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March 1, 2016 | Author: Anonymous | Category: N/A
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A INSERÇÃO DA MULHER NO PROJETO DE CONSTRUÇÃO NACIONAL EM A MULHER HABITADA DE GIOCONDA BELLI. Joelma de Araújo Silva RESENDE1 (PG-UFPI) Sebastião Alves Teixeira LOPES2 (UFPI)

RESUMO: Este ensaio discute a participação da mulher no projeto de construção nacional da Nicarágua a partir do romance A mulher habitada de Gioconda Belli. A autora exerceu importante papel na luta contra o ditador Somoza, em função do que se exilou no México, na Costa Rica e em Cuba. Com o triunfo da revolução sandinista, retornou ao país em 1979. A mulher habitada é fundamentado nessa experiência de participação na luta contra a ditadura somozista. A narrativa apresenta a temática da mulher e da nação, entrecruzando discurso histórico e ficção na reconstituição de perspectiva pessoal para a história da Nicarágua, que no romance recebe o nome de Fáguas. O objetivo do ensaio é examinar a inserção da mulher no processo de construção da identidade nacional nicaraguense, visto que as duas personagens centrais do romance, Itzá e Lavínia, são mulheres que participam ativamente desse processo. Há a investigação da participação das personagens Itzá e Lavínia no processo de construção nacional de Fáguas, usando-se como aporte teórico principalmente Walby (2000) e Zinani (2006). Trata-se de um ensaio no campo da crítica literária com forte diálogo interdisciplinar, especialmente com a Sociologia, no que diz respeito à discussão de gênero. Observa-se que, apesar do predomínio do patriarcalismo naquela sociedade, há uma participação ativa das mulheres no processo de construção nacional na Nicarágua. Palavras-chave: Gioconda Belli. A mulher habitada. Identidade nacional.

ABSTRACT: This paper discusses the participation of women in the process f construction of national identity in Nicaragua, based on an interpretation of the novel The inhabited 1

Aluna do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Piauí (UFPI), área de Estudos Literários. Atualmente desenvolve projeto de pesquisa intitulado “Mulher e identidade nacional em O país sob minha pele, de Gioconda Belli. Email: [email protected]. 2 Professor Associado do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Letras, junto à Universidade Federal do Piauí (UFPI). Doutor em Língua Inglesa e Literaturas Inglesa e Norte-Americana pela Universidade de São Paulo (USP), 2002. Email: [email protected].

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woman by Gioconda Belli. The author played an important role in the struggle against dictator Somoza and, because of that, she is exiled in Mexico, Costa Rica, and Cuba. With the triumph of the sandinist revolution, she returns to the country in 1979. The inhabited woman is based on this experience of struggle against Somoza‟s dictatorship. The narrative presents the theme of women and nation, intercrossing historical discourse and fiction in the reconstitution of a personal history of Nicaragua, which in the novel receives the name of Faguas. The objective of this paper is to examine the participation of women in the process of construction of a national identity to Nicaragua, since the two main characters of the novel, Itza and Lavinia, are women who effectively take part in this process. We then investigate Itza‟s and Lavinia‟s participation in Faguas‟ process of construction of a national identity, based on some theorectical assumptions as proposed specially by Walby (2000) and Zinani (2006). This is a reseach on the field of literary criticism with a strong interdisciplinary dialogue with Sociology, in what concerns the discussion about gender. We perceive that, despite a predominance of patriarchalism in that society, there is an effective participation of women in the process of construction of a national identity to Nicaragua.

Keywords: Gioconda Belli. The inhabited woman. Identidade nacional.

Introdução

A mulher habitada (1988) é fundamentada na experiência de participação na luta da própria autora, Gioconda Belli, contra a ditadura somozista. Primeiro romance de Belli, foi traduzido para vários idiomas. A obra alcançou grande sucesso e projetou a escritora para fora dos limites do país. A narrativa de A mulher habitada apresenta a temática da mulher e da nação, entrecruzando discurso histórico e ficcional na reconstituição de uma historiografia ficcional da Nicarágua, que no romance recebe o nome de Fáguas. As personagens centrais são Itzá, índia que lutou contra os espanhóis, e Lavínia, jovem que, após estudar Arquitetura na Europa, retorna e se engaja na luta pela libertação de Fáguas. A partir do exposto, pretende-se com essa pesquisa analisar a inserção da mulher no processo de construção da identidade nacional, visto que as duas personagens centrais são mulheres que participam ativamente desse processo.

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A construção da identidade nacional

A mulher habitada apresenta dois momentos históricos diferentes: a época da conquista e colonização da América pelos espanhóis no século XVI e o período da ditadura somozista na Nicarágua no século XX, mais precisamente na década de 1970. O romance tem o mérito de apresentar personagens femininas que ativamente participam do processo de construção de uma identidade nacional para a Nicarágua. Itzá e Lavínia são mulheres que se engajam nos projetos nacionais, em seus respectivos momentos históricos, destacando-se dentre as demais de seu meio. São exemplos de mulheres que lutam contra essas dominações. Ao mesmo tempo em que lutam por um ideal nacionalista, batalham também contra o domínio patriarcal e a posição de submissão assumida pelas mulheres de suas épocas. Bonnici afirma que há uma íntima relação entre o pós-colonialismo e o feminismo: “Em primeiro lugar, há uma analogia entre patriarcalismo/feminismo e metrópole/colônia (...). Em segundo lugar, se o homem foi colonizado, a mulher nas sociedades pós-coloniais foi duplamente colonizada” (BONNICI, 1998, p. 13). Nessa relação entre pós-colonialismo e feminismo, há o objetivo de integrar a mulher marginalizada à sociedade, modificando, assim, as estruturas de dominação. O discurso feminista, em um primeiro momento, preocupou-se em substituir as estruturas de dominação, de modo semelhante ao que ocorreu nas reflexões do discurso pós-colonial. Essa posição evoluiu para uma reflexão sobre “as formas e modos literários e o desmascaramento dos fundamentos masculinos do cânone” (BONNICI, 1998, p. 13). Nessas reflexões, o feminismo passou a questionar temas que o pós-colonialismo havia deixado obscuras, assim como o pós-colonialismo auxiliou “o feminismo a precaver-se de pressupostos ocidentais do discurso feminista” (BONNICI, 1998, p. 13). De acordo com Zinani (2006), a índia Itzá testemunha o início da conquista espanhola na América Central; os índios da Nicarágua formam um grupo de resistência contra os invasores, mas são derrotados depois de muitas lutas. Durante toda a narração, a índia, depois de morta e transformada em laranjeira, relembra os momentos em que lutou contra os espanhóis: Os espanhóis diziam que deviam nos „civilizar‟, fazer-nos abandonar a „barbárie‟. Mas eles, com barbárie nos dominaram, nos despovoaram. Em poucos anos fizeram mais sacrifícios humanos do que nós jamais fizemos na história de nossas festividades. (BELLI, 2000, p. 104)

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Itzá faz suas reflexões sobre a condição feminina na época (século XVI). Ela questiona o fato de, apesar de ser uma guerreira hábil, não ser aceita pelos homens de sua tribo nos momentos decisivos:

Eu era forte e minhas intuições, mais de uma vez, nos salvaram de uma emboscada. Era dócil e freqüentemente os guerreiros me consultavam sobre os seus sentimentos. Tinha um corpo capaz de dar vida em nove luas e suportar a dor do parto. Eu podia combater, ser tão hábil como qualquer um com o arco e a flecha e, além disso, podia cozinhar e dançar para eles nas noites plácidas. Mas eles não pareciam apreciar estas coisas. Deixavam-me de lado quando tinham que pensar no futuro ou tomar decisões de vida ou morte. E tudo por aquela fenda, essa flor palpitante, cor de nêspera, que tinha entre as pernas. (BELLI, 2000, p. 89).

Itzá aprende a manejar o arco e a flecha, atividade considerada masculina, embora seu umbigo tenha sido enterrado sob as cinzas do fogão, segundo o costume asteca. Sua mãe não quer que ela participe da guerra junto com os homens. Embora Itzá tente argumentar que os espanhóis querem destruir seus deuses e ficar com suas terras e seu ouro, e, por isso, ela precisa lutar, sua mãe não concorda: “Disse-lhe que batalha não é lugar para mulheres. O mundo foi disposto sabiamente. O seu umbigo está enterrado embaixo das cinzas da fogueira. Este é o seu lugar. Aqui está o seu poder” (BELLI, 2000, p. 124). Yarince também não queria que ela fosse junto com os homens; queria que ela ficasse no acampamento esperando por eles. Itzá consegue convencê-lo a ir junto com ele. No treinamento com flechas envenenadas, ela foi certeira na pontaria. Consegue, assim, ofício nas batalhas, mas continua cozinhando e tratando dos feridos. Yarince pede que ela chame mais homens para a luta:

Yarince me enviou para as comarcas para que entrasse nos lares e falasse com os homens, clamasse para que eles se incorporassem à luta. “Não traga mulheres”, me disse. Ordenou-me apesar do meu enfurecimento. Ele dizia que era difícil para os homens combater pensando na mulher com o peito aberto aos canhões de fogo. Eu não tinha meditado sobre isto. Ele nunca disse que temia por mim na batalha. (BELLI, 2000, p. 143).

A indígena é considerada uma feiticeira por ter um comportamento considerado transgressor e não comportar-se como as outras índias:

Eu olhava, escondida, de algumas moitas porque não era permitido às mulheres estar presentes nos ofícios dos sacerdotes. Devia ter ficado na tenda, mas de qualquer maneira, havia desafiado o que é próprio para as mulheres, indo combater com Yarince. Era considerada uma „texoxe‟, uma bruxa, que tinha encantado Yarince com o cheiro de meu sexo. (BELLI, 2000, p. 73, 74).

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Apesar de todos os preconceitos, Itzá domina os campos e torna-se uma guerreira contra os espanhóis. Itzá acompanha Yarince até a morte. Para Zinani (2006), Itzá é um modelo de mulher consciente dos problemas de seu país, engajada em uma transformação social. A índia age de acordo com o que considera adequado, sem levar em consideração as convenções sociais e culturais de sua época. Não aceita a maternidade, por não querer que seus filhos sejam escravos dos colonizadores, essa decisão faz com que Itzá rejeite seu companheiro Yarince: Disse: Não, Yarince, não. E depois disse “não” de novo e disse o das mulheres de Taguzgalpa, de minha tribo, não queríamos filhos para as capitanias, filhos para as construções, para os navios; filhos para morrer despedaçados pelos cachorros se fossem valentes e guerreiros. (BELLI, 2000, p. 137).

Itzá luta até a morte, a derrota já era esperada, pois o grupo dos indígenas estava reduzido a apenas dez guerreiros, magros e com olheiras que jamais se renderiam. A década de 1970, período da ditadura de Anastácio Somoza, é a época focalizada na narração da vida de Lavínia. Em Fáguas, onde a personagem morava, o clima era de tensão e descontentamento com o grão-general e seu regime ditatorial. A população manifestava-se nas ruas por conta dos preços elevados do transporte coletivo e do leite. Queimavam-se ônibus. Organizavam-se reuniões sigilosas. Instalava-se a censura. Lavínia já manifesta um sentimento de preocupação em relação ao seu meio. Ao ser designada como responsável pela construção de um Centro Comercial, que deixaria milhares de pessoas sem suas moradias, Lavínia reflete: “E as pessoas? O que aconteceria com as pessoas?, perguntou-se. Mais de uma vez tinha lido sobre desapropriações no jornal. Jamais pensou que participaria de uma”. (BELLI, 2000, p. 25) A Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) organizava ações armadas contra a ditadura dessa época, obtendo apoio popular. Na ficção, a operação Eureka é recriada, ocasião em que a FSLN realiza sua primeira grande ação, quando adentram a casa de um membro ligado a Somoza. Com essa ação, a FSLN conseguiu libertar vários de seus membros que estavam presos, através de uma negociação. Segundo Piva (1986), a FSLN ainda organizou várias operações para enfraquecer o governo de Somoza, conseguindo, enfim, derrotar o ditador. Em julho de 1979, Somoza passa a faixa presidencial para o presidente do Senado, Francisco Maleaños, colaborador do regime. Somoza foge da Nicarágua. Os soldados do exército abandonam suas armas e uniformes e também tentam fugir. Aqueles que não conseguiram escapar tentam eximir-se dos crimes cometidos na ditadura. De acordo com Piva

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(1986), Somoza diz à imprensa de Miami que voltará ao país como presidente. Nesse momento na Nicarágua, a FSLN e o povo comemoram. Lavínia representa uma ruptura em seu meio. Estudou Arquitetura na Itália, sai da casa dos pais e decide morar sozinha, e ao conseguir emprego na empresa de Julian Solera, passa a ser a única mulher com cargo importante. Com uma atuação competente, conquista o respeito dos colegas; isso ocorre, segundo Zinani (2006):

devido a sua personalidade, à educação recebida, e também ao fato de haver nascido num estrato privilegiado da sociedade. O sucesso no emprego consolida, de certa maneira, a situação de Lavínia e, por extensão, da mulher ativa e competente. (ZINANI, 2006, p. 24).

Lavínia, ao contrário das moças de sua idade, não pensava em casar. Saiu de casa por não querer submeter-se aos interesses dos pais:

Talvez algum dia gostasse de casar. Mas não agora. Casar era se limitar, submeterse. Devia aparecer no caminho um homem muito especial. E talvez nem mesmo assim. Podia-se morar juntos. Não precisavam de papéis para legalizar o amor. (BELLI, 2000, p. 22).

Itzá questiona os pontos positivos e negativos da vida da mulher moderna. Até que ponto valeria a pena trabalhar fora de casa? Lavínia não tinha a alegria proporcionada pelos filhos e por um marido. Será que era feliz?

Lentamente vou compreendendo este tempo. Preparo-me. Observei a mulher. As mulheres parecem já não ser subordinadas, mas sim pessoas principais. Inclusive elas têm serviçais. E trabalham fora do lar. Ela, por exemplo, vai trabalhar pelas manhãs. Não sei quanta vantagem pode haver nisto. Nossas mães, pelo menos, só tinham como trabalho o serviço da casa e com isso era suficiente. Diria que talvez era mais bem aceito, que tinham filhos nos quais se prolongar e um marido que lhes fazia esquecer a estreiteza do mundo abraçando-as à noite. Pelo contrário, ela não tem essas alegrias. (BELLI, 2000, p. 31).

As outras mulheres presentes no romance perpetuam idéias machistas. A condição de submissão representada por Sara, melhor amiga de Lavínia, explica-se historicamente pela cultura desenvolvida na América Latina, que era patriarcal e ligada a tradições, em que o lugar da mulher é o ambiente doméstico. Sara, segundo Zinani (2006): constitui a antítese de Lavínia (...). Sara casara em grande estilo (...) jamais se preocupara em ser ela mesma (...). Para ela, seguir cegamente o marido é natural, dessa maneira, não entende a vida de Lavínia que evita o casamento e prefere morar sozinha. Sara, efetivamente, concretiza o sonho dos pais de Lavínia. (ZINANI, 2006, p. 97).

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A princípio, Lavínia não quer envolver-se no Movimento, acha um absurdo que Felipe participe disso. Quando Sebastian aparece ferido em sua casa, fica sem saber como agir, pois Felipe pede que ela deixe que o companheiro fique; por outro lado, ela tem muito medo do que pode ocorrer:

Jamais imaginou que lhe aconteceria, justamente a ela, algo semelhante. Nem em seus mais febris sonhos ou pesadelos. Os “guerrilheiros” eram algo remoto para ela. Seres de outra espécie. Na Itália, admirou, como todos, o Che Guevara. Lembrava o fascínio do seu avô por Fidel Castro e a “revolução”. Mas ela não era dessa estirpe. (BELLI, 2000, p. 70).

Quando tem contato com Flor, Lavínia resolve vencer o medo e fazer parte do Movimento. A princípio, Felipe não sabe. Quando este descobre, fica alterado e diz que ela não era madura o suficiente para participar do Movimento. Lavínia também se altera, acreditando que Felipe age por machismo:

Você nunca pensaria que estou madura para o Movimento. Nem te convém. Você quer conservar o seu nicho de “normalidade”, a margem de seu rio pelos séculos dos séculos; sua “mulherzinha” colaborando sob sua direção sem se desenvolver por si só. Por sorte, Sebastián e Flor não pensam como você. (BELLI, 2000, p. 162).

Lavínia é enfática ao afirmar que não havia entrado no Movimento por causa de Felipe. Fáguas também era seu país e ela sonhava-o diferente, melhor. Incomodava-a a reação de Felipe. Ao fazer o juramento pelo Movimento mais tarde, com Flor, Lavínia sentiu um misto de emoção e medo, tentou se concentrar nas palavras que dizia, afinal estava jurando ser fiel ao Movimento a ponto de perder sua própria vida por isso. Lavínia, em outro momento, diz a Flor que as mulheres têm mais capacidade afetiva e que os homens deveriam aprender isso; assim como as mulheres devem aprender a ter autoridade com os homens. Lavínia acredita que as mulheres deveriam „feminilizar‟ o ambiente, principalmente durante a luta, que é um ambiente tão duro. Flor não concorda e diz o contrário, o que se deve fazer é reprimir o feminino para tentar competir em um ambiente considerado masculino. Em uma passagem do livro, Sebástian (membro da FSLN) e Lavínia conversam sobre a participação de mulheres no Movimento. Sebástian diz que as próprias mulheres são machistas e perpetuam esse comportamento através de suas ações:

O Movimento, em seu programa, estabelece a libertação da mulher. De minha parte, eu tento evitar a discriminação contra as companheiras. Mas é difícil. Quando se coloca homens e mulheres em um aparelho, as mulheres assumem o trabalho

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doméstico sem que ninguém tenha ordenado, como se fosse natural. Depois pedem aos companheiros a roupa suja... (BELLI, 2000, p. 192).

Sobre o envolvimento das mulheres em projetos nacionalistas, Walby (2000) questiona até que ponto elas estão engajadas como os homens. Por que Itzá e Lavínia envolveram-se nessas questões? Foi voluntariamente? Ou somente para acompanhar seus companheiros? Yuval-Davis e Anthias (apud Walby, 2000) afirmam que as mulheres são tão engajadas com o projeto nacional quanto os homens. Quando esse projeto inclui interesses femininos, elas tendem a apoiá-lo mais. Com o passar do tempo, o Movimento passa a dominar a vida de Lavínia. Ela participa de um treinamento onde aprende a manusear armas. Passa a se distanciar cada vez mais dos pais e do círculo social que freqüentava. Quando volta a freqüentá-lo é no intuito de obter informações sobre o general Vela. Todas suas ações voltam-se para o Movimento:

De repente tinha ficado sozinha no mundo. Sozinha e angustiada. Percebeu até onde o Movimento representava quase a totalidade de sua vida: sua família, seus amigos. Durante meses, nem sequer tinha pensado em ir ao cinema, se divertir. Todas as festas a que tinha comparecido foram para ela missões encomendadas. (BELLI, 2000, p. 332).

Sobre o predomínio do patriarcalismo, Beauvoir (1970) afirma que a história foi feita pelos homens; recusar a cumplicidade com estes seria renunciar às vantagens que a aliança com seus superiores poderiam conferir-lhes. A mulher vassala, por exemplo, não quer perder a segurança proporcionada por seu homem suserano. Para Beauvoir, esse é um caminho passivo, alienado, nefasto, porque a mulher é privada de valores. A mulher não se reivindica como sujeito, por sentir o laço necessário que a prende ao homem sem reclamar reciprocidade dele, muitas vezes, satisfazendo-se com o papel de Outro. É assim que vive Sara; casada com Ádrian, é uma dona de casa perfeita:

Cada um se diverte com o que faz. Eu gosto de falar com o açougueiro, me diverte pesquisar preços no mercado, arrumar o jardim, ver crescer as begônias. Desfruto das coisas cotidianas. O que começo a sentir estranho é o partilhar a cama, o banheiro, o chuveiro, com um ser que vem de noite e vai embora de manhã; que leva uma vida tão diferente... (BELLI, 2000, p. 176).

Em Nye (1995), encontra-se o mesmo raciocínio de que o lugar da mulher é o lar, mas não como chefe, pois a sociedade civil é constituída por lares com chefes masculinos, que são os porta-vozes adequados para a família. Com o capitalismo e o industrialismo a situação das mulheres não melhorou. Ela continuou subordinada aos homens e seu trabalho não era

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valorizado; eram cada vez mais excluídas do mundo público e das áreas onde se situava o poder.

Considerações finais

Em A mulher habitada as personagens Itzá e Lavínia possuem comportamentos diferentes em relação ao papel social das mulheres de suas épocas. Itzá não só acompanha Yarince, mas participa ativamente da luta contra os espanhóis. Aprende a usar armas e não aceita ser mãe em prol de seus ideais nacionalistas. No século XX, Lavínia (ao ser “habitada” por Itzá) apresenta um comportamento semelhante ao da índia. Sai da casa dos pais (que querem vê-la casada), não anseia pela união matrimonial e, assim como Itzá, não é uma mera espectadora do conflito pelo qual seu país está passando. Lavínia, ao aceitar participar do Movimento de Libertação Nacional, também aprende a manusear armas e participa da “Operação Eureka”. Portanto, percebe-se que as personagens centrais do romance de Gioconda Belli possuem um comportamento transgressor. No decorrer dos acontecimentos percebe-se que Itzá tem seus próprios ideais e Lavínia engaja-se na luta contra a ditadura por ter sido habitada pela índia. Itzá e Lavínia tentam fugir do modelo de vida patriarcal, comportando-se de maneira transgressora em relação ao seu meio e tentando construir sua própria história. Itzá e Lavínia podem ter a princípio se engajado na luta por causa de seus companheiros, mas com o tempo, envolvem-se cada vez mais no projeto nacional e agem por conta própria, atuando, portanto, como participantes ativas das lutas nacionais. As duas personagens vivem em contextos onde predominam idéias patriarcais e sentem necessidade de romper essas barreiras. Itzá não quer ser como as outras índias, que têm muitos filhos, cuidam dos afazeres domésticos e ficam aguardando o retorno de seus companheiros. Itzá e Lavínia representam a transgressão do comportamento feminino, porque em suas diferentes épocas ainda prevalece a submissão das mulheres. Em A mulher habitada passado e presente se fundem para mostrar que a mulher pode ser inserida na construção nacional assim como os homens. A mulher deixa de ser um objeto e passa a ser sujeito atuante em espaços que eram predominantemente masculinos. Percebe-se, com Itzá e Lavínia, a tentativa de busca por um país melhor através da negação da tradição patriarcalista. As duas personagens conseguem engajar-se nos movimentos de resistência e pagam com suas vidas por isso. Itzá recusa a maternidade, desobedece a mãe e Yarince, que não queriam que ela participasse da guerra. Lavínia vai contra o meio em que foi criada e

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passa a fazer parte do movimento por acreditar que Fáguas pode livrar-se da ditadura. Em ambas as personagem, há o desejo de participação efetiva no processo de construção da identidade nacional, apesar de tudo e todos conspirarem contra.

Referências

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970. BELLI, Gioconda. A mulher habitada. Rio de Janeiro: Record, 2000. BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana (org.) Teoria Literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 2 ed. Maringá: EdUEM, 2005. NYE, Andrea. Teoria Feminista e as Filosofias do Homem. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1995. PIVA, Márcia Cruz; PIVA, Marco Antonio. Nicarágua: um povo e sua história. São Paulo: Paulinas, 1986. WALBY, Sylvia. A mulher e a nação. In: BALAKRISHMAN, Gopal. Um mapa da questão nacional. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000. ZINANI, Cecil Jeanine Albert. Literatura e gênero: a construção da identidade feminina. Caxias do Sul, RS: EdUCS, 2006.

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