PORTUGAL

ROSSIO, LISBOA João Camargo, Sofia Rajado e João Labrincha, ativistas das redes sociais

A luta está na rua Vem aí um outono quente. Várias manifestações estão agendadas para as próximas semanas. Os professores abrem as hostilidades, na sexta-feira, 16. Pedro Passos Coelho falou de tumultos e recuperou o fantasma da violência na Grécia e em Londres. Em Portugal, até onde é que poderão chegar os protestos?

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POR VÂNIA FONSECA MAIA

simbolismo do local é inegável. Opositores republicanos e inimigos do Estado Novo fazem parte da longa tradição revolucionária do Café Gelo, fundado no séc. XIX. O número 64 da Praça D. Pedro IV, mais conhecida por praça do Rossio, em Lisboa, serve, agora, de ponto de encontro dos mais modernos contestatários, da geração 2.0, a que também chamam de Geração à Rasca. À volta da mesa, falam sobre o protesto de 15 de outubro que já estão a organizar, com vista para a calçada que acolheu o famoso acampamento de Lisboa, no mês de maio. «As manifestações pacíficas são as mais difíceis de controlar politicamente», diz João Labrincha, 28 anos, membro do Movimento 12 de Março (M12M). 46 v 15 DE SETEMBRO DE 2011

Os companheiros de discussão acenam afirmativamente com a cabeça. João Camargo, 28 anos, pertence aos Precários Inflexíveis (PI), e Sofia Rajado, 29 anos, é membro do Movimento de Professores e Educadores 3R's. Ao todo, a manifestação é promovida por 17 grupos distintos. A declaração pacifista não acontece por acaso. É a resposta às recentes afirmações do primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, que afirmou haver «quem se entusiasme com as redes sociais e com aquilo que vê lá fora, esperando trazer o tumulto para as ruas de Portugal». As suas palavras fizeram eco junto dos movimentos sociais, muitos deles criados, precisamente, através das redes, na internet e blogues. Uma forma gratuita de chegar ao maior número possível de pessoas e de passar uma mensagem curta e

Calendário da indignação A contestação social não vai dar descanso à coligação PSD/CDS-PP 16 de setembro: manifestações da Fenprof contra a precariedade laboral, e a falta de colocação de milhares de professores (37 mil ficaram no desemprego). 17 de setembro: iniciativa Artistas e Públicos Indignados, no Rossio, em Lisboa, para discutir de que forma a cultura pode contribuir para a saída da crise. 21 de setembro: se, até lá, o Governo não incluir todos os funcionários no novo regime de remunerações, PSP e GNR dão início à Semana da Indignação das Polícias (até dia 28) que começa com um encontro nacional, no Porto, e termina com uma manifestação em Lisboa. 1 de outubro: manifestação da CGTP, em Lisboa e Porto, a primeira desde a entrada do FMI, contra as políticas de austeridade do Governo, «que favorecem o empobrecimento e as injustiças sociais». 15 de outubro: a Geração à Rasca regressa para uma manifestação pela democracia participativa e o fim da precariedade, que coincide com a data limite para a entrega do Orçamento do Estado.

GONÇALO ROSA DA SILVA

PROTESTOS

concisa, capaz de mobilizar manifestantes. «A estratégia é criar um clima de medo e denegrir os movimentos sociais, mas as pessoas têm legitimidade para se manifestarem», acrescenta João Camargo.

COLABORAÇÃO COM A POLÍCIA Montras partidas, carros incendiados, confrontos com a polícia, desobediência civil, passaram a fazer parte do quotidiano dos gregos, desde a chegada do FMI. Talvez Pedro Passos Coelho tenha tido um pesadelo: o de um dia acordar num país às avessas, perante a dureza das

PROTAGONISTAS José Luís Peixoto tornou-se porta-voz do movimento E o povo, pá?. José Vegar, investigador, acredita que os tumultos são possíveis. E José Manuel Anes, do Observatório de Segurança, duvida da força de movimentos «inorgânicos»

medidas que o seu Governo anuncia e já está a aplicar. Mas, apesar da crescente tensão social, a investigadora do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia, Guya Accornero, 35 anos, acredita que, em Portugal, não estão reunidas condições para um cenário semelhante ao da Grécia. «Não falo das condições de vida das pessoas, que podem ser tão críticas como as das comunidades que se revoltaram, mas do hábito de protesto – o que chamamos ‘repertório de contestação’ – que, de facto, em Portugal, não tem sido caracterizado pelo recurso a meios violentos», defende a italiana. 15 DE SETEMBRO DE 2011 v 47

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Europa, Norte de África e Médio Oriente são terreno fértil para manifestações, com milhares de pessoas na rua. Nos países, mais ou menos democráticos, destas regiões do globo, os povos reivindicam a melhoria das condições de vida 1 Reino Unido Saques e incêndios varreram a capital britânica e respetivos subúrbios, entre 4 e 10 de agosto, depois do homicídio de Mark Duggan, morto pela polícia

2 Itália A adesão à greve geral de 6 de setembro rondou os 60% e paralisou o país. Só em Roma foram cancelados cerca de cem voos

14 Síria A ONU calcula que já tenham morrido mais de 2 600 pessoas nas manifestações contra o regime autocrático de Bashar al-Assad

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12 Marrocos Apesar de o Governo ter anunciado eleições para novembro, sucedem-se as manifestações. Um dos grupos mais ativos é o dos Diplomados no Desemprego que querem ser integrados na função pública

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7 10 Tunísia O Presidente Ben Ali abandonou o país, em janeiro, sob pressão dos protestos populares. Vão realizar-se eleições a 23 de outubro

A CGTP, que se prepara para mais uma jornada de luta com a manifestação de 1 de outubro, é um exemplo de organização e articulação com as forças de segurança. «Tudo é preparado antecipadamente. Com duas ou três semanas de antecedência, começam as reuniões com as autoridades», conta Arménio Carlos, 56 anos, membro da comissão executiva da Intersindical. Os mais novos também aprendem com a geração de contestatários mais experientes. «Temos noção de que há espaço para conflitos, mas vamos estar em contacto com a polícia», revela Labrincha, do M12M. Já na manifestação de 12 de março, que terá trazido quase 100 mil pessoas para a rua, essa ligação foi fundamental. Sempre que detetavam um grupo suspeito de atividades radicais entre os manifestantes, entravam em contacto com as autoridades que faziam a vigilância do local. Impedir que radicais se infiltrem nas manifestações, e tentem cavalgar a onda de contestação para provocar distúrbios, é essencial para que tudo corra bem. 48 v 15 DE SETEMBRO DE 2011

4 Grécia O país está mergulhado em protestos há vinte meses – algumas manifestações transformam-se em verdadeiras batalhas campais

5 Israel No início do mês, cerca de 400 mil pessoas saíram à rua para reclamarem maior justiça social, e a diminuição do custo de vida 6 Bahrein Duzentos prisioneiros, detidos nas manifestações pró-democracia de fevereiro e março, estão em greve de fome, exigindo reformas estruturais na monarquia da dinastia Al Khalifa

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13 Jordânia Os manifestantes exigem limitações aos poderes do rei Abdullah II e reformas democráticas

11 Argélia O Presidente Abdelaziz Bouteflika anunciou reformas políticas na sequência de vários meses de contestação popular

3 Espanha O protesto de 15 de maio deu origem ao movimento 15M e ao acampamento de Madrid. Desde aí, os protestos continuam. Na passada semana, os espanhóis manifestaram-se contra a inclusão do limite do défice na constituição

INFOGRAFIA VISÃO

Geografia da revolta

9 Líbia O que começou com protestos populares transformou-se numa guerra civil que levou à queda de Kadhafi

7 Iémen Milhares de pessoas pedem na rua a demissão do Presidente Ali Abdullah Saleh, que está na Arábia Saudita há quatro meses. Pode ser negociada uma transição política 8 Egito Pressionado pela rua, Hosni Moubarak abandonou o poder em fevereiro. Mas o povo continua a manifestar-se, exigindo reformas que melhorem as condições de vida

Motivos da discórdia Entre as medidas que estão a ser estudadas pelo Governo, há algumas com maior potencial para fazerem aumentar a contestação Agregação de freguesias e municípios, em todo o País: o bairrismo nacional nunca está para brincadeiras, mesmo que seja em nome da poupança. A criação do Fundo de Compensação do Trabalho: o Ministério da Economia propõe que 1% do ordenado dos trabalhadores sirva para financiar um fundo que beneficia o trabalhador, em caso de despedimento. Aumento do IVA e do IRS: medidas com efeito imediato no bolso dos consumidores, diminuem o seu poder de compra Reavaliação do IMI: o imposto sobre terrenos e casas vai aumentar, e as más notícias não se ficam por aqui. A isenção do imposto também poderá ser eliminada... Penalização das reformas acima dos 1 500 euros: a medida vai afetar cerca de 200 mil pensionistas, no próximo ano. Redução da comparticipação em medicamentos e/ou aumento das taxas moderadoras: os cortes na saúde são sempre um dos principais alvos da contestação, já que afetam a esmagadora maioria da população, sobretudo os mais carenciados.

Contactado pela VISÃO, o Comando Metropolitano de Lisboa recusou-se a divulgar o número de efetivos que vão estar presentes nas manifestações de 1 e 15 de outubro – a estratégia ainda es-

tará a ser estudada. No protesto de 12 de março estiveram envolvidos à volta de cem agentes. Cerca de uma dezena participavam à civil, para estarem mais próximos do cortejo. Uma tática habitual,

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É preciso endurecer a luta, mas isso não implica confrontos’

A NOVA LUTA Tiago Mota Saraiva, 35 anos, igualmente ativo na rede, escreve no blogue 5 Dias que, recentemente, lançou o slogan «que floresçam mil protestos». Afirma: «É preciso endurecer a luta, mas isso não implica confrontos.» Não costuma cruzar-se com apelos à violência, no espaço virtual. «Os comentários mais agressivos são sob o anonimato e não têm grande peso.» Aproveita para lembrar que «todos os protestos que degeneram em confrontos têm duas partes». E nota que, «na Grécia, a violência também é contra a repressão policial». Na esplanada do Café Gelo, ainda que 50 v 15 DE SETEMBRO DE 2011

AP

que deverá voltar a ser utilizada. O presidente do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT), José Manuel Anes, 67 anos, defende que o risco de tumultos não vem das estruturas organizadas, mesmo que sejam movimentos sociais sediados na internet. «Os grupos inorgânicos causam mais preocupações, as manifestações espontâneas representam o maior potencial de perigo», alerta. Este ex-membro da Polícia Judiciária distingue Portugal da Grécia: «Os gregos têm um movimento sindical fraco, e grupos anarquistas fortes. No nosso caso, os sindicatos são fortes, e os anarquistas fracos.» E acrescenta: «Há alguns elementos radicais em território nacional, mas o Serviço de Informações e Segurança (SIS) monitoriza esses fenómenos.» José Vegar, docente universitário e investigador, não está tão tranquilo: «O potencial de conflito é enorme, os confrontos que vemos pela Europa fora podem acontecer em Portugal. É quase científico», afirma, enquanto especialista que estudou o comportamento de gangues e terroristas. Blogger ativo e empenhado em partilhar informação com os outros cibernautas, o ex-jornalista também associa a ameaça de tumultos aos jovens suburbanos que se manifestam pelo crime e violência, de forma espontânea.

LUÍS BARRA

Tiago Mota Saraiva, arquiteto, ativista do blogue 5 Dias

PORTUGAL VS GRÉCIA A 12 de março, a Geração à Rasca manifestou-se ruidosa mas pacificamente (em cima). Em Atenas, a violência tornou-se quotidiana (em baixo)

sem o saber, a ativista Sofia Rajado, em luta contra a precariedade dos professores, segue o raciocínio do arquiteto: «Não me revejo no cenário grego, mas percebo os motivos que o determinam.» Enquanto a CGTP ameaça com uma greve geral, se a «fúria de austeridade» do Governo se agravar, João Labrincha (M12M) lembra a eficácia da ação direta, acontecimentos mediáticos que chamam à atenção para os problemas. Um bom exemplo foi a atividade do grupo E o povo pá?, em março, quando colaram cartazes em lojas do BPN, durante a noite. O escritor José Luís Peixoto explica o que o levou a aceitar ser porta-voz do grupo que, devido ao natureza das suas ações, não dá a cara: «Parece-me que,

hoje em dia, falar é uma obrigação. De uma forma perversa, criou-se a ideia de que aqueles que erguem a voz do seu descontentamento são entraves à resolução dos problemas que o Estado português enfrenta. Essa é a perspetiva de quem nos colocou a todos nesta situação.» João Camargo (PI) acredita que este tipo de ações ajudam a «destruir o medo e o conformismo». Labrincha não esquece a ajuda da internet, «um novo poder que surge e que gera um importante sentimento de fraternidade – não estamos sozinhos». A senda revolucionária do número 64 do Rossio talvez vá continuar mas, desta vez, a revolta começou na rede virtual. Resta saber como dará o salto para a rua.