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ENTRE RENDAS E BORDADOS:MEMÓRIAS DE UMA DISCIPLINA ESCOLAR Maria Aparecida Junqueira Veiga Gaeta Centro Universitário Moura Lacerda. Ribeirão Preto- ...
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ENTRE RENDAS E BORDADOS:MEMÓRIAS DE UMA DISCIPLINA ESCOLAR

Maria Aparecida Junqueira Veiga Gaeta Centro Universitário Moura Lacerda. Ribeirão Preto- SP

Estabelecer os rastros de uma disciplina escolar como os Trabalhos Manuais, que teve seus “anos dourados” e foi se definhando até desaparecer dos currículos escolares, implica percorrer velhos arquivos e buscar referências desse passado na memória daqueles que a vivenciaram. Nesse caso, o campo de análise se alarga e obriga o pesquisador a percorrer um terreno denso e poroso, que se mostra muito mais complexo do que aparenta. O móvel que investigou essa busca liga-se a um debruçar sobre a história do currículo e das disciplinas escolares. Sabemos que a história das disciplinas é um campo que durante muito tempo foi negligenciado pelos historiadores da educação mas, diferentemente na atualidade, tem provocado o interesse de pesquisadores face às perspectivas de se adentrar, de acordo com Ivor Goodson (1995;2002) e André Chervel (1993), nos processos internos da escolaridade. No dizer de Dominique Juliá (2001), o estudo das disciplinas aponta para

as

especificidades das relações sociais travadas no interior das escolas, configuradas em ritmos e rumos diversos. Ao se definir o currículo, afirma Gimeno Sacristán, também se descrevem as realizações da própria escola e a forma particular de enfocá-las num momento histórico e social determinado, para um nível ou modalidade de educação e numa trama educacional. Nesse caso, refletir sobre o currículo escolar implica, também, debruçar-se sobre as disciplinas que o constituem e lhe dão identidade. Uma trajetória de agregação, de aglutinação, de rompimentos, de invasões e de esclerose

caracteriza

a história

das

disciplinas curriculares. Edgar Morin enfatiza sobre a necessidade de “ecologizá-las”, isto é, enredá-las num contexto cultural e social, rastreando em que meio elas nascem, colocam questões, esclerosam e metamorfoseiam. Dominique Juliá

alerta, entretanto, para as dificuldades que os pesquisadores

enfrentam no esforço para manter juntos todos os fios dessa história, correndo os riscos de não encontrá-los documentados da mesma forma, e ainda lidar com o fato de que, quanto 1

mais nos distanciamos no tempo, mais o desempenho real dos alunos nos escapa. Mas, ao meio dessas dificuldades, Juliá nos incentiva adentrar nesse campo, tendo em vista as possibilidades de apreensão desse passado, através da recuperação das práticas de ensino, como as exposições didáticas, os exercícios propostos, o cotidiano das salas de aula e o conhecimento

das apropriações que os alunos fizeram das lições recebidas. Com essas

aquisições, há perspectivas de se captar a dinâmica de uma disciplina escolar. Para apropriação da historicidade da disciplina Trabalhos Manuais, estamos consultando a legislação que a regulamentou e que aponta para sua trajetória de inclusão curricular em caráter nacional, com a reforma Francisco Campos, e sua “morte”, com a Reforma Educacional 5692/71. A leitura de jornais que circulavam numa cidade no interior paulista - Ribeirão Preto-, na primeira metade do século XX, complementa a investigação. Os registros jornalísticos expressam uma instigante valorização das Exposições de trabalhos manuais, efetuadas nas escolas nos finais do ano letivo. Evidenciam a repercussão que esses eventos imprimiam na comunidade, caracterizando- os como espaços públicos geradores de identidades escolares urbanas. As descrições explicitavam, de forma otimista, além de uma intenção didática e civilizadora, a presença de espaços de sociabilidades e sensibilidades. Essa projeção

provocava, então, uma visibilidade àquela disciplina escolar, sugerindo ao

investigador buscas dos fios da memória e da trama da História que a enredaram. As fontes jornalísticas indiciavam que a disciplina Trabalhos Manuais não circunscrevia apenas as práticas docentes de sala de aula mas, que outras finalidades presidiam sua constituição e o seu desempenho no currículo escolar. As finalidades não se mostravam unívocas, sinalizavam uma arquitetura complexa, onde estratos sucessivos se sobrepunham, engendrando uma mescla de heranças,

de elementos de continuidade e de mudanças em busca do novo.

Revelaram, ainda, que há muito a indagar sobre esses percursos e, por isso, essa é uma investigação em curso, com resultados parciais ainda cambiantes. Ao lado das fontes impressas, entrevistas com pessoas que vivenciaram essa disciplina entre os anos de 1940 a 1960 estão possibilitando recuperar, por meio da memória, imagens, representações e subjetividades que marcaram as lembranças de sujeitos do aprendizado escolar. A memória está sendo captada por meio da metodologia da História Oral, não como forma de estabelecer o real, isto é, “como de fato se deu um fato”, nem para o “resgate” de uma historicidade, mas buscando identidades sociais e culturais que essas experiências de aprendizagem produziram .

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Sabe-se

que a memória possui linguagens onde subjetivações, esquecimentos,

iluminações e ucronias afloram nas falas. Alessandro Portelli, discutindo o uso da memória nos relatos orais, advertiu para o fato de que vivenciar um evento não garante, por si, obter a veracidade, pois os narradores são apoiados pelas estruturas mediadoras da linguagem da narrativa, do ambiente social, da religião e da política. Mas, como diz Cecília de Souza, “a escola é um lugar de memória”. Quando o olhar pode atravessar a espessura do tempo, distingue vestígios reconhecíveis de sua história e, nesta concepção, incorporarmos a idéia de que, para se compreender o que a escola realizou em seu passado ou realiza na atualidade, torna-se necessário tentar compreender a maneira com que os sujeitos reconstruíram suas experiências, como constituíram relações, estratégias e significações por meio das quais construíram a si próprios como sujeitos históricos. A restituição das representações necessita, portanto, de uma busca das mediações: rastros que permitam compreender de que modo o olhar do outro foi estruturado no tempo e no espaço, descobrir, assim, convergências e divergências entre o dito e o sentido, verificar a mutação das sensibilidades. Para além de uma duração aparentemente estável, os desejos e as maneiras de ser se transformam com o tempo. O horizonte teórico

que norteia a investigação baseia-se nas tendências

historiográficas produzidas pela Nova História Cultural, que permitem a percepção de que a cultura escolar possui um estatuto próprio de transformação, situando-se no mesmo patamar que as lutas políticas e econômicas: nem acima nem abaixo das relações econômicas e sociais e nem alinhadas a elas, conforme enfatizou Chartier (1990). Estudando os processos de produção, imposição, circulação e apropriação de modelos escolares, a cultura permite a compreensão do modo que, em diferentes lugares e momentos, uma determinada disciplina escolar é construída, pensada e dada a ler . Para se apreender a trama da disciplina Trabalhos Manuais no currículo escolar brasileiro, torna-se necessário refletir sobre a mudança cultural que se deu em relação à representação da categoria do Trabalho quando, a partir do século XVI, a sociedade do trabalho começou a ser glorificada. A transformação do significado verbal da palavra trabalho, que até então era sinônimo de dor, de castigo, é emblemática de uma positividade na representação social desse termo. Nessa configuração moderna, o significado da palavra trabalho se tornou edificante. Hanna Arendt diz que a espetacular promoção do labor, da mais humilde e desprezível posição à mais alta categoria, como a mais valorizada de todas as atividades humanas,

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começou quando Locke descobriu que o labor é a fonte de toda a propriedade, e prosseguiu quando Adam Smith afirmou que esse mesmo labor era a fonte de toda a riqueza, atingindo seu ápice no “system of labor”, de Marx, no qual o labor passou a ser a origem de toda a produtividade e a expressão da própria humanidade do homem. (1978, p. 113). Nesse caso, o trabalho foi perdendo a conotação de tortura, de penalização, sendo guindado à esfera da dignidade, de um valor moral a ser buscado, glorificado e transmitido. Foi entendido como o momento de uma liberação das forças produtivas da sociedade. No Brasil, marcado pela degradação do trabalho escravo e pelo preconceito do trabalho manual, a superação dos velhos paradigmas e a introjeção

de uma nova cultura se fizeram lentamente. Para a

construção de um outro imaginário sobre o trabalho, agora eivado de positividades, foi necessário o desencadeamento de múltiplos discursos apologéticos, provindos de diferentes lugares, quer institucionais ou individuais e que, gradativamente, impuseram uma nova concepção à sociedade em relação ao trabalho. Para essa cruzada, a escola, a disciplina Trabalhos Manuais e as Exposições, como cristais do desempenho disciplinar, tiveram um papel fundamental, para a legitimação dessa mudança. Assim, no início do Brasil republicano, as artes manuais estiveram presentes nos currículos das escolas primárias e secundárias e nas escolas normais. A reforma Benjamim Constant, de 1890, estabeleceu, para o primário e o secundário, o desenho, a música e os trabalhos manuais. Na escola normal, previa-se também, além da música, o desenho e trabalhos de agulha. A educação estética para o povo envolvia, de um lado, uma perspectiva mais teórica, preocupada com a dimensão pedagógica formativa da educação dos sentidos e, de outro, a perspectiva objetivando empreendimentos práticos. Para Rui Barbosa, a educação estética cumpriria o papel de “civilizar as classes inferiores”. Observa-se que, no contexto republicano brasileiro, o ingresso na modernidade civilizadora não se fazia apenas com a abertura de escolas, mas também com uma educação estética, que envolvia as habilidades manuais, a educação das mulheres para o lar, o contato com a literatura brasileira, os cantos e a dança, presentes no cotidiano das salas de aula e nas festas escolares.

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AS EXPOSICÕES ESCOLARES : ESPAÇOS DE SOCIABILIDADES E DE SENSIBILIDADES

As Exposições escolares constituíam-se em espaços de sociabilidade e da estética das sensibilidades. A cidade e a escola se irmanavam nas Exposições pedagógicas. A própria denominação, Exposição, remete aos sentidos de pôr à vista, de exibir os trabalhos escolares, onde uma dupla estratégia se desencadeava : a de promover a educação estética de alunos e visitantes e dar visibilidade à educação escolar. Os documentos revelam que as salas expostas eram visitadas pelas pessoas “ilustres” que passavam pela cidade e pelas escolas. É o caso do Diretor Geral do Ensino do Estado de São Paulo (1944) que, em visita ao Colégio Nossa Senhora Auxiliadora, de Ribeirão Preto, após assistir a cerimônias de desfiles, poesias, cantos, visitou “a esplêndida e variadíssima exposição de trabalhos manuais e pintura.” Os documentos descrevem com ufanismo as manifestações de “grande admiração e louvor” expressas pelo visitante. (Arquivo do Colégio Auxiliadora). Nessa escola, feminina, a sala de Trabalhos Manuais estava equipada com os requisitos oficiais: material para costura, bastidores para bordado; panos de amostra, pranchetas e havia um compromisso com os pais das alunas de se manter uma Exposição permanente. (Relatório sobre a situação do Prédio).

Observa-se que as Exposições promovidas pelas escolas transformavam a disciplina Trabalhos Manuais em vitrines do êxito escolar.

Os valores estéticos compreendiam

produção e recepção. Os processos de fabricação, de seleção do conhecimento escolar, e os rastros dos interesses subjacentes, confirmam a percepção do espaço escolar como um centro de produção cultural.(Chervel, 1990, p. 121). Vejamos como algumas escolas exibiam suas produções:

“Tem sido muito visitada a exposição de Trabalhos Manuais do Collegio Methodista. Como Acontece todos os annos, o Collegio Methodista inaugurou sábbado ultimo, a exposição dos trabalhos dos seus alumnos.Inúmeras pessoas da nossa sociedade assistiram à cerimônia tendo todos saído agradavelmente impressionadas com a interessante exposição dos alumnos daquelle conceituado estabelecimento de ensino dirigido por Ms. Christine. O que mais tem impressionado os innumeros visitantes que ali ocorreram são os trabalhos de bordados confeccionados sob a direção da distincta professora (senhorinha Alice Trivellini) que foi bastante cumprimentada”. (Diário da Manhã, Ribeirão Preto, 21/11/1933). 5

Nas escolas confessionais para moças e nas Escolas Normais, a visibilidade dos Trabalhos Manuais era notável, homologando diferenciação entre sexos. A educação feminina combinava a formação de donas de casa e a formação profissional, encaminhando as mulheres para o Magistério infantil. As habilidades com a agulha, como os bordados, as rendas, o “tricot” e o “crochet”, além do canto e do orfeão, quase que ofuscavam as outras disciplinas curriculares. Nos relatos de ex-alunas há poucas referências sobre as disciplinas pedagógicas. As exposições ratificavam as prendas femininas: “Tem sido muito visitada a exposição de trabalhos de pyrogravura sobre madeira, “fustanella” e “ velludo”, “cloutage” sobre cobre, pintura a oleo, desenho, etc. Todos os trabalhos, pela grande perfeição com que foram confeccionados, têm sido justamente apreciados pelo avultado numero de visitantes. As visitas poderão ser iniciadas às 9 horas. O magnifico certamen será encerrado hoje ás 17 horas. A exposição do Collegio Santa Ursula é, não há duvida, uma prova incontestavel dos seus optimos methodos de ensino”. (A Cidade, Ribeirão Preto, 26/11/1916). O século XIX começou a valorizar a mulher fora das atividades domésticas, inseridas no processo de produção. Isso se fez pelo emprego feminino nas fábricas, como tecelãs, costureiras, floristas e chapeleiras, cujas atividades antes restritas à esfera privada começaram a figurar na esfera pública, nas lojas e galerias, nos templos do consumo: o trabalho feminino é positivado e qualificado. Vejamos o anúncio da Exposição de Trabalhos da Escola Industrial: “Amanhã , às 10hs será inaugurada a exposição de trabalhos escolares das sessões feminina desse importante estabelecimento de educação. Instituição modelar, onde a aprendizagem profissional se faz perfeita, merce dos amplos recursos que dispôs, a escola Industrial de Ribeirão Preto, como sucede todos os anos, marcará, mais uma vez, um êxito absoluto com essa exposição, que evidenciará a eficiência do ensino ministrado por profissionais de alta competência”. (A Tarde, Ribeirão Preto, 11/12/ 1945). Signos da educação feminina, voltados tanto para a vida privada como para a esfera pública, projetados como cenários e modernidade, irrigavam um imaginário social urbano. As mulheres deveriam receber uma educação estética, como condição de formação integral, útil à família, ao lar e ao mundo do trabalho. As Exposições imprimiam modernidade ao espaço pedagógico. Os jornais locais registravam reiteradamente as datas e a duração das Exposições. Três dias era o tempo suficiente para que a cidade se mobilizasse, comparecesse e apreciasse os eventos como se

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fossem “festas – feiras, de finais de ano”, transformando-se em locais de compra e venda de objetos. “A Europa se deslocava para ver mercadorias”, dizia Benjamin, em relação às Exposições universais. “Esse espaço é ocupado pela festa popular” (BENJAMIN, 1985, p. 35). O anúncio jornalístico retrata essa esfera mercantil : “Nos primeiros dias de dezembro próximo, deverá abrir-se a exposição de trabalhos do corrente anno da nossa Escola Profissional. Apesar dos contra-tempos que lhe sobrevieram à entrada da 1º quinzena escolar, sabemos que serão expostos na occasião muitos e variados trabalhos de valor e utilidade, todos reveladores da officina techinica do grande estabelecimento. Nesse importante estabelecimento há actualmente verdadeira azáfama no sentido de ficar organizada para o próximo domingo à exposição/vendas dos vários artefactos alli feitos no curto período lectivo deste anno. Os preços que lhes vão ser estipulados estarão de accordo com o momento, isto é, serão razoáveis, ao alcance de qualquer pessoa”. (Diário da Manhã, Ribeirão Preto, 27/11/1932). Os jornais divulgavam em detalhes as Exposições realizadas pelas escolas, expondo sua importância e seus significados. Os trabalhos manuais, de marcenaria, de escultura, objetos de metal, pinturas e desenhos, bordados e rendas confeccionados pelos alunos eram exaltados. Dedicavam um espaço considerável a esses acontecimentos, efetuando um inventário dos produtos expostos. Eram imagens simbólicas do êxito escolar, expostos aos que ali adentrassem. Expunham o ideal de um saber enciclopédico. Pretendiam obter efeitos junto à população visitante, referenciando uma pedagogia do “progresso”.

“Abre-se à hoje, no 4º grupo escolar, a exposição de trabalhos realizados no correr deste anno lectivo. A exposição que permanecerá franqueada ao publico até o dia 2, das 8 às 17 horas, consta das seguintes secções: Secção de Mercearia: estante com porta, cesto para costuras, porta talheres, porta toalhas, bolsas escolares, réguas, estojos, banquinhos, porta vasos, porta copos, bengalas, tabuleiros de jogos, quadros, cantoneiras, porta jornaes, porta cartões, grade para banheiro, cabides, cofres, brinquedos etc. Secção de tecelagem: tapetes, bolsas, cadeirinhas etc. Secção de costuras: roupas brancas, vestidinhos, chapéus, etc. Secção de bordados: diversos”. (Diário da Manhã, Ribeirão Preto, 27/11/1931).

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Os diferentes contextos do trabalho produtivo estão aí dimensionados no agir, no fazer e na comunicação com a natureza. Ações individuais e de grupos produziam significados e a comunicação entre o mundo da natureza e o da cultura. A formação das sensibilidades era fundamental para toda a sociedade. Para o operário, não era suficiente a educação tecnológica, física e moral. Era preciso

ser um operário

completo, honesto, trabalhador, patriota, um “bom cidadão”. Entendia-se que a emoção estética lhe ofereceria, por meio da contemplação do belo, a produção de novas sensibilidades. “Encera-se hoje a soberba exposição da Nossa Escola Profissional. Soberba, dissemos bem, porque os trabalhos ali expostos, feitos pelos alumnos aprendizes do estabelecimento, são realmente perfeitos, não só quanto à feitura, mas também quanto a esthetica. Multiplicam-se, numa infinidade de objetos úteis de ser adquirido pelas pessoas de bom gosto. A nossa população deve aproveitar o dia de hoje para uma visita à exposição. O que há nella são trabalhos de mais de 600 alumnos desta cidade e da zona circunvizinha. Adquiri-los não significa só uma compra feliz, mas também um acto de patriotismo e de solidariedade a esses alumno”. (Diário da Manhã, Ribeirão Preto, 25/11/1933). Consolidava-se e legitimava-se, dessa forma, um discurso que vinha desde o Império, que era o da necessidade de estabelecimento de escolas profissionais e de aulas de desenho, para operários. “A indústria é filha da invenção e irmã do talento e do bom gosto: se a mão executa, a imaginação inventa e a razão aperfeiçoa”, dizia François de Neufchateau, o iniciador das exposições industriais (IN: Kuhlmman, 2001, p. 93). A imprensa sugeria que a população visitasse demoradamente as Exposições, rompendo com o tempo ordinário do cotidiano, adentrando-se no tempo utópico da festa. Formava-se, efemeramente, uma comunidade identitária que admirava o trabalho feito com as mãos. Observa-se que o sistema de representações desencadeado não consistia somente em ordenar o sistema de apreciação; ele determinava as modalidades da observação do mundo, da sociedade e de si próprio; em função dele se organizava a descrição da vida afetiva; era ele, em última instância, que regia as práticas. Nesse sentido, Alain Corbin, citado por Silva, diz que, para se conceber uma história das sensibilidades, das psicologias coletivas ou das mentalidades, há de se compreender inicialmente a história das representações (Silva, 2000).

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Alargando o âmbito pedagógico, as Exposições constituíam-se em espaços de sociabilidades, locais de encontro da população, estabelecendo relações entre a escola e a sociedade.Tinham como mote a exibição dos trabalhos escolares, mas possuíam outros sentidos, tais como promover a educação estética de alunos e de visitantes, dar visibilidade à eficácia da educação escolar e dar credibilidade à educação como regeneração do país. “Abre hoje às 9 horas, no Collegio Santa Ursula, à visita do publico de Ribeirão Preto, uma esplendida exposição de trabalhos de costura, bordado, desenho, e pintura num harmonioso conjunto artístico demonstrativo de incansável labor durante o anno lectivo que estas prestes a findar-se. Todas as exposições do collegio Santa Ursula agradam. Esta, porém, está destinada a realçar-se entre as já vistas, quer pelo grande numero de trabalhos expostos, quer pela delicadeza originalidade e fino acabamento de maioria delles. O visitante encontra, de cada qual mais bello e mais atraentes do que o outro. São toalhas de chá, guarnições de mesa, jogos de quarto, vestidinhos, blusas, tricot, crochet, frivolité, rendas, quadros de esmeralda pintura, almofadas lindíssimas, mobillazinhas e, como se isso não bastasse para attrair por uma boa hora a attenção do visitante, os trabalhos do centro de interesse do 1º anno do curso profissional, cujos themas: café, alimentação, algodão, industria e commercio em geral – interessam indistintamente e revelam adiantado grau intellectual das alumnas que os organizaram.Uma lista completa dos trabalhos expostos seria excessivamente extensa”. (Diário da Manhã, Ribeirão Preto, 28/11/1934). As Exposições, como espetáculos apresentavam uma variedade de estímulos para os sentidos dos visitantes, que nelas encontravam uma multiplicidade de cores, formas, matizes e também podiam tocar nos objetos e sentir o aroma das madeiras e das tintas. Nesse universo simbólico, projetava-se o valor da Educação escolar. A educação estética, tal como é compreendida na modernidade, é parte do contexto de valorização das culturas nacionais e, ao mesmo tempo, da valorização do sujeito autônomo, individualizado e racionalizado, que por isso é capaz de identificar-se com os princípios e valores universalizados, necessários à harmonia social. As Exposições, como vitrines, algumas até envidraçadas, com mercadorias expostas ao público visitante, celebravam as maravilhas escolares, suscitando imagens da educação como um pilar da modernidade. Criavam, então, um imaginário e construíam representações escolares.

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Os diretores dos Grupos Escolares recomendavam, durante o ano, quase como prioridade, o preparo para a apoteose do ano letivo com as Exposições dos trabalhos manuais. Elas representavam o momento de exposição pública e das atividades desenvolvidas na escola. Por meio delas, as famílias dos alunos e a população em geral tomavam ciência da qualidade do trabalho desenvolvido nos estabelecimentos de ensino. Fonte de orgulho de professores, alunos e familiares, as exposições denotavam o capricho, a habilidade, o esforço, o empenho de alunos e de professores. Nelas, eram exibidos cadernos, provas e outros registros do trabalho escolar. Nas Reuniões Pedagógicas, os diretores manifestavam ansiedades quanto ao êxito desses eventos e o desejo de que eles espelhassem o sucesso de sua administração. Reiterando constantemente a importância dessa prática, solicitavam aos professores que não se descuidassem desse projeto. Dizia um deles: “sendo o trabalho manual de grande utilidade na vida prática, no 2º semestre, todas as classes deverão continuar a confecção de trabalhos, que serão expostos na exposição do fim de ano”. (Reunião Pedagógica do Grupo Escolar Guimarães Jr., 25/6/1958). Recomendavam às professoras para que se esforçassem junto aos alunos com a confecção dos trabalhos manuais para a exposição no fim do ano letivo. Faziam um apelo para que “todas as classes apresentassem pelo menos um trabalho de cada aluno”. (Reunião Pedagógica do Grupo Escolar Guimarães Jr., 28/10/1957). Anualmente o Diretor convidava a população para que comparecesse à escola para a festa escolar: “Abre hoje, às 9 horas, à visita do publico de Ribeirão Preto, uma esplendida exposição de trabalhos de costura, bordado, desenho, e pintura num harmonioso conjunto artístico demonstrativo de incansável labor durante o anno lectivo que estas prestes a findarse” (Diário da Manhã, Ribeirão Preto, 28/11/1934).

MÉMORIAS DAS EXPOSIÇÕES

Entrevistas realizadas com ex-alunas que freqüentaram o Curso Normal na primeira década do século XX revelaram uma certa nostalgia em relação à disciplina Trabalhos Manuais: “na sala de Trabalhos Manuais a gente chegou a aprender muitas coisas que hoje o aluno nem sabe como faz. Essa disciplina nos ajudou em nosso dia a dia, em nossas casas”, relatou uma professora. Uma ex-aluna salesiana relatou sobre o orgulho que sentia ao ver os seus trabalhos nas exposições: eu até chorava quando via meu nome naquela colcha toda bordada e todas aquelas pessoas comentando. Lembro-me de uma senhora que até comentou: Nossa, que perfeição! 10

Outra assim se manifestou:“Meus pais ficavam tão felizes quando viam meus trabalho expostos, que contavam para os meus parentes, escreviam para minha avó contando sobre minha dedicação. Todos queriam ver e falar dos meus dote. Fiz todo meu enxoval de casamento com os pontos e bordados que aprendi no colégio”. (Relato de Inês). Essas percepções foram compartilhadas por outras entrevistadas, indiciando marcas de uma cultura, na qual a mulher era educada para justapor a prática profissional aos afazeres domésticos. Mas houve vozes dissonantes que se lembravam dos “traumas” sofridos pela falta de “habilidade” na disciplina: “minha mãe pressionava para que bordasse as toalhas que ela comprava na loja haviam linhas de todas as core para bordar. As toalhas e panos de prato já vinham riscados e eu tinha que escolher as cores e pontos dos bordados. Mas, eu detestava, meu trabalho ficava sujo, todo marcado pelos erros e desmanches nos pontos. Quando chegava na exposição, minha família ficava se lamentando que nem para fazer um sapatinho eu dava conta. Minha mãe ia conversar com a Diretora, expor sua tristeza e hoje penso que ela tinha vergonha por eu não ter jeito para os bordados. Voltávamos para casa quietos e eu amargando meu fracasso. Felizmente saiu do currículo”. Configurada como um microcosmo próprio, encerrado por muros, grades, paredes e outras fronteiras não materiais, durante o tempo das Exposições a escola abria-se à cidade, à rua, à sociedade, aos pais, e às famílias. Nas festas e nas exposições, ela se deixava conhecer e admirar, ainda que de forma teatralizada e figurativa. As Exposições de trabalhos, além de vitrines, como diz Margarida Neves, citada por Kuhlmann, traziam a imagem de teatro, onde se treatralizava um projeto pedagógico do progresso e da modernidade representada pela escola. Essa metáfora é significativa na medida em que engendrava um imaginário social de eficácia, de êxito entre os atores envolvidos. Nas escolas, Ciência, Religião e Artes, imbricadas, reforçando-se mutuamente, produziam uma homogeneidade de sentidos cívicos, patrióticos e culturais, nos espaços da diversidade dos trabalhos manuais. Modernidade e tradição, nesse caso, não eram conflitantes. O novo e o velho conviviam, imprimindo à disciplina Trabalhos Manuais múltiplas temporalidades, onde diferentes lógicas se harmonizavam. Os adjetivos “novo”, “científico” e “moderno” se perfilavam ao lado das exclusões escolares, dos privilégios e do controle das elites. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense, 1983. 11

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