçado. Henry tem um closet cheio de sedas de grife e camurça italiana, mas se sente muito mais seguro andando por aí com roupas de algodão feitas à mão. Se eu tivesse tempo, ele também usaria tecidos feitos por mim... de fios fiados por mim, de algodão descaroçado por mim, mas é óbvio que existem limites. Uma camisa feita em casa pode não cair muito bem, mas é uma espécie de proteção.” Nicola inclinou a

cabeça. “Nos últimos meses, ele voltou para as roupas Calvin Klein. Não o censuro, mas acho perigoso. — Por quê? — Edgar estava completamente perdido. — Eu me refiro à conservação do significado — disse ela, em tom passional. — Quando a pessoa é jovem, considera líquida e certa a significação. Na infância, todo macaquinho bobo de corda, ou o primeiro batom cor-de-rosa vistoso, tudo é importante. Nessa época, o problema é o inverso: a gente é massacrada pela significação, afoga-se nela. Mas depois... Bem, eu não posso comprar um presente para o Henry, posso? Edgar só conseguiu intuir vagamente que eles tinham problemas de dinheiro. — Barrington entendia — acrescentou ela, triste. — Mas o Barrington colhia significação como quem cata fiapos. Como aquele personagem dos Peanuts: ela o seguia em uma nuvem. — Até agora, você é a única pessoa que conheci que fala dele no pretérito. — É uma disciplina. — Espero que a sua, hum, situação não signifique vocês terem que sair desta casa. Ela é legal. — Desculpe, eu o induzi ao erro. Você é novo aqui, deve estar exaurido pela viagem, e cá estou eu fazendo gracinhas. Não se preocupe com a possibilidade de sermos despejados, Edgar. Somos donos desta casa e de mais cinco espalhadas pela Europa. Mas eu mesma estou meio cansada. Se não se importar, podemos falar disso depois. Dispensado e desconcertado, Edgar foi voltando para a rede de fofocas no canto, com o andar meio trôpego. Tinha passado para a Heineken, mas estava de olho nas garrafas marrons de Choque, curiosamente magnéticas. A coisa era horrorosa, um castigo, mas, tal como o assunto do Sr. Saddler, inexplicavelmente difícil de largar. Quando ele se juntou de novo ao grupo, pelo menos o assunto havia mudado, o que devia ser obra do alemão do Der Spiegel que estava de visita. Em seu silêncio irrequieto, Reinhold Glück tinha se mostrado impaciente com os mexericos incessantes sobre alguém que ele não conhecia. Sério e de óculos, Glück vinha preparando uma reportagem que comparava o Creme de Barbear aos neonazistas alemães. Edgar reconheceu o tom antes de penetrar no sotaque alemão: a indignação dos liberais explodia com a mesma irritação estridente em qualquer parte do mundo. — Não passa de racismo! — exclamou Glück. — Não estamos falando de um punhado de visitantes que usam uma língua esquisita — disse Trudy, cruzando as pernas. — O que me diz de todos aqueles turcos na Alemanha? E se houvesse mais turcos que alemães? E se eles pudessem depor o seu primeiro-ministro pelo voto... — Chanceler — corrigiu Martha. — Que seja. E se você sair andando pela rua e todo mundo falar turco? É difícil encontrar uma Pilsner, por exemplo; tudo o que você consegue achar, sei lá, é hidromel, ou seja lá o que os turcos bebem. Sabe como se chama um lugar assim? Turquia. Já nem haveria Alemanha. Isso não irritaria você? Onde está o seu orgulho nacional? — O mundo inteiro sofreu com o orgulho nacional alemão — disse Glück. — Tenho um tipo diferente de orgulho. — Bem, eu tenho orgulho norte-americano — disse Trudy. — Nós, da Flórida, estamos cheios de cubanos, haitianos e mexicanos até o fiofó. Quando pego um táxi, se não souber dizer “aeroporto” em espanhol, o motorista me olha como se eu fosse a idiota. Em Miami, eu me sinto uma estrangeira no meu

próprio país. — Numa sociedade pluralista de verdade, todas as pessoas se sentem igualmente estrangeiras e igualmente em casa. Você não está falando de ser americana, mas de ser branca e estar no comando. É a mesma coisa em Barba. Os fascistas do Creme só querem permanecer no poder... — afirmou Glück. — Na teoria, eu concordo com você — interrompeu Martha. — Mas ninguém nesta merda de Barba tem qualquer tipo de poder ao qual se agarrar. — Agora eles têm — discordou Ordway. — Toda essa droga de mundo ocidental está mobilizada por causa da imigração na merda de Barba. Isso é poder. Olhe só para nós: vivemos aqui, mandamos material daqui, somos consumidos pela política local. E nunca teríamos nem mesmo considerado uma oferta especial de pacote de férias neste charco imundo, cinco anos atrás. — Isso o impressiona? — perguntou Edgar. — É impressionante, né? — O típico sotaque de classe média londrina de Ordway era decorado com uns toques broncos. Traduzindo: panacas brancos de Long Island temperando a conversa com aí! e tô ligado, como os brothers do gueto. — O fato de o SOB ter matado mais de duas mil pessoas, isso também o impressiona? — retrucou Edgar. No começo, o pendor jornalístico para chamar os membros do SOB de Sobs, e seus equivalentes políticos do Creme de Barbear de Cremosos, tivera um impacto familiar de arrogância, mas ele se divertiu jogando com esse jargão. — Kellogg, não seja tão circunspecto! — disse Ordway. — Deve haver um lado seu que gosta do brilhantismo deles. Os Sobs estão com a Interpol, o FBI, a CIA, o Exército português e a polícia local vasculhando cada casca de pera peluda nas lixeiras de Barba, e ninguém consegue encontrar o menor vestígio deles. Até os Cremosos mantêm as mãos limpas. São detidos, mas, na semana seguinte, estão de novo na rua, quando nada cola. Exceto o autor daquela droga de autobiografia, Fui um SOB, que a meu ver é um monte de besteiras, ninguém conseguiu descobrir um único membro autêntico desse bando em cinco anos. Isso é de impressionar, parceiro. — Só para garotinhos — disse Martha. — Metade das crianças em idade escolar nos Estados Unidos fala espanhol — pregava Trudy para Reinhold, fervorosamente. — E as crianças crescem. Eles estão dominando tudo! — O status de maioria não é direito de nenhum povo — insistiu Glück. — É um acidente, uma vantagem fortuita. Como qualquer vantagem, as pessoas querem se agarrar a ela. Mas é um raciocínio típico dos privilegiados supor que, só porque alguém tem uma coisa, ipso facto ele a merece. Na verdade, essa “defesa das fronteiras” é uma defesa nua e crua de interesses pessoais, não de justiça. — Eu ainda acho que o Verdade tem razão — disse Trudy, emburrada. — Se eu fosse barbense, com certeza me irritaria com hordas de muçulmanos do Norte da África invadindo a minha casa. Esses imigrantes não têm dinheiro... — Pelo que andei lendo, os marroquinos são muito mais trabalhadores que os preguiçosos ibéricos natos — retrucou Glück. — E os marroquinos também não explodem aviões. — Tudo bem, os Cremosos são extremistas — concordou Trudy. Voltando a cruzar as pernas, acrescentou com ar malicioso: — Mas vocês têm que admitir: o Tomás Verdade é bem sexy.

— A violência põe as questões no mapa — dizia Ordway em sua preleção para Edgar. — A tática do SOB pode não ser bonita, mas é esperta. Se não houvesse mortos, nem estaríamos tendo esta conversa. — Eu admitiria que tomar as potências mundiais como alvo é esperto — disse Edgar, começando a se enturmar. — Praticar terrorismo contra esse fiasco que é Portugal não funcionaria. Ninguém daria a mínima. — Sim — anuiu Ordway, a voz cansada. — Essa observação já foi feita. Edgar registrou a resposta batida. Por natureza, tinha uma boa intuição sobre o banal e uma aversão especial a ele. Era capaz de apontar o instante exato em que ter “um dia em que até o certo dá errado” deixara de ser divertido. — Enfim — continuou —, você logo vai perceber que a sua nova profissão é maçante como água estagnada, a não ser que alguém se machuque. Cobri o plebiscito em Quebec sobre a secessão: algumas trocas de socos, uma pequena gritaria. Até minha mãe usou o jornal para forrar a caixa de areia do gato. — Notícia não é diversão — disse Edgar. — Notícia é exclusivamente diversão — contrapôs Martha —, de acordo com o Barrington. — Dez minutos, meninas e meninos! — exclamou Ordway, consultando o relógio. — Um recorde.

CAPÍTULO 8

Noventa e nove flexões e xampu de amora-silvestre Ao sentir o tapinha no ombro, Edgar empertigou-se com um salto. Nicola riu. — Você está com cara de quem enfrentou uma ventania! — brincou ela. — Posso levá-lo para casa? Sem o menor cavalheirismo, ele aceitou a carona. Após subir as escadas para buscar a chave do carro, Nicola o encontrou no vestíbulo e lhe dirigiu um olhar significativo. — Antes que eu esqueça — disse ela, e tirou das dobras da capa uma enorme chave de bronze, com runas incrustadas na ponta da haste, que parecia capaz de abrir um baú de dobrões de ouro ou uma câmara secreta de tortura da Idade Média. Era uma chave pesada, presa a uma chave moderna menor, e por isso fez um belo estardalhaço quando Nicola a deixou cair no piso de pedra. Quando se curvou para pegá-la, Henry vinha subindo a escada. — Não, deixe comigo, por favor — disse Edgar, abaixando-se para pegar o molho. — Minhas chaves do Record — disse a Henry. — Deixei-as cair. Desajeitado mesmo. Devo estar cansado. Henry piscou. A chave era singular. Alguma coisa não estava certa. Mas Nicola, apesar de ligeiramente mais pálida, pareceu aliviada. — Você pensou rápido lá no vestíbulo — disse a Edgar, quando os dois partiram no Land Rover. — Obrigada. — Você pode ser uma tapeceira de primeira, mas, quanto à arte de enganar, é péssima. Ela sorriu, tensa. — Não sei bem se devo ou não me ofender com isso. Edgar fez algumas avaliações mordazes sobre os outros convidados de Nicola, que não levou o assunto adiante, e ele temeu ter acabado de destruir a boa vontade de uma pessoa do tipo “se você não tem nada agradável a dizer...”. — Sinto muito por sua nova casa não ter sido arrumada — disse ela. — Ficou mais ou menos au naturel. Não é que o Barrington fosse desleixado... Quer dizer, ele era, mas, depois daquelas grandes reuniões que ele fazia de improviso, havia sempre uns convidados ansiosos para ficar e arrumar tudo. Havia noites, manhãs, na verdade, em que eles chegavam a brigar pelo aspirador. Acho que algumas mocinhas até se dispuseram a esfregar o vaso sanitário dele com as próprias escovas de dentes. — Não — disse Edgar —, o verdadeiro teste é se depois elas usam as escovas. — Engraçado, há pessoas que passam semanas desaparecidas, e ninguém nota, até um cheiro terrível começar a escapar de seus apartamentos. Mas o alarme disparou a respeito do Barrington em questão de horas. Era para ele jantar na casa da Trudy naquela noite. Ela havia feito bife Wellington, imagine, uma trabalheira de um dia inteiro na cozinha, porque uma vez o Barrington tinha mencionado de passagem que gostava desse prato. Foie gras, cogumelos silvestres, sabe-se lá mais o quê. Ela insistiu em fazer a massa folhada; as folhas ficaram um pouquinho grossas. Por mim, sempre acho mais simples... Ah, deixe para lá. “Ele sempre se atrasava, é claro”, prosseguiu Nicola, “mas costumava aparecer. Receio que o fato de a Trudy ter tido tanto trabalho teria pouquíssima importância, mas não há muito o que fazer aqui, e

estávamos todos na casa dela. — Mais importante, você estava na casa da Trudy. Nicola ignorou a insinuação. — Às duas da manhã, ela estava histérica. Todos achamos que era exagero, que ela estava aborrecida porque o bife não tinha saído muito bom... Não quero ser indelicada, mas ele tinha passado um pouquinho do ponto, e não havia como disfarçar que cortar a crosta dava um trabalhão. Achamos que a Trudy estava magoada com o fato de o Barrington ter mudado de planos, depois de ela promover tanto aquele prato. Desde então, a pobrezinha capitalizou muito na sua intuição de que havia algo terrivelmente errado. Em como sentiu “um calafrio” e “de repente, Cinzeiro pareceu vazia”. Ela diz que nunca mais vai comer bife Wellington, o qual insiste em chamar de “bife Barrington”, como homenagem. Bem. Não chega a ser muito perigoso em Barba. “Só voltei à casa dele uma vez”, continuou ela. “E, por favor, não comente isto com Henry. Mas simplesmente não suportei a ideia da polícia destroçando aquela adorável porta de cedro com um aríete. Assim, quando o Barrington se tornou oficialmente uma pessoa desaparecida, telefonei para o inspetor chefe e providenciei a entrada dele na casa. “Os detetives vasculharam tudo”, explicou Nicola. “Só encontraram umas bobagens nos discos rígidos do computador do Barrington. Besteiras, segundo o tenente Carvalho. Só houve uma parte da casa da qual afastei a polícia. Uma torrezinha; eles nem sequer notaram a porta. Você tem a chave do cadeado dela. Mas o Barrington me dizia para não subir lá. Então, não subi. — Nem as mulheres do Barba-Azul compactuariam com essa bosta — resmungou Edgar. — Você é sempre obediente assim? — Quando faço uma promessa. Inclusive ao seu marido? — E o que você acha que há lá em cima? Cadáveres? — Um, talvez. Esse foi o único lugar em que não procuramos o Barrington. Mas, na remota probabilidade de... Acho que eu não quis saber. Nicola parou o carro diante de uma estrutura escura e comprida e ali ficou, com o motor do Land Rover em ponto morto e as mãos no colo. Embora o casarão fosse praticamente invisível, ela fechou os olhos, para garantir. — A casa é alegre — comentou, desolada, quase explicitando: mas só quando certa pessoa está lá dentro. Edgar gaguejou suas despedidas e empurrou as malas para a penumbra da varanda frontal. A fechadura respondeu com alegria à sua chave antiga. Impulsionada pela ventania barbense, a grossa porta de cedro abriu sozinha, como se ele fosse esperado. Depois de tatear em busca de um interruptor, Edgar ficou com a impressão meio vaga, oblíqua, de ter se infiltrado nos domínios abandonados de um xeque. Subiu aos tropeços até uma cama king-size com dossel. Uma tábua de passar teria sido suficiente. Arrancando a roupa, ele mergulhou numa pequena morte. * * *

Acordou em meio a lençóis de cetim azul-real, sob ondas de edredons de penas de ganso. Travesseiros o escoravam por todos os lados, como se ele tivesse sido embalado para transporte num navio mercante internacional. Do lado oposto, uma luz de sol de fim do dia, em pálidas nuances de amarelo, infiltrava-se entre dobras cambiantes de veludo vermelho, e os painéis superiores dos vitrais espargiam círculos vermelhos e verdes na cama. Único lembrete de onde ele estava, um silvo agudo apitava pelas frestas das janelas. As vidraças sacudiam como se o vento insano batesse para entrar, e um vago lamento em tom grave gemia do lado de fora. De acordo com seu relógio de mergulho — discordantemente espalhafatoso em sua pobreza de freelance, mas mera quinquilharia de loja de pechinchas no contexto do ambiente em que se encontrava —, ele havia dormido quinze horas. Edgar soergueu-se nos travesseiros macios, que lançavam sopros de ar frio em seu rosto a cada vez que ele os rearrumava. Era um senhor quarto principal. Coberto de tapetes orientais sobrepostos, o assoalho erguia-se um degrau sob a cama. Elevando o leito com dossel a trono de repouso, esse estrado fazia com que quinze horas de sono parecessem um direito de Edgar. Era fácil imaginar-se acomodado ali por dias, em meio a um espalhar de livros semilidos, vez por outra concedendo uma audiência ou fazendo tinir uma sineta de bronze para pedir o serviço de café da manhã. A imagem de largas bandejas (de madeira de cânfora entalhada, ele decidiu, com alças de marfim) pairou sobre as altas mesas de cabeceira. Cobertas por toalhas bordadas, estariam repletas de taças de suco de goiaba, côdeas de massas adoçadas com mel, xícaras decoradas de café forte e doce e colheres de prata filigranada. Inquieto, Edgar desemaranhou-se. Reprovava a preguiça e tinha verdadeiro horror a pães e bolos adoçados com mel. A roupa e os acessórios de cama estavam contaminados pela vida fantasiosa de outro homem. Circulou na ponta dos pés pelo quarto, como se temesse acordar alguém — ele mesmo, por exemplo. Havia mais veludo carmesim no dossel da cama e cortinas de veludo pendendo de argolas no trilho da armação superior. Era possível fechar as cortinas em volta do colchão e criar uma tenda particular. A cerejeira e o jacarandá escuros e fragrantes dos móveis maciços tinham entalhes de peitudas figuras de proa femininas, ou amontoados de frutas maduras; a cômoda reluzia com incrustações de madrepérola. O mosaico de contas de cristal colorido que emoldurava o espelho realçou a figura nua de Edgar, fazendo seu peito parecer mais musculoso do que era, e sua aparência, mais sensual do que ele a sentia. O reflexo também alongava sua figura, tornando-a imponente junto a uma das colunas da cama, e Edgar tinha apenas um metro e setenta e três. Era um espelho feito para a pessoa se enganar. O que aquilo devia ter feito por Saddler, um homem muito maior, pelo que todos diziam, bem... ele deve ter parecido um leviatã. Os aromas penetrantes de cedro, sândalo e um resto persistente de perfume de mulher inebriavam Edgar, dando-lhe a ideia vertiginosa de voltar para a cama. Esfregando os olhos, ele caminhou devagar até o cavernoso banheiro da suíte, para borrifar o rosto na pia de alabastro negro. Ao enxugá-lo, mergulhouo em uma toalha branca e fofa como pelagem de coelho, onde seus dedos afundaram até a primeira articulação. Examinando a banheira embutida — redonda, de mármore negro e grande o bastante para se nadar dentro dela —, preparou um banho. Edgar se entregou ao prazer de uma ducha de água quente, para aquecer, e examinou um sortimento de produtos de toalete — condicionador de açafrão, xampu de tangerina e amora-silvestre, óleo de amêndoas, máscara de lama de trufas e almíscar: frivolidades afeminadas. Edgar tendia para o simples

sabonete Ivory e o atemporal xampu Head & Shoulders: coisa de homem. Parou. Experimentou o xampu de amora-silvestre. As roupas que ele pusera na mala eram claramente muito leves, então foi possível racionalizar sua escolha entre araras de absurdos trajes de gala no closet: fraques e outras peças antiquadas, com faixas de tom magenta para a cintura; quimonos cujos dragões lambiam os debruns; robes acolchoados; camisas esvoaçantes de raiom do tamanho de pipas, contorcendo-se com girassóis de Van Gogh ou flamejando com bicos-de-papagaio; uma capa de lã cor de carvão, debruada de seda creme e própria para ser usada por Béla Lugosi; algumas túnicas e togas de dimensões biblicamente volumosas; e alguns uniformes de oficiais de forças armadas estrangeiras, cuja aparência de autenticidade era mais uma razão para não desfilar com eles. Nada nessas roupas extravagantes se adequava a ser usado por um homem para escrever, mas apenas para escreverem sobre ele. Embora um punhado de típicas peças inglesas — artigos da Burberry, casacos de pelo de camelo e ternos de tweed dos melhores alfaiates de Londres — revelasse um jornalista que ocasionalmente fazia seu trabalho, os suspensórios (uma voz sussurrou a palavra com sotaque britânico) combinavam com soldadinhos de chumbo, e não se encontrava uma só gravata, apenas duas dúzias de plastrões. Num impulso, Edgar tirou uma peça de seu cabide de madeira. O radiante robe dourado, com debruns de brocado cor de ameixa, poderia ter servido de traje para Apollo Creed. Espalhafatosas, sem dúvida. Mas, de algum modo, em sua vastidão, todas essas roupas ficavam aquém do kitsch. As linhas de refinamento eram tão drásticas, suas padronagens, tão fantásticas, e suas pretensões tinham uma escala tão grandiosa que elas eram salvas do ridículo por pura audácia. Exceto em Edgar. Com uns trinta centímetros a mais no comprimento, o robe nacarado se arrastava feito cauda de vestido de noiva. As ombreiras caíam quase até o cotovelo e as mangas sobravam, pendendo além das pontas dos dedos. Até no espelho mágico ele parecia um desenho de Norman Rockwell: O caçula usando o robe do papai. Dane-se. Edgar recolheu a cauda e saiu do quarto, com um movimento brusco e afetado, certo de que tudo podia ser feito impunemente, desde que fosse feito com convicção. * * * Nicola estava certa: a casa era enorme. A repulsa de Edgar pelo fato de o National Record paparicar qualquer correspondente com acomodações tão palacianas não minou sua exultação pela própria sorte. Salvo a tal pequenina torre redonda, o casarão tinha apenas dois andares, mas se espalhava pelo que devia equivaler a meio quarteirão de Nova York. A arquitetura moura expressava as linhas amplas e regulares da obra de Frank Lloyd Wright, sem a frieza da modernidade. As tapeçarias nas paredes e os tapetes orientais abrandavam a perpendicularidade dos azulejos e do piso de mármore. O térreo era construído em diversos níveis, com pisos que se transmudavam em bancos cobertos de almofadas redondas. A mesa da sala de jantar, tal como a banheira, era embutida no piso. Embora as janelas a oeste parecessem jateadas, suas vidraças tinham marcas irregulares: ficavam foscas com a areia trazida pelo vento. Quando este fazia uma porta bater com força na esquadria, como um corpo atirado do pátio, era preciso ter prática para não dar um pulo. No térreo, o cômodo favorito de Edgar era o átrio: aberto e de estilo romano, iluminado por

claraboias recortadas em diferentes pontos do teto, organizava-se em torno de uma piscina retangular cujo chafariz continuava esguichando água na ausência de Saddler. O átrio clamava por escravas de roupas sumárias, oferecendo uvas frescas, leques de folha de palmeira e um fluxo de vinho tinto tão incessante quanto a fonte. Apesar de Edgar sentir brotar uma afeição instantânea pelo átrio, este também o deixou nervoso. Languidez! Indisciplina! Preguiça! Na verdade, todo o casarão era imbuído de uma sensibilidade indulgente a que Edgar era hostil por natureza. O armário de bebidas tilintava com uma abundância de produtos de primeira linha. As almofadas convidativas, que afofavam todos os cômodos, faziam a cabeça de Edgar se inclinar e deixavam suas pálpebras pesadas. Numerosos quartos de hóspedes convidavam a excessos sociais noite adentro. A despensa, abarrotada de absurdas latas e potes de presentes — avelãs no Cointreau, cerejas cristalizadas, conservas de ovo de codorna, ostras defumadas —, incitava farras gastronômicas às três horas da manhã, quando não houvesse ninguém olhando. Embora a cozinha arejada fosse equipada com toda sorte de aparelhos e utensílios, Edgar não conseguiu imaginar Saddler picando cebolas, e, como era de se esperar, havia um Post-it colado no livro de receitas Silver Palate: “B, será que posso deixar isto aqui para a próxima vez? Veja a página 46 — Hum! — E.” Visto que Edgar era tão incapaz de pensar em Saddler fatiando abobrinhas quanto de imaginá-lo batalhando com a leitura de Guerras do Peloponeso no original grego, a biblioteca do estúdio do segundo andar, com suas encadernações de couro e estantes envidraçadas — fileiras de livros eruditos de história europeia e biografias em múltiplas línguas, do flamengo ao húngaro —, pareceu-lhe uma dispendiosa decoração de parede. Era o estúdio que exibia as quinquilharias típicas do correspondente estrangeiro, suvenires que lembravam a coleção de livros de história para crianças We Were There, que Edgar tinha devorado quando era pequeno. Nas edições sobre Pearl Harbor, Appomattox e a Festa do Chá de Boston, um bando de moleques sortudos sempre aparecia no lugar e na hora certos. Ele devia ter dito a Wallasek que havia deixado de ser advogado para pular diretamente nas páginas de We Were There antes que fosse tarde demais, já que ninguém ia querer escrever um livro sobre crianças que têm a sorte de visitar um escritório de direito corporativo numa época de incorporações empresariais hostis. Como quer que fosse, Barrington estivera ali. A sala transbordava de lembranças que eram troféus: uma bala de rifle, uma de borracha, uma bomba de bicicleta com o metal derretido, um crânio humano com um pedaço do escalpo ressecado até o osso pelo sol. Um kit de alimentos do Exército americano, com areia nos sulcos da embalagem, poderia ter comemorado a Guerra do Golfo ou a invasão do Panamá; uma concha de latão, habilmente feita a partir de uma embalagem de carne enlatada e trazendo a marca “Presente da Finlândia”, devia ter sido guardada como lembrança carinhosa de um período de fome. Na enorme escrivaninha de bordo tigrado via-se um vidro transparente de maionese, de tamanho industrial, do tipo cobiçado na escola primária para cultivar plantas. Transbordava de moedas, de randes a bahtes, incluindo algumas como o zaire, tão desvalorizado que já nem se cunhava sua prata. Ao lado desse cofrinho cosmopolita estavam uma carta não aberta da Anistia Internacional, endereçada a Mohamed Siad Barre, uma revista em quadrinhos do Homem-Aranha em russo e uma folha de selos postais macabros do Quênia, com o dizer “A Aids não tem cura”. A gaveta da esquerda da escrivaninha estava repleta de bótons eleitorais: Vote em Marcos, em Mengistu, em Mobutu, em Duvalier, em Rabin... Quase todos demagogos, além de Rabin ter sido assassinado — um tributo bem cínico à democracia. Uma pasta aberta

na escrivaninha parecia incluir todas as reivindicações de autoria das atrocidades cometidas pelos Sobs e todos os relatórios policiais já expedidos sobre elas; outra gaveta chacoalhava com disquetes com a sedutora etiqueta HISTÓRIAS DOS SOBS. Talvez os disquetes lhe poupassem algum trabalho. Um conjunto de fichários enchia uma prateleira, e Edgar pegou o primeiro volume: arquivos de recortes de publicações de Saddler. Edgar correu os olhos pela primeira matéria, uma reportagem ardorosa sobre a prostituição tailandesa — salário de escravos, doenças, trabalhos forçados. Comovente, se bem que prolixa. Mas ler é a suprema submissão. Edgar repôs o fichário no lugar. Ficando mal-humorado com as realizações de seu predecessor, deparou com um par de olhos que o encarava. Ora, ora. O homem grande, grande, grande, no primeiro plano daquela ampliação em preto e branco, não podia ser ninguém senão Ele. Saddler aparecia sentado no divã do térreo, escorado por almofadas. Seu peito largo se estufava tanto de vaidade que chegava a forçar os botões de contas da camisa do smoking. Os olhos cintilavam com o lampejo sinistro de um Papai Noel que folheava pornografia infantil. E o braço direito curvava-se praticamente numa gravata em torno de Nicola. Edgar ficou consternado. Claro, tinha captado as piscadelas e acenos de cabeça no escritório de Wallasek, mas isso tinha sido antes de conhecê-la e de saber que ela era casada. Ficou perplexo, sem saber por que uma mulher tão elegante e estimável se meteria com um canalha como Saddler. Uma segunda revelação, no entanto, foi consideravelmente mais exasperante. Edgar havia confirmado na infância aquilo que o Novo Testamento apenas sugere. Sim, as massas preferem indultar baderneiros homicidas a absolver malucos messiânicos falastrões. Barrabás era simplesmente ruim, e Jesus era realmente irritante. O que a Bíblia não ilustrava eram os textos apócrifos pessoais de Edgar: que as pessoas preferem perdoar sádicos, fanfarrões, mentirosos e até completos imbecis a absolver a feiura. Se você for atraente, as pessoas precisarão de um motivo para não gostarem de você; se for feio, precisarão de uma razão para gostar. E não costumam encontrá-la. Nos tempos de gorducho na escola, Edgar havia aprendido da maneira mais difícil que todo porcalhão vulgar do bairro era um esteta. E agora aparecia esse modelo de perfeição ausente, sobre quem, de Nova York a Cinzeiro, ninguém conseguia parar de falar por mais de dez minutos, nem mesmo usando um cronômetro, e adivinhe! Barrington Saddler nem ao menos era bonito. Tinha o corpo em forma de silo. Praticamente puxada para seu colo, Nicola parecia um boneco de palito, em comparação. O homem tinha pálpebras inchadas, bochechas frouxas e um queixo duplo de bebê. Algumas grandes estruturas permitiam abusos intermináveis, mas, em poucos anos, coisas como aquela caixa de reserva cheia de garrafas de Beefeaters, na despensa, começavam a aparecer. Os lábios carnudos de Saddler tinham algo levemente feminino e seu pescoço era grosso. Os traços eram repuxados, muito juntos no meio do rosto, como se alguém houvesse amarrado um barbante em volta do seu perímetro e puxado. O cabelo, embora desalinhado perto das orelhas, era ralo na frente. Esse não era nenhum Romeu, mas um sibarita desajeitado, já bem a caminho de uma meia-idade corpulenta e gotosa. Como ele conseguia? Desafiador, Edgar jogou o robe dourado em uma poltrona de couro superestofada. Iniciou sua centena de flexões diárias, mantendo as costas perfeitamente retas e baixando o nariz até o chão. De cima, Saddler parecia achar confusa aquela exibição de saúde e vigor. Sem nenhuma razão que pudesse decifrar, Edgar parou na flexão noventa e nove.

CAPÍTULO 9

Fod`stsyr r, fodwiryr O horário completamente confuso de Edgar deu ao resto da noite a atmosfera anárquica de um dia sem aulas na escola por causa da neve, enquanto o vento gritava uiiiiiii!, como crianças num trenó distante. Quando o sol se pôs em sua própria manhã, Edgar descobriu várias lâmpadas queimadas, talvez por terem ficado acesas quando Barrington batera em retirada às pressas. Fazer uma busca vigorosa de lâmpadas extras e trocar as que estavam queimadas ajudaram a contrabalançar o ócio hipnotizante que vinha da praga das almofadas. Desfazer as malas levou pouquíssimo tempo, e, penduradas junto ao guarda-roupa abarrotado e acetinado de Saddler, as camisas amarrotadas e de manga curta de Edgar pareciam insípidas. As advertências de Nicola se justificavam; o lugar estava uma bagunça. Tudo empoeirado, e fazia meses que ninguém limpava a geladeira. Dentro dela, o salmão defumado nadava, as ovas de caviar estavam chocando e o chocolate amargo, com recheio de licor, havia adquirido uma cor branca assustadora. Numerosas preparações anônimas haviam produzido galhos de mofos exóticos, do tamanho de bonsais. Bem presas em papel-filme e encantadoramente enfeitadas com raminhos ressecados, essas fileiras de sobras retratavam uma interminável sucessão de atos amorosos de benevolência culinária. Com ânsia de vômito, Edgar jogou fora as sobras dos tête-à-têtes de Saddler e lavou os potes fétidos. Como recompensa, afundou na comprida mesa no centro da cozinha com uma dose forte de uísque, reserva especial, tirado do amplo armário de bebidas de seu anfitrião. Onde estavam as gostosas adoradoras de Edgar para esfregar o vaso sanitário com suas escovas de dentes? Podia ser que essa sensação diminuísse, mas, por enquanto, ele se sentia não apenas um convidado no que se presumiria ser sua própria casa, mas também um criado. Como se Barrington tivesse sugerido: seja bonzinho e faça alguma coisa por essa geladeira pavorosa, está bem? Bom menino! Edgar bebeu sua dose, ressentido, e bateu com o copo na mesa, o que fez chacoalhar a solitária xícara de café e o cinzeiro largados na extremidade oposta. O café tinha evaporado, deixando um fino sedimento de pó seco. O cinzeiro era uma bela peça de estanho e exibia uma única cigarrilha parcialmente fumada, que havia formado uma cinza de mais de dois centímetros antes de apagar. Edgar pegou a guimba e o isqueiro chique de metal, gentilmente deixado a seu lado. Bateu a cinza, acendeu, deu uma tragada. O fumo estava rançoso, mas por trás dele persistia um sabor mais inquietante — o toque de um hálito cujo próprio cheiro desagradável era atraente, como a perturbadora sedução dos queijos franceses nobres. A cigarrilha estava repugnante e Edgar não as fumava nem mesmo quando eram novas; ainda assim, depois de uma segunda tragada furtiva, teve de se forçar a apagá-la. A essa altura, eram cinco e quarenta e cinco da manhã. Instalou-se a desorientação, e também a solidão. Angela teria achado o lugar muito divertido. Iria estender-se nua no piso frio de mármore junto à fonte, com as costelas finas tremeluzindo sob as chamas dos candelabros de parede, e talvez Edgar descobrisse para que servia aquele cômodo, com todas as suas almofadas. Por ora, a opulência do casarão zombava da pobreza de sua imaginação. Solto em um palácio, Edgar Kellogg tirava o pó dos móveis e jogava salmão velho no lixo. Essa era uma casa em que não se tinha apenas que morar, mas da qual era preciso estar à altura. Em busca de uma diversão digna do ambiente extravagante em que se encontrava, Edgar voltou ao

estúdio e inseriu o disquete com HISTÓRIAS DOS SOBS no laptop. Embora o computador parecesse reconhecer o código do programa, os arquivos exibiam títulos absurdos: 2” Nr,=bomfp s vsds fpd ,svsvpd 3” ´to,rots sytpvofsfr fr Nsttomhypm 4” Msdvr p goçjp fr Nsttomhypm 5” Yrttptod,p gsvoçoysfp 6” Nstns ´strvr bobs Quando Edgar abriu o arquivo 2” Nr,=bomfp s vsds fpd ,svsvpd, o que apareceu na tela foi igualmente incoerente: `stsnrmd@ Shpts bpvr frbr rdyst omdysçsfp, Rd´rtp wir svjr sd svp,pfs~prd sfrwisfsd; Vpmyifp. s ,rmpd wir dohs viofsfpds,rmyr sd omdyti~prd. msp jsbrts sç,pgsfs çomfs,rmyr groys fr vtpvjr wir p ´tpyrks fp yrfop ´rmrytsmyr frdys yohrçs fr ´prots; I, yrfop frnoçoysmyr r diovofs wir ´rmryts r, ypfpd pd ´ptpd. vp,p s stros frddr ,sçfoyp brmyp; P Esççsdrl rdvpçjri nr,; Nr, fr,sod; Dr yobrddr ,r fsfp sp ,rmpd s vpnrtyits fr i,s pi fisd rc´pdo~prd fr gçptrd. ri ´pfrtos msp yrt dofp gpt~sfp s vtost ,omjsd ´tp´tosd mpyovosd; Rdyr fostop gpo omovosfp ´sts ,omjs fobrtdsp ´rddpsç. ,sd mrçr bpvr rmvpmytsts omgpt,s~prd ,sod wir digovormyrd; Vpmyomir ,ri np, ytsnsçjp; `pt piytp çsfp. wisdr ypfpd pd kptmsçodysd dsp vtosyitsd yo,ofsd. wir rdvtrbr, jodyptosd vp,p i, dindyoyp ´sts bobr=çsd; R. dr bpvr goxrt ´styr frddr hti´p. ´pfr frmomvost mpddp drhtrfomjp. dr wiodrt;