A ADVOCACIA PÚBLICA COMO CENTRO DE RESPOSTA JURÍDICA E ESTRATÉGICA DO EXECUTIVO
Tese Apresentada pelo Procurador do Estado José Paulo Martins Gruli1
(
[email protected])
à
Comissão
Temária
de
Direito
Constitucional do XLI Congresso Nacional de Procuradores do Estado para fomentar o debate jurídico de assunto ligado ao tema central “Advocacia Pública e Políticas Públicas”.
Resumo Visa o presente trabalho trazer a tona para reflexão questão acerca da aplicabilidade da Lei pela Administração Pública, no que tange à necessidade de que a norma seja adequadamente interpretada conforme os valores do Estado Democrático de Direito, para que não haja ou se diminua a distância entre o que é prestado pelo poder público e àquilo que é esperado pela sociedade. Concluindo ao final de maneira propositiva que a Advocacia Pública é o único órgão capaz de dar o apoio jurídico de que depende e se recente a Administração na atualidade.
Sumário: 1. A Lei como regra de conduta. 2. Políticas Públicas. 3. Mitigação da Lei em virtude do ativismo judicial e sistema de precedentes. 4. Conclusão.
1. A Lei como regra de conduta Sem olvidar que existem regras de cunho moral, fincadas em bases familiar, religiosa e outras legítimas manifestações populares, só a Lei formalmente emanada conforme as instituições competentes compõe o ordenamento jurídico. Ainda que se aceite aspirações
Procurador do Estado de São Paulo, Especialista em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
consuetudinárias como geradoras de obrigações, em nosso sistema estarão às mesmas sob o amparo legal que assim autorizou. De modo que, classicamente podemos dizer que vigora em nosso ordenamento a imperatividade da Lei prescrita, lembrada nas lições de Bobbio, segundo o qual “as proposições que compõem um ordenamento jurídico pertençam à esfera da linguagem prescrita, é velha a doutrina, conhecida pelo nome da teoria da imperatividade do direito, ou das normas jurídicas como comandos (ou imperativos)”2. Saliente-se, desde logo, que no sistema de precedentes judiciais, estes também podem traduzir-se em comandos imperativos, o que de certa forma mitigaria a afirmação da imperatividade apenas da Lei prescrita emanada pela função de Estado competente, todavia, se assim podem é porque à própria Lei autorizou. No traçar de tais conceitos, pode-se dizer que no Estado Democrático de Direito a vida privada e social é regida pela Lei, entendida aqui em seu sentido lato. Diferencia-se dos Estados Totalitários porque lá a Lei é imposta por um tirano sobre critérios de opressão, aqui a Lei em regra é criada a partir de um sistema de representação popular. Dizemos em regra, pois algumas vezes o sistema prevê a criação da Lei pelo executivo, mas com a necessidade de que após passe pelo crivo da representação popular, como é o caso de nossa medida provisória, em que pode gerar efeitos imediatos à sua edição, mas deverá passar posteriormente pela aprovação do Legislativo. Na verdade, mesmo sendo atividade atípica do poder executivo, quando da edição de medida provisória, por estar o governante sob mandato eletivo, também há significativa expressão da vontade popular. O conceito de Estado Democrático de Direito é por definição gramatical e material mais amplo do que o Estado de Direito, que por conta do liberalismo exacerbado se mostrou insuficiente para fazer frente às aspirações sociais de igualdade, liberdade e dignidade. Conforme dimana das lições de José Afonso da Silva: “A configuração do Estado Democrático de Direito não significa apenas unir formalmente os conceitos de Estado Democrático e Estado de Direito. Consiste, na verdade, na criação de um conceito novo, que leva em conta os conceitos dos elementos componentes, mas supera na medida em que incorpora um componente revolucionário de transformação do status quo. E aí se entremostra a extrema importância do art.1º da Constituição de 1988, quando afirma que a República Federativa do Brasil se constituí em Estado Democrático de Direito, não como mera promessa de organizar tal Estado, pois a Constituição aí já o está proclamando e fundando.”3
2
NORBERTO, Bobbio. Teoria da Norma Jurídica. 1.ed. São Paulo: Edipro, 2001.p. 105. AFONSO DA SILVA, José. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24.ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p.119. 3
Assim, o princípio da legalidade assume papel indissociável ao Estado Democrático de direito, sendo um de seus pilares. Não apenas a Lei em sentido formal, mas sobretudo em seu sentido material e ontológico de ordenadora da igualdade e da justiça; e ainda, não apenas por conta da generalidade da Lei, “mas pela busca da igualização das condições dos socialmente desiguais4”. Desta feita, a Lei criadora de regra de conduta, seja à pessoa em sua acepção individual, seja em sua acepção coletiva, seja ao poder público, está qualificada por diversos princípios implícitos e conceitos indeterminados. Vale dizer, a Lei que estabelece a regra de conduta, deve estar e ter aplicação conforme o contexto em que foi criada e está inserida, que é o Estado Democrático de Direito, que por sua vez carrega consigo os seguintes princípios e tarefas, conforme rol que segue, valendo-nos mais uma vez das lições de José Afonso da Silva, para quem o Estado Democrático de Direito compreende: (a) princípio da Constitucionalidade, (b) princípio da democracia, (c) sistema de direitos fundamentais, (d) princípio da justiça social, (e) princípio da igualdade, (f) princípio da divisão de poderes, (g) princípio da legalidade, (h) e, por fim, princípio da segurança jurídica.5 Sem nos esquecermos que gravita entre todos o princípio da dignidade da pessoa humana. Assim, seja quanto a interpretação, seja quanto a aplicação, a análise da Lei perpassa pela análise de obediência aos ideários referente ao sistema em que foi criada. E, tratando-se de Estado Democrático de Direitos, o que deve estar presente é a máxima de governo do povo, que decorre da própria etimologia do termo democracia6. Desta forma, por ser a lei decorrente da aspiração de um sistema maior que a criou, o mero apego a sua letra fria, o que se dá por vezes pela interpretação gramatical, muito utilizada em ambientes burocráticos, não é suficiente para a sua aplicação. A lei objetivamente aplicada não espelha em sua grande maioria à aspiração que a criou. Assim, nestas condições de complexidade, torna-se necessário as interpretações de cunho sistemático e teleológico, que investigam e levam em conta o contexto. Não que a interpretação gramatical não seja importante ou ainda que ambientes burocráticos ligados ao apego à lei fria não sejam necessários. Contudo, à lei criada sob a égide do Estado Democrático, principalmente àquelas garantidoras e instituidoras de direitos, são dotadas de alto conteúdo valorativo e indeterminado, tornando-se necessário critérios de interpretação que levam em conta o contexto maior de criação e os fins que se busca. 4
SILVA, José Afonso. “ob. cit.”, p.121. SILVA, José Afonso. “ob. cit.”, p.122. 6 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 19.ed. São Paulo: Saraiva, 1995. p.123. 5
Neste ponto, para que a ideia não fique vaga, vale ser rememorado os conceitos de interpretação sistemática e teleológica, o que possibilitará ao leitor identificar sua importância em nosso sistema jurídico, conforme didáticas lições de Rizzatto Nunes: “A interpretação sistemática. Por essa regra cabe ao interprete levar em conta a norma jurídica inserida no contexto maior de ordenamento ou sistema jurídico. Avaliando a norma dentro do sistema, o interprete observa todas as concatenações que ela estabelece com as demais normas inseridas no mesmo sistema. O intérprete, em função disso, deve dar atenção à estrutura do sistema, isto é, aos comandos hierárquicos, à coerência das combinações entre as normas e à unidade enquanto conjunto normativo global.7” “A interpretação teleológica. A interpretação é teleológica quando considera os fins aos quais a norma jurídica se dirige (telos+fim). Na verdade, qualquer interpretação deve levar em conta a finalidade para a qual a norma foi criada. Nem sempre é fácil identificar a finalidade de uma norma, mas, uma vez que ela seja determinada, contróise um parâmetro, no qual a interpretação deve enquadrar-se.8”
2. Política Públicas Para a conclusão final de nosso tema, torna-se necessário conceituar e situar, ainda que brevemente, o que seriam Políticas Públicas. Assim, para que haja a concretude da Lei dentro da complexidade anteriormente relatada que decorre do Estado Democrático de Direito. Isto é, para que as aspirações sociais sejam alcançadas, temos a atuação do Estado no que se acabou por conceituar de políticas públicas. Seria Política Pública nada mais do que o Estado em sentido lato determinando e o Governo atuando. Contudo, atuação esta inserida dentro de um processo decisório que envolve conflito de interesses, pelo qual o Governo tem que decidir entre fazer e não fazer. O termo ganhou grande relevo na atualidade, tendo em vista a grande exigência social que recai sobre o Estado, principalmente para que se dê efetividade aos comandos constitucionais. Neste sentido, segundo Gianpaolo Smanio: “A realidade social de hoje demanda do Estado uma enorme gama de atividades para a garantia da cidadania e a efetivação dos direitos fundamentais, daí a afirmação de que o Estado é Democrático e Social de Direitos, significando que o Estado deve realizar políticas ou programas de ação, para atingir determinados objetivos sociais.9” Cabe também lembrar a diferenciação entre o que seja Política de Estado e Política de Governo. Àquelas independem do governo instalado, pois decorrem principalmente da 7
RIZZATO NUNES, Luiz Antonio. Manual de Introdução ao Estudo do Direito. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 231. 8 RIZZATO NUNES, luiz Antonio. “ob.cit.”, p.233. 9 SMANIO, Gianpaolo Poggio. O Direito e as Políticas Públicas no Brasil. São Paulo: Atlas,2013. p.6.
própria Constituição. Estas, às de Governo, são criadas a partir dos ideais filosóficos e das metas dos mandatários do executivo. As Políticas Públicas podem também ser vistas sob o aspecto de efetivação em seu papel coletivo, por meio do qual perpassa pela colaboração e engajamento de outros setores da sociedade, visando o interesse público, em que não só o primeiro setor, que é a Administração, teria papel, mas também o segundo setor (iniciativa privada) e o terceiro (organizações civis sem fins lucrativos). Podemos citar como exemplos de Políticas Públicas a educação, saúde, assistência social, habitação, desporto, trabalho, emprego, renda, segurança, desenvolvimento, meio ambiente, infra estrutura (como as econômicas, monetária, fiscal, transporte, saneamento e energia). Assim, nada obstante, como o próprio nome Política Pública remete, ser matéria de afetação ao Governo, por estar ligada a eleição de prioridades, e assim inserida dentro dos estudos Políticos, tem também caráter jurídico, pois este é quem condiciona a atuação do Estado. Vale dizer em outras palavras, se o Estado em sua faceta administrativa só pode fazer o que está na Lei, por expressa previsão constitucional do artigo 5ª, inciso II, interpretado a contrario sensu e expressa previsão positiva do artigo 37, caput, pelo qual, o ente público obedecerá o princípio da legalidade, a Política Pública deve sempre ser conforme à Lei. Não há política pública sem Lei que lhe de substrato, entendida aqui em seu sentido lato, englobando todas as espécies normativas existentes, dentro da respectiva esfera de competência e atribuições. “Daí a indispensabilidade de conceituarmos as Política Públicas como fenômeno jurídico, percebermos sua natureza jurídica, estabelecermos o regime jurídico aplicável à atuação do Estado e também dos demais partícipes de sua execução”10. Política Pública, trata-se, assim, de “uma atividade, isto é, um conjunto organizado de normas e atos tendentes à realização de um objetivo determinado”, conforme diz Fábio Comparato, também citado por Smanio11. Contudo, o sistema político é um e o sistema jurídico é outro. São autônomos. Sendo a Política Pública fundada em ambos, mas sem influenciar na autonomia existente. Na verdade, o que se tinha até o século XVIII, era que o sistema jurídico não guardava um fechamento estrutural, e assim não se conseguia fazer a distinção exata entre os papéis. Com o 10 11
SMANIO, Gianpaolo Poggio. “ob. cit.”, p.6. SMANIO, Gianpaolo Poggio. “ob. cit.”, p.7.
aparecimento das constituições o sistema jurídico se fechou, sendo possível a aferição das obrigações inerente aos governos em decorrência de seu dever-poder e a maneira jurídica de que se daria a atuação, sendo a constituição a norma primária a dar fundamento às demais normas. Em outras palavras, as constituições trouxeram expressa ou implicitamente quais as intenções políticas dos representados a serem implementadas ou perseguidas pelo detentor do poder (governo), estabelecendo juridicamente como seria a atuação, por ser a norma de maior hierarquia.12 Logo, as políticas públicas tem fundamento de validade no sistema político e no sistema jurídico. E para nosso estudo e conclusão final, apenas este nos importa. Tendo em vista que em maior ou menor grau, toda atividade pública, deverá estar fundada na Lei; ou seja, na norma jurídica que lhe dá substrato. Neste sentido lembre-se, que tanto quando à interpretação, quanto à aplicação, a análise da Lei, perpassa pela análise de obediência aos ideários referente ao sistema em que foi criada. E, tratando-se de Estado Democrático de Direito, a norma está altamente qualificada por conceitos e atributos valorativos e indeterminados. 3. Mitigação da Lei em virtude do ativismo judicial e sistema de precedentes Pois bem, pelo o que até agora tentamos passar, se verifica que a tarefa de administrar a coisa pública não é simples. Pelo contrário, é complexa, eis que de fato envolve análise e interpretação de inúmeras normas, seguindo-se a realização de inúmeros outros atos, que tem que guardar relação de compatibilidade com a própria norma que os instituiu e outras que gravitam. Certamente que quando falamos de Lei ou norma, estamos nos valendo do sentido lato, partindo-se da Constituição e decaindo hierarquicamente às normas inferiores. 12
“Até as Revoluções burguesas ocorridas no século XVIII, o subsistema jurídico não guardava um fechamento estrutural, encontrando-se totalmente subordinado à política. Com o aparecimento das constituições modernas, foi possível o perfeito delineamento do direito, passando a operar com autonomia em relação aos demais subsistemas que compunham o ambiente externo. As constituições passaram então a exercer o importante papel de intermediar a troca de informações entre direito e política, produzindo (...) maiores possibilidades por parte do sistema jurídico de registrar decisões políticas em forma jurídica, ainda que, assim mesmo, sejam maiores as possibilidades de parte da política de servir-se do direito para concretizar seus objetivos. A Constituição, portanto, funciona como verdadeiro instrumento de acoplamento estrutural entre os subsistemas da política e do direito. Enquanto, para o primeiro, a Constituição é vista como uma carta de compromisso com a manutenção de determinadas garantias do cidadão e de reconstrução da realidade social marcada por profundas desigualdades, para o direito ela é vista como a norma de maior hierarquia do subsistema, da qual todas as outras buscam fundamento de validade. Em última instancia, a Constituição permite que o direito trate de questões afetas primordialmente ao subsistema político, à luz de seu código, lícito/ilícito, sem que, com isso, perca sua identidade e seu fechamento estrutural. O direito opera com base em sua próprias estruturas, mas aberto cognitivamente ao sistema político.” SILVA PASSOS, Daniel. Intervenção Judicial nas Políticas Públicas, o Problema da Legitimidade. São Paulo: Saraiva,2014. p.46/47.
Assim, ao administrador não basta apenas aplicar a lei ordinária, mas sim aplica-la com vista ao que disse antes a Constituição. Por exemplo, não basta apenas aplicar a lei do SUS (Lei federal 8.080/90), que estabelece o regime de competências entre os entes, sem antes ter em mente que se extraí da Constituição Federal de 1988 que a competência é solidária, como vem se sedimentando a jurisprudência dos Tribunais. Isto é, a Administração tem como uma de suas características marcante a aplicação da Lei de ofício. A Administração só pode fazer o que está descrito ou autorizado na norma. Logo, lado outro, se está obrigada a fazer aquilo que está na Lei. Deve dar cumprimento à Lei, devendo por isso agir de ofício. E assim independe de provocação. Ocorre que à Lei a ser aplicada não é apenas àquela de conteúdo objetivo em sua letra fria. Mas sim deve ser aplicada dentro do espectro de sua criação, levando em conta os primados que permeiam o Estado Democrático de Direito. Já o judiciário, igualmente a Administração Pública, aplica à Lei. E quando desta aplicação também não leva em conta apenas o texto frio. Isto é, não leva em conta apenas à Lei em seu caráter objetivo. Pois o judiciário, mais que qualquer outra função estatal aplica à Lei ao caso concreto interpretando-a ao fato posto em julgamento. A Lei igualmente obriga o judiciário. Todavia, este pelo princípio da inércia só aplica a Lei quando provocado por um pedido que trás consigo uma situação fática. Sendo assim a aplicação da Lei pelo judiciário já se faz ao caso concreto. Em nosso sistema, há casos porém que o judiciário decide acerca da própria lei em abstrato, quando faz o controle de constitucionalidade de atos inferiores. Ocorre que, mesmo para estes casos, não há uma atuação de ofício, eis que fica também na dependência de provocação, que mesmo que em menor grau discorrerá sobre os fatos e fundamentos acerca da inconstitucionalidade. Explica-se: o judiciário quando é chamado para aplicar à Lei ao caso concreto, fazendo ou não o controle de constitucionalidade difuso, já obtém os elementos fáticos para a aplicação da norma. No entanto, quando o judiciário faz o controle de constitucionalidade por via direta e concentrada, em que se verifica e interpreta a norma apenas em abstrato, não o faz com vista à aplica-la ao caso concreto, mas ao ser apresentados os fatos e fundamentos do pedido inicial já é possível antever quais situações fáticas que a norma questionada atingirá. Queremos com isso dizer, que o judiciário quando interpreta a norma, seja para aplicala, seja para afastá-la, seja apenas para declara-la inconstitucional ou não, tem em mãos melhores elementos que a Administração, eis que esta por aplicar à Lei de ofício, muitas
vezes não consegue mensurar todas as situações que deveriam (ou não deveriam), poderiam (ou não poderiam) ser atingidas. Daí decorre que nem sempre a interpretação dada pela Administração será a mesma do Judiciário. E esta aparente incongruência entre a interpretação da Lei dada pela Administração e àquela dada pelo Judiciário se resolve da seguinte forma: a Administração deverá dar cumprimento da maneira declarada pelo judiciário! Isto é absolutamente normal. Mais que isso, necessário, eis que decorre do sistema de freios e contrapesos entre as funções do Estado. O problema surge, quando a atividade jurisdicional começa a se sobrepujar a atividade administrativa. Assim, o ativismo judicial e o sistema de precedentes acabam mitigando a atribuição da Administração de ser a aplicadora da Lei de ofício. Bem como cria situação anacrônica, obrigando muitas vezes a Administração atuar sem Lei que a obrigue ou autorize. Observe-se que não estamos aqui fazendo qualquer crítica de fundo ao ativismo jurídico e ao sistema de precedentes, estamos apenas a dizer que há em nosso modesto pensar uma mitigação da atividade administrativa enquanto cumpridora da Lei de ofício. Na verdade, nada obstante existir posições contrárias ao ativismo judicial, principalmente no que tange a implementação de políticas públicas, os seus defensores sustentam que tal não seria uma posição ativista do judiciário, mas sim ativa, em decorrência dos próprios postulados constitucionais.13 Neste mesmo sentido, já foram as lições de Miguel Reale, que em 1997 mais uma vez prestava sua colaboração no livro de poucas mas auspiciosas palavras, intitulado “Questões de Direito Público”, pois ao
discorrer no capítulo III sobre “O Judiciário a Serviço da
Sociedade”, pontuava o eminente professor que: “Saliento desde logo, que não fui convidado para tratar do tema senão em função e em razão da conjuntura histórica que estamos vivendo no Brasil e no mundo. Não se trata, em suma, de tentar fazer mera revisão da teoria sobre o papel do Judiciário no ordenamento jurídico do Estado, apreciando-o como Poder no contexto constitucional, paradigma que tem dominado no estudo da matéria. Impõe-se um prisma novo: o Judiciário visto, por assim dizer, ab extra, do ponto de vista da sociedade à qual deve prestar serviços, tomada esta palavra em toda a sua amplitude”14. 13
“Apesar dos fundamentos teóricos exposto no capítulo anterior, o problema da legitimidade judicial para intervir nas políticas públicas não é incontroverso, sendo inúmeros os óbices levantados por seus opositores. Tais argumentos, apesar de coerentes e bem fundamentados, não conseguem elidir a necessidade de uma postura ativa (não ativista) por parte do Judiciário, notadamente em face do positivado pela Constituição. Os objetivos e direitos fundamentais, combinados com os instrumentos de garantia da normatividade constitucional, como, por exemplo, a ação direta de constitucionalidade por omissão e o mandado de injunção, evidenciam o papel que se espera do Judiciário”. SILVA PASSOS, Daniel. “ob.cit.”, p. 71. 14
REALE, Miguel. Questões de Direito Público. São Paulo: Saraiva,1997. p.45.
Neste aspecto, lembra o autor que igualmente ao totalitarismo que perdeu força após a segunda grande guerra e que limitava demasiadamente os direitos dos cidadãos em face do Estado, vivemos hoje o risco de que o social, o coletivo, limite demasiadamente à liberdade do indivíduo, pois segundo ensina. “Já agora, é o social que está ameaçando o individuo por todos os lados, a massificação crescendo gigantescamente até o ponto de já se poder falar em um outro totalitarismo, o totalitarismo de ordem coletiva, que ocorre quando se exagera sobremaneira na preponderância do coletivo, do ecológico, chegando-se a proclamar que o bem coletivo deve primar sobre o bem individual, tal como foi dito em artigo preambular da recente Lei antitruste, como se isso bastasse para legitimar a aplicação de rigorosíssimas penas aos empresários acusados de abuso de poder econômico, haja ou não comprovação de culpa, numa inédita e absurda forma de responsabilidade objetiva. É diante desse risco – do totalitarismo do Estado convertido em totalitarismo da Sociedade – que se volta o homem, neste tristonho fim de milênio, para o Judiciário, esperando que ele se ponha a serviço da sociedade, mas com salvaguarda plena dos direitos fundamentais que a Carta Maior assegura aos cidadãos.”15 Enfim, por tais ensinamentos, que na verdade mereceriam até mesmo uma transcrição na íntegra, se constata que o ativismo judicial decorre da necessidade de equilíbrio do próprio sistema. Assim, a Administração deve se portar diante desta realidade, sob pena de perder sua própria essência. Isto é, deve a Administração ter presente que ideia de ativismo judicial e obediência aos precedentes é decorrência lógica da própria necessidade pela qual passa nosso Estado Democrático de Direito. De fato, o ativismo judicial e os precedentes mitigam à Lei, mas referida mitigação se dá apenas segundo a óptica da Administração. É uma mitigação aparente. Pois na verdade, o que está fazendo a atividade judicial é demonstrar que na aplicação da mesma Lei, havia outro caminho a ser trilhado segundo os primados de justiça contido na Constituição e que foram desviados. Não se trata de invadir a esfera meritória, núcleo protegido pela discricionariedade da Administração. Mas sim controle de legalidade na interpretação da Lei em seu sentido ontológico. Assim, quanto o judiciário adentra na atividade afeta à função administrativa, o faz por conta do sistema de freios e contrapesos e para que haja o atendimento aos princípios
15
REALE, Miguel. “ob.cit.”, p.47.
maiores. Seja para aplicá-los seja para sopesá-los por critérios de proporção e razoabilidade quando em confronto entre sí. Desta feita, não se trata aqui de dizer se é bom ou ruim o ativismo judicial, se é bom ou ruim o sistema de precedentes, mas apenas pontuar que trata-se de realidade. De modo que não adianta a Administração se ressentir, quando de fato o que se espera é que melhor o entenda e se aparelhe. Pois, se a administração já se movimenta conforme estes mesmos princípios, conforme o mesmo sentido de justiça que se movimenta o judiciário, tal intervenção mais tarde será desnecessária, pois a Administração é quem aplica primeiramente à Lei. Ou seja, o ativismo jurídico e o sistema de obediência aos precedentes judiciais terão o impacto diminuído sobre a Administração, se e quando esta já se orientar conforme aquilo que dela se espera. Se tanto a Administração quanto o Judiciário interpretam a lei conforme os postulados maiores atrelados ao Estado Democrático de Direito. Se a interpretação (e aplicação) feita pela Administração já estiver em tal conformidade, não haverá espaço (ou este diminuirá abruptamente) para censura judicial. Assim, quanto maior for o equivoco interpretativo da Administração, maior será a incidência da atividade judicial. Certamente sempre haverá situações em que sob a ótica da Administração o direito é um e sobre a ótica do Judiciário outro, o que é absolutamente normal. Cabendo neste caso a Administração convencer o Judiciário acerca de seu raciocínio. Todavia, as funções devem caminhar para um entrelaçamento, para uma convergência, pois os fins são os mesmos. Logo, a questão é muito mais de afinamento, de estreitamento, do que de confrontação, pois os fins que se buscam são os mesmos, ainda que estejam acortinados por interesses outros dos mais diversos. Logicamente também, em nosso modesto pensar, esta convergência de interpretação deve ser uma via de mão dupla, em que não só a Administração deve buscar implementar aquilo que dela se espera sob a ótica do Judiciário, mas este também deva sempre ter em mente todos os meandros da atividade Administrativa, para que ainda que Legal e esperado, não se exija mais do que aquilo que pode ser dado no respectivo momento conjuntural. Desta feita, sob a ótica exclusiva da Administração, como buscar este afinamento interpretativo, de modo que a Lei aplicada, a política executado, esteja de acordo aos primados maiores? Como ser feito pela Administração o sopesar interpretativo da norma, de modo a antever o caso concreto e assim poder implementar a política pública com critérios de razoabilidade e proporcionalidade? Como poderá a Administração atender a lei integrando-a
em seus conceitos implícitos e indeterminados? Qual órgão do executivo seria apito a interpretar a Lei valendo-se de regras de cunho sistemático e teleológico na busca de seu conteúdo material e valorativo? Qual o caminho deve ser traçado pela Administração para que se adeque a esta nova realidade? 4. Conclusão Cremos que a resposta aos questionamentos anteriormente levantados está na estruturação da Advocacia Pública. Eis que, é o único e exclusivo órgão do Estado imbuído constitucionalmente em prestar esta função à atividade Administrativa. Não há como analisar ou teorizar o funcionamento da máquina administrativa, no sentido de executora da Lei de ofício, sem levar em conta as diretrizes da advocacia pública enquanto órgão de assessoramento jurídico e representação judicial. Quando a Constituição diz ser a advocacia pública atividade essencial à justiça, está antes dizendo ser ela essencial a atividade administrativa, pois a Lei aplicada de ofício pela Administração deve levar em conta a carga ontológica da norma, de modo que, a justiça já deve ser feita nesta oportunidade. Dentro da estrutura da Administração, se fizermos um raciocínio de exclusão, chegamos a conclusão que o único órgão dotado de capacidade técnica para interpretar à Lei e os caminhos de sua aplicação, é a Advocacia Pública. Diferentemente do Estado Mínimo, há muito superado, o Estado de Bem Estar Social exige um fazer da Administração, espalhado por diversas áreas, sendo as políticas públicas a maneira pela qual o Estado dá cumprimento a tais aspirações. Tendo em vista o princípio da legalidade, as políticas públicas da Lei decorrem. Mesmo porque, toda e qualquer atividade do Estado está calcada na Lei, o que demanda interpretá-la em momento anterior a sua própria aplicação. Daí a necessidade do órgão jurídico do executivo para que se dê sustentação a toda e qualquer atividade Administrativa. Se toda e qualquer atividade da Administração está calcada na Lei, vale dizer que toda e qualquer atividade administrativa tem uma faceta jurídica. Destarte, a Advocacia Pública, é a única instituição constitucionalmente prevista que pode auxiliar de fato o executivo a fazer frente as aspirações sociais, interpretando-as sobre o prisma jurídico. Daí a necessidade de que este órgão tenha de fato a conformação e robustez que a Constituição dele espera, para que se torne um centro de resposta jurídica e estratégica do executivo.
A Advocacia Pública tem que assumir de vez o papel constitucional a ela atribuído, primeiro porque o executivo está carecendo como nunca deste auxílio. Segundo, por ser a única instituição capacitada tecnicamente a subsidiar a Administração sob o prisma jurídico. Só por meio de um assessoramento jurídico forte que o Executivo alcançará um afinamento interpretativo, de modo que a Lei aplicada, a política executado, esteja de acordo aos primados maiores que decorrem do Estado Democrático de Direito. Pois deve ser da essência da atividade administrativa o sopesar interpretativo da norma, de modo a antever o caso concreto e assim poder implementar a política pública com critérios de justiça. O que demanda atender a Lei integrando-a em seus conceitos implícitos e indeterminados. Mesmo porque a Advocacia Pública é o único órgão do executivo que tem contato com as demandas, principalmente as judiciais, de maneira global. Com a conformação adequada da Advocacia Pública em seu sentido constitucional e estrutural, ela enquanto órgão jurídico da Administração, teria capacidade de criar feedback de gestão, ao que se tem notícia, nunca antes implementado. Teria condições de medir a eficiência da Administração Pública para fins interno, como realimento de políticas e gestão de pessoal, que seria uma ferramenta a serviço do interesse público. A advocacia pública é canal de captação de todos os problemas ou dos maiores problemas enfrentados pelo Estado. Sendo o único órgão da administração que recebe tais problemas de maneira geral. Enquanto outras Secretarias de Estado ou Ministérios conhecem basicamente o meio em que se desenvolvem, a advocacia pública toma contato com toda atividade estatal, e por isso pode fazer adequações propondo soluções jurídicas aos problemas. Seja antevendo-os, seja combatendo-os. Se o Estado tem uma concepção política e jurídica, a Administração tem que estar apita a fazer esta leitura do sistema. Mesmo porque as políticas públicas tem fundamento de validade no sistema político e jurídico. De nada adianta um governo legitimado pelas urnas, ainda que com larga vantagem, se a estrutura de Estado não for apita a fazer a conformação jurídica de seus ideários. Este governo fatalmente ruirá. Quando não amargará ou deixará legado de déficit ao próximo governante.
Referências Bibliográficas NORBERTO, Bobbio. Teoria da Norma Jurídica. 1.ed. São Paulo: Edipro, 2001.p. 105. AFONSO DA SILVA, José. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24.ed. São Paulo: Malheiros, 2005.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 19.ed. São Paulo: Saraiva, 1995. RIZZATO NUNES, Luiz Antonio. Manual de Introdução ao Estudo do Direito. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 1999. SMANIO, Gianpaolo Poggio. O Direito e as Políticas Públicas no Brasil. São Paulo: Atlas,2013. SILVA PASSOS, Daniel. Intervenção Judicial nas Políticas Públicas, o Problema da Legitimidade. São Paulo: Saraiva,2014.